Análise do texto no repertório coral infantil: um diálogo entre o campo das Letras e a Educação Musical

July 15, 2017 | Autor: Caroline Caregnato | Categoria: Educação Musical, Canto Coral Infantil
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Atas, Congresso Internacional “A Língua Portuguesa em Música” Núcleo Caravelas, CESEM, FCSH www.caravelas.com.pt

Atas do Congresso Internacional A Língua Portuguesa em Música

© Os autores estão citados nos resumos. Edição ampliada Lisboa, 2012 ISBN: 978-989-97732-3-3 Publicação eletrónica disponível em http://www.caravelas.com.pt

Caravelas – Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical FCSH, Universidade Nova de Lisboa http://cesem.fcsh.unl.pt

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Análise do texto no repertório coral infantil: um diálogo entre o campo das Letras e a Educação Musical

Caroline Caregnato [email protected]. Gustavo Angelo Dias [email protected] Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Brasil Resumo: A Educação Musical pode e precisa se beneficiar de alguns dos saberes da área de estudo (ou, do campo de saber) das Letras. Essa necessidade de intersecção foi observada através de um levantamento realizado com acadêmicos de um curso de Licenciatura em Música. Durante o levantamento, os futuros professores analisaram a letra da peça coral São João Dararão (Francisco Braga), e nessa análise manifestaram suas crenças quanto à adequação da obra à prática coral infantil. Alguns destes acadêmicos afirmaram que a presença de temas polêmicos, e o uso de palavras que fogem à norma culta da língua portuguesa – graças à presença de variantes linguísticas – tornam a peça inadequada à educação musical infantil. Dentro do campo das Letras, contudo, a variação linguística é aceita como uma expressão natural da linguagem, o que permite a abordagem de textos que contenham desvios da norma padrão da língua portuguesa em sala de aula como um elemento enriquecedor na formação do aluno. Ainda, nenhuma temática literária pode ser considerada como imprópria para a educação, pois qualquer texto que contenha um tema de interesse à criança pode ser apresentado a ela com a intermediação de um adulto. Considerando as teorias do campo das Letras e as concepções dos licenciandos, este trabalho busca discutir o uso na educação musical infantil de canções que, como São João Dararão, contenham em seus textos desvios da norma padrão e temas polêmicos. Conforme pudemos observar, essa intersecção de saberes é necessária a fim de que o público infantil não seja privado, graças às escolhas dos professores, de uma prática coral enriquecedora. Concluímos ser desnecessária a exclusão, do repertório coral infantil, de canções que contenham em suas letras elementos como os discutidos acima. Apenas se faz necessária a realização de uma intermediação entre o texto e as crianças, conduzida pelo professor.

Palavras-chave: Coral infantil; Repertório coral; Escolha de repertório.

Introdução Ao examinar a letra da canção folclórica São João Dararão, harmonizada por Francisco Braga para coro infantil, um grupo de estudantes de Licenciatura em Música de uma instituição paranaense de ensino superior verificou a presença de expressões que fogem à norma padrão da língua portuguesa, e de temas polêmicos.

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Alguns desses acadêmicos afirmaram que, graças à presença dos elementos destacados, a adoção dessa canção na educação musical infantil é desaconselhável. No entanto, autores das áreas de Linguística e Literatura encaram essa questão sob uma ótica diferenciada. Segundo eles há um enriquecimento das vivências e conhecimentos infantis graças ao contato com os chamados desvios da norma padrão e com temas tidos como polêmicos. A fim de que o público infantil não seja privado desnecessariamente do convívio com a diversidade cultural da língua, e da discussão crítica de temas do cotidiano por meio do trabalho com uma peça coral, esse artigo propõe uma intersecção dos saberes da Educação Musical e das Letras. Acreditando que os professores de música podem se beneficiar das discussões levantadas por teóricos da Linguística e da Literatura, buscamos discutir a seleção de repertório coral infantil levando em consideração estas questões. Mais especificamente, buscamos discutir o uso de canções que contenham em seus textos desvios da norma padrão e temas polêmicos. Para tanto, faremos o exame crítico de alguns trechos extraídos das análises de São João Dararão, realizadas por acadêmicos de Licenciatura em Música, tendo como base estudos do campo das Letras. As concepções dos alunos foram recolhidas após estes terem sido informados sobre a natureza deste trabalho, e a participação dos acadêmicos se deu de forma voluntária e facultativa.

As concepções dos acadêmicos aos olhos do campo de estudo das Letras Os desvios da norma padrão segundo a Linguística Um dos acadêmicos de Licenciatura em Música observou que, graças à presença de desvios da norma culta no texto de São João Dararão, a sua adoção em um contexto de educação musical infantil é desaconselhável: “[A letra] é composta de palavras que não fazem parte da língua culta, como 'chovê' ou 'morrê', por exemplo, podendo causar um certo conflito com a matéria Língua Portuguesa”. De fato, a norma padrão é conteúdo oficial das aulas de Língua, uma vez que ela é encarada, muitas vezes, como a única forma legítima de se praticar um idioma. 57

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Contudo, se observarmos o modo como a norma padrão foi criada e o processo de legitimação pela qual passou, veremos que ela não pode ser vista como conteúdo único do ensino de língua portuguesa. De acordo com Gnerre (1998, p. 9-15), a norma padrão, ou culta, nasce da imposição que um povo dominante faz de sua língua aos demais membros da sociedade. Essa imposição é concretizada após um processo de legitimação, que se dá por meio da associação entre a língua a ser considerada como norma, e a gramática greco-latina. Essa associação de uma prática linguística com outra, já consagrada pela tradição, faz com que, de modo artificial, seja conferida a dada forma de praticar a língua uma suposta superioridade. Após criada, a norma é difundida como forma de disseminar também a cultura e o poder daqueles que a criaram. Entretanto, por mais que uma forma de utilizar a língua seja propagada como “oficial” e imposta a um grupo social, ela terá de conviver com variações apresentadas pelos membros deste grupo. Como afirma Barthes (1979, p. 18), esta variação é inerente a qualquer língua. As variedades linguísticas “têm um valor intrínseco igual em termos estritamente linguísticos” (GNERRE, 1998, p. 25), embora o seu valor geralmente seja dado em função do valor social que tem os falantes de uma variante. Deste modo, a norma culta da nossa língua não é superior a qualquer outra forma que o português assuma entre os grupos que o praticam. Frente a isso, é essencial “respeitar a variedade linguística de toda e qualquer pessoa, pois isso equivale a respeitar a integridade física e espiritual dessa pessoa como ser humano” (BAGNO, 2007, p. 140). Para que esse respeito seja concretizado, é preciso que ele comece a ser construído dentro da escola, por meio de uma mudança de postura dos profissionais envolvidos com o ensino. Como afirma Bagno, “da parte do professor em geral, e do professor de língua em particular, essa mudança de atitude deve refletir-se na não-aceitação de dogmas, na adoção de uma nova postura (crítica) em relação a seu próprio objeto de trabalho: a norma culta” (BAGNO, 2007, p. 114). Ainda de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino de Língua Portuguesa nas séries iniciais, “o problema do preconceito disseminado na

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sociedade em relação às falas dialetais33 deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença” (BRASIL, 1997, p. 26). Através da problematização do valor e do uso da norma padrão, e da exploração das variantes linguísticas em sala de aula, professores de língua portuguesa ou de música podem contribuir para a formação de cidadãos livres de preconceitos e com um conhecimento cultural ampliado – afinal a língua é um produto cultural, como vimos em Barthes (1979, p. 18). Assim sendo, a adoção de canções que como São João Dararão contenham variantes linguísticas pode ser uma porta de entrada para a problematização da norma culta e a exploração da diversidade da língua. O receio de “causar um certo conflito com a matéria Língua Portuguesa” é, portanto, desnecessário já que esse conflito é saudável. Os temas polêmicos segundo a Literatura Ao discorrer sobre a adequação da letra de São João Dararão à educação musical infantil, um dos acadêmicos abordou a presença de temas polêmicos no texto da canção. Segundo ele, “com crianças com idade um pouco mais avançada é possível trabalhar com temas como 'casares', 'morrê' etc., mas para crianças mais novas talvez o trabalho de inserção desses temas pode ser complicado”. Há nessa fala uma preocupação com a manutenção da inocência infantil, pelo menos até o ponto do desenvolvimento da criança em que se torna “possível trabalhar com temas como 'casares', 'morrê' etc.,”. Há ainda uma ideia implícita de que a abordagem de temas como a morte ou o casamento/amor deve ser evitada, ao menos com “crianças mais novas”. A opinião desse acadêmico reflete uma preocupação com a exclusão de temas polêmicos do cotidiano infantil já observada por Rosemberg (1984, p. 31-32). A autora afirma que existe na literatura infantil uma preocupação dos escritores com a “expurgação” dos temas polêmicos de seus livros. De acordo com ela, essa prática começou a desenvolver-se no final do século XVI, quando pedagogos e moralistas passaram a conceber a criança não mais como um adulto em miniatura, mas como um 33 Segundo os PCN os “dialetos são compreendidos como os diferentes falares regionais presentes numa dada sociedade, num dado momento histórico” (BRASIL, 1997, p. 26).

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sujeito inocente, que carece de proteção e que deve ser segregado dos adultos em instituições escolares, que o prepararão para a vida em sociedade. Segundo ela, em livros que adotaram esse tipo de concepção da infância,

o cotidiano contraditório, as frustrações e os conflitos foram banidos. O jovem leitor é protegido [...]. A criança não tem o direito de saber o que quer, mas apenas aquilo que o adulto considera digno ou bom que ela saiba [grifo nosso]. O conteúdo do livro é expurgado (ROSEMBERG, 1984, p. 60).

Ainda segundo Rosemberg (1984, p. 64-65), nessas narrativas as curiosidades infantis não são abordadas, e não há discussão de problemas existenciais como o nascimento, a morte, o amor em forma de sexo e de afeto. À criança é, em síntese, negado o direito de conhecer aspectos cotidianos e fundamentais da vida. De acordo com Zilberman e Magalhães (1982, p. 111), o texto facilitado e expurgado, que não exige da criança uma posição de reflexão, é uma das principais formas de transmissão de valores repressivos. Quando o adulto é o responsável por determinar à criança o que ela deve conhecer ou não, dando a ela apenas aquilo que ele julga adequado à sua faixa etária, ele exerce um gesto de dominação sobre a infância. A criança, na impossibilidade de exercer seu poder de escolha, fica relegada, em sua dependência física, psicológica e moral, aos desígnios do adulto. Desse modo, é facilitado o estabelecimento da relação assimétrica entre crianças e adultos de que fala Rosemberg (1984,p. 29), por meio do qual os segundos exercem seu poder sobre os primeiros, sem que haja diálogo. A inda segundo Rosemberg (1984, p. 66), a não abordagem de temas como a morte e o sexo na literatura infantil reforça a ideia de “mundo perfeito” que os adultos querem transmitir às crianças por meio da educação, no afã de levá-las a construir no futuro a sociedade que nem eles próprios foram capazes de construir. O posicionamento de Cecília Meireles (apud PERROTTI, 1986, p. 74) com relação à delimitação dos temas que devem ser levados à criança sugere que, através das preferências infantis, devemos classificar a literatura como infantil ou não. A criança, seus gostos e curiosidades é que devem ser ouvidos e respeitados, e não as preferências dos adultos. Estes devem agir como “cúmplices capazes de dialogar e não [como] novos 60

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comandantes” (PERROTTI, 1986, p. 153). Devem ajudar a criança no processo de conhecimento do mundo, discutindo e problematizando qualquer questão que a sua curiosidade levante, sem impor barreiras moralizantes. Essas concepções que defendem a liberdade de acesso da criança a variados temas literários pode ser transposta para o campo da música. Se não pretendemos impor nosso poder de forma unilateral sobre nossos alunos, e se não pretendemos repreender sua curiosidade e seu acesso ao conhecimento, não podemos privá-los do contato com os temas que, por vezes erroneamente, julgamos polêmicos. É preciso que ofereçamos à criança o direito de conhecer, problematizar, discutir todas as esferas da vida cotidiana que despertem sua curiosidade, por meio inclusive da música. Outro acadêmico, preocupado com os efeitos da abordagem do tema “morte” afirmou que “[a letra da canção] poderia assustar as crianças dizendo que se elas se molharem em um dia chuvoso irão morrer”. No entanto, como afirma Cademartori (1986, p. 72), não é necessário que nos preocupemos com essa possibilidade. Segundo ela, mesmo em idade pré-escolar as crianças já se mostram aptas a estabelecer uma separação suficientemente clara entre o que é imaginado quando ouvem ou leem uma história, e aquilo que é vivenciado de fato (CADEMARTORI, 1986, p. 72). Situação análoga parece ser a que se dá quando a criança ouve ou canta uma canção, com uma narrativa como a de São João Dararão. Acreditamos que também nesse caso as crianças serão capazes de separar o que é cantado/imaginado daquilo que é vivenciado no momento da execução musical, não se sentindo assustadas pela letra da canção.

Conclusão A análise das concepções dos acadêmicos de Música sobre a adequação da letra de São João Dararão à educação musical infantil, realizada à luz dos referenciais da Linguística e da Literatura, demonstrou que o contato com o campo das Letras pode ser enriquecedor para a Educação Musical. Como observamos, a inserção de variantes linguísticas no cotidiano escolar infantil é fundamental para que os estudantes ampliem seus conhecimentos culturais, e não incorram na formação e difusão de preconceitos linguísticos. Essa inserção pode ser

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realizada por meio da prática de canções corais que, como São João Dararão, explorem a variação linguística. A abordagem de temas variados, por mais que polêmicos, também deve ser praticada no coral infantil. Conforme vimos, esse contato favorece a formação da criança e possibilita a ela a construção de uma noção autônoma de mundo. Assim sendo, a abordagem de canções que falem sobre morte, casamento, ou outros temas ainda mais polêmicos, não deve ser evitada mas, sim, possibilitada à criança. Contudo, o professor deve atuar como um intermediário entre o texto da canção e as crianças, debatendo e problematizando com elas a presença de variantes linguísticas e temas polêmicos dentro do repertório coral infantil. Somente dessa forma os benefícios do contato com a diversidade linguística e os temas “adultos” podem ser alcançados.

Bibliografia BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. 49ª ed. São Paulo: Loyola, 2007. BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1979. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1997. CADEMARTORI, Lígia. O que é literatura infantil? São Paulo: Brasiliense, 1986. GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986. ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1984. ZILBERMAN, Regina; MAGALHÃES, Ligia Cademartori. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1982.

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