ANÁLISE ESPACIAL DO GRANDE CONJUNTO DE ALVALADE: O PLANEADO E O CONSTRUÍDO

May 29, 2017 | Autor: Israel Guarda | Categoria: Urban Morphology, Modelo Configuracional (Space Syntax), Urban Housing Estates
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ANÁLISE ESPACIAL DO GRANDE CONJUNTO DE ALVALADE: O PLANEADO E O CONSTRUÍDO

Israel Guarda CRIA IUL Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, tel.: 21 790 3000 [email protected]

Valério de Medeiros Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Universidade de Brasília Campus Universitário Darcy Ribeiro Brasília DF CEP 70910 – 900, tel. (5561) 3107 0254 [email protected]

Resumo A análise da configuração espacial pode revelar dados relevantes sobre o funcionamento de um sistema urbano, em particular o grau de articulação entre a estrutura espacial e o potencial de sociabilização. No caso de Alvalade, embora seja considerado uma urbanização bem-sucedida pela literatura, não existem elementos analíticos que permitam medir concretamente esses indicadores. Por este motivo e por se tratar de um sistema urbano relativamente individualizado no contexto da cidade, considerou-se pertinente realizar uma comparação entre as intenções expressas no plano original e a configuração espacial efetivamente concretizada. O recurso à teoria da Space Syntax, como teoria e método de trabalho, permitiu aferir a relação intrínseca entre a estrutura formal do plano e o bom índice de urbanidade do bairro, ou seja, que a configuração espacial apresenta um bom grau de correlação com o movimento e uso social do espaço.

Palavras-chave: Sintaxe Espacial, Morfologia Urbana, Grandes Conjuntos, Unidade de Vizinhança.

Introdução O presente artigo incide sobre a urbanização de Alvalade, construída na periferia da cidade de Lisboa a partir de 1945. Planeado como grande conjunto, Alvalade assenta num plano global com limites definidos, com um zonamento funcional e divisão em unidades de vizinhança. Considerado um caso paradigmático no contexto português (Janarra, 1999; Costa, 2005), contam-se entre os motivos da distinção a continuidade urbanística com a cidade a sul, a coexistência de diferentes grupos sociais à semelhança da cidade tradicional e a complementaridade de equipamentos e serviços de proximidade. No conjunto estes motivos, acredita-se, contribuíram para conferir vida própria a Alvalade (Lamas, 2004). A valorização destes motivos, porém, apenas revela parte da imagem, uma vez que o que estes identificam são um conjunto de qualidades globais e reconhecíveis do sistema urbano. Não nos diz em que medida e de que modo essas qualidades acontecem no espaço e quais os padrões espaciais que contribuem para a vida social deste conjunto urbano. 1

A questão dos grandes conjuntos tem sido abordada por um conjunto diversificado de autores em Portugal (Real, 1973; Pereira, 1994 e Nunes, 2011). Embora estes estudos confiram uma importante descrição dos processos de construção, das políticas e das trajetórias sociais, conferem pouca atenção ao impacto propriamente destas formas urbanas sobre a vida social do espaço. Teresa Heitor (2001) confere-nos um importante contributo no estudo sobre Chelas, onde deteta uma forte relação entre a estrutura espacial e certos padrões comportamentais que concorrem para ações de vulnerabilidade e de crime. Do mesmo modo, um estudo recente da análise configuracional de cinco grandes conjuntos construídos na região de Lisboa permitiu identificar padrões espaciais comuns e as suas variações, refletindo-se em diferentes formas de vida espacial e social (Guarda, 2016). As transformações urbanas introduzidas pela construção dos grandes conjuntos urbanos implicaram necessariamente novas formas de vivência e apropriação do espaço, distintas daquelas existentes na cidade tradicional (Almeida, 1964). Este tem sido um campo de investigação caro aos investigadores de Space Syntax. Bill Hillier (1988; 1989; 1996; 2007) tem dedicado especial atenção a este tópico e salienta o princípio de distinção destes conjuntos relativamente à envolvente urbana. Por outro lado, estes conjuntos urbanos contribuem decisivamente para diferentes formas de segregação e desvantagens sociais no conjunto da cidade (Vaughan, 2007; Legeby, 2010). No entanto, Alvalade como grande conjunto parece deslocar-se dos problemas centrais comummente associados aos grandes conjuntos modernos. Segundo Hanson (2000) as grandes transformações que se operaram na cidade assentaram na passagem de uma estrutura urbana baseada nas ‘ruas’ para os ‘conjuntos urbanos’, cada uma correspondendo a diferentes conceções do espaço e de vida social. Na primeira, ligada à cidade tradicional, o espaço funciona como um ‘mecanismo de mistura’ de funções e pessoas. Na segunda, pressupõe-se uma ordem exógena à cidade, na qual o espaço atua como um filtro de separação entre funções e pessoas (Hanson, 2000: 97-99). Alvalade integra as primeiras experiências de conjuntos urbanos após a Segunda Guerra, em que o entendimento do espaço pressupõe claramente a noção de uma ordem espacial e social que se impõe através de um plano geométrico. No entanto, persistem muitos elementos que a ligam ao sistema urbano de ‘ruas’, mais concretamente a continuidade com o crescimento da cidade, assim como um plano capaz de execução gradual e de alterações. A análise configuracional deste conjunto urbano revelou-se de grande importância para compreender o padrão espacial e as suas variantes desta forma urbana e avaliar o seu impacto na estrutura global da cidade. A configuração do espaço urbano pode conter informações relevantes para entender o grau de vida de determinado sistema espacial. Nesse sentido, a forma do espaço, seja no modo como os edifícios se juntam, o modo como se relacionam entre si e com a rua influenciam significativamente o movimento, a copresença e o sentimento de segurança (Hillier, 1996). A identificação destes indicadores pode ajudar a perceber as condições sociais e funcionais do espaço em Alvalade. 2

