Análise Jurídica da Convenção de Nova Iorque de 1997

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Análise jurídica da Convenção de Nova Iorque de 1997

ANÁLISE JURÍDICA DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE DE 1997 Legal analisys of the 1997 New York Convention Revista de Direito Ambiental | vol. 83/2016 | p. 265 - 295 | Jul - Set / 2016 DTR\2016\22974 José Augusto Fontoura Costa Livre-docente em Direito Internacional pela Faculdade de Direito de São Paulo (USP). Professor da Faculdade de Direito de São Paulo (USP) e pesquisador com bolsa de produtividade do CNPq. [email protected] Fernanda Sola Doutora PROCAM/IEE/USP. Professora do Mestrado Profissional Interdisciplinar em Sustentabilidade na Gestão Ambiental, da Universidade Federal de São Carlos, Campus Sorocaba UFSCar. [email protected] Solange Teles da Silva Pós-doutora e Doutora em Direito Ambiental pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Professora da Universidade Presbiteriana MacKenzie e pesquisadora com bolsa de produtividade do CNPq. [email protected] Área do Direito: Internacional; Ambiental Resumo: Em 1997 a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Convenção sobre os Usos Não Navegacionais dos Cursos d’Água Internacionais, a qual estabelece princípios e regras de Direito internacional da água doce e entrou em vigor em 2014. Este artigo apresenta uma interpretação das disposições convencionais para compreender o papel da dimensão ambiental neste documento. A adoção mundial do princípio da distribuição dos benefícios entre os Estados ribeirinhos e de procedimentos de devida notificação e negociação prévia à implementação de projetos é um passo desafiador para a implementação de um Direito global que regula um tema tradicionalmente tratado regionalmente. Assim, a compreensão da estrutura jurídica da convenção é necessária para avaliar a conveniência política e ambiental do regime a ser estabelecido. Palavras-chave: Convenção de Nova Iorque de 1997 - Água doce - Cursos d’água internacionais - Rios internacionais. Abstract: In 1997 the United Nations General Assembly have approved the Convention on the Non-Navigational Uses of International Watercourses, which deals with principles and rules of international law on freshwaters and entered into force in 2014. This article presents an interpretation of conventional dispositions in order to understand the role of environmental dimension therein. The worldwide adoption of the principle of shared benefits and of procedures granting proper notification and negotiation previous to the implementation of projects is a challenging step towards the implementation of a global law regarding issues traditionally treated as regional. So, the understanding of the conventional legal structure is necessary to assess the political and environmental convenience of the legal regime to be set. Keywords: 1997 New York Convention - Freshwater - International watercourses International rivers. Sumário: 1Introdução - 2Estado atual do Direito das bacias de drenagem internacionais - 3Vigor 4Preâmbulo - 5Articulado – Introdução - 6Princípios gerais - 7Medidas planejadas 8Proteção, preservação e gerenciamento - 9Situações nocivas e casos de urgência 10Disposições diversas - 11Solução de controvérsias - 12Tendências e limitações 13Conclusão 1 Introdução Página 1

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A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito dos Usos Não Navegacionais dos Cursos d’Água Internacionais, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) em 21.05.1997 (Res. 51/229; A/51/49), conhecida por Convenção de Nova Iorque de 1997 (Convenção), entrou em vigor internacional aos 17.08.2014. Elaborada para codificar o Direito internacional da complexa temática dos usos múltiplos das bacias de drenagem internacionais, de modo a combater os problemas gerados pelas crescentes explotação e poluição do recurso, deixa clara a necessidade de promover o uso sustentável para as presentes e futuras gerações e reafirma os princípios e recomendações da Rio 92, com referência à Declaração do Rio e à Agenda 21. Nenhum país das Américas ratificou a Convenção até o presente, em que pese a Venezuela e o Paraguai a haverem firmado. No continente, apenas a França, ausente reserva em sentido diverso, estende a vigência para o território da Guiana Francesa. Em face de tal circunstância, coloca-se a questão da adequação do regime convencional às realidades sul-americana e brasileira. Documento com vigência internacional recente e pretensão de universalidade, a Convenção poderia, em tese, ser utilizada como instrumento principal ou, pelo menos, como ponto de partida para o estabelecimento de tratados específicos sobre algumas das bacias regionais. É evidente, decerto, que tal emprego depende de várias considerações de ordem política, social e ambiental, não obstante, uma interpretação detalhada dos instrumentos convencionais, identificando mediante análise gramatical, sistemática e histórica, bem como em face da doutrina internacional em matéria de bacias de drenagem internacionais, é uma condição necessária para a correta compreensão e, portanto, decisão informada a respeito da conveniência de aderir, ou não, a tal instrumento. Sua abordagem consistente, portanto, depende de uma cuidadosa análise jurídica da Convenção, a qual, até o presente, não se encontra nem na doutrina brasileira, nem na internacional. Deste modo, mesmo que aparentemente descritivo, um artigo voltado a analisar a integridade do documento é necessário para sua compreensão sistemática, a construção de uma visão geral de como os dispositivos de um capítulo interferem sobre a compreensão e as obrigações derivadas das regras de outro. Trata-se, portanto, de análise pioneira, capaz de pôr em perspectiva jurídica as disposições adotadas em instrumento potencialmente revolucionário, caso algum dia venha a ganhar os foros de universalidade pressupostos. A tarefa de construir uma interpretação completa e circunstanciada deve ser levada a cabo tanto mediante a compreensão integral do texto, quanto da análise de fontes doutrinárias. Esse é o objetivo principal do presente artigo, que visa detalhar, a partir da leitura cuidadosa da Convenção, sua estrutura normativa e seus efeitos sobre a regulação jurídica internacional dos cursos d’água. Para isso, optou-se pela interpretação do texto convencional e a explicação de seu sentido em face do Direito internacional. Não se pretende, portanto, qualquer análise econômica, política, social ou ecossistêmica. Embora exista texto adotado por Portugal, optou-se, dado o caráter internacional da análise realizada, por utilizar os textos oficiais em espanhol, inglês e francês, conforme 1 disponibilizados pela Organização das Nações Unidas (ONU). A bibliografia de apoio utilizada foi levantada no portal de busca integrada da Universidade de São Paulo (http://buscaintegrada.usp.br) no período de 10 a 15 de dezembro de 2014, utilizando as expressões e palavras-chave “usos não navegacionais” e “cursos d’água”, bem como seus correspondentes em espanhol, francês e inglês. Foram, além disso, empregados outros livros e artigos sobre Direito internacional e Direito Ambiental para a orientação temática geral. A exposição seguirá a estrutura da Convenção, que é composta por três partes principais: o preâmbulo, o articulado e o anexo. O preâmbulo, mesmo sem ser vinculante, estabelece as ideias e finalidades subjacentes à Convenção, sendo relevante para sua compreensão integral. O anexo põe normas e procedimentosPágina que 2

