Análise do conto \"Bernice Corta o Cabelo\", de Scott Fitzgerald. Lote 42 (2016)

June 1, 2017 | Autor: Juliana Cunha | Categoria: American Literature, F. Scott Fitzgerald, Bernice Bobs Her Hair
Share Embed


Descrição do Produto

Bernice corta o cabelo Tradução e posfácio Juliana Cunha

F. Scott Fitzgerald Ilustrações Mika Takahashi

posfácio

84

bernice: uma maria antonieta improvável Há vários contos de F. Scott Fitzgerald [1896 - 1940] que funcionam muito bem para leitores jovens, adolescentes mesmo. Pense em Um Diamante do Tamanho do Ritz, por exemplo, com todo aquele fascínio juvenil pelo amigo rico expresso no absurdo de ele ter no quintal de casa um diamante que é literalmente maior do que um hotel. Essa é a aposta desta edição: vamos fazer um Fitzgerald para adolescentes. Mas como? Adaptando o texto? Pondo rodinhas? Não, não. Basta decidir que este livro é para adolescentes e ele assim será, o conto faz o trabalho por si. O começo da história talvez pareça um pouco aborrecido, aquela descrição da festa, referências a uma realidade distante da nossa, ricos empostados. Mas a coisa logo engrena em paquera, inseguranças juvenis, vingança, pertencimento. Tem até um utilíssimo manual de como cuidar das sobrancelhas. No conto, Bernice e Marjorie se entrincheiram na defesa de dois modelos distintos de feminilidade. Ser mulher para Bernice é ser doce e suave, meiga e romântica. O que importa para ela são os laços com outras mulheres. Note que, até a conversa decisiva em que Marjorie diz que todos acham sua prima uma chata, Bernice não estava tão incomodada com seu pouco sucesso com os garotos. Sua queixa principal era a falta de atenção da prima. Seu objetivo com aquela viagem era criar

85

um laço profundo e sentimental com a prima, não atrair a atenção de um bando de rapazes. Para ela, o desejo masculino era secundário e viria de graça. Até o fato de não figurar entre as meninas mais populares de sua cidade era percebido por ela como uma coisa positiva, sinal de que vinha desempenhando sua feminilidade corretamente. Sendo rica e bonita, Bernice sabia que faria um bom casamento, que seria tirada para dançar num baile. Isso bastava, ela não queria mais nada dos homens, nem eles eram a fonte de sua autoestima.   Já para Marjorie, o desejo masculino é tudo. Ter um homem assegurado e casar-se com ele não basta. Ela precisa estar permanentemente cercada de atenção masculina, incluindo a atenção de garotos que ela despreza e com quem não pretende ficar. Ela não se importa com o que outras mulheres pensam dela, não se importa em criar vínculos com mulheres, em ter amigas, em ser aprovada pelas mais velhas. As outras garotas estão ali, ao redor. Ela aceita algumas delas no grupo, mas compete com todas pela atenção masculina e julga cada uma delas conforme sua destreza em conseguir essa atenção. Para Marjorie, o valor de uma mulher não está na sensibilidade ou mesmo na beleza, mas sim numa espécie de inteligência voltada para a sedução e para o fazer-se agradável. Daria para dizer que Marjorie é uma abelha rainha — se ignorássemos que abelhas rainhas vivem cercadas de fêmeas e matam o zangão.

86

Numa leitura apressada, é fácil achar que Bernice é ultrapassada e Marjorie, moderna, mas o conto vai costurando os limites dessa modernidade. Por exemplo: os cuidados com a aparência, que costumam ser vistos como futilidade de mulherzinha. Marjorie é muito mais empenhada neles do que Bernice. Para ela, uma mulher precisa ter uma aparência delicada e ser firme nos sentimentos. Essa firmeza de sentimentos não se baseia em um ideal de independência e amor próprio, mas na ideia de que tudo que uma mulher não pode ser é chata, e a melhor forma de não ser chata é anulando seus próprios sentimentos. Além da exigência de ser bonita — um enfeite, quase —, a mulher deve ser uma grande fonte de entretenimento masculino. Daí as únicas pessoas a dizerem algo minimamente espirituoso na história serem mulheres. Os homens adultos são simplesmente invisíveis enquanto os garotos são absolutamente insossos, quando não são francamente abestalhados. O que podemos dizer do pobre Warren, pivô de tanta discórdia? É um riquinho sem contornos individuais que tem a pachorra de repetir uma cantada tão fraca quanto “sabia que você tem uma boca incrivelmente beijável?”. Intercambiáveis como na dança, você pode trocar Warren por Stoddard, por exemplo, sem nenhum prejuízo para a história — ou para as moças envolvidas. Burro demais para compreender o jogo de Marjorie, Warren apenas segue o fluxo de ações pensadas e perpe-