A avaliação efetiva da urbanização de Alvalade implicou, pois, a realização de uma série de análises que relacionam a configuração espacial com o desempenho. O estudo visa, nesse sentido, determinar as medidas sintáticas do sistema, tomando como horizontes temporais o plano original e a configuração resultante. Um dos principais propósitos desta análise é perceber as implicações da estrutura espacial sobre as relações de uso, movimento e legibilidade. O artigo está organizado em cinco secções. A primeira secção aborda o estudo de caso de Alvalade, traçam-se as origens, contextualiza-se a sua inserção na cidade assim como a estratégia espacial seguida na sua organização. A segunda secção descreve a metodologia de trabalho utilizada, tendo como base a teoria e método da sintaxe espacial, nela explicam-se as medidas testadas nas análises. Na terceira secção, utilizando os procedimentos das análises sintáticas, procura-se entender a integração global deste conjunto urbano na cidade e a configuração espacial ao nível da escala do plano e ao nível de cada unidade de vizinhança. Procura-se avaliar a vida social das ruas e perceber o que faz funcionar Alvalade. Na quarta secção discutem-se os padrões espaciais e as suas variáveis e em que medida isso corresponde a diferentes graus de vida social no conjunto de urbanização. Por fim, apresentam-se as conclusões do estudo e perspetivas de trabalho futuro. O plano de urbanização de Alvalade A urbanização de Alvalade (1945) localiza-se a norte de Lisboa, na proximidade do Aeroporto. Trata-se de um plano de urbanização camarário, da autoria do Arq.to Faria da Costa (1906 - 1971). A área de intervenção, com 230 hectares, destinava-se a uma população estimada em 45.000 habitantes, composta por diversos estratos sociais. Historicamente esta intervenção insere-se no âmbito do planeamento pós Segunda Guerra, no quadro de reconstrução das principais cidades europeias, em que se equaciona a descentralização e reorganização dos centros urbanos e a formação de novas unidades residenciais. A articulação com o Plano Diretor de Urbanização de Lisboa, em desenvolvimento e finalizado em 1948, constituiu um importante indício do tipo de desenvolvimento pretendido: garantia de controlo do crescimento urbano da cidade por sectores urbanos individualizados (Gröer, 1948). Trata-se de uma operação urbanística de grande escala, concebida e classificada tendo como propósito o zonamento de funções e a divisão em unidades de vizinhança, tal como originalmente definidas por Clarence Perry (1929). Celestino Costa (1951) descreve-a como um conjunto de bairros de destinos diferentes, supondo a criação de pequenas comunidades homogéneas e diferenciadas. Os limites desta intervenção são facilmente apreendidos: a norte a Avenida do Brasil, que atendendo à proximidade da 2.ª Circular, estabelece uma divisão clara do que fica aquém e para lá desta avenida; a sul, a linha de comboio constitui uma barreira transponível apenas pela Avenida de Roma e por dois passadiços 3