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regulamentam a arbitragem entre Estados. O articulado, juridicamente obrigatório, encontra-se dividido em sete partes: (1) Introdução (arts. 1 a 4), (2) Princípios gerais (arts. 5 a 10), (3) Medidas planejadas (arts. 11 a 19), (4) Proteção, preservação e gestão (arts. 20 a 26), (5) Condições lesivas e casos de urgência (arts. 27 e 28), (6) Miscelânea (arts. 29 a 33) e (7) Disposições finais (arts. 34 a 37). Os pontos mais relevantes para traçar o panorama de regulação substantiva são o preâmbulo e da segunda à sexta partes do articulado. Por fim, é importante observar que a opção por uma abordagem que abre mão do aprofundamento de aspecto específico se deve à falta de texto integral de interpretação convencional, lacuna doutrinária cuja urgência de preenchimento antecede o detalhamento e a colocação em perspectiva de regras e regimes que decorrem do texto convencional. Há, não obstante, o inevitável predomínio do estudo da noção de utilização e participação equitativa e razoável (tópico 5.1) e das questões estritamente ambientais (tópico 7), análises estas que se nutrem da visão panorâmica proposta. 2 Estado atual do Direito das bacias de drenagem internacionais Cada rio é diferente. Diferentes são seus regimes hídricos, os ecossistemas aquáticos e terrestres associados, a história de sua ocupação, o emprego de seus recursos que, em última análise, se traduzem no fundamento último da vida. Por isso, ao contrário dos oceanos, cuja imensidão escapou por milênios das ambições humanas, os rios e lagos de água doce foram, desde a aurora das Civilizações, o principal palco de controvérsias e conflitos não apenas em torno da glória, mas da própria sobrevivência de indivíduos e culturas. Como local de conflito, não poderia deixar de invocar a diplomacia e o Direito desde o início. Por outro lado, dadas as inúmeras peculiaridades que tornam o Nilo, o Congo, o Bravo, o Danúbio, o Reno, o Amazonas e o Prata incomparáveis entre si, ou com qualquer outro curso d’água, jamais se formou um Direito internacional geral em torno das questões especificamente fluviais. Decerto, as normas de Direito internacional geral, tanto as costumeiras como as de origem convencional, também se aplicam a questões referentes a bacias hidrográficas. Por exemplo, os princípios e regras de Direito dos tratados presentes no costume internacional e na Convenção de Viena de 1969 são também válidas para os tratados bilaterais, regionais e universais em matéria de rios internacionais. Do mesmo modo, os parâmetros gerais de responsabilidade entre os Estados, estabelecidos no costume e em instrumentos específicos, dado o fracasso em elaborar um tratado mundial, igualmente cobrem obrigações referentes ao caudal ou à qualidade da água. As idiossincrasias de cada curso d’água estão na raiz da diversidade de regimes convencionais e, decerto, da demora em se buscar construir um instrumento único e universal. A Convenção das Nações Unidas sobre os Usos Não Navegacionais dos Cursos d’Água Internacionais foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas cerca de três meses antes da decisão pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) do caso Gabcíkovo-Nagymaros, tornando o ano de 1997 um dos mais alvissareiros na história do Direito Internacional da água doce. Os quase 17 anos que separaram a consolidação de seu texto da 35.ª ratificação, entretanto, lançaram dúvidas sobre sua capacidade de ganhar vigor e, particularmente, uma abrangência realmente próxima da universalidade pretendida. Seu contexto de aprovação não foi dos mais tranquilos, sendo registrados 103 votos favoráveis, três contrários, 27 abstenções e 33 ausências, de modo a deixar de revelar 2 uma tendência de codificação e consenso. Decerto, cada bacia de drenagem internacional se refere a uma realidade hídrica e política diferente, o que torna difícil a 3 formação de qualquer consenso, mesmo sem se pensar na uniformização de concepções e princípios própria da codificação internacional. Página 3

