Análise do conto \"Uma galinha\", de Clarice Lispector

July 19, 2017 | Autor: F. De Souza Costa | Categoria: Contos
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“UMA GALINHA”: ANÁLISE EXPANSIVA DA NARRATIVA, A PARTIR DE OPERADORES ANALÍTICOS Felipe de Souza Costa1 A partir dos estudos e discussões realizados nas aulas do curso de especialização em Estudos da Linguagem, disciplina Discurso Literário: Prosa, ministrada pelo Prof. Dr. José Maria Rodrigues Filho, propomos, nesta análise, ampliar a leitura feita em sala de aula, bem como as possíveis construções de sentidos que se dão a partir dela, do conto “Uma galinha”, de Clarice Lispector. Para tanto, relacionaremos a materialidade linguística proposta a operadores analíticos, oriundos da teoria literária. Partiremos, portanto, de um método muito utilizado no exame de textos literários: a divisão do corredor isotópico. Numeramos os parágrafos do conto e obtemos a sequência de 1 a 16. Trata-se de um procedimento usual, o qual objetiva guiar a leitura de maneira didática. A partir de então, trataremos dos assuntos nos demais parágrafos seguindo a referida ordem. Antes, porém, falaremos em linhas gerais de alguns elementos que se coadunam com a proposição desta. Iniciaremos com a análise actancial, cuja finalidade é descrever a funcionalidade dos elementos das narrativas. O eixo axial, conhecido também como eixo das ações, no qual encontramos um arrolamento circunstancial entre sujeito e objeto, tem procedência na teoria proxêmica. O ovo, no conto de Clarice, surge como uma provocação e passa a ser um arquiactante, aquele que é mais importante no eixo axial. Ele é o transformador. Constatamos tal afirmação ao observarmos que, após separar os corredores isotópicos, o ovo surge exatamente no meio, ou seja, no parágrafo 8. A grande maioria dos parágrafos costuma utilizar, com maior recorrência, os recursos narrativos narração, descrição e dissertação. No tocante à organização sintática e gráfica, Clarice optou por períodos de coordenadas assindéticas, sendo que a disposição do texto impõe certa velocimetria 1

Licenciado em Letras e especialista em Estudos da Linguagem pela Universidade de Mogi das Cruzes.

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ao conto. Ela inicia com o famoso “era uma [...vez...]”, situando o leitor no cronotopo, é o que a teoria literária chama de forma fabular. O contributo deste início já pressupõe que a autora, na seleção paradigmática, não mede esforços em se aproximar de seu interlocutor. O título, também, nos aponta que, embora seja utilizado um animal, a aproximação com o ser humano é inevitável, uma vez que nas ideias Aristotélicas, temos uma imbricação muito pujante entre zoé (animais, escravos e mulheres) e biós (homem). Falaremos, do mesmo modo, do corte epistemológico machista no conto, que hoje é feito pela crítica feminista. A leitura completa, antecedente à análise detalhada, de “Uma galinha” propicia-nos uma abertura para que possamos, a partir da semiótica da narrativa, fazer uma divisão do enredo em partes, episódios, cenas ou quadros, apontamos abaixo uma sequência semiológica, dividida em escaletas, útil e abrangente:

G A L I

Domingo Fuga

Perseguição

Captura

Ovo

Afetividade

Matam-

Passaram-

família

na

se os

Abate Choca

N

Vida na

Comida

anos Membro

Comemna

H A

Nascimento, vida e morte = Começo, meio e fim

Esta cena divide o antes e o depois.

Aspecto cíclico – Ligado à vida

O valor sêmico de um esquema como esse descrito acima ajuda-nos a compreender de maneira ilustrada o caminho que o enredo constrói, a partir das materialidades linguísticas do texto. Conseguimos observar, de maneira sintética, 2

que a galinha após protagonizar diversas ações repete o ciclo normal da vida, a saber: nasce, vive e morre. Há, de igual modo, a visualização da cena que divide a intriga, a qual está localizada exatamente no meio do eixo axial. Dando continuidade à ordem isotópica, testemunhamos que no primeiro parágrafo, conseguimos perceber que, além da seleção lexical, a qual lembra a forma fabular, há alguns indícios que nos permitem supor o fim da galinha, como por exemplo, os termos “ainda vivia” pressupõe que morrerá e “não passava de nove horas da manhã” conjetura que esse horário antecede o almoço e indica que essa precedência aponta para o preparo. No segundo, começamos a identificar certa zoomorfização da galinha, ela passa a receber atributos dos seres humanos. Tem-se uma oração curta, porém com uma unidade de significação muito intensa: “Parecia calma.”, o adjetivo sugere que a galinha não é tão animalesca assim. O terceiro parágrafo arresta-se em descrever com riqueza de detalhes a perseguição. Destacamos, neste momento, uma análise morfológica do substantivo perseguição que aparece numa passagem densa desta parte do texto: “A perseguição tornou-se mais intensa”. A palavra destacada alude a outras classes gramaticais

que

estão

atreladas

aos

sentidos

criados

na

narração:

PerseguiçãoPerseguirPerseguidaPerseguidor. A rede semântica criada por um simples substantivo mostra que a seleção do eixo paradigmático é crucial na construção de um discurso literário. Na sequência, o quarto e o quinto parágrafos constituem uma dissertação filosofante, cuja tônica acentua-se num trecho em que os ideais machistas se destacam de maneira sutil e, ao mesmo tempo, extremamente duro para uma sociedade como a nossa: “Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria uma galo em fuga.” Entendemos, pela própria materialidade linguística manifesta no texto, que o discurso da machidão subjaz a consciência filosófica do narrador e abre espaço para enormes discussões acerca desta questão, uma vez que a galinha jamais se igualaria à superioridade imposta do galo. O sexto, no entanto, retoma a

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narrativa e se instaura como um retorno ao equilíbrio, de modo que ele encerra a micronarrativa da fuga. O sétimo manifesta-se como um divisor de águas, uma vez que faz um prenúncio de uma das cenas mais importantes do enredo: a aparição do ovo. Temos no trecho “De pura afobação a galinha pôs um ovo” um momento que chamamos de fulcral. A verdade epifânica ou reveladora desta frase sugere uma causalidade, cujo fundo filosófico e biológico a coloca no mundo do real. Por fim, o parágrafo encerra abrindo espaço para o outro entrar em cena, a marcação dos dois pontos introduz a fala do outro e nos faz entender que, neste instante, o narrador sai de cena. Em tempo, podemos perfazer uma analogia com a teoria do discurso, em que o viés da polifonia remete a oralidade e esta, por sua vez, recorre à gênese do conto. O texto passa a ser, partir deste ponto, um diálogo entre múltiplas vozes. O oitavo parágrafo é uma representação do discurso direto, pois fazendo um estudo morfológico podemos perceber que, anteriormente a ele, temos um substantivo que se aproxima de um verbo de elocução e que introduz a fala: “saiu aos gritos”. Temos na fala da menina uma clássica aproximação da oralidade: “Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!”. O vocativo, bem como a repetição dele, expresso pelo substantivo “mamãe” e os pontos de exclamação ilustram bem essa questão. O nono traz uma descrição carregada de tímia e o destaque se dá no trecho “Esquentando seu filho”, uma vez que o gerúndio do verbo esquentar indica um imbricamento entre os recursos descritivo e narrativo. Em contrapartida, a humanização do episódio com a frase “seu filho” faz-nos ratificar que esta metaforização é própria do discurso literário. Há, também, a frase “nem alegre, nem triste”, a qual, ligando intertextos, podemos concluir que pode se tratar de uma apropriação de Cecília Meireles em um de seus célebres poemas. O décimo, décimo primeiro e décimo segundo seguem os mesmos moldes do oitavo parágrafo. O décimo terceiro, décimo quarto e décimo quinto apropriam-se da narração analéptica (no passado) imbricada com a dissertação, a fim de que se possa

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instaurar um narrador sintetizador, cujo objetivo é avaliar o ocorrido para chegar à conclusiva. Por fim, abordamos o último parágrafo. Em semiótica podemos dizer que a conclusão é terminativa e que se constitui de um final que visa à síntese cognitiva (do autor) com relação à obra. Percebemos, claramente, que o final, embora inovador, já era esperado desde o primeiro parágrafo quando foi sentenciado: “ainda vivia”. Faz-nos, também, entender que o tempo da memória historiográfica sempre se instaura como determinante para agir sobre o passado, presente e, quem sabe, o futuro. E que o ciclo de vida, inerente a todo ser vivo, é inevitável, cedo ou tarde ele se encerrará.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FRANCO JUNIOR, Arnaldo. Operadores de Leitura da Narrativa. In BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lucia Osana (orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: EDUEM, 2003. LISPECTOR, Clarice. Uma galinha. In Laços de Família. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. RODRIGUES FILHO, José Maria. “Uma galinha”: um conto modelar de Clarice Lispector. In Forma breve 1: O conto. Universidade de Aveiro: 2003, nº 1.

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