pedestres; a nascente, o talude junto a Avenida Gago Coutinho constitui uma barreira natural e a poente o Campo Grande e as largas avenidas que a ladeiam circunscrevem a área da urbanização. O eixo da Avenida de Roma constitui a espinha dorsal que conecta e liga Alvalade e o Areeiro (a sul) diretamente com a cidade. Este eixo que estabelece todas as ligações à escala global constitui um importante elemento estruturador da malha, contribuindo assim para a fácil legibilidade do todo. O conjunto é atravessado no sentido este – oeste por duas avenidas com relevância: Estados Unidos da América e Igreja. A primeira é uma via de ligação circular, ao passo que a segunda constitui um eixo de serviços e comércio, em especial o troço a nascente da Praça de Alvalade, que termina junto à Igreja. Uma terceira avenida, perpendicular a esta, Rio de Janeiro, estabelece a matriz aproximada da zona de maior integração do sistema. Embora de caráter predominantemente residencial, foram previstas em Alvalade zonas específicas de atividades, como a fixação de zona de indústria não poluente na célula 3, de um parque florestal na célula 6 (no limite norte) e de um parque de jogos na célula 5. Para além destes espaços, o plano estabelecia a criação de um centro cívico, na ligação entre a Av. de Roma e a Av. da Igreja, zona central em termos de ofertas de serviços. Embora centralizada nesta zona, o comércio seguia uma perspetiva de proximidade (Lobato, 1952: 20). A urbanização desta zona conhece ainda alterações ao plano, influenciada pela Carta de Atenas. Tal é o que se sucede de modo mais evidente na célula 8, na célula 6 e na construção dos blocos de habitação ao longo das Avenidas Estados Unidos da América, do Brasil e Rodrigo da Cunha. De modo idêntico também a praça de Alvalade, zona do centro cívico, foi alvo de alterações. PLANO DE URBANIZAÇÃO

AREA

ALOJAMENTOS PREVISTOS

DENSIDADE POPULACIONAL

POPULAÇÃO ESTIMADA

ALVALADE (1945)

230 ha

Discrimina-se apenas as 2.066 Hab Económicas

200 Habitantes / hectare

45.000

TIPOLOGIAS HABITACIONAIS Habitações unifamiliares e blocos de habitação

PROMOTOR

AUTOR

Câmara Municipal de Lisboa

Arq. Guilherme Faria da Costa

Tabela 1 – Características do plano de Alvalade

Alvalade condensa, assim, uma série de transformações urbanas. Nela identifica-se a abertura do quarteirão denso e compacto da cidade tradicional e o seu uso como prolongamento do espaço público. Os cul-de-sac introduzem um espaço intermédio de natureza semiprivada em relação à rua pública. Por fim, a abertura dos topos dos quarteirões e a desvinculação dos edifícios em relação à estrutura urbana permitiram a individualização do edifício ‘bloco’. Portanto, apesar do forte sentido de continuidade com a cidade, identificam-se alguns indícios de rotura que apontam para uma vivência e apropriação social do espaço diferente da prevista no plano original. 4