87

tradas por mulheres. No fim do conto, quando ele sacrifica docilmente seu interesse amoroso e troca Bernice no segundo em que ela deixa de ser uma companhia adequada, o leitor se percebe incapaz de sentir raiva dele, do mesmo modo que não sentimos raiva de seres inanimados que atrapalham nosso caminho. Por mais limítrofes que sejam, o pertencimento social dos homens está assegurado. Já as mulheres precisam ser impecáveis e soltar uma tirada genial a cada festa se quiserem ter alguma chance. Elas se equilibram entre o julgamento social representado pelas senhoras do mezanino e o crivo dos homens jovens. Marjorie se coloca como um espetáculo para os homens. Tudo nela é pensado e ensaiado para usufruto masculino. No fim, são eles que importam, diz ela. Até as coisas que parecem avanços — ler coisas mais interessantes do que a ladainha romântica da prima, ser sexualmente liberada — merecem uma segunda leitura. Marjorie diz que moças carolas têm inveja de meninas como ela, que sabem se divertir. Mas não tem nenhuma cena em que ela pareça estar particularmente entretida. Pelo contrário: toca sua vida social como uma série de tarefas burocráticas.   Quem consegue se divertir estando sempre preocupada em fazer um comentário genial, em rebater os comentários das outras moças, em paparicar os coitadinhos, em cuidar para que a prima não alugue o mesmo garoto a festa inteira? Uma das observações que Bernice faz

88

sobre a prima é que ela nunca fica de risinhos, como as outras moças fazem. Não dá para saber se ela tira algum prazer da leitura ou se os livros são apenas uma fonte de comentários inteligentes e até na cena em que responde as cartas dos paqueras, Marjorie demonstra uma animação geralmente reservada ao preenchimento de formulários do Imposto de Renda. Enquanto as pessoas se divertem, Marjorie proporciona a diversão, administrando e manipulando os desejos dos outros. Seu prazer está em ser a fonte do prazer alheio. Por fim, tem aquele momento triste em que o narrador descreve a expressão vazia que ela faz enquanto transa com universitários bêbados. É só um comentariozinho en passant para descrever a forma como ela olha a prima, mas enche o leitor de um senso fundo da tristeza e humilhação dessa garota que se vende como tão alegre e no controle da situação. Essa premeditação de Marjorie se contrapõe à displicência de Warren. Note que a única ação direta do moço é ir atrás da garota. Todo o resto, até buscar o cigarro no paletó, é feito de modo passivo, sem grande intenção ou compromisso. Warren é daquele tipo de gente que vaga pelo mundo se perguntando “o que tem pra mim aí?” enquanto entrega quase nada de si aos outros. O ar de facilidade com que os homens ricos tocam a existência aparece não apenas no trato com as mulheres, mas na vida em geral. Ao falar de Stoddard pela primeira