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Há cerca de um século atrás não havia dúvidas a respeito do domínio sobre as águas 4 fluviais, como expressava inequivocamente Frantz Despagnet: Os rios, quando atravessam um país, são parte de seu território e estão submetidos a sua soberania; eles até mesmo podem, na condição de cursos d’água navegáveis, fazer parte do domínio público, como na França, e serem, assim, verdadeiro objeto de direito de propriedade do Estado. Quando se trata de rios que separam o território de dois países, já se viu que a soberania de cada Estado ribeirinho se estende até a linha mediana do talvegue, salvo convenção em contrário. 5

Em sentido similar, Lassa Oppenheim (1920, p. 314 e 315):

A teoria e a prática estão de acordo sobre a regra conforme a qual os rios são parte do território do Estado ribeirinho. Consequentemente, se um rio está integralmente compreendido entre as fronteiras de um único Estado, este o possui exclusivamente. (...) Rios de fronteira pertencem ao território dos Estados que separam, na linha de fronteira, tendo-se por regra a que corre pelo meio do rio ou a do chamado canal médio do rio. E os rios que correm através de vários Estados pertencem aos seus territórios; cada Estado é proprietário daquela parte do rio que corre por seu território. À soberania estatal, considerada equivalente e, mesmo, idêntica à propriedade, apenas excepcionava a liberdade de navegação que garantia o acesso de todos os ribeirinhos 6 aos demais países e ao mar. Apenas a navegação por embarcações mercantes de bandeira dos Estados ribeirinhos dos rios internacionais era reconhecida como instituída internacionalmente e a liberdade para o acesso de embarcações matriculadas fora desses países só foi reconhecida, em teoria, como parte do Direito internacional europeu a partir do Congresso de Viena de 1815, embora sua implementação, com mitigações, 7 tenha sido implementada apenas na Convenção de Mannheim de 1868. Decerto, mesmo que se conteste sua pertinência ao Direito internacional e à própria 8 prática americana, a radical defesa da soberania territorial sobre os corpos d’água internacionais plasmada na Doutrina Harmon continua a exemplificar um ponto de vista que, nuances à parte, pode ser contraposto à concepção de um recurso único cujo uso é compartilhado. É interessante contrapor, por exemplo, as opiniões de José Sette Câmara 9 10 Filho e Gillermo Cano no contexto da tensão platina por ocasião da construção da hidrelétrica binacional de Itaipu: o primeiro defende a doutrina da soberania territorial, a qual evidentemente favorece os países a montante, enquanto o outro afirma a necessidade de uma abordagem integral do recurso e critérios que garantam o justo uso pelos países a jusante. A compreensão de como se constroem doutrinas jurídicas e se redigem os textos internacionais, necessárias para uma leitura em profundidade de qualquer instrumento de Direito positivo, é indispensável na interpretação da Convenção. A realização da Conferência de Estocolmo de 1972 e seu principal legado, a Declaração sobre o Meio Ambiente Humano (Declaração de Estocolmo), gerou um interessantíssimo impacto sobre a compreensão do Direito dos corpos d’água internacionais: a abordagem tipicamente ampla (holística, universalista e global) do ambientalismo calçou as mãos dos ribeirinhos a jusante com luva feita sob medida. Assim, embora não exista qualquer relação lógica necessária entre interesses estatais e meio ambiente e, pelo contrário, os Estados sejam geralmente muito zelosos da manutenção da jurisdição e da capacidade de decidir sobre o que ocorre em seu território, no caso específico da doutrina do uso compartilhado se produziu uma aliança estratégica. A composição de interesses e retóricas que deu origem à estrutura da Convenção, portanto, interconecta meio ambiente e compartilhamento do recurso. Com efeito, o pano de fundo conceitual sobre o qual se projetam a temática e a problemática desse tratado internacional se estende entre três pontos de tensão: a manutenção da soberania estatal, o compartilhamento do recurso pelos Estados ribeirinhos e a proteção ambiental. Página 4