A abordagem da Sintaxe Espacial A análise espacial de Alvalade seguiu os métodos da sintaxe espacial para modelar e analisar a forma urbana (Hillier & Hanson, 1984). Sintaxe espacial é um campo de pesquisa da arquitetura que estuda o modo como se relacionam o espaço e a sociedade. Os fundamentos da teoria baseiam-se em duas ideias (Hillier, 2005). A primeira ideia é que o espaço é algo intrínseco a tudo o que o ser humano faz, no sentido em que movermo-nos no espaço, interagir com outras pessoas no espaço ou apenas visualizar o ambiente espacial a partir de um ponto tem uma geometria espacial necessária. A segunda ideia é que para compreender este espaço é necessário pensá-lo em termos de inter-relações entre numerosos espaços que constituem um plano de um edifício ou cidade. A sintaxe espacial designa este entendimento do espaço como configuração, ou seja, o entendimento simultâneo das relações entre todas as partes (espaços) de um conjunto. Na cidade é a rede de ruas que permite ligar e agregar o conjunto de edifícios. A forma como experienciamos o espaço real da cidade parece basear-se neste princípio comum. O primeiro modelador do padrão de movimento resulta de acordo com a sintaxe espacial dessa rede. Formando o movimento, forma também os padrões humanos de co-presença e ou a ausência de pessoas, que constituem poderosos indicadores para avaliar a cidade e a relação entre as condições físicas e sociais (Hillier 2005: 10). Tendo em conta os procedimentos da sintaxe espacial, as análises sintáticas desenvolvidas em Alvalade assentaram na elaboração de mapas convexos e mapas axiais do espaço aberto. Os mapas convexos podem ser entendidos por representar os constituintes locais, tratando-se de extensões de duas dimensões, estes espaços servem como bons indicadores para avaliar em que medida a morfologia do espaço propícia encontros fáceis (Seamon, 1994). O desenho destes mapas incluiu a informação das entradas dos edifícios, como meio de avaliar a constituição do espaço, o quanto as ligações dos edifícios são ou não diretas com a rua (Hillier & Hanson, 1984). O mapa axial, por seu turno, permite medir o quanto uma rua é acessível diretamente com respeito às ruas de um bairro e com todas as outras ruas da zona. O princípio subjacente à representação do mapa axial é que o movimento se relaciona com o sentido de deslocação das pessoas no espaço, permitindo encontrar os constituintes globais do sistema. Hillier (1996: 215) sustenta que a estrutura linear de uma cidade é fundamental para controlar a organização do espaço, uma vez que a distribuição da integração local e global se torna num mecanismo poderoso, que dirige primeiro os padrões de movimento e através deste a distribuição dos usos do solo, as densidades dos edifícios e a grande escala espacial como o espaço aberto. Tendo como base o mapa axial podem-se calcular diversas medidas sintáticas. Aquelas selecionadas para o presente estudo foram: conetividade, integração, controlo, inteligibilidade e o núcleo de integração. As 5

três primeiras constituem medidas de 1.ª Ordem. Conectividade mede a quantidade de conexões existentes para cada eixo do sistema, Integração traduz a acessibilidade de determinado espaço e descreve o número de passos necessários para aceder de um espaço a todos os outros do sistema, Controlo expressa até que grau um espaço controla o acesso aos seus vizinhos imediatos, tendo em conta o número de conexões alternativas disponíveis. As duas últimas constituem medidas de 2.ª ordem. Inteligibilidade mede o grau de perceção do todo a partir de determinado espaço, isto é, o modo como a imagem de um sistema urbano pode ser construído a partir das suas partes e correlaciona os valores de integração global e conetividade. O núcleo de integração refere-se ao conjunto de linhas axiais mais integradas do sistema. A literatura indica que em média 10% das linhas permite revelar a estrutura mais integrada do sistema, ou seja, o seu centro (Hillier et al., 1987). Uma última palavra com respeito à teoria dos grafos, que constitui a base matemática da sintaxe espacial. Estes podem ser calculados matematicamente para cada espaço do sistema, isto é, por quantos espaços se tem que passar para ir de um espaço para todos os outros no sistema. Resultam desta análise as noções de integração (o quanto o espaço é facilmente acedido a partir de todos os outros) e segregação (o seu grau de profundidade no sistema). Análise sintática de Alvalade As análises sintáticas desenvolvidas tiveram como base os mapas figura (edificado) – fundo (espaço aberto) de Alvalade e incidiram especialmente sobre o plano original, muito embora fossem realizadas análises da situação atual nas unidades de vizinhança. Estas análises pretendem identificar de que modo aspetos comuns e particulares se ligam a determinadas lógicas e padrões sociais, considerando o plano e as alterações posteriormente realizadas. Por outro lado, pretendeu-se identificar as propriedades da estrutura urbana que efetivamente contribuem para as qualidades urbanas do aglomerado. Considerando Alvalade em relação à estrutura global da cidade verifica-se que esta urbanização participa ativamente do seu núcleo integrador, à semelhança do Areeiro a sul (Figura 2). Eixos como a Avenida de Roma e os troços que esta conecta diretamente apresentam valores de integração idênticos a outras zonas da cidade, como sucede com a Baixa e as Avenidas Novas (Guarda, 2016). Os valores máximos desta medida nos eixos mais importantes coincidem aproximadamente com os da Avenida de Roma (+ ou – entre 1,01 e 1,03). Este padrão de crescimento, identificado por Bill Hillier et al. (1987) em várias cidades, baseiase no princípio de que os traçados podem ser mais ou menos independentes da escala e que a cidade cresce mantendo um grau de integração mais ou menos intato. Este fato confirma que Alvalade à semelhança do Areeiro fazem parte intrínseca do processo de crescimento da cidade.

