ANÁLISE ECONÔMICA DAS MULTAS APLICADAS PELA CMED: UMA PROPOSTA DE DOSIMETRIA

June 15, 2017 | Autor: Roberto Taufick | Categoria: Law and Economics, Healthcare
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ANÁLISE ECONÔMICA DAS MULTAS APLICADAS PELA CMED: UMA PROPOSTA DE DOSIMETRIA Roberto D. Taufick1 Resumo: aplicando elementos da análise econômica do direito, argumenta-se que as multas aplicadas pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos por conta da comercialização de fármacos acima do preço-fábrica, ou do preço máximo de venda ao governo têm, ao invés de coibir, criado incentivos para a continuidade das infrações. Antes, sustenta-se que a fixação de um teto às multas aplicadas pela câmara incentiva o próprio escalonamento do valor da infração.

Recorrendo à

interpretação dos artigos 6º, XIV e 8º da Lei nº 10.742/2003 e do art. 56 da Lei nº 8.078/1990, defende-se que o teto do parágrafo único do art. 57 da Lei nº 8.078/1990 vem sendo equivocadamente aplicado por aquela câmara e propõe-se nova metodologia para a dosimetria de penas. Palavras chaves: multas, medicamentos, análise econômica do direito

Abstract: using an economic analysis of the law, we claim that the fines laid by the commission that overlooks the wholesale and retail prices of the drugs in Brazil create incentives for the perpetuation of the violations. On top of that, the establishment of a cap to the fines creates incentives to an escalation in their magnitude. Recurring to the interpretation of Articles 6 (xvi) and 8 of Law 10742 of 2003 and of Article 56 of Law 8078 of 1990, we argue that the commission has

                                                                                                                1

2015 Gregory Terrill Cox Summer Research Fellow, John Olin Program in L&E, Stanford Law. Master in Law, Science and Technology, Stanford Law School. PGD in EU Competition Law, King's College London. Expert in Competition Law, Fundaçao Getulio Vargas. Bachelor of Laws from the Universidade de Sao Paulo, with extended Education in Competition Law from Universidade de Brasília.

 

2  

misapplied the cap set by Article 57 of Law 8078 of 1990 and propose a new methodology to set fines. Keywords: fines, drugs, economic analysis of the law

1   CENÁRIO REGULATÓRIO  ....................................................................................................  3   2   UMA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO  .........................................................................  7   2.1   PROBABILIDADE DE DETECÇÃO, AVERSÃO AO RISCO, MULTAS PARA INTERNALIZAR O DANO E MULTAS PARA DISSUADIR A PRÁTICA  ....................................  7   2.2  

DA PROBABILIDADE DE ENFORCEMENT PRIVADO  .................................................  12  

3   A AUSÊNCIA DE RESPALDO LEGAL PARA O TETO DE 3 MILHÕES DE UFIR  ..........  15   3.1   O LEGISLADOR NÃO SE REFERIU AO CAPÍTULO VII, MAS, EXCLUSIVAMENTE, AO ART. 56  ..................................................................................................................................  17   3.2   O ART. 56 NÃO FAZ NENHUMA REFERÊNCIA AO ART. 57. É O ART. 57 QUE FAZ REFERÊNCIA AO ART. 56  ........................................................................................................  19   4   PROPOSTA DE DOSIMETRIA  ............................................................................................  20   4.1  

PISO DA MULTA.  ..............................................................................................................  21  

4.2  

TETO DA MULTA.  .............................................................................................................  24  

4.3  

MULTA-BASE  ....................................................................................................................  25  

4.4  

AGRAVANTES E ATENUANTES  .....................................................................................  26  

6   CONSIDERAÇÕES FINAIS  .................................................................................................  30  

 

1

3  

CENÁRIO REGULATÓRIO

A Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos -- Cmed -- foi criada pelo art. 5º da Lei nº 10.742/2003. Constam entre os seus objetivos "estabelecer critérios para fixação e ajuste de preços de medicamentos" (art. 5º, II), "definir, com clareza, os critérios para a fixação dos preços dos produtos novos e novas apresentações de medicamentos" (art. 5º, III), "decidir pela exclusão de grupos, classes, subclasses de medicamentos e produtos farmacêuticos da incidência de critérios de estabelecimento ou ajuste de preços, bem como decidir pela eventual reinclusão

de

grupos,

classes,

subclasses

de

medicamentos

e

produtos

farmacêuticos à incidência de critérios de determinação ou ajuste de preços" (art. 5º, IV), "estabelecer critérios para fixação de margens de comercialização de medicamentos a serem observados pelos representantes, distribuidores, farmácias e drogarias, inclusive das margens de farmácias voltadas especificamente ao atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica" (art. 5º, V), "assegurar o efetivo repasse aos preços dos medicamentos de qualquer alteração da carga tributária" (art. 5º, X), monitorar, para os fins desta Lei, o mercado de medicamentos" (art. 5º, XII), "zelar pela proteção dos interesses do consumidor de medicamentos" (art. 5º, XIII), assim como "decidir sobre a aplicação de penalidades previstas nesta Lei e, relativamente ao mercado de medicamentos, aquelas previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, sem prejuízo das competências dos demais órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor" (art. 5º, XIV). Ou seja, em uma economia de mercado, a Cmed é um órgão acentuadamente destinado ao controle de preços de bens meritórios.

 

4  

Dentre essas atribuições, este trabalho se ocupa daquela prevista no inciso XIV: a aplicação das penalidades pela câmara, sem, obviamente, descuidar do preceituado no inciso XIII -- zelar pelo interesse do consumidor de medicamentos. Em razão de as leis relevantes para o nosso estudo -- Lei nº 10.742/2003 (lei de criação da Cmed) e Lei nº 8.078/1990 (código de defesa do consumidor, "CDC") -não definirem uma fórmula rígida para a dosimetria da multa, insere-se, também, no âmbito do inciso XIV -- e, por subsequente, no escopo do trabalho -, a delimitação dos critérios de aplicação das penalidades. Apesar de a Cmed ter emitido resoluções estabelecendo categorias de medicamentos para a fixação de tetos para os preços de entrada (Resolução nº 2/2004), um coeficiente de adequação de preços (CAP) para a definição de um preço máximo de venda ao governo (PMVG) -- Resolução nº 3/2011 -- e, anualmente, os fatores para o reajuste desses mesmos tetos (tradicionalmente, a Resolução nº 1 de cada ano), a Cmed jamais, em seus doze anos de existência, publicou os critérios adotados para punir quem violasse esses tetos de preços. A consequência era já esperada: apesar de significativamente padronizadas, as decisões tomadas pela Secretaria-Executiva e, em sede recursal, pelo Comitê Técnico-Executivo,

ainda

falham,

entre

outros,

ao

não

uniformizarem

as

circunstâncias agravantes e atenuantes adotadas pela Secretaria-Executiva e pelos ministérios integrantes do Comitê Técnico-Executivo, assim como o peso dado a cada uma delas nas decisões. Como, apesar de publicadas no Diário Oficial da União em forma de extratos, as decisões não são publicadas, na sua integralidade, no sítio eletrônico da Cmed, não há sequer a esperança de que as partes possam realizar, de forma difusa, um controle sobre os critérios adotados pela câmara.