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Há, assim, um certo sequenciamento de questões relevantes. Grosso modo, é possível identificar três etapas: 1. A da regulação da navegação fluvial internacional como questão central, o que já aparece na própria Conferência de Viena de 1815 e encontra seu apanágio na Convenção de Barcelona de 1921; 2. A da distribuição dos benefícios dos usos de recursos fora do âmbito estritamente coberto pela soberania territorial nacional, como, por exemplo, mediante pagamentos pelo aproveitamento hidrelétrico em contrapartida à transformação do regime hídrico a jusante. Na América do Sul, essa fase foi profundamente marcada pela construção da hidrelétrica de Itaipu, mas se repete, pelo menos em alguma medida, em projetos bem mais recentes na Bacia do Amazonas. As regras de Helsinque, elaboradas pela International Law Association (ILA) em 1966, encontram-se profundamente vinculadas a essas questões. A arbitragem do caso do Lago Lanoux (1957) também se encontra relaciona a essa fase; e 3. A da discussão dos efeitos ambientais, elevados à categoria de preocupações universais, dos usos e da distribuição dos benefícios da água. Nesse sentido específico se colocam tanto as Regras de Berlim (ILA, 2004), quanto a emblemática decisão da Corte Internacional de Justiça no caso Gabčikovo-Nagymaros em 1997. A Convenção de Nova Iorque de 1997 se coloca, também e sem qualquer sombra de dúvida, no período mais recente, em que as questões referentes à navegação já se encontram bem equacionadas e, por outro lado, a disputa interestatal pelo uso de recursos ainda se digladia em torno da defesa da soberania territorial absoluta ou dos interesses proporcionais sobre recursos compartilhados. Nesse contexto, porém, o caráter universalista da problemática ambiental termina por influenciar a percepção do Direito dos cursos d’água internacionais como umbilicalmente ligados a questões globais. 3 Vigor A assinatura da Convenção ficou aberta até 20.05.2000 (art. 34). Houve, nesse período, 16 assinaturas, das quais 13 resultaram em ratificação, aceitação ou aprovação (art. 35, 1). Iêmen, Paraguai e Venezuela apenas firmaram o texto, sem vir a confirmar 11 posteriormente sua vontade de se vincular juridicamente. A distinção entre ratificação, aceitação e aprovação depende dos procedimentos internos de cada Estado; em todos os casos, em termos de Direito internacional, se trata de declarações unilaterais a serem, no caso, depositadas na Secretaria Geral das Nações Unidas. A entrada em vigor da Convenção se deu aos 17.08.2014, em 90 dias contados do depósito do 35.º instrumento de ratificação, feito pelo Vietnã aos 19.05.2014 (art. 36, 1). O vigor para novas Partes se inicia aos 90 dias contados do depósito da ratificação, aceitação, aprovação ou adesão (art. 36, 2). Os idiomas autênticos são árabe, chinês, espanhol, francês, inglês e russo (art. 37). Não há previsão de denúncia na Convenção. Aplica-se, portanto, o art. 56 da CVDT, incidente sempre que não existam regras específicas sobre denúncia ou retirada de Parte no tratado. Estas são, em princípio, vedadas, a menos que se verifique ao menos uma das seguintes causas: (1) intenção das partes em admitir a possibilidade de denúncia ou retirada e (2) da natureza do tratado se infere o direito de retirada. A notícia de que se pretende denunciar deve ser dada pelo menos 12 meses antes de sua efetivação. 4 Preâmbulo O preâmbulo da convenção já deixa claro o compromisso com o Direito internacional ambiental. Sem qualquer menção expressa à soberania e direitos soberanos sobre os cursos d’água nos territórios estatais, ressalta aspectos importantes que, para além do reconhecimento de um princípio de uso equitativo e racional dos recursos hídricos, se relacionam com uma percepção ambientalista da questão. Página 5

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Em primeiro lugar, reconhece a importância do tema e explicita a base jurídica da 12 adoção do documento mediante a Resolução A/51/229 da AGNU, composta pelos arts. 1, 2 e 13 (1) (a) da Carta das Nações Unidas. Ao fim, também, esclarece a consciência dos signatários a respeito da existência de outros instrumentos internacionais relevantes para a temática. Isso inclui aqueles cuja imbricação mútua com a Convenção se mostra evidente: no campo universal, destaca-se a relação com os resultados da Conferência do Rio de Janeiro de 1992, em particular a Declaração do Rio e a Agenda 21 e, para os âmbitos regionais, rememora a existência de acordos que já tratam de usos não navegacionais. Essa menção preambular, não obstante pertinente, não produz, per se, qualquer efeito sobre a validade ou os efeitos dos demais textos internacionais. De um ponto de vista estrito, inclusive, é importante rememorar que tais instrumentos não compõem o contexto, mas informam a interpretação da Convenção na condição de “regras de Direito internacional relevantes” (CVDT, art. 31, 3 (c)). Ao falar apenas dos instrumentos universais produzidos no Rio de Janeiro, omitindo os da Conferência de Estocolmo de 1972 e outras convenções em matéria ambiental, parece limitar o escopo de seu emprego em decorrência da menção expressa. Pode-se discutir, portanto, se os resultados das Conferências de Joanesburgo de 2002 e do Rio de Janeiro de 2012 seriam relevantes. Mas, sem se estar em face de uma circunstância concreta, é bastante difícil fazer qualquer afirmação que vá além de um simples “não é impossível”. O mesmo deve ser dito das regras propostas pela International Legal Association (ILA) nas suas reuniões de Helsinque (1966) e Berlim (2004), apesar do explícito reconhecimento do trabalho das organizações não governamentais. Em seguida, o próprio preâmbulo incorpora uma série significativa de elementos que remetem às compreensões ambientalistas: (1) os usos não navegacionais envolvem, entre outros, tanto problemas de explotação excessiva, quanto de poluição; (2) o tratado visa facilitar o uso ótimo e sustentável para as presentes e futuras gerações; (3) reconhece-se a necessidade de otimizar o uso, desenvolvimento, manejo e proteção dos rios e (4) reconhece-se a importância de organizações não governamentais, o que termina por destacar meios de governança ambiental. Fora do campo estritamente ambiental, destaca-se a necessidade de promover a cooperação e a boa vizinhança, assim como se chama a atenção para a situação e as necessidades especiais dos países em desenvolvimento. Como se sabe, aliás, há diferenças às vezes radicais entre os interesses dos países em desenvolvimento e o 13 ambientalismo, embora ocasionalmente pareçam faces de um mesmo fenômeno. Mesmo sem força vinculante, salta à vista a opção da AGNU e dos Estados signatários e aderentes à Convenção por favorecer formas de apropriação e uso dos recursos hídricos pertencentes a cursos d’água internacionais compatíveis com as preocupações ambientais. O fato desse viés ser relevante para a interpretação da Convenção, portanto, recomenda atenção à estrutura preambular como guia para a leitura do articulado. 5 Articulado – Introdução Os quatro artigos que compõem a introdução estabelecem o âmbito da Convenção, a terminologia empregada e a relação com os acordos vigentes sobre cursos d’água. Chama-se, aqui, a atenção a alguns cuidados que se deve tomar a respeito do âmbito material e da terminologia empregada. Primeiramente, embora seja para “usos não navegacionais”, leva-se em conta os efeitos dos outros usos sobre a navegação. Já em seu primeiro artigo a Convenção estabelece seu alcance para cobrir os cursos d’água e a água a eles relacionada com respeito a quaisquer outros usos diversos da navegação, bem como para sua “proteção, preservação e gestão”. Porém (art. 1 (2)), deixa-se bem clara a extensão de seu alcance Página 6