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Figura 1 – Mapa axial de Lisboa mostrando a integração global da cidade. As linhas mais escuras são os eixos mais integrados da estrutura urbana da cidade. O tracejado a vermelho identifica a zona de Alvalade, revelando que os seus eixos participam da estrutura global da cidade (Fonte: Mapa Axial de Lisboa por Teresa Heitor e João Pinelo).

Descendo à escala do plano, observamos dois níveis de organização que apresentam lógicas distintas. O zonamento espacial em Alvalade considerou, como se viu, uma estrutura viária global que cruza toda a área do plano, a qual delimita cada uma das unidades de vizinhança. Conectada diretamente à cidade através da Avenida de Roma, esta superestrutura estabelece as regras de organização geral da urbanização, coincidindo com os eixos de maior integração e conetividade (Figura 3). É de notar que esta estrutura do plano permanece intata, independentemente das sucessivas alterações realizadas ao plano original. O outro nível de organização diz respeito aos aspetos que governam os detalhes locais, isto é, ao desenho de cada uma das unidades de vizinhança. Nestas procuram-se soluções particulares de desenho considerando o contexto físico e a ligação com a superestrutura mencionada, as respostas formais variam significativamente, sendo o recurso ao dispositivo espacial de cul-de-sac o mais utilizado. Daqui resulta um elevado número de ruas interrompidas, que deveriam contribuir para a criação de uma estrutura local (Costa, 2005: 26). É no contexto destas unidades que se assinalam as maiores alterações ao plano original, sobretudo ao nível do edificado, assinalando o contexto localizado das mesmas. A estrutura do espaço aberto em Alvalade coincide particularmente com o sistema de circulação. A experiência dos espaços convexos, como espaços de eventos e de permanência, ocorre potencialmente sobretudo nas vias estruturantes do plano. Por outras palavras, os espaços convexos são fortemente sincronizados com as longas avenidas que constituem desse modo grandes unidades convexas (Figura 2). O parque urbano no extremo norte do plano, deste ponto de vista, não integra a rede de espaços públicos desta área. A distribuição e forma dos espaços convexos revelam ainda diferenças entre os 7

constituintes globais (os grandes eixos lineares, em reduzido número) e locais (vias interrompidas, em grande número) do plano. O mapa da constituição revela-nos um espaço densamente constituído: 6,48 portas por espaço convexo. Estas ligações simples e diretas entre os edifícios e o espaço público sugerem um potencial de interações no contexto público da vida quotidiana, conforme defendia Jane Jacobs (1993). Este mapa da constituição permite, ainda, identificar a localização e disseminação de serviços e de comércio, cuja concentração se pode observar nalguns segmentos específicos da Avenida de Roma e na Avenida da Igreja e zona envolvente. A elevada diluição de entradas por espaço convexo (260,7 m2), por seu turno, conjetura a maximização de encontros informais no espaço público, consentido maior grau de familiaridade e intimidade (Douglas, 1996:59). Donde a percentagem de espaços convexos cegos é reduzida, 20,4% . Atendendo a que, conforme Holanda (2002), a proliferação e distribuição de espaço cegos constituíram um atributo do urbanismo moderno de uma maneira geral, verifica-se que em Alvalade estamos face a uma morfologia urbana, como acima se referiu, em que o ‘sistema de ruas’ continua a ser o fulcro da vida social do bairro.

Figura 2 – Mapas de Constituição, Espaços Convexos e Espaços Cegos. Esquerda: constituição do espaço aberto pelas entradas dos edifícios. Direita: divisão do espaço aberto em espaços convexos e de entre estes os espaços cegos (amarelos), ou seja, os que não são constituídos por nenhuma entrada de edifício (Desenhos de autor).

O conjunto de eixos mais integrados em Alvalade, representados a vermelho e laranja, no mapa axial de integração HH Rn (Figura 3), apresentam uma forte correlação com as zonas de maior movimento pedestre e automóvel. Este mapa confere-nos a distribuição da integração, confirmando a evada acessibilidade da 8

Avenida de Roma ao nível da cidade e na área do plano, mas igualmente ao nível das ligações com os principais eixos locais de cada unidade de vizinhança, como acontece com as Avenidas de Igreja e Rio de Janeiro, onde se constatam relações entre este padrão da malha com os usos de solo, designadamente comércio e serviços.

CONETIVIDADE

PROF. MEDIA

INTEGRAÇÃO HH

Méd.

Máx.

Mín.

D.P.

Méd.

Máx.

Mín.

D.P.

Méd.

Máx.

Mín.

D.P.

AREEIRO

4.1

11

1

2.27

3.24

4.63

2.17

0.61

1.42

2.53

0.82

0.41

ALVALADE

3.2

16

1

2.47

4.55

6.70

2.84

0.74

1.41

2.60

0.84

0.31

Tabela 2 – Medidas sintáticas de Alvalade

Este mapa axial permite identificar, além disso, a diferenciação entre a estrutura global e local de cada uma das unidades de vizinhança. Se por um lado, os valores de integração médios em Alvalade são praticamente similares aos detetados no Areeiro, 1,42 e 1,41 respetivamente, o que leva a considerar a forte coesão entre os dois conjuntos urbanos no crescimento da cidade (Tabela 2). Por outro, os valores de profundidade, indicam fortes variações localmente em Alvalade, em razão da maior diversidade morfológica de cada unidade de vizinhança e destas serem mais profundas internamente do que a malha urbana envolvente. O valor médio de profundidade de 4,8 em Alvalade revela a noção de enclausura, se se comparar com o valor de 3,2 no Areeiro, indicando o caminho da constituição de conjuntos urbanos morfologicamente mais complexos. Tal é o que se passa de modo mais evidente com a célula n.º 4 que apresenta um elevado nível de segregação em termos globais. Ainda assim, esta situação é variável.

Figura 3 – Mapa axiais de Conetividade (esquerda) e Integração HH Rn (direita). Escala de azul (espaços mais segregados) ao vermelho (espaços mais integrados). Desenhos de autor a partir do Software Depthmap 10.

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Considerando os valores de inteligibilidade, ou seja, como a imagem de um sistema urbano pode ser construído a partir das suas partes, verifica-se que esta medida é fortemente afetada pelo tamanho do sistema urbano, fato que explica o baixo valor de inteligibilidade em Alvalade, 0,42 1. Esta situação torna, por um lado, particularmente visível a hierarquia geral composta pelas avenidas mais integradas que constituem o esqueleto de Alvalade e por outro, as várias unidades de vizinhança. Esta situação vem confirmar o argumento de Lewis Mumford (1954) de que a unidade de vizinhança constitui uma peça central maior na estratégia do zonamento por uso segregado. Este sentido de homogeneização, no âmbito do plano de Alvalade, estabeleceu um forte sentido de diferenciação entre unidades de vizinhança como forma de estabelecer identidades locais. Esta situação implicou necessariamente uma diferenciação da experiência do espaço e paralelamente determinou uma inteligibilidade própria em cada um. Tomando, como exemplo, a análise individual da célula 1 e das células 3 e 5, verifica-se que no caso da célula 1 que a sua morfologia confirma uma estrutura em forma de árvore. O grau de distribuição das ruas é interrompido pelo elevado número de cul-de-sac, 8 no total e os traçados das restantes ruas são indiretos e apresentam várias interrupções, mudanças de direção ao longo do seu percurso. Do mesmo modo, os percursos pedestres são irregulares e pouco legíveis. O valor de inteligibilidade é consequentemente baixo, 0,46. Se considerarmos as células 3 e 5 o cenário inverte-se. Para começar a divisão destas células é difícil de determinar, dado que apresentam forte articulação entre si, por esse motivo o valor de inteligibilidade é de 0, 67. Tal situação vem confirmar que malhas simples, com continuidade (não interrompidas) apresentam maior potencial de inteligibilidade. A relação entre a heterogeneidade do espaço e os seus reflexos ao nível de cada célula apresenta assim diferenciações entre a configuração espacial e a sua lógica social, confirmando o elevado investimento nas relações sociais locais. Quanto ao núcleo de integração de Alvalade, este precisou de menos de 10% das linhas mais integradas para salientar a sua forma (Figura 4). De algum modo a sua estrutura central tem sido largamente referenciada ao longo deste texto. Este cobre todo o sistema e liga o coração (setas a azul) à periferia em todas as direções. A incidência particular do núcleo em torno das células 3 e 5, vem reforçar o caráter atractor desta zona como um centro de relevância, curiosamente onde se previu no plano a localização do centro cívico. Esta destaca de algum modo os percursos mais prováveis (choice), evidenciando a estrutura global do sistema urbano. Por outro lado, confere-nos mais visivelmente que as linhas mais segregadas se encontram nos interstícios das linhas mais integradas, criando ‘subáreas’ relativamente segregadas, ou seja, as unidades de vizinhança. Referiu-se, anteriormente, a diferenciação de cada unidade de vizinhança, mas o que fica claro pelo núcleo de integração, é que a segregação de cada unidade de vizinhança, embora variável, é também relativa. No sentido em que cada um destes ‘agrupamentos’ está conectado ou próximo das linhas mais integradas. Tal significa que em qualquer espaço neste sistema urbano estamos sempre relativamente próximos das linhas mais integradas, revelando tratar-se de um sistema raso.

Segundo a literatura da Sintaxe Espacial valores de inteligibilidade inferiores a 0,60 correspondem a sistemas urbanos pouco legíveis a partir das componentes locais. 1

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Figura 4 – Forma do núcleo de integração. 10% das linhas mais integradas do sistema urbano. Escala de azul (menor valor) ao vermelho (maior valor). Desenhos de autor a partir do software Depthmap 10.

Os grafos justificados realizados a partir das linhas axiais, tendo como ponto de partida o eixo mais integrado e o mais segregado (Figura 5), apontam precisamente para o relativo grau de segregação em Alvalade, indo ao encontro do princípio identificado na cidade tradicional de que as zonas residenciais se apresentam relativamente segregadas e próximas dos eixos mais integrados (Hillier et al. 2007). O que estes grafos nos dizem é que as ligações são intensas, se sobrepõem e que as diferenças considerando como ponto de partida o eixo mais integrado ou mais segregado, é insignificante. Mas denota-se, neste contexto, a influência de uma propriedade mais local, que em certa medida ajuda a explicar as variações referidas entre as unidades de vizinhança, o valor de controlo, ou seja o número de conexões que um espaço tem relativamente aos seus vizinhos. Espaços com elevado nível de controlo podem ser vistos como localmente fortes, mas não são necessariamente integrados ao nível do sistema como um todo. O que isto significa é que existe uma tendência nas unidades de vizinhança, numas mais que noutras, para uma presença exclusiva de residentes. As células 1 e 2, onde é recorrente o dispositivo cul de sac, evidenciam espaços com maior grau de controlo por parte dos seus residentes. A divisão entre o espaço exclusivo dos residentes, no interior das unidades de vizinhança e paralelamente a propensão para a presença de transeuntes que não vivem em Alvalade nas zonas mais integradas, constitui um importante padrão global do espaço em Alvalade.

Figura 5 – Grafos Justificados. Esquerda: a partir do eixo axial mais integrado; Direita: a partir do eixo mais segregado. Desenhos de autor a partir do Software JASS.

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Discussão e conclusões As análises realizadas com o recurso à teoria de Sintaxe Espacial permitem perceber que Alvalade representa uma “área natural” no contexto de crescimento da cidade, com identidade própria e um núcleo de integração que liga e agarra todo o sistema urbano. Identifica-se uma boa correspondência entre as acessibilidades, fluxos e concentração de serviços e comércio, no que se nomeou como o ‘esqueleto’ dos eixos mais integrados. A correlação entre as diferentes propriedades da estrutura da malha contribui, de um modo claro, para explicar o sucesso deste sistema urbano. Ligações diretas das entradas dos edifícios, ligação com o exterior e a distribuição do núcleo de integração sugerem uma organização do espaço que facilita e ao mesmo tempo permite controlar o movimento através do sistema urbano. Os circuitos mais integrados concentram os fluxos de pedestres e automóveis, sendo maior a mistura entre habitantes e estranhos e onde naturalmente se concentram os serviços e comércio. Neles dá-se a sobreposição de diferentes atividades, contribuindo para uma maior intensidade da vida social (Alexander, 1965). As zonas residenciais com relativo grau de segregação, situadas como se viu nos interstícios dos eixos mais integrados, são zonas necessariamente mais sossegadas e de pertença dos habitantes do lugar. Apesar das variações entre as células em termos morfológicos e dos graus de segregação distintos, verifica-se que mesmo em casos mais segregados, como acontece na célula 4, local das moradias unifamiliares, as ligações são sempre relativamente próximas de zonas integradas. As análises apresentadas sugerem que a morfologia das ruas tem um impacto positivo na sociabilização. O sucesso económico e social de Alvalade ao longo do tempo, independentemente das sucessivas fases de adaptação por que passou, beneficiou também largamente da persistência da mistura composta por residentes locais e de transeuntes. A interligação destes dois fatores explica em larga medida a capacidade de renovação e de adaptação detetados em Alvalade. As principais características do plano mantiveram-se intatas, indicando a constância da sua estrutura urbana ao longo do tempo. As transformações incidiram, sobretudo, ao nível do edificado e com implicações circunscritas. O que se verifica é um acréscimo da permeabilidade entre os edifícios, uma vez que a estrutura da malha segue aproximadamente a configuração proposta no plano. Essa situação é particularmente visível no Bairro das Estacas (célula 8), onde os edifícios seguem a orientação e a posição estabelecida no plano, apenas vazando o espaço térreo e tornando o espaço mais permeável entre os edifícios. Houve também alterações nos limites das unidades de vizinhanças, como sucedeu na Avenida Estados Unidos da América, Brasil e Rodrigo da Cunha. Embora estas alterações aumentassem a área do espaço público, o fato de estarem arredadas dos fluxos globais de movimento, constituem espaços residuais com pouco utilização.

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O paradigma de Alvalade, apesar de se tratar de um grande conjunto planeado integralmente de raiz, reside no princípio de continuidade com a estrutura linear da cidade e no modo como se procurou no plano articular eficazmente a escala global com a escala local. A noção de movimento implica assim uma área maior do que aquela de um bairro. Situação contrária à estratégia adotada nos grandes conjuntos dos Olivais Norte, Olivais Sul e Chelas, as ‘exceções cultas’ segundo Nuno Portas (1997) e aonde as relações com a cidade são cortadas, passando a ser meramente simbólicas. Como trabalho futuro aponta-se para a necessidade de realização de outras análises, designadamente de segmentos, que fortaleçam os argumentos em torno da posição de Alvalade na estrutura global da cidade e permitam aferir melhor as suas componentes locais, sobretudo com respeito à localização de atividades económicas e serviços. Outros estudos a serem conduzidos dizem respeito à contagem e observação dos fluxos de pessoas in situ e a sua correlação com os mapas de segmentos. Em termos das análises dos dados quantitativos há que proceder, ainda, a um esforço de uniformização que permita a comparação com outros sistemas urbanos na cidade e nos subúrbios. Referências bibliográficas Alexander C (1966) A city is not a tree, Design Magazine, 206, 46–55. Câmara Municipal de Lisboa (1948) A urbanização do Sítio de Alvalade, Lisboa. Costa A C (1951) Evolução de uma cidade Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa. Costa J P (2005) Bairro de Alvalade Um Paradigma no Urbanismo Português, Livros Horizonte, Lisboa. Douglas M (1996 [1970]) Natural Symbols Explorations in Cosmology, Routledge, London and New-York. Gröer É (1948) Plano Director de Lisboa: modo actual de construir [policopiado], Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa. Guarda I (2016) Análise Configuracional dos Grandes Conjuntos Urbanos na Região de Lisboa (19451974): Contributos da Sintaxe Espacial para a História de Arte como História da Cidade, Unpublished PdD Thesis, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa. Hanson J (2000) Urban transformations: a history of design ideas. URBAN DESIGN International, 5, 97122. Heitor T V (2001) A Vulnerabilidade do Espaço em Chelas. Uma Abordagem Sintática, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Lisboa. Hillier B & Hanson J (1984) The Social Logic of Space, Cambridge, Cambridge University Press. Hillier B, Burdett R, Peponis J & Penn A (1987) Creating Life: Or, does Architecture Determine Anything, Architecture et Comportement/Architecture and Behaviour, 3 (3), 233-250. Hillier B (1988) Against Enclosure, in N Teymur, T Markus & T Wooley (eds) Rehumanising Housing, Butterworths, London. Hillier B (1996) Space is the Machine, University College of London, London. Hillier B. (2005) The Art of Place and the Science of Space, World Architecture, 185, 96-102. Hillier B & Vaughan L (2007) The City as One Thing, Progress in Planning, 67(3), 205-230. 13

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