 

5  

Se essa falta de publicidade e subsequente falha no controle difuso das decisões da Cmed certamente ensejariam a mobilização de distribuidores, importadores e laboratórios

em um cenário no qual eles fossem severamente

prejudicados, a moderação das penas aplicadas pela câmara, por outro lado, representa um provável fator de condescendência dos administrados. Uma análise das decisões da Cmed até o ano de 2011, por exemplo, aponta que as empresas que vendessem o fármaco por valor acima do teto regulado teriam apenas de devolver aos cofres públicos o valor nominal do dano2, sem, ao menos, repor a perda inflacionária. Mais que isso: levando em consideração que uma empresa que simplesmente ofertasse o fármaco por preço superior ao preço regulado (mas não concretizasse a alienação) seria obrigada a pagar uma multa equivalente ao produto da quantidade ofertada pelo valor do dano (veja nota de rodapé nº 1) 3, chegaríamos à conclusão de que a oferta não consumada do produto por preço superior ao teto era punida com maior severidade que a oferta consumada -- que, além de não ser punida, era, na verdade, premiada. Essa premiação, como veremos, decorria

                                                                                                                2 Por dano, entenda-se a diferença entre o teto regulatório e o preço ofertado. 3 f = P - PF x q, em que f = multa P = preço ofertado irregularmente acima do teto regulatório PF = preço fábrica, ou teto regulatório. Em vendas ao governo, seria o PMVG q = quantidade ofertada pelo preço ofertado irregularmente acima do teto regulatório

 

6  

essencialmente de dois fatores: a multa não levava em consideração a probabilidade de detecção, tampouco os custos de oportunidade4. As multas aplicadas pela Cmed padecem de outro problema: têm sido limitadas pelo valor de 3 milhões de UFIR, valor esse prescrito no parágrafo único do art. 57 da Lei nº 8.078/1990 5 . Infratores que impinjam dano que ultrapasse R$3.192.300,00 serão premiados com a diferença entre os dois valores6.                                                                                                                 4 O caso Hopsfar (Processo Administrativo nº 25351.594584/2008-88), de relatoria da Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (Seae/MF), representou, ao menos por ora, uma guinada da Cmed para uma regra que buscasse, efetivamente, punir ofertas irregulares que culminassem em vendas e que impingisse uma punição menos severa a ofertas que não culminassem em vendas. Apesar da momentânea mudança de posicionamento da Cmed, estudaremos, aqui, as consequências do posicionamento que prepondera na história da câmara em razão de, conforme antecipado, a Cmed ainda não contar com normas escritas ditando as regras de dosimetria e em função de o posicionamento da Fazenda ter sido objeto de grande resistência por atores internos à câmara que ainda acreditam na suficiência do enforcement privado das infrações -- equívoco que será enfrentado na próxima seção. 5

Novamente, a Seae/MF foi responsável pela iniciativa de uma discussão sobre os

incentivos perversos trazidos pela pelo teto do CDC -- discussão materializada nos Processos Administrativos n.º 25351.054860/2010-48, n.º 25351.188749/2010-00, n.º 25351.054915/2010-05, n.º 25351.054945/2010-54 e n.º 25351.054923/2010-62, todos de interesse da Opem Representação Importadora Exportadora e Distribuidora Ltda., que culminou em um parecer da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) contrariamente à interpretação proposta pela Fazenda. Em suma, a

 

7  

Esses dois incentivos ao infrator, cuja avaliação crítica forma o cerne deste trabalho, serão avaliados, na seção 2, à luz da análise econômica do direito. Para tanto, recorremos, em particular, a dois doutrinadores: Shavelli e a Polinskyii. Ainda na seção 2 incluiremos um elemento não mencionado na doutrina tradicional, mas que, seguindo lógica semelhante, influi diretamente no montante da multa a ser aplicado: a qualidade do enforcement privado. Uma vez formulada a crítica econômica, passaremos à crítica jurídica: explicaremos, na seção 3, como a aplicação do art. 57 do CDC pela Cmed tem decorrido de uma interpretação equivocada tanto da Lei nº 8.078/1990, quanto da Lei nº 10.742/2003. Finalmente, na seção 4 apresentaremos uma proposta de dosimetria para os casos de comercialização de fármacos acima do preço-fábrica, ou do PMVG.

2

UMA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO 2.1

PROBABILIDADE DE DETECÇÃO, AVERSÃO AO RISCO, MULTAS

PARA INTERNALIZAR O DANO E MULTAS PARA DISSUADIR A PRÁTICA

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          proposta não questionava a aplicação do art. 57 -- ela sugeria, no lugar, que o limite da lei só se aplicasse ao valor que ultrapassasse o dano causado pelo infrator. Desse modo, ainda vigora a aplicação do teto do art. 57 pela Cmed. 6

r = h - fmáx, r > 0,

onde r = rents fmáx = valor legal (3 milhões de UFIR) h = dano

 