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para a navegação, sempre que essa seja afetada por outros usos, ou quando outros usos forem afetados pela navegação. Por exemplo, a realização de uma obra para a produção de energia que afete a navegação, bem como a da implementação de equipamentos hidroviários que afetem a pesca, estão cobertas pela Convenção. Assim, os efeitos sobre a navegação e da navegação sobre outros usos são levados em conta no cumprimento do dever de notificar, bem como no cálculo de eventuais prejuízos. Em segundo lugar, à noção de “curso d’água” é atribuído sentido bem mais amplo que o de seu uso normal, mediante a extensão às águas, superficiais e subterrâneas. O 14 Glossário Hidrológico da Unesco o define como “canal natural ou feito pelo homem mediante ou ao longo do qual a água possa fluir”, de modo a ser importante esclarecer que, na Convenção, a expressão abrange também a água, mesmo a subterrânea. Por fim, seu caráter internacional deixa dúvidas a respeito de se todas as águas de uma bacia estariam cobertas pela definição, pois, quando se trata exclusivamente da navegação e do acesso a águas marinhas e oceânicas, os canais a montante de um leito principal que não alcancem a fronteira de outro país nem sempre são franqueados à 15 navegação estrangeira. A Convenção esclarece (art. 2 (a)): “Por ‘curso d’água’ se entenderá um sistema de águas superficiais e subterrâneas que constituem, em virtude de sua relação física, um todo unitário e normalmente fluem para uma desembocadura comum.” Opta, portanto, por um uso bastante amplo e extensivo do termo, mesmo sem adotar a unidade do corpo d’água como critério para estabelecer a abrangência do curso internacional. Não obstante, encontram-se posições doutrinárias no sentido de tal definição consagrar a 16 integridade de um sistema hidrológico. Em seguida (art. 2 (b)) define como cursos d’água internacionais aqueles em que “algumas partes se encontrem em Estados diferentes”. Aparentemente comezinha, tal definição deixa claro o sentido em que se utiliza a expressão, sem dar azo a interpretações extensivas. Com efeito, no século XIX e início do XX era comum a designação “rio internacional” ser empregada para aqueles que correm exclusivamente 17 no território de um Estado, mas são navegáveis por embarcações estrangeiras. O texto da Convenção não deixa dúvida. Define-se, então, “Estado do curso d’água” como a Parte na Convenção. Há, na convenção, o uso diferenciado das expressões “riparian State” (“Etat riverain” e “Estado ribereño”) e “watercourse States” (Etat du cours d’eau” “Estados del curso d’água”), as quais se traduzem por “Estado ribeirinho” e “Estados do curso d’água”. No art. 3 se inicia com a discussão do alcance temporal da Convenção. Por isso, faz um esclarecimento a respeito de não afetar a validade ou eficácia de acordos sobre água que estejam em vigor, mantendo os direitos e obrigações existentes. Nada impede a renegociação de acordos para gerar harmonia com os princípios convencionais (art. 3 (2)), o que fica a inteiro critério dos países interessados. Para o futuro, se prevê acordos que “apliquem e adaptem” suas disposições (art. 3 (3)). Eventuais necessidades de aplicação e adaptação da Convenção deverão ser negociadas, de boa-fé, por seus membros, para a celebração de acordos regionais sobre cursos d’água. A regra do art. 3 (5), neste sentido, permite conceber o tratado como um instrumento que estabelece regras e padrões gerais, bem como instrumentos de concertação e de solução de controvérsias, estabelecendo um quadro geral para regimes específicos, seja para toda uma bacia internacional, seja para parte dela. Por fim, o tema dos limites subjetivos das obrigações convencionais é abordado. Nesse sentido, o art. 3 (6) esclarece que quaisquer acordos anteriores sobre cursos d’água não podem afetar os interesses e direitos das demais Partes da Convenção, ou seja, o acordo preexistente pode ser esgrimido contra a outra Parte, não contra terceiro. Página 7

