Análise do Filme Vida de Inseto à luz da Biologia Animal.pdf

June 2, 2017 | Autor: Ana Ramos | Categoria: Popular Culture, Scientific Divulgation, Cultural Zoology
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OLIVEIRA, A.B.R. et al. 2016. Análise do filme de animação “Vida de Inseto” à luz da Biologia Animal. In: Da-Silva, E.R.; Passos, M.I.S.; Aguiar, V.M.; Lessa, C.S.S. & Coelho, L.B.N. (eds.) – Anais do III Simpósio de Entomologia do Rio de Janeiro. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, p. 166-181.

ANÁLISE DO FILME DE ANIMAÇÃO “VIDA DE INSETO” À LUZ DA BIOLOGIA ANIMAL Ana Beatriz Ramos Oliveira1,4 Beatriz Marinho Hörmanseder1 Elidiomar Ribeiro Da-Silva2 Luci Boa Nova Coelho3 RESUMO O filme “Vida de Inseto” foi minuciosamente assistido e foram anotados os aspectos morfológicos, biológicos e comportamentais abordados na obra. A utilização de filmes em ambiente escolar vem se tornando cada vez mais popular, seja por prender a atenção ou mesmo facilitar a didática. Hoje em dia tem-se um grande catálogo de filmes ligados à divulgação científica e cultura pop. Tais filmes, com um grande teor científico, são adequados para estudos de ecologia, taxonomia, dentre outras áreas. O filme abordado no presente trabalho retrata uma diversidade entomológica, rica em detalhes, cheia de interessantes relações inter e intraespecíficas. Palavras-chave: cultura pop; divulgação científica, Zoologia Cultural. ABSTRACT ANALYSIS OF ANIMATION FILM "A BUGS’ LIFE" IN THE LIGHT OF ANIMAL BIOLOGY The movie "A Bug's Life" was closely watched and were noted morphological, biological and behavioral aspects addressed in the work. The use of films in school environment is becoming increasingly popular, either by eye-catching or even facilitate teaching. Today we have a large catalog of films related to science communication and pop culture. Movies with a high scientific content, perfect for ecological studies, as well as taxonomic and other areas. The studied film portrays an entomological diversity, rich in detail, with interesting inter and intraspecific relationships. Keywords: Cultural Zoology; popular culture; scientific divulgation.

___________________ 1 Departamento de Paleontologia, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 2 Laboratório de Entomologia Urbana e Cultural, Departamento de Zoologia, Instituto de Biociências, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 3 Laboratório de Entomologia, Departamento de Zoologia, Instituto de Biologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 4 Autor correspondente: [email protected]. 166

INTRODUÇÃO Nos últimos anos, o aproveitamento de elementos da cultura pop nas produções acadêmicas vem ganhando destaque (NEMÉSIO et al., 2013; DA-SILVA et al., 2014a, 2014b; CASTANHEIRA et al., 2015). Produções cinematográficas são cada vez mais utilizadas na escola, embora ainda existam poucos estudos sobre a sua aplicação no ambiente escolar (COSTA & BARROS, 2014). Os filmes possuem potencialidade pedagógica especial e podem dar suporte a novas modalidades educativas, com possibilidades de utilização em todos os níveis e disciplinas. Material cultural acessível e de fácil aceitação, os filmes fazem parte da vida cultural das crianças e adolescentes, sendo uma ótima ponte entre os saberes do aluno e o conhecimento sistematizado. Diante de tal cenário, sua utilização para fins didáticos é natural e proveitosa. Nada mais é do que um meio de divulgação científica divertido e que prende a atenção dos alunos. Como todos, independentemente da faixa etária, gostam de assistir filmes, nada melhor do que adaptar o conteúdo de forma didática. A utilização de filmes em ambiente escolar vem se tornando cada vez mais popular, seja por prender a atenção ou mesmo facilitar a didática (COELHO & DA-SILVA, 2015). Hoje em dia, tem-se um grande catálogo de filmes ligados à divulgação científica e cultura pop, filmes com um grande teor científico, perfeitos para utilização em aulas sobre ecologia, taxonomia, dentre outras áreas abordadas. O filme abordado no presente trabalho, "Vida de Inseto" (Figura 1), retrata uma diversidade entomológica, rica em detalhes. Além de interessantes relações inter e intraespecíficas, que podem ser abordadas até mesmo do ponto de vista antropológico.

OBJETIVOS Descrever e analisar os personagens e situações da animação “Vida de Inseto”, levantando possíveis temas a serem aplicados em atividades didáticas nas aulas de Ciências, Biologia e Zoologia.

O FILME “Vida de Inseto” (A Bug's Life, no original) é um filme de animação estadunidense, produzido pela Pixar em 1998 e distribuído pela Walt Disney Pictures. Em linhas gerais, o filme conta a história de uma formiga, o protagonista Flick, que tenta libertar seu formigueiro do controle tirânico exercido por um bando de gafanhotos, comandado pelo perverso Hopper. Flick embarca em uma aventura atrás de alguém pronto para combater os gananciosos gafanhotos, se depara com uma trupe de circo e acaba levando-os de volta ao formigueiro, pensando se tratar de um grupo de bravos guerreiros. Mesmo não sendo o que deles se esperava, os artistas circenses se dispõem a ajudar o formigueiro. 167

Figura 1. Capa do VHS do filme “Vida de Inseto”.

Apesar de muitos animais aparecerem no filme, especialmente artrópodes, a obra foi objeto de poucos estudos com ênfase biológica. Pelo contrário, na maioria os tratados que a abordam são da área das Ciências Humanas (PRADHANA, 2013) e centram suas análises na jornada épica do personagem Flick. Uma honrosa exceção é o artigo de FRANCO et al. (2013), que aborda a possibilidade de uso didático do filme, à luz da Entomologia. OS PERSONAGENS PRINCIPAIS Os personagens principais do filme (Figuras 2-16) pertencem a três núcleos. O primeiro deles é o formigueiro (Figura 17), com destaque para a formiga aventureira Flick (Figura 2), seu par romântico, a princesa Atta (Figura 3), a princesa infante, Dot (Figura 5), e a rainha (Figura 4). Outro núcleo importante é a trupe de circo (Figura 23), composto pela joaninha Francis (Figura 8), o bichopau Slim (Figura 9), o louva-a-deus Manny (Figura 6), a mariposa Cigana (Figura 7), a lagarta Chucrute (Figura 13), a aranha Rosie (Figura 11), o escaravelho Dim (Figura 12), os tatuzinhos-de-jardim Deita e Rola (Figura 10), além da pulga P.T. Pulga (Figura 14), o dono do circo. Por fim, há o núcleo dos 168

vilões, gafanhotos (Figura 27) liderados pelo malvado Hopper (Figura 16), que conta também com o boa praça Moult (Figura 15), irmão de Hopper.

ANÁLISE BIOLÓGICA

Formigas A maioria dos animais é bem caracterizada (FRANCO et al., 2013), com as licenças poéticas de praxe, como os olhos grandes, com íris e pálpebras, e a postura ereta, além de mãos e pés humanizados. Esse tipo de estratégia é bastante comum em filmes, conferindo um aspecto antropomorfizado aos personagens (MARIÑO PÉREZ & MENDOZA ALMERALLA, 2006; CASTANHEIRA et al., 2015).

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Figuras 2-5. Principais formigas da animação “Vida de Inseto”: 2, Flick; 3, Atta; 4, Rainha (carregando seu pulgão de estimação); 5, Dot. Fonte: Disney®, Google Imagens.

As formigas (Hymenoptera: Formicidae) têm uma organização social bem definida, centrada na fêmea principal, a rainha, que durante o filme tem a principal função de ensinar suas tarefas à sua filha princesa e que apresenta características morfológicas relativamente distorcidas, dentro da licença poética. Como o fato das “bochechas” da rainha serem caídas para representar um indivíduo idoso, coisa que não acontece com formigas reais, que não apresentam músculos faciais expressivos. Da mesma forma, a rainha se mostra bem menor do que todos os outros indivíduos do formigueiro - na realidade, as rainhas de formigas são bem mais desenvolvidas que todos os outros integrantes do formigueiro. As formigas são caracterizadas por possuírem, no geral, antenas geniculadas, pedículo abdominal com um ou dois segmentos; no caso das rainhas e das reprodutoras, há a presença de asas – dois pares membranosos, sendo as posteriores menores. No filme, observamos que a princesa Dot possui asas, assim como as outras formigas filhotes do “grupo de formigas escoteiras”, e que ao longo do filme, ela passa pelo drama de ainda não saber 169

voar como as outras pequenas. Nesse caso, há uma incorreção biológica, já que formigas “filhotes”, as larvas, ainda não têm asas e nem mesmo poderiam voar. Em uma das cenas, as formigas operárias, adequadamente sem asas, carregam alimentos para dentro do formigueiro para o grande estoque do inverno - um comportamento popularmente conhecido das formigas. E, de repente, uma folha cai no meio da fila de formigas. O desespero se abate sobre todas as restantes: estão perdidas porque perderam a trilha de feromônio deixada pelas que já passaram (Figura 18). Esse é um comportamento já estudado nas formigas, no caso, elas deixam um rastro da substância para trás, e as outras formigas se guiam pelo olfato. Quando tal rastro é interrompido, de fato as formigas ficam desorientadas e precisam reencontrar o odor da substância (GRONENBERG, 2008). No filme é diferente, há uma formiga suporte que ajuda a outra a contornar o obstáculo.

Figuras 6-16. Alguns dos principais personagens da animação “Vida de Inseto”: 6, Manny; 7, Cigana; 8, Francis; 9, Slim; 10, Deita e Rola; 11, Rosie; 12, Dim; 13, Chucrute; 14, P.T. Pulga; 15, Moult; 16, Hopper. Fonte: Disney®, Google Imagens.

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Logo nas primeiras cenas do filme, vê-se que a rainha carrega um pulgão no colo (Figura 19), como se fosse um animal de estimação, um tipo de cão de companhia, até latindo em alguns momentos. Na natureza, há realmente uma relação estreita entre algumas formigas e os pulgões: elas predam os inimigos naturais desses insetos como parte de sua própria dieta; elas ainda criam colônias de pulgões e defendem-nas de forma feroz. Na outra via dessa relação simbiótica, os pulgões fornecem substâncias açucaradas (chamadas exsudatos), uma rica fonte de carboidratos, e, de fato, no filme o que vimos é a relação relativamente amigável entre os dois insetos, exceto pelo fato de que há somente um pulgão, criado livremente como ‘pet’. Os pulgões (Hemiptera: Aphididae) possuem peças bucais como estiletes e podem ou não possuir asas. No filme, vemos que o pulgão possui a maior parte das características, exceto pelo rosto antropomorfizado, incluindo as cornículas, tubos dorsais do final do abdômen (Figura 20). As relações entre formigas e insetos da ordem Hemiptera, mais especificamente das subordens Sternorrhyncha e Auchenorrhyncha (como no caso da Figura 21) foram revisadas por DELABIE (2001).

Figura 17. O interior do formigueiro. Fonte: Disney®, Google Imagens.

Figura 18. Formiga ajudando as companheiras a contornarem a folha. Fonte: Disney®, Google Imagens.

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Figuras 19-20. 19, Atta e a rainha, segurando o pulgão; 20, o pulgão de estimação. Fonte: Disney®, Google Imagens.

Após alguns minutos de filme, o protagonista Flick se propõe a missão de ir até a cidade procurar outros insetos para conseguir defender o formigueiro do ataque dos gafanhotos perversos. Essa é uma relação bastante interessante de ser observada, porque a guerra “gafanhotos versus formigas” está presente em diversas fábulas e histórias infantis, fornecendo lições de moral sobre esforço, foco e determinação no trabalho. No caso, a versão mais comumente reproduzida é de que o gafanhoto era preguiçoso e as formigas faziam todo o trabalho (CROXALL, 1811). Em “Vida de Insetos”, observamos uma versão diferente da história, em que os gafanhotos são animais perversos que ameaçam a integridade física e a vida das formigas, caso não recebam em troca uma parcela de todos os grãos que elas recolhem durante o verão. E aí que está o maior erro: formigas não precisam temer gafanhotos, o que ocorre em realidade é exatamente o contrário: as formigas estão entre os mais destacados predadores dos gafanhotos (FULLER & JOERN, 1996), usando sua vantagem numérica. Sobre esse tema, Hopper avisou a seu grupo: “gafanhoto: deixe uma formiga te afrontar e todas vão criar problema; elas estão em maior número do que nós”. Usando sua supremacia numérica, as formigas frequentemente capturam insetos muito maiores (Figura 22).

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Figuras 21-22 - Interações das formigas com Auchenorrhyncha, em Penedo, Itatiaia, RJ: 21, formigas tomando conta de indivíduos da família Aethalionidae; 22, formigas predando um exemplar da família Cicadellidae. Fotos: E.R. Da-Silva.

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Trupe do circo Quando Flick, então, chega à cidade, o filme mostra todos os outros táxons de artrópodes que veremos, tanto os “figurantes” quanto os principais personagens que irão ajudar Flick e o formigueiro na defesa contra os gafanhotos. O primeiro integrante da trupe dos insetos (Figura 23) é a joaninha Francis, que, no caso, é macho. Provavelmente pertencente à espécie Coccinella novemnotata Herbst, 1793 (Coleoptera: Coccinellidae), Francis traz à tona o simbolismo da joaninha. Por algum motivo, as joaninhas são sempre colocadas como insetos femininos, ou simbolizando algo que seja fofo, delicado, feminino, e sempre há certa confusão quando lembram a existência dos machos de joaninha ou quando o inseto é colocado como macho em alguma produção. É exatamente esse ponto de “Vida de Inseto”: a joaninha do filme tem cílios longos, olhos femininos e é um inseto bastante delicado, que logo na primeira cena em que aparece ganha uma cantada de moscas da plateia do circo. Francis passa boa parte do tempo em que está no formigueiro tentando convencer as formigas filhotes de que ele é realmente ele, e não uma fêmea - enquanto as formigas permanecem chamando Francis de “senhora” e o colocam como madrinha do grupo de formigas escoteiras - e o questionamento do simbolismo é colocado com graça, até que, no final, Francis simplesmente aceita que as formiguinhas não deixarão de lado a “feminilidade” da joaninha. Esse é um ponto bastante interessante para se tratar com alunos, e não só nas Ciências Biológicas, mas também nas Ciências Sociais, criando questionamentos sobre o problema de uma sociedade voltada para um padrão binário de gênero e com estereótipos pré-definidos, onde uma mulher deve se parecer com o “estereótipo de mulher” e um homem com o “estereótipo de homem”. Vale destacar que a joaninha é um dos insetos mais populares, sendo bastante retratado em manifestações culturais (ZABALA et al., 2003). Além disso, a provável espécie de Francis já foi amplamente distribuída na América do Norte, mas está em franco declínio populacional (KOCH, 2011). Segundo TURNIPSEED et al. (2014), um dos motivos de tal declínio pode ser a competição com Coccinella septempunctata Linnaeus, 1758, espécie originária da Região Paleártica e introduzida na América do Norte (ZABALA et al., 2003). Isso pode ser um interessante ponto de partida para se discutir a questão da introdução de espécies exóticas e da competição interespecífica. Além de Francis, outros Coleoptera da trama são Dim, o besouro da trupe, dois vaga-lumes (Figura 24) que permanecem com P.T. Pulga no circo, além de outros besouros que aparecem como figurantes. Há diversas cenas em que Dim aparece voando, mas a mais memorável é quando o besouro, com Flick, vai resgatar a princesa infante Dot, prestes a ser devorada por um pássaro. Na cena, conseguimos escutar o som do bater de élitros de Dim, que é tão alto quanto o som de um helicóptero. No caso, essa é uma técnica bastante interessante para caracterizar as asas anteriores rígidas dos Coleoptera, que servem para proteção das asas posteriores, membranosas e delicadas. Os élitros acabam atrapalhando o voo de besouros, e por isso teriam um “som de helicóptero” no filme. 173

Além dos élitros, os besouros podem apresentar chifres, como os de Dim, caracteristicamente típicos da subfamília Dynastinae (Scarabaeidae) ou serem luminescentes, como os vaga-lumes da família Lampyridae. Assim, os besouros estão bem caracterizados no filme, guardadas as licenças poéticas.

Figura 23 - A trupe circense. Fonte: Disney®, Google Imagens.

Outro membro da trupe é a lagarta Chucrute, da ordem Lepidoptera, que ao longo de todo filme espera ansiosamente pela sua metamorfose para, então, ter suas asas de mariposa (provavelmente da família Saturniidae). Sendo um membro da ordem, claramente Chucrute deve passar pela metamorfose em algum momento - já que, no enredo, esse seria seu “final feliz” - e como é observado no final, cria asas extremamente pequenas (Figura 25). A ordem Lepidoptera conta com indivíduos com dois pares de asas membranosas cobertas de escamas, com cores extremamente variadas, e com peças bucais adaptadas à sucção. Dispõe, para tal, da espiritromba, que permanece enrolada quando está de repouso e é utilizada exatamente para sugar o néctar. Todos possuem a fase de metamorfose, quando criam um casulo para si e ali ficam até completar a transformação. No caso do filme, é interessante apontar que após a metamorfose, Chucrute continua exatamente o mesmo, com exceção das novas asas.

Figura 24 - Os vagalumes. Fonte: Disney®, Google Imagens.

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Cigana é uma mariposa bem caracterizada, embora apresente um “rosto”, com um longo nariz alusivo à espiritromba característica dos Lepidoptera. Ela ajuda seu marido com as mágicas do show, usando mimetismo, e essa habilidade é usada novamente na cena final, quando Cigana faz Hopper, o gafanhoto líder, ficar desnorteado e fugir, logo antes das formigas tomarem as rédeas da situação. É interessante observar que a face dorsal das asas forma o desenho semelhante ao de olhos de ave (Figura 26), o que é visto na natureza em algumas famílias de borboletas e mariposas (STEVENS & RUXTON, 2014), como Nymphalidae e Saturniidae. Porém, os grupos que apresentam tal estratégia de defesa costumam ter as manchas ocelares na face ventral das asas (p.ex., DE BONA et al., 2015). Cigana é casada com Manny, o mágico louva-a-deus, em um dos maiores erros biológicos do filme.

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Figuras 25-26 – 25, Chucrute após a metamorfose, com suas asas diminutas; 26, Cigana mostrando suas marcações ocelares nas asas anteriores. Fonte: Disney®, Google Imagens.

Manny, o louva-a-deus (Mantodea), é o mágico da trupe, assumindo todo o caráter místico que envolve o inseto - que, nos filmes, é sempre colocado como um personagem místico ou poderoso, sendo até mesmo relacionado com modalidades de luta, como o Kung Fu, com estilos baseados no movimento do inseto (ROBERT Z, 1998). No caso, Manny assume a maior parte das características do táxon: cabeça triangular, tórax estreito e abdômen bem desenvolvido, com pernas anteriores modificadas para a função raptorial. Assim como a rainha do formigueiro, tem os “músculos faciais” relaxados, representando uma idade avançada. Slim, o bicho-pau (Phasmatodea), que é bastante parecido com um exemplar real, apresentando as asas pequenas para voo e duas antenas grandes no topo da cabeça. No caso de Slim, todo o filme brinca com o mimetismo dos bichos-pau, fazendo com que, na trupe, o personagem seja sempre usado como um graveto, poste ou qualquer outra coisa que faça alusão a um graveto. Quando Francis, a joaninha, e Slim saem em perseguição ao gafanhoto Hopper, que estava com Flick, Slim fica preso em um emaranhado de galhos e Francis não consegue encontrá-lo. Há também a viúva-negra Rosie, provavelmente do gênero Latrodectus Walckenaer, 1805 (Arachnida: Araneae: Theridiidae), que é a tecelã da trupe e produz rapidamente teias para os truques 175

circenses. Ela tem a maior parte das características de uma viúva-negra, exceto pelo “rosto” humanizado, com apenas um par de olhos, maçãs do rosto proeminentes, lábios com batom e ausência de queliceras. Rosie produz suas teias usando as mãos, enquanto as aranhas reais têm apêndices especializados no abdome, as fiandeiras, para tal finalidade. Além de Rosie, vemos uma aranha que toca bateria e tem a morfologia mais ou menos parecida com a de uma aranha real, mas que não possui queliceras nem os quatro pares de olhos comuns em Araneae. Os últimos integrantes da trupe, Deita e Rola, são tatuzinhos-de-jardim (Crustacea: Isopoda: Oniscidea). Literalmente eles sempre rolam durante as apresentações, explorando uma peculiaridade real desses animais, que enrolam o corpo como forma de proteção contra o ataque de predadores (LISBOA et al., 2013).

Figura 27. O bando de gafanhotos, liderado por Hopper. Fonte: Disney®, Google Imagens.

A vilania de determinados grupos taxonômicos Outra questão interessante a ser abordada é a vilania dos gafanhotos e da pulga P.T. Pulga, o dono do circo. Em uma espécie de releitura mais moderna da clássica fábula do escritor grego Esopo “A Cigarra e a Formiga” (na qual, possivelmente, “cigarra” é uma tradução errada de gafanhoto), os gafanhotos são colocados como insetos malignos que, nesse caso, escravizam as formigas para obter uma parcela do alimento estocado. Enquanto que a pulga, inseto naturalmente vilanizado por ser uma praga de importância médico-veterinária, é colocada como o chefe tirânico da trupe, tratando a todos muito mal. Talvez isso esteja embutido na cabeça do público em geral justamente pela fábula e pela história da pulga nos animais de estimação. Mas o fato é que em “Vida de Inseto” os dois grupos são colocados como vilões. Os gafanhotos estão entre os insetos mais odiados, principalmente por sua atuação no ataque de plantações agrícolas. Pragas de destacada importância econômica, foram citados na bíblia cristã (SILVA et al., 2013; BIDAU, 2014) como um dos instrumentos de agressão do deus hebreu aos antigos egípcios. Além disso, na cultura de muitos povos os gafanhotos são tidos como criação do demônio (ALMEIDA, 2013). Em “O Exorcista II – O Herege” (Warner Bros., 1977), continuação não tão badalada 176

do clássico do terror “O Exorcista”, o demônio assume o corpo de um gafanhoto em processo de enxameamento, destruindo as plantações agrícolas na África. Os gafanhotos (Orthoptera: Caelifera: Acrididae) do filme são caracterizados por possuírem o fêmur das pernas posteriores muito grandes e fortes, dando a esses animais a principal característica pela qual são conhecidos: o salto. Também apresentam antenas curtas, abdômen bem desenvolvido, hexapodia, asas anteriores fortes, protegendo as posteriores, e posteromotorismo (Figura 28). A ecdise é observada em uma das cenas do filme: ao tomar um susto, Molt, o irmão de Hopper, deixa para trás sua exúvia esbranquiçada (Figuras 30-31). Esse é mais um erro biológico do filme pois, ao contrário do que ocorre com alguns outros artrópodes, insetos adultos não sofrem ecdise. Curiosamente o nome do personagem é muito semelhante ao termo em inglês para muda (sinônimo mais popular de ecdise): “moult”. Personagem bem-humorado e bonachão, Molt é uma interessante contraparte à vilania dos gafanhotos, personificada por seu irmão e líder do bando. Outro gafanhoto com algum destaque individual é Thumper (Figura 30), uma criatura selvagem e agressiva, que age como braço armado e feroz de Hopper. Thumper seria o equivalente vilânico do pulgão da rainha das formigas, ou seja, também um animal de estimação. Não chega a latir como o pulgão, mas rosna ferozmente. Outra característica biológica observada é o uso sensorial das antenas por parte dos insetos: em uma cena, o vilão Hopper inspeciona a princesa Atta com suas antenas (Figura 29). Por sua vez, a pulga, além de atualmente atormentar a vida de criadores de animais domésticos, especialmente cães e gatos, é transmissora da bactéria que causa a peste, doença que dizimou grande parcela da população humana em três grandes pandemias (FRANÇA et al., 2012). A pulga (Siphonaptera) do filme tem algumas das características comuns da ordem, como a distribuição de cerdas no corpo, além do tórax e abdômen fortemente fusionados. Por outro lado, possui apenas dois pares de membros locomotores.

Personagens secundários e demais situações biológicas Fora os principais insetos, há também outros grupos de Arthropoda vistos na viagem de Flick à cidade. Um opilião (Arachnida: Opiliones) aparece brevemente na trama, com as pernas alongadas características e o cefalotórax fortemente fusionado ao abdômen. Dois gongolos (Myriapoda: Diplopoda) puxam a carruagem do circo (Figura 33), outro é um mímico de rua (Figura 34) e um quarto é massagista (Figura 35). Todos têm o corpo cilíndrico típico de Diplopoda, além de um par de antenas e muitos pares de pernas, embora não com os característicos dois pares por diplossomito. Há também baratas (Blattodea), com antenas longas (uma das baratas não tem as características cerdas nas pernas); uma libélula (Odonata), que passa rapidamente em cenas, mas pode-se perceber que ela possui as asas longas e transparentes e o abdômen bem desenvolvido. 177

Figuras 28-32 – 28, Hopper em voo; 29, Hopper inspecionando Atta com as antenas; 30, Thumper sendo contido por outros gafanhotos; 31, momento em que Moult completa a ecdise; 32, ataque das formigas, lançando a exúvia de Moult para o alto. Fonte: Disney®, Google Imagens.

Diversas moscas (Diptera) estão presentes no filme (Figuras 36-38), com antenas curtas, olhos característicos e cerdas ao longo do corpo. Os omatídeos são mostrados, através de uma projeção da visão das moscas (Figura 41). Também aparecem larvas de mosca que, na licença poética, possuem olhos e boca, além de estarem sendo cuidadas pelo adulto (Figura 37). Outras moscas “jovens” são como que adultos menores, o que não acontece com insetos de desenvolvimento holometabólico, da mesma forma do que acontece com as formigas. O que seria uma probóscide é representado no filme como um “nariz” grande. As moscas são uma forte presença cômica/satírica no filme, à semelhança do que COELHO & DA-SILVA (2015) observaram em relação a outra animação, “Minúsculos – O Filme”. Também mosquitos (Diptera: Culicidae) aparecem no filme, com asas anteriores e um par de halteres, que servem como órgãos de equilíbrio. Há uma probóscide que serve para sugar néctar, seiva ou sangue, e, no geral, os machos possuem antenas plumosas e fêmeas têm antenas pilosas e são mais corpulentas. No filme, vemos um mosquito sugando uma gota de sangue, em um bar (Figura 40), e um grupo de mosquitos servindo de garçons para os gafanhotos. 178

Figuras 33-35 – Gongolos: 33, gongolos que puxam a charrete; 34, mímico, ao lado de Flick; 35, massagista. Fonte: Disney®, Google Imagens.

Figuras 36-41. 36, Moscas discutindo com Francis; 37, mosca adulta cuidando das larvas; 38, mosca abordando P.T. Pulga; 39, inseto atraído para a luz; 40, mosquito se alimentando de uma gota de sangue, observado por Flick; 41, Francis sob a visão multifacetada da mosca. Fonte: Disney®, Google Imagens.

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Figura 42. Os insetos se protegendo do ataque do pássaro, refugiados entre os ramos com espinhos. Fonte: Disney®, Google Imagens.

Figura 43. Pássaro levando Hopper para os filhotes no ninho. Fonte: Disney®, Google Imagens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da observação do filme, muitos temas interessantes do campo das Ciências Naturais podem ser trabalhados em aulas regulares. Com a devida adequação de nível de profundidade, há conteúdos passíveis de aplicação tanto no ensino superior quanto nos ensinos médio e fundamental. Os temas vão desde os mais específicos, ligados à Zoologia (caracterização morfológica) até conceitos biológicos gerais (alimentação, predação, competição, mutualismo, colonialismo, reprodução, ciclo de vida) e aplicados (controle biológico, conservação ambiental, redução populacional, introdução de fauna). Todos esses conceitos e temas podem ser utilizados para enriquecer as aulas, transmitir conteúdos e despertar o interesse dos alunos. Como obras ficcionais, os filmes não estão obrigatoriamente compromissados a abordar cientificamente conteúdos de Ciências Naturais. E é aí que deve entrar o grau de discernimento do professor, ao ministrar os conhecimentos e conduzir adequadamente as atividades. Para uso didático, até mesmo eventuais incorreções ou exageros biológicos são interessantes para serem abordados pelo professor, levando à discussões muito proveitosas. 180

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