8  

A análise econômica das multas afirma que, em um cenário hipotético em que a detecção fosse plena (p = 1), os indivíduos seriam dissuadidos de praticar atos ilícitos mediante a obrigação de devolver valor equivalente ao dano causado (= h). A lógica por trás da análise econômica do direito reside em que, sendo p = 1, o infrator incorreria em custos para cometer uma infração cujos danos seriam sempre integralmente compensados. Como, além da multa (= f) equivalente ao dano causado (= h), o infrator terá incorrido em custos7 (= c) para cometer a infração, dois cenários se abrem: ou o potencial infrator estaria melhor simplesmente não fazendo nada, pois a utilidade (u) derivada do dano seria inferior aos custos em que incorreria d + c > u, ou ele cometeria a infração, caso a utilidade que ele derive seja superior aos custos incorridos. Essa seria a first-best deterrence. Como, na vida real, a detecção não é plena, a multa ideal deve contemplar a probabilidade de não punição por desconhecimento da existência da infração, elevando-se a pena proporcionalmente à probabilidade de que a infração não seja detectada. Somente uma multa que leve em consideração a probabilidade de detecção está atenta aos incentivos perversos criados para o infrator neutro a risco. O infrator neutro ao risco mede a recompensa com base na probabilidade da pena (multa potencial). Se a recompensa/utilidade for u e a multa for f = 2u, mas com probabilidade de detecção p = 0,1, então, na verdade, a multa equivale a f = 2u*0,1, ou f = 0,2u. Em outras palavras, a multa potencial é apenas uma fração da recompensa, razão pela qual a vale a pena cometer a infração. No caso das multas da Cmed, infratores são, essencialmente, pessoas jurídicas -- as quais,

                                                                                                                7 Nesse caso, o infrator incorre, no mínimo, em custo de oportunidade, pois ele estaria em situação melhor se simplesmente não fizesse nada.

 

9  

presumidamente, são neutras aos risco. Para um cenário em que a probabilidade de detecção (p) seja 70%, a multa ideal seria f = h/p, ou 0,7f = h.8 Outro fator a se prestar atenção é na natureza da multa a ser aplicada. A análise econômica do direito distingue dois tipos: a multa que visa coibir a prática de um delito indesejável e a multa que visa, apenas, compensar a parte lesada -admitindo, por outro lado, que o infrator que usufrua de benefício maior que o valor da multa opte por pagar um preço pelo cometimento do ilícito. No primeiro caso, estão infrações à economia popular, os crimes contra a vida e a saúde pública, entre outros. No segundo caso, está a multa por estacionar em local proibido, por fazer ruído em horário inapropriado em zona residencial, por andar na contramão em uma

                                                                                                                8 Do mesmo modo, o infrator favorável ao risco também mede a recompensa com base na probabilidade da pena (multa potencial) -- mas, diversamente do infrator neutro ao risco, quanto maior a multa potencial, maiores os incentivos que ele terá para o cometimento da infração, caso o valor da multa potencial seja representativa de um prêmio maior. O raciocínio é que, quanto mais arriscado o negócio, maior a recompensa envolvida. Isso vale, por exemplo, para um homicídio, pelo qual o infrator cobrará uma recompensa muito maior por conta da pena de incapacitação. Por último, o infrator avesso ao risco não calcula a multa potencial -- ele é influenciado exclusivamente pelo valor nominal da multa comparativamente à sua riqueza (w). Nesse caso, multas mais baixas, em especial para infratores de menor renda, podem ser suficientes para conter o infrator. Essa afirmação passa a não mais ser condizente com a verdade quando os infratores se tornam insolventes (judgment-proof) -- ocasião em que, por não ter riqueza, o infrator nada tem a perder. Casos de infratores insolventes são resolvidos por penas de incapacitação.

 

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situação de emergência, ou por atravessar no sinal vermelho em zonas de alta periculosidade. No primeiro caso, a multa que tem o objetivo de dissuadir a prática não deve ser equiparada ao valor do dano, mas corresponder, no mínimo, ao valor da utilidade (u) para o infrator -- embora não deva, jamais, ser inferior ao dano causado. Em outras palavras, h/p ≤ f ≥ u/p. Aqui, como o objetivo é eliminar a prática (como o homicídio, ou a fraude a licitações públicas) -- não havendo qualquer interesse em incentivar a prática por quem derive maior utilidade da infração (como um assassino em série, ou cartel no mercado de medicamentos) -, inexiste, sob o ponto de vista econômico, preocupação com o teto da multa, que pode ser tanto a própria riqueza do

indivíduo

quanto,

mais

comumente,

a

sua

incapacitação

(aprisionamento/detenção, internação, ou pena capital). Como a pena de multa é considerada mais eficiente por representar, em tese, mera transferência de riqueza, a solução ideal para esses casos, sob o viés econômico, é a solução de Beckeriii (f = w). No segundo caso, aplica-se uma liability rule (em contraposição a property rule). Em uma liability rule, o legislador escolhe um titular para o direito (o morador de uma vizinhança, ou os motoristas e transeuntes de determinada rua), mas permite que, mediante indenização equivalente ao dano causado ao titular do direito, um terceiro que derive maior utilidade da infração que o dano impingido ao titular, afronte aquele direito sem precisar pedir permissão (multa por fazer ruído em horário não permitido, ou por ultrapassar o sinal vermelho). Como adiantado, a multa deve equiparar-se ao dano (m = h/p), a fim de que quem derive utilidade minimamente superior àquela do titular do direito possa pagar por ela, garantindo a solução mais eficiente possível.

 

11  

As multas aplicadas pela Cmed no mercado de medicamentos por conta de ofertas acima do PF ou do PMVG situam-se, claramente, entre as práticas que o legislador quis banir. O art. 4º da Lei nº 10.742/2003 determina, expressamente, que "[a]s empresas produtoras de medicamentos deverão observar, para o ajuste e determinação de seus preços, as regras definidas nesta Lei, a partir de sua publicação, ficando vedado qualquer ajuste em desacordo com esta Lei". Mais do que isso, não há qualquer dispositivo na lei que indique outra intenção por parte do legislador. Isso implica concluir que as multas a serem aplicadas, nessas casos, pela câmara devem levar em consideração (i) a probabilidade de detecção, (ii) o dano causado e (iii) a utilidade para o infrator. Dada a sensibilidade do mercado de medicamentos para o bem-estar social e dado o declarado objetivo da multa ser evitar/expurgar a conduta danosa, a multa pode situar-se em patamares bastante acima da utilidade estimada para o infrator, sem que se comprometa qualquer lógica econômica de eficiência na alocação de recursos. Por outro lado, sob o viés jurídico, a multa deve guardar proporcionalidade9 com a gravidade da infração -- o que, se, por um lado, no mercado de medicamentos reforça a necessidade de sujeitar o infrator a uma multa elevada, por outro lado não aconselha que a multa, exceção feita aos casos em que a utilidade ao infrator, ou o dano causado chegue a esse ponto, alcance o valor da riqueza do agente econômico. Isso nos remete aos patamares das multas historicamente aplicadas pela Cmed no mercado de medicamentos por conta de ofertas acima do PF ou do PMVG. Conforme deveria estar claro neste ponto, (1) multas equivalentes ao valor do dano,                                                                                                                 9 Nos processos administrativos, a proporcionalidade é um requisito definido no art. 2º, caput da Lei nº 9.784/1999.