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O art. 4 regula a participação dos Estados em acordos internacionais sobre cursos d’água. Ressurge aqui a concepção da Convenção como base principiológica e procedimental para ordenar de modo geral as necessárias negociações em cada situação particular e concreta. Estabelece, para tanto, importantes direitos subjetivos para os Estados do curso d’água, como o de participar nas negociações e o de se tornar Parte de qualquer acordo que se aplique ao curso d’água em sua integridade, assim como o de participar em quaisquer consultas relevantes (art. 4 (1)). Destarte, considerando situações envolvendo três ou mais países, evita-se a possibilidade de que um número menor de ribeirinhos venha a celebrar acordos que, ao afetar todo o rio, interfiram nos interesses dos demais sem que estes possam se manifestar nas negociações e participar do acordo. Além disso, sempre que o uso por um curso d’água internacional possa ser afetado por um acordo, programa ou projeto que se aplique em uma parte do rio fora do alcance da soberania do interessado, garante-se seu direito a participar nas consultas e, se apropriado, vincular-se efetivamente pelo acordo (art. 4 (2)). Já no início se tornam claros não apenas os âmbitos territoriais e materiais da Convenção, mas sua abordagem estratégica como instrumento de governança fluvial mediante a jurificação das relações interestatais envolvidas mediante institucionalização, ao mesmo tempo em que reserva ampla flexibilidade, admitindo o papel essencial dos acordos específicos sobre cursos d’água internacionais. 6 Princípios gerais São afirmados dois princípios gerais próprios do regime dos usos de rios internacionais: o da utilização e participação equitativas e razoáveis (arts. 5 e 6) e o da neutralidade ou ausência de primazia entre os usos (art. 10). Além disso, há deveres jurídicos de prevenção de danos a outros ribeirinhos (art. 7) e de cooperação (art. 8), do qual se destaca o de providenciar a regular troca de informações (art. 9). É possível, sem exagero, apontar o princípio da utilização e participação equitativas e razoáveis como elemento central. Historicamente, a linha básica de tensão do Direito internacional das águas doces se estende entre uma concepção radicalmente soberanista e uma defensora da proteção de direitos e interesses dos demais ribeirinhos, a qual alinha interesses ambientais e, em regra, Estados a jusante. A Convenção, mesmo que a mitigando, adota a segunda perspectiva e o faz ao considerar os cursos d’água uma unidade funcional e jurídica, sobre a qual há direitos de titularidade dos Estados. Como objeto único de proteção jurídica, cada curso d’água internacional deixa de ser compreendido como uma sucessão de fragmentos territoriais: são unidades a serem respeitadas e preservadas. Isso decorre de uma inversão da atribuição de direitos para o uso do leito, da água e dos recursos a ele relacionados, pois a utilização legítima daquilo que se encontra nos limites territoriais de um Estado fica explicitamente submetida a parâmetros de eficiência, distribuição e conservação. 6.1 Interpretação do princípio da utilização e participação equitativas e razoáveis Dois artigos tratam do princípio da utilização e participação equitativas e razoáveis, o art. 5, (1) e (2), que estabelece o conceito utilizado pela convenção, e o Artigo 6, que estipula quais são os fatores relevantes para a aferição de se o uso dos cursos d’água é equitativo e relevante. É possível observar que alguns dos aspectos do princípio são bem delimitados e outros dão maior flexibilidade interpretativa mediante a opção intencional por termos indefinidos: equidade e razoabilidade. Há uma divisão entre utilização (art. 5 (1)) e participação (art. 5 (2)). A utilização se refere àqueles usos feitos no território do ribeirinho, ao passo que a participação se refere à totalidade do curso d’água. Deve-se tomar com cautela a possibilidade de interpretar a noção de participação como referente a qualquer pretensão juridicamente respaldada de um Estado do curso d'água a cobrar qualquer benefício de outro pelo mero fato deste utilizar o curso d’água em seu próprio território. Nesse sentido, a Página 8