89

vez, por exemplo, o narrador não diz que ele é formado em direito em Harvard, mas sim que tem um diploma de Harvard pendendo sobre sua escrivaninha. Essa forma de colocar as coisas dá um tom de descompromisso, parece que o diploma simplesmente surgiu ali, sem que seu dono tivesse grande participação nessa conquista. Ao manipular a prima para que ela corte o cabelo, Marjorie obriga Bernice a cruzar a fronteira entre uma ameaça sedutora de ruptura e a ruptura em si. Transforma a prima na improvável Maria Antonieta de uma revolução de costumes. Ao dizer que um dia desses vai cortar o cabelo curtinho, Bernice parecia um espírito livre, uma pessoa moderna e descolada enquanto mantinha seu cabelo seguramente longo. Ao efetivamente cortar o cabelo, ela precisa se deparar com o significado desse gesto numa cidadezinha interiorana dos anos 1920. Prestes a sentar na cadeira do barbeiro, Bernice acredita que aquele será o ritual que marcará sua entrada definitiva no grupo das meninas populares. Não entende de imediato que é justamente o contrário, sua expulsão. Cortar o cabelo, afinal, é um ritual clássico de entrada em grupos, e o conto já havia abordado essa questão dos rituais de ingresso ao mencionar o batismo de Draycott, por exemplo. Quando passam no vestibular, muitos adolescentes raspam o cabelo e participam de trotes que envolvem pequenas humilhações ou punições para marcar sua incorporação ao bando.

90

O cabelo é ainda um símbolo de feminilidade tão importante que até hoje algumas pessoas se chocam quando uma menina corta os fios bem curtos. Na década de 1920, quando se passa a história, era bem pior. O cabelo curto era um manifesto agressivo assinado apenas por mulheres muito liberadas e seguras de si. Bernice, como sabemos, não era nem queria ser essa mulher. Já Marjorie topava a ruptura até a segunda página. Que moças invejosas a considerassem galinha, podia até ser. Mas um cabelo curto era o tipo de coisa que agrediria demais as mulheres do mezanino e, no fim, elas importam. Vale notar que essas instâncias (senhoras do mezanino e pretendentes jovens / adequação social e desejo), que parecem estar dissociadas no começo do conto, surgem unidas no final para julgar as moças. No fim, os rapazes não estão tão distantes assim das senhoras do mezanino, e o desejo não é incólume à adequação. Em dado momento, Bernice cita Oscar Wilde ao dizer que tudo que se pode fazer pelas pessoas é alimentá-las, diverti-las ou chocá-las. Ao longo do conto, ela faz essas três coisas: passa da boa moça que cozinha e promove jantares em casa à garota popular e alma das festas, até chegar à condição de pária social que pesou a mão na hora de se transformar em uma “vampira da sociedade”. É de se perguntar o que Bernice fará depois desse treinamento militar na casa de Marjorie. Voltará a alimentar as pessoas em Eau Claire?

91

Vai preferir diverti-las com seus novos dotes sociais? Ou vai se especializar em chocá-las? Aquele “jeito inteiramente novo” de Bernice, conquistado no minuto em que decide dar o troco na prima, indica que ficar na mesma ela não vai. E Marjorie? Reconquistar sua popularidade com o cabelo curtinho (ou mandá-la às favas de uma vez) parece um desafio mais à altura de seus talentos do que impressionar aqueles arremedos de homem que ela costumava entreter. Juliana Cunha

92

Juliana Cunha é jornalista na Folha de S.Paulo e mestranda em teoria literária na USP. Mantém o blog Já Matei por Menos, que deu origem ao livro nº 1 da Lote 42.

Mika Takahashi é designer por formação, ilustradora por profissão e quadrinista por diversão. Trabalhou com produções de animação e dá aula na Quanta Academia de Arte.

Copyright © 2016 by Lote 42 para a presente edição. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora. Texto fixado conforme as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995).

Edição geral João Varella, Cecilia Arbolave e Thiago Blumenthal Tradução e posfácio Juliana Cunha Ilustrações Mika Takahashi Capa, projeto gráfico e composição Daniel Justi Preparação e revisão Sofia Nestrovski 1ª edição, 2016 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Vagner Rodolfo CRB-8/9410 F553b Fitzgerald, F. Scott, 1896-1940 Bernice corta o cabelo / F. Scott Fitzgerald ; traduzido por Juliana Cunha ; ilustrado por Mika Takahashi. - São Paulo : Lote 42, 2016. 93 p. : il. ; 10,5cm x 29,7cm. ISBN: 978-85-66740-19-6 1. Literatura americana. 2. Conto. I. Cunha, Juliana. II. Takahashi. III. Título. CDD 869.89923 CDU 821.134.3(81)-31 www.lote42.com.br facebook.com/lote42 twitter.com/lote42 Bernice Corta o Cabelo é o livro nº 17 da Lote 42.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.