 

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ou (2) tetos que limitem, pecuniariamente, os valores máximos das multas não resistem à análise econômica. No primeiro caso, porque, ao se limitar a multa ao valor do dano, não se levam em consideração a baixa probabilidade de detecção da infração e o objetivo legal de evitar a conduta danosa. Multas que não sejam reajustadas de acordo com a probabilidade de detecção da infração têm baixo valor coercitivo e incentivam o comportamento infrativo pelo agente econômico neutro ao risco. No segundo caso, porque, caso a multa não alcance sequer o valor do dano, ela falha não só por não se atentar à baixa probabilidade de detecção e ao objetivo de expungir a prática, como por sequer reparar a lesão causada nos casos em que a infração vier a ser detectada.

2.2

DA PROBABILIDADE DE ENFORCEMENT PRIVADO

Um dos grandes focos de resistência ao escalonamento das multas aplicadas pela Cmed ao setor de saúde por sobrepreços dos medicamentos reside na possibilidade de enforcement privado. O enforcement privado pode ser entendido, nas palavras de Sampaio Ferraz iv , como "indenizações privadas pela violação de direito difuso". Fala-se, então, de casos em que o infrator está sujeito tanto à reparação dos danos causados ao particular -- dependente de ações de reparação movidas pelas vítimas -, quanto a uma sanção dissuasória adicional pelo poder público. A possibilidade de que haja enforcement privado tem, amiúde, suscitado o argumento de que as multas aplicadas pela Cmed devem ter valor baixo e complementar à reparação demandada pelos privados em ações individuais, ou coletivas. À exceção da Seae/MF e, talvez, dos atuais representantes do Ministério

 

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da Justiça1011, esse argumento ainda costuma ecoar no âmbito da Cmed sob o argumento de que, caso as vítimas recebam a devida reparação, qualquer valor fixado pela Cmed já excederá a vantagem auferida e, portanto, já teria suficiente valor punitivo. Ocorre que casos de enforcement privado trazem à tona não só a probabilidade de detecção da infração pelo Estado, mas a probabilidade de detecção da infração por parte de cada uma das suas vítimas. Mais do que isso, coloca em relevo os incentivos para que o particular vitimado possa demandar reparação por danos individuais, ou individuais homogêneos. Isso implica dizer que, quanto mais baixa a detecção privada, menor o enforcement privado e menor a reparação do dano exigida do infrator. Quanto mais complexo o conhecimento do assunto -- sendo a complexidade exponencial no mercado farmacêutico -, maior a assimetria de informação entre o consumidor e o                                                                                                                 10 O representante do Ministério da Justiça foi até a entrada em vigor da nova lei concorrencial -- Lei 12.259/2011 -, a Secretaria de Direito Econômico. Posteriormente, o ministério encontrou dificuldades para definir o seu representante e, após mais de um ano de ausência, passou a enviar representante da Secretaria Nacional do Consumidor. A secretaria, porém, manteve, pelo menos até 2014, o discurso de que a sua presença na Cmed contrariava a natureza da sua atividade. 11

O primeiro, por conta de ser um dos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da

Concorrência e a Lei de Defesa da Concorrência, Lei nº 12.259/2011, demandar que a multa aplicada por cometimento de infração da concorrência não seja ser inferior à vantagem auferida; e o segundo, por coordenar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e estar a par da escassez das ações coletivas para reparar danos coletivos de baixo valor individual.

 

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comerciante e mais alta a probabilidade de o consumidor ser ludibriado e jamais tomar conhecimento disso. Tão relevante quanto a detecção está o próprio incentivo para o enforcement privado pelas vítimas. Em geral, as vítimas no segmento de medicamento sofrem danos individualmente muito baixos. A não ser que falemos de consumidores cativos e recorrentes, cada vítima terá elevados custos de oportunidade ao entrar com uma ação, ainda que em juizado especial de pequenas causas -- além de, certamente, incorrer em custos maiores que o valor a ser percebido se pagar honorários privados (os quais, como sabemos, são pagos à parte dos honorários determinados pelo juiz da causa). A solução econômica para esse problema está nas ações coletivas -- mas, até aí, existe o problema do carona: existe um grande ônus para os primeiros a acionar a justiça -- os demais apenas decidem aderir, ou não, à ação coletiva por eles interposta. Daí que esse problema é evitado por entidades coletivas préconstituídas, como os sindicatos, ou as crescentes associações de vítimas (de acidentes aéreos, por exemplo). A raridade das ações coletivas no mundo, à exceção dos Estados Unidos, leva a que, como bem lembra Sampaio Ferraz (2013), a doutrina e a jurisprudência internacionais

falem

na

"importância

do

enforcement

privado

como

desencorajamento ancilar" [destacamos]. Em outras palavras, subverte-se a lógica de ter na reparação da vítima o principal meio de dissuasão do infrator, para deslocar esse papel para a ação do Estado. Por derradeiro, voltamos a falar de situação em que a multa tem por objetivo dissuadir a prática -- e não, meramente, internalizar o dano. Nesses casos, é bom lembrar que, sob o ponto de vista econômico, nenhum valor de multa é considerado

 

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excessivo. E, mesmo sob o ponto de vista legal, ainda que a multa tenha de guardar proporcionalidade com a infração, faz todo sentido impor uma multa elevada por se tratar de dano impingido a um bem meritório: a saúde pública. Esses fatos todos permitem concluir que o discurso de que a Cmed deveria impor baixas punições ao infrator, nas infrações no mercado de medicamentos, em razão de a ação do Estado ser complementar à ação privada é falho, seja pela baixa incidência do enforcement privado e da baixa detecção pelo agente público, quanto pela necessidade de conferir uma punição exemplar em um setor pouco elástico a preços. Desse modo, a multa a ser aplicada pela câmara não pode ser caracterizada como um complemento ao enforcement privado, que é praticamente inexistente; antes, como antecipou Sampaio Ferraz, sumarizando a doutrina e a jurisprudência internacionais, o enforcement privado é meramente ancilar ao enforcement público, que deve ser suficiente para, isoladamente, desencorajar a atividade infratora.

3

A AUSÊNCIA DE RESPALDO LEGAL PARA O TETO DE 3 MILHÕES DE

UFIR

Uma vez verificada a falta de justificativa econômica para a aplicação das multas segundo os patamares históricos da Cmed -- fato que foi destacado pela Secretaria de Acompanhamento Econômico nos Processos Administrativos nº 25351.594584/2008-88, n.º 25351.054860/2010-48, n.º 25351.188749/2010-00, n.º 25351.054915/2010-05, n.º 25351.054945/2010-54 e n.º 25351.054923/2010-62 (ver notas de rodapé 2 e 3) -, torna-se necessário desconstruir, também juridicamente, o argumento de que as multas da câmara para o mercado de medicamentos estão cingidas pelo teto do parágrafo único do art. 57 da Lei nº 8.078/1990.

 

16  

Como adiantamos, a Cmed vem aplicando o teto de 3 milhões de UFIR às multas por infrações no mercado de medicamentos, embora não esteja claro o porquê. Suspeita-se que se deva ao fato de o art. 57 definir um teto e, também, um piso para a multa -- assim como uma destinação para os valores recolhidos12 -, o que cria segurança jurídica para a atividade da câmara. Mas nenhum fator explica por que, ao invés de tomar emprestado esses critérios e de pedir amparo à consultoria jurídica acerca da destinação das multas, a câmara tomou a decisão mais restritiva de interpretar a existência de uma vinculação à Lei nº 8.078/1990 que a sua lei de criação deu. Em seu esforço para interpretar a lei, Seae/MF procurou a PGFN -- não com o objetivo de consultá-la sobre a vinculação ao art. 57, mas para discutir a possibilidade de uma interpretação alternativa ao parágrafo único desse artigo. Em outras palavras, tomando como um dado a vinculação ao art. 57. Como é sabido, pareceres das consultorias jurídicas do Poder Executivo federal, dentre elas a PGFN, respondem exclusivamente a perguntas formuladas de forma explícita. As consultorias tomam como dados todos os demais elementos discriminados nas consultas. No caso, o parecer PGFN/CAF/881/2013, de 13 de maio de 2013, tomou a aplicação do art. 57 como um dado oferecido pelo Memorando nº 217/GABIN/SEAE/MF, de 25 de abril de 2013, e não a questionou justamente porque não foi objeto de consulta. Em outras palavras, como a aplicação do art. 57 não foi consultada pela Seae e como a PGFN em momento algum elucubrou acerca da aplicabilidade daquele dispositivo legal, o parecer da PGFN não

                                                                                                                12 Apesar de o art. 57 também expressar critérios de dosimetria, os votos da Cmed, até o ano de 2011 não expressavam rigor na sua aplicação.

 

17  

vincula o Ministério da Fazenda com relação a esse elemento. E, muito menos, vincularia a Cmed, que não deve conformidade aos seus pareceres. Nas duas subseções abaixo, apresentamos razões claras para que o teto do art. 57 da Lei nº 8.078/1990 não seja aplicado às multas da Cmed para o mercado de medicamentos.

3.1

O LEGISLADOR NÃO SE REFERIU AO CAPÍTULO VII, MAS,

EXCLUSIVAMENTE, AO ART. 56

A lei de criação da Cmed cita o CDC em duas ocasiões: •

no art. 6º, XIV, para anunciar que compete à Cmed "decidir sobre a aplicação de penalidades previstas nesta Lei e, relativamente ao mercado de medicamentos, aquelas previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, sem prejuízo das competências dos demais órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor" e



no art. 8º, para esclarecer que "[o] descumprimento de atos emanados pela Cmed, no exercício de suas competências de regulação e monitoramento do mercado de medicamentos, bem como o descumprimento de norma prevista nesta Lei, sujeitam-se às sanções administrativas previstas no art. 56 da Lei no 8.078, de 1990." Parece bastante claro que o art. 8º, sendo mais específico que o art. 6º que

lhe precede, esclarece que o dispositivo relevante para dosimetria das multas da Cmed na Lei 8.078/1990 é o art. 56. Se o art. 6º, XIV determina que as penalidades a serem aplicadas pela Cmed para o mercado de medicamentos encontram-se no CDC, o art. 8º esclarece que as sanções administrativas -- das quais as multas são

 

18  

uma modalidade -- para o mercado de medicamentos estão previstas no art. 56 daquela norma. Isso implica dizer que, se a lei de criação da Cmed remete ao CDC com o simples objetivo de definir as multas a serem aplicadas pela câmara e define que, para esse propósito, seja aplicado o art. 56 da Lei 8.078/1990, ir além disso é extravasar o mandato dado pela lei. A interpretação de que o art. 8º da lei de criação da Cmed também abarca o art. 57 da Lei 8.078/1990 incorre, por subsequente, em dois equívocos. Primeiro, não havendo menção expressa ao art. 57 da Lei 8.078/1990 no art. 8º da Lei nº 10.742/2003, a sua vinculação pela Cmed deriva de uma interpretação de que a câmara se vincula a todos os dispositivos referentes a multa do CDC. Isso implica, em última instância, equiparar o art. 8º ao art. 6º, XIV e negar o caráter mais específico do art. 8º. Trata-se, portanto, de atribuir inutilidade ao art. 8º, sabendo que, na melhor técnica de interpretação jurídica, não há palavras inúteis na leiv. Segundo, é importante questionar não só se a palavra do legislador poderia, no vácuo, ser interpretada de outra forma, mais abrangente, mas, também, como o legislador poderia, de outra forma, expressar uma remissão única e exclusivamente ao art. 56. E, assim colocado, parece-nos que a única alternativa seria o legislador acrescer o advérbio "exclusivamente", ou termo equivalente, para qualificar a remissão. O uso do advérbio, embora esclarecedor, seria, porém, inadequado, pois privaria o aplicador do direito de recorrer, analogicamente, a outros artigos daquele diploma legal. Isso ocorre porque, se a obrigação de uso do art. 56 concede licença para que o aplicador do direito construa regulamentos tomando emprestado, por analogia, regras previstas em outros dispositivos do próprio CDC, por outro lado, a obrigação de uso exclusivo do art. 56 tem o efeito de deixar claro que as demais

 

19  

regras são impróprias para uso da Cmed. Isso impediria, em última instância, que a Cmed optasse por aplicar as regras de dosimetria do art. 57, caput, ou, até mesmo, regras do decreto que regulamenta a lei -- Decreto 2.181/1997 -, cujos artigos 24-28 discriminam regras bastante úteis e comuns para a dosimetria da pena. E, como os artigos 24-28 do decreto regulamentador reprisam o senso comum em matéria de dosimetria de penas, o uso do termo "exclusivamente", ou equivalente, na prática, privaria o aplicador do uso de qualquer técnica de dosimetria balizada pelo bom senso. Para que fosse possível invocar o art. 57, seria necessário: •

que houvesse expressa menção a ele no art. 8º;



que não houvesse art. 8º, prevalecendo a noção mais abrangente do art. 6º, XIV, ou



que o art. 56 dependesse do art. 57 para ser aplicável. Exploramos, com maior detalhe, essa última possibilidade na subseção

abaixo.

3.2

O ART. 56 NÃO FAZ NENHUMA REFERÊNCIA AO ART. 57. É O

ART. 57 QUE FAZ REFERÊNCIA AO ART. 56

Reza o art. 56 do CDC que as infrações das normas de defesa do consumidor ficam sujeitas às sanções administrativas de (i) multa; (ii) apreensão do produto; (iii) inutilização do produto; (iv) cassação do registro do produto junto ao órgão competente; (v) proibição de fabricação do produto; (vi) suspensão de fornecimento de produtos ou serviço; (vii) suspensão temporária de atividade; (viii) revogação de concessão ou permissão de uso; (ix) cassação de licença do estabelecimento ou de

 

20  

atividade; (x) interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade; (xi) intervenção administrativa; (xii) imposição de contrapropaganda. O parágrafo único complementa que as sanções serão aplicadas pela autoridade administrativa, inclusive cumulativamente, até mesmo por medida cautelar, antecedente ou incidente de procedimento administrativo. Registre-se, portanto, que, além de prescindir do art. 57, o art. 56 em nenhum momento faz referência àquele dispositivo. É apenas o art. 57 que, para infrações das normas de defesa do consumidor, determina regras de dosimetria e fundo de destinação. Ademais, em seu parágrafo único, impõe um piso e um teto à multa. Aliás, os propósitos de ambos os artigos são marcadamente diversos. A remissão à Lei nº 8.078/1990 tem como único objetivo autorizar diferentes modalidades de sanções administrativas, ficando a cargo da Cmed definir, discricionariamente, os limites superiores e inferiores da multa, assim como os critérios de dosimetria como um todo.

4

PROPOSTA DE DOSIMETRIA

Identificadas as falhas na dosimetria da pena por parte da Cmed em multas aplicadas ao mercado de medicamentos por conta de ofertas acima do PF ou do PMVG, o próximo passo é definir que parâmetros devem nortear a aplicação de multas pela câmara. Em primeiro lugar, é importante fixar valores máximos e mínimos para a multa. Em segundo lugar, identificaremos as variáveis que devem compor a fórmula de cálculo da multa-base. Por último, discutiremos as circunstâncias agravantes e atenuantes.

 

21  

4.1

PISO DA MULTA.

A análise econômica do direito nos fornece os elementos necessários para definir o valor mínimo das multas: como já antecipado, no caso de multa que vise dissuadir a prática, o valor mínimo a ser cobrado não deve ser inferior à utilidade que o infrator retira da prática infratora, tampouco inferior ao dano causado (como já destacamos, h/p ≤ f ≥ u/p). Em qualquer caso, a multa deve considerar, ainda, a probabilidade de detecção da infração pela autoridade pública. Esse patamar é mantido nos casos de infrações a direitos difusos, quando o enforcement privado é baixo, ou inexistente. Aqui nos deparamos, imediatamente, com dois problemas: a assimetria de informação entre infrator e autoridade pública com relação à utilidade que aquele deriva da infração e qual a probabilidade de detecção da infração. Dada a dificuldade de identificar a utilidade da infração para o infrator, optamos por definir o mínimo, alternativamente, com base no dano, ou vantagem auferida13. No segundo caso, é necessário fazer uma distinção entre os casos de venda ao governo, em que o grau de detecção pelo Estado é pleno, ou quase pleno, e os demais casos, em que o controle integral das ofertas feitas pelos agentes econômicos pelo Estado é impraticável. Desse modo, a nossa proposta diferencia o piso para infrações (fmin) em casos de compras públicas, em que p é 1, dos demais casos, em que 1 > p > 0.                                                                                                                 13 Essa, aliás, foi a opção do legislador na Lei nº 12.529/2011, quando definiu que a multa a ser paga pena pessoa jurídica pela infração da ordem econômica não seria inferior à vantagem auferida.

 

22  

O produto de u x p, ou de h x p ser ponderado, ainda, por outro fator que denominaremos v, associado ao dano mediato causado pela infração, como proporemos a seguir. O valor do dano causado tem dois vieses: o imediato e o mediato. No caso de vendas de medicamentos acima do valor definido em norma, o valor imediato corresponde ao sobrepreço, ou seja, à diferença entre o preço praticado (P) e o PF (ou o PMVG), sendo P - PF > 0. Por sua vez, o valor mediato corresponde ao dano causado ao indivíduo (menor medicação, maior número de doentes) e, em decorrência, ao efeito que aquele dano tem sobre a saúde pública (menos leitos disponíveis, maior custo da saúde pública). A multa deve levar em consideração ambos os fatores. A título de ilustração, é bastante possível que uma infração que contemple um medicamento isento de prescrição (MIP) caro não tenha efeito tão grave sobre a sociedade quanto uma infração que contemple mercado repleto de medicamentos genéricos que abasteçam campanhas do Sistema Único de Saúde (SUS) contra epidemias. Ou seja, ao se fixar uniformemente as multas exclusivamente com base no binômio h x p, a multa se ajusta em função do produto entre o dano imediato e a probabilidade de detecção, mas não se altera em função do dano mediato, ou seja, proporcionalmente ao efeito da infração sobre a saúde pública. Para que se faça esse ajuste, a nossa proposta contempla que a multa mínima (fmin) seja o produto da utilidade, ou, subsidiariamente, do dano por um multiplicador v cujo valor deverá progredir de acordo com a sensibilidade da classe medicamentos para a saúde pública. A forma mais objetiva de fazer essa distinção, na nossa opinião, foi separar, de acordo com os normativos da Cmed, quais as categorias de medicamentos que a

 

23  

câmara considera mais sensíveis à saúde pública. Nessa linha, a Cmed separou, por meio da Resolução nº 3/2011, certos medicamentos que, quando sujeitos a compras públicas, estão sujeitos ao CAP para a definição de um PMVG -- em linhas gerais, medicamentos integrantes da assistência farmacêutica, produtos integrantes do programa de sangue e hemoderivados e medicamentos de alto custo. O PMVG é, por sua natureza, portanto, inferior ao PF, que é o preço máximo de atacado autorizado para o mercado privado e o preço máximo de venda ao governo de qualquer medicamento que não esteja sujeito ao PMVG. O preço mais baixo, nesse caso, sinaliza a maior sensibilidade do poder público aos preços desses medicamentos. Nessa linha, em termos de sensibilidade para a saúde pública,

abaixo

dos

medicamentos

sujeitos

ao

PMVG

estão

os

demais

medicamentos, quando sujeitos a compras públicas. Em último lugar, estão os medicamentos que não foram objeto de compras públicas. A nossa sugestão é, portanto, que as infrações envolvendo os medicamentos de maior sensibilidade à saúde pública (quando adquiridos por meio de compras públicas) tenham um piso superior ao dos demais medicamentos. O valor do piso seria, portanto, o produto de u x p, ou de h x p, ponderado, por sua vez, pelo valor mediato do medicamento para a saúde pública (v), o qual seria mais elevado para os medicamentos mais sensíveis: vC1 > vC2 > vC3, onde c1 seria a classe de medicamentos mais sensível à saúde pública e c3 seria a classe de medicamentos menos sensível à saúde pública, com vC3 ≥ 1. O quadro 1 abaixo sumariza esse raciocínio. Para simplificar, mantivemos apenas h (= dano) nos lugares em que u (= utilidade) seria a informação mais adequada, embora menos factível de ser conhecida.

 

24  

Quadro 1. Multa mínima Classe de medicamentos

Teto normativo

Regidos pela Resolução PMVG

Piso da multa fmin = hpvC1

nº 3/2011 Regidos pela Orientação PF

fmin = hpvC2

Interpretativa nº 2/2006 Demais medicamentos

4.2

Ao

PMC14

fmin = hpvC3

TETO DA MULTA.

caracterizarmos

a

multa

aplicada

pela

Cmed

no

mercado

de

medicamentos como uma multa que visa dissuadir a prática, deixamos claro que, sob o ponto de vista econômico, essa penalidade, justamente por ter por objetivo expurgar a prática, poderia ser estipulada em qualquer valor acima da utilidade que o infrator confere à prática, inclusive a riqueza do infrator. Vimos, também, que, sob o ponto de vista legal, porém, essa multa não seria aceitável, se reputada desproporcional ao dano causado. Por esse motivo, ao invés de um teto absoluto, a multa máxima deve estar atrelada ao valor da utilidade que o infrator retira da prática, ou, na sua impossibilidade, ao valor do dano causado, desde que h/p ≤ f ≥ u/p. Mais que isso, o valor do dano causado deve ser apurado considerando não só o seu valor imediato, como, também, o valor mediato.                                                                                                                 14  Ao  passo  que  o  PF  e  o  PMVG  são  o  teto  para  vendas  ao  governo,  que  não  deixa  de  ser  o   adquirente  final  para  medicamentos  que  serão  distribuídos  pelo  SUS  (algo  equiparável   ao  varejo),  o  PMC  é  o  preço  final  de  varejo  para  medicamentos  que  não  sejam  objeto  de   compras  públicas.  

 

25  

Tomando-se a fórmula sugerida para o cálculo da multa mínima, fmin = hpv, percebe-se que a fórmula já contém todos os componentes necessários para atender a essas preocupações. Nesse caso, a multa máxima pode ser fixada pelo recurso a um multiplicador linear escolhido pelo regulador (z), sendo z > 1 -- fixando a multa máxima, por exemplo, em 10hpv. Nesse caso, em razão dos diversos fatores de ponderação, o teto não dependerá, apenas, do valor do dano, mas também da probabilidade de detecção e da relevância do medicamento para a saúde pública (fmáx = fminz).

4.3

MULTA-BASE

As subseções precedentes sugeriram um piso fmin = hpv e um teto fmax = fminz. Elas nos deram elementos matemáticos para a fixação, mas que devem ser complementados com elementos que melhor individualizem a pena. Embora a Cmed não esteja vinculada aos critérios do CDC, tampouco ao decreto regulamentador, o art. 28 do Decreto 2.181/1997 traz parâmetros que servem como importante baliza para o aplicador do direito no momento de definir a pena: a gravidade da prática infrativa, a extensão do dano causado, a vantagem auferida e a condição econômica do infrator. Acreditamos que a gravidade da infração e a extensão do dano sejam explicadas pelas variáveis h e v da nossa equação, enquanto que a vantagem auferida seja explicada por h. Não há, porém, nenhuma clara referência à condição econômica do infrator. A nosso ver, seria desejável incluir uma variável de riqueza do infrator (w) que diferencie a penalidade para micro e pequenas empresas -- tais como definidas pelo art. 3º da Lei Complementar nº 123/2006. Perceba-se, porém, que, tendo sido

 

26  

definida a multa mínima fmin = hpv, não seria possível realizar nenhum desconto sobre esse valor. Desse modo, variável de riqueza do infrator (w) só poderia ser um acréscimo ao valor da multa para os agentes econômicos que não enquadrem na definição legal de micro, ou de pequena empresa. Nesse caso, a variável seria igual a 1 (w = 1) para micro e pequenas empresas, mas superior a 1 (w > 1) para os demais casos. A fórmula para a multa-base poderia, então, ser escrita como fb = hpvw.

4.4

AGRAVANTES E ATENUANTES

Por derradeiro, é importante tratar das situações agravantes e atenuantes. Circunstâncias agravante e atenuantes são aquelas que, por serem mais, ou menos gravosas que a média, demandam ajustes na dosimetria da multa-base. Agravantes e atenuantes incidem sobre o resultado de toda a equação da multa-base e vinculam-se ao teto e ao piso fixado normativamente para a multa. Novamente, o Decreto 2.181/1997 serve-nos de baliza, desta vez por meio dos artigos 25 e 26. Segundo o art. 25 do decreto, são circunstâncias atenuantes a relevância da ação do infrator para o desfecho, ser réu primário e a adoção de providências para minimizar, ou de imediato reparar os efeitos do ato lesivo. Como agravantes vale citar a reincidência, o dolo, a obtenção de vantagem pessoal indevida, a presença de consequências danosas à saúde, ou à segurança do consumidor, ter deixado de tomar providências para evitar, ou mitigar o dano, dolo, a presença de dano coletivo, a qualidade das vítimas (menores, idosos, deficientes). Perceba-se que algumas das condições agravantes são da natureza das infrações de sobrepreço no mercado de medicamentos, como a obtenção de

 

27  

vantagem econômica da prática, a presença de consequências danosas à saúde, ou à segurança do consumidor e a presença de dano coletivo. Nesses casos, não há agravantes, já que todas as infrações ao mercado de medicamentos se encaixam nessa descrição e a multa-base já incorpora esses elementos nas variáveis que retratam a gravidade da prática infrativa e a extensão do dano causado. Neste ponto do artigo, deve estar claro que as varáveis h, u e v se ocupam desses elementos:

Quadro 2. Multa base v circunstâncias agravantes/atenuantes Circunstância

Elemento da multa-base

vantagem econômica

u, alternativamente h. Danos em casos de sobrepreço ensejam, por natureza, vantagem econômica ao infrator.

danos à saúde

O fator v, em particular, leva em consideração

a

gradação

de

cada

infração para o dano à saúde pública. dano coletivo

u, alternativamente h. Em casos em que o

enforcement

privado

é

baixo,

o

enforcement público deve ser suficiente para, por si só, desincentivar a prática em todos os casos.

No caso do binômio réu primário/reincidência, um desses elementos deve ser considerado o padrão a ser agravado, ou atenuado. Deixando mais claro: como circunstâncias agravantes e atenuantes são aquelas que fogem do comportamento padrão que ensejou a multa-base e como o infrator não pode encaixar-se em

 

28  

condição outra que como réu primário, ou como reincidente (a resposta é binária, 0 ou 1), alguma dessas duas situações necessariamente já está contemplada na multa-base. No nosso sistema de presunção de inocência, essa condição é a primariedade. Desse modo, apenas a circunstância agravante deve ser incorporada ao nosso modelo. O mesmo vale para o binômio adoção/não adoção de providências para minimizar o dano: apenas uma dessas condições já está contemplada na multabase. Nesse caso, superada a presunção de inocência e comprovado o sobrepreço pelo réu, a prática sugere que o infrator não aja para minimizar o dano causado -até porque, ou o ato é realizado acintosamente ao arrepio da lei15, ou o agente econômico desconhecia a realidade e persistirá no erro porque está convencido de que ele está dentro da legalidade. Ou seja, o comportamento outlier e que deve ser contemplado como circunstância atenuante é adoção de providências para minimizar o dano, eliminando-se a agravante correspondente. Por derradeiro, cabe a análise da presença do dolo enquanto circunstância agravante, como preceitua o decreto regulamentador, ou a inexistência do dolo enquanto circunstância atenuante. Se, em infrações das normas de defesa do consumidor, faz sentido pensar no dolo do gerente, ou do comerciante pessoa física, no âmbito da Cmed a presença de pessoas jurídicas na condição de representadas implica a presunção de que, sendo as decisões dos agentes econômicos racionais e não sendo possível escusar-se do cumprimento de uma norma alegando desconhecimento dela, aquelas só cometeriam a infração se considerassem a existência de racionalidade econômica no seu cometimento. Em outras palavras, as                                                                                                                 15  Não há a possibilidade, como há em outros casos comissivos, como o homicídio, de a arma disparar sem a intenção do agente, ou de a arma ter sido utilizada para legítima defesa, ou com o simples intuito de ferir.  

 

29  

infrações julgadas pela Cmed no mercado de medicamentos são regidas pela responsabilidade objetiva (liability rule, em contraposição a negligence rule), não havendo de se questionar a presença, ou não, do dolo. Por esse motivo, o dolo teve de ser desconsiderado na nossa análise. Selecionamos, assim, as seguintes circunstâncias agravantes e atenuantes:

Quadro 3. Circunstâncias agravantes e atenuantes Agravantes •

reincidência e



a qualidade das vítimas (menores,

Atenuantes

idosos, deficientes).



relevância relativa da ação do infrator e



adoção

de

providências

para

minimizar, ou de imediato reparar os efeitos da lesão.

Tradicionalmente, as circunstâncias agravantes e atenuantes representam um acréscimo, ou um desconto de 1/3 da multa-base ao valor da multa. Esse valor fica, entretanto, sujeito à discrição da Cmed -- razão pela qual optamos por representá-lo, genericamente, usando as variáveis c- e c+ para circunstâncias atenuantes e agravantes, respectivamente. A nossa proposta final para multa da Cmed pode, portanto, ser resumida na seguinte equação: f = h p v w - (fb c-) + (fb c+), onde fmin = hpv e o fmáx = fminz , onde f = multa h = valor do dano, que será utilizado como proxy para o valor da utilidade (u), quando essa não seja mensurável

 

30  

p = probabilidade de detecção, onde 1 ≥ p > 0 v = valor mediato do medicamento para a saúde pública, onde v ≥ 1 w = riqueza do infrator, onde w ≥ 1 fb = multa-base = h p v w c- = circunstância atenuante, onde c- < 1 c+ = circunstância agravante, onde c+ < 1 fmin = piso da multa fmáx = teto da multa z = multiplicador linear

6

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pudemos mostrar, ao longo do artigo, que as multas impostas pela Cmed no mercado de medicamentos por ofertas feitas acima do preço regulado não coíbem a prática danosa, nem internalizam o dano causado - contrariando os preceitos da análise econômica do direito. Mostramos que multas por infrações que afetem a saúde pública devem objetivar expurgar a prática danosa do mercado e, para tanto, devem ser superiores à utilidade derivada da prática pelo infrator. Na impossibilidade de identificar a utilidade derivada pelo infrator, explicamos que o valor do dano causado serve como uma aproximação aceitável. Elucidamos, ainda, que a multa deve incorporar a probabilidade de detecção e diferenciar as infrações com base no grau de dano imposto à saúde pública. Pudemos, desse modo, apresentar uma sugestão de dosimetria que não se vincula ao teto do parágrafo único do art. 57 da Lei nº 8.078/1990. Diversamente da

 

31  

interpretação histórica da Cmed, elucidamos por que a melhor técnica hermenêutica não recomenda a aplicação do art. 57 quando o legislador autorizou, apenas, a aplicação do art. 56.

                                                                                                                i SHAVELL, S. (2004). Foundations of economic analysis of the law. Cambridge, Massachussets: Harvard Press. ii

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FERRAZ JR., T. (Novembro de 2013). Direito da Concorrência e enforcement

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