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qualificação textual (“participar no uso, empreendimento e proteção”) restringe interpretações extensivas. Não é por força da Convenção que qualquer rio se converte em patrimônio comum dos Estados ribeirinhos, embora a adoção de tal regime em acordos específicos não seja, de modo algum, vedada. Ao se falar de uma totalidade ou unidade do curso d’água internacional é algo diverso que se deve ter em mente. A utilização considera a unidade do curso d’água internacional ao estabelecer condições para o uso legítimo de um recurso natural que se encontra na área de soberania territorial. Assim como a liberdade de navegação fluvial mercantil mitiga os poderes dos Estados que margeiam caudais navegáveis, a utilização ótima e a proteção do curso d’água são condições sine qua non do uso e desenvolvimento dos recursos fluviais. Os limites, portanto, se dão em torno de três características do aproveitamento, que deve ser ótimo, sustentável e compatível com a proteção do curso d’água. Uso ótimo é aquele que não pode ser melhorado e pode se referir tanto a aspectos técnicos, quanto econômicos. No sentido econômico, o uso ótimo se refere àquele capaz de gerar o máximo aproveitamento em termos de custos. Deste modo, por exemplo, os benefícios da construção de uma barragem no país a montante devem levar em conta a possível redução do uso para o país a jusante, seja para geração de energia, extração de recursos pesqueiros ou, inclusive, navegação. Se, no caso, o meio mais eficiente de explorar o potencial hidráulico for a instalação de usina em área dos dois países, esta solução deve ser privilegiada em face do uso orientado exclusivamente pela soberania. 18 No entanto, como esclarece Júlio Barboza, esse máximo aproveitamento “não quer dizer que se exija o uso tecnologicamente mais avançado ou pecuniariamente mais lucrativo”, bem como tampouco aponta a regra para que “o Estado mais capacitado para um uso mais eficiente tenha melhores direitos para utilizar o curso d’água”; sumariza, então: Significa, melhor dizendo, obter o máximo aproveitamento para os Estados ribeirinhos e a máxima satisfação possível de todas suas necessidades com o mínimo detrimento ou o mínimo de necessidades não satisfeitas, para cada um dos Estados do curso d’água. Não obstante a clareza e autoridade dessa interpretação, entende-se aqui a busca de uma utilização ótima como aquela que aponta para os melhores resultados econômicos. Utilização sustentável, por seu turno, diz primariamente respeito aos usos consumptivos de recursos renováveis em taxa que possibilite a recomposição ótima do estoque, ou seja, em patamares que evitem a superexplotação. Ora, os recursos hídricos e pesqueiros se encontram entre os renováveis, os quais dependem do ciclo hídrico e dos regimes de recarga, bem como dos ciclos de reprodução e crescimento. Empregada nesse sentido, a expressão “utilização (...) sustentáv[el]” não gera qualquer incongruência com a noção de uso durável, mais próxima do linguajar do texto francês. O mesmo não ocorre quando se lhe atribui o significado da sustentabilidade que se plasmou no discurso ambientalista a partir do Relatório Brundtland e que integra as dimensões ecossistêmica e social à econômica. Deste modo, o contexto da Convenção aponta para uma interpretação que não se estende a todos os aspectos da sustentabilidade, mas a seu sentido econômico, menos abrangente. Quando o texto do art. 5 (1) estabelece que o uso e o aproveitamento devem ser “compatíveis com uma proteção adequada do curso d’água”, a interpretação recém-mencionada ganha suporte da coerência textual. Não se deve estabelecer duas vezes na mesma frase a necessidade de preservar os cursos d’água. Assim, a dimensão ambiental ou ecossistêmica fica garantida não pelo termo “sustentável”, mas pela “proteção”. Isso não impede que a conotação ambiental possa ser, interpretativamente, expulsa da compreensão do texto convencional sobre o princípio. Proteger um curso d’água, a rigor, não é expressão necessariamente referente a todos seus aspectos e a adoção de uma Página 9

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leitura estritamente instrumental tenderia a ser restritiva. Se a proteção convencional é associada aos usos econômicos dos cursos d’água, o parâmetro máximo de proteção seria o da mitigação da utilidade; seja por redução do caudal ou por regimes de controle de fluxo, seja por perda da qualidade. Corrobora tal leitura a descrição, no art. 6, dos fatores relevantes, dentre os quais não figuram interesses difusos na conservação ambiental. A participação, por sua vez, se refere à inclusão, de modo equitativo e razoável, dos Estados ribeirinhos no uso, empreendimento e proteção. Relaciona-se com a noção de tomar parte em um projeto, especialmente quando a melhor solução técnica envolve a realização de empreendimentos no território de dois ou mais Estados (como no caso Gabcíkovo-Nagymaros), mas se aplica mesmo que as obras se deem integralmente no território de um único Estado. Como algo que pode se referir a território alheio, a participação é descrita em termos restritivos. Assim, a relação entre o direito de utilizar os cursos d’água se relaciona com o dever de cooperar para seu desenvolvimento e sua proteção. Mesmo sem exigir sinalagma ou equilíbrio, contraria o espírito da Convenção que algum país possa se beneficiar, sem contribuir, do uso empreendido por outro. O objetivo do art. 5 (2) parece ser, portanto, o de deixar claro que a Convenção não se limita a regular os efeitos em outro Estado, o que tenderia a reduzir seu objeto à regulação específica da responsabilidade. A abertura para a cooperação e otimização do uso dos recursos, bem como a equidade da distribuição dos benefícios, identifica na participação um elemento central da concretização do princípio. Também são de grande importância os dois conceitos abertos utilizados na conformação convencional do princípio: equitativa e razoável. Tal é a amplidão e sutileza do campo semântico de tais termos que, com o perdão do trocadilho óbvio, caudalosos cursos de tinta já correram na vã tentativa de limitar seus significados. Não há, aqui, a ambição de encerrar essa secular polêmica, tampouco o de aprofundar sua discussão. Algumas observações específicas, porém, são necessárias. Em primeiro lugar, a opção por conceitos amplos e indeterminados se dá intencionalmente. Isso decorre tanto do interesse em abrandar a linguagem e, contanto, o próprio direito, de maneira a facilitar a adesão de um maior número de partes e possibilitar um desenvolvimento posterior capaz de incrementar a precisão, impossível de alcançar imediatamente. Essa segunda razão é muito comum em áreas onde o 19 conhecimento técnico e científico não estão consolidados. Assim, como jurificação soft, reduz custos de contratação e de soberania, de modo a possibilitar o estabelecimento de 20 compromissos ao longo do tempo. Não obstante, a utilização de conceitos indeterminados pode gerar cristalizações linguísticas e históricas importantes. Pode vir a ocorrer o incremento da certeza técnica e científica, situação na qual a abertura semântica, empregada para gerar o consenso político, gera tecnificação discursiva e reduz o espaço de concerto tipicamente político. No caso, a consolidação do conhecimento sobre os efeitos da construção de obras ou deflúvio de certas substâncias pode afetar os limites do que se possa conceber como razoável ou equitativo e, sobretudo, a realização de estudos sobre o impacto ambiental que empreguem novas métricas e tecnologias pode demonstrar deslocamentos da balança da equidade. Além disso, como há algum grau de delegação da capacidade de decidir a organismos jurisdicionais, a cobertura dos conceitos pode se ampliar ou restringir em conformidade com as tendências das decisões adotadas. Para mitigar a imprecisão, o art. 6 traz sete alíneas descritivas de fatores e circunstâncias relevantes para avaliar se a utilização (não se fala em participação) é equitativa e razoável. São aspectos ou dimensões reconhecidos pela Convenção como para a aferição da legitimidade do uso. Sua integral consistência em face de situações concretas não pode ser pressuposta, sendo necessários um sopesamento e análise que visem uma compreensão integral (art. 6 (3)). Página 10

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Inicialmente se faz referência a aspectos naturais, dos geográficos aos ecológicos. Em seguida, mencionam-se as necessidades socioeconômicas dos Estados ribeirinhos e das populações dependentes do curso d’água. Consideram-se, então, os efeitos do uso no território de um Estado sobre o curso d’água em outro. Por fim, há referências aos parâmetros econômicos a serem considerados: os usos existentes e potenciais, os custos de conservação, proteção e empreendimentos e a existência de alternativas. É possível, consequentemente, falar-se em quatro dimensões de avaliação do uso equitativo e razoável: (1) natural: os efetivos impactos da utilização e empreendimentos relacionados deve ser levada em conta, envolvendo aspectos físicos e ecológicos; esta dimensão tende a limitar a participação aos sujeitos efetiva e imediatamente afetados, afastando interesses “universais” de atores que não são diretamente afetados; (2) política: os Estados ribeirinhos são expressamente identificados como juridicamente interessados nos usos (art. 6 (1) (b)), reservando-lhes posição de destaque na estrutura da Convenção; (3) social: ao se reconhecer em dispositivo separado (art. 6 (1) (c)) a dependência das populações, abre-se campo para a discussão de seus interesses em separado dos daqueles Estados de sua nacionalidade ou residência, mesmo sem reconhecer explicitamente sua condição de sujeitos de direito; esse dispositivo é importante para o direito humano fundamental à água; e (4) econômica: a análise de custos e benefícios para os afetados pelo uso e empreendimentos no curso d’água se revela fundamental para a legitimidade do uso. Envolve aspectos científicos e tecnológicos, bem como aferição de custos e benefícios. Embora a elaboração convencional do princípio não indique dever de distribuir benefícios e compensar pela perda de utilidade, traz elementos conducentes a uma análise sofisticada e complexa da avaliação da utilização e empreendimentos nos rios. Sendo impossível delimitar técnica e juridicamente critérios de utilização e participação legítimas, a Convenção lança mão de princípios complementares, acenando com a necessidade de cooperar e com a inexistência de uma hierarquia preestabelecida entre os usos. Em outras palavras, mesmo se afastando a ideia de que os Estados são livres para fazer o que bem entenderem em seus territórios, as formas e limites dos usos e empreendimentos adequados dependerão das realidades sociais, econômicas, políticas e sociais de cada curso d’água. Nesse sentido, é possível imaginar uma consolidação técnica e jurisprudencial de conceitos gerais a longo prazo, mas com um ajuste fino, às vezes convencionalmente construído, em cada bacia internacional. 6.2 Outros princípios e instrumentos Colocado o princípio da utilização e participação equitativas e razoáveis no centro valorativo e lógico da Convenção, importa ressaltar a disposição, nos arts. 7 a 10, de outros princípios e instrumentos facilitadores de sua compreensão e concretização. O primeiro instrumento, indicado no art. 7, é o reconhecimento expresso da obrigação de não causar dano significativo. É regra profundamente vinculada à ideia de responsabilidade, pois do dano nasce dever de recompor o estado anterior ou, dada a impossibilidade ou onerosidade excessiva, pagar o equivalente em pecúnia. Em que pese os esforços da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas, não há convenção sobre responsabilidade internacional. Resta ao costume internacional a proteção jurídica geral contra danos, comprovado dolo ou culpa, preferindo-se a restitutio in integrum, sem prejuízo da compensação por equivalente quando necessária. 21 Há, porém, uma ampla diversidade de soluções convencionais adotando critérios mais estritos, inclusive a modalidade objetiva. Resta, assim, avaliar se o art. 7 enseja padrões mais elevados de responsabilidade. Em princípio é possível, sim, divisar a existência de um sistema mais restrito, uma vez que se estabelece uma obrigação jurídica específica, consistente no dever de “ao utilizar um curso d’água internacional em seus territórios tomar todas as medidas apropriadas para evitar causar danos significativos a outros Estados ribeirinhos” (art. 7 (1)). Ora, Página 11

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quando a Convenção exige cuidados e diligências especiais, estabelece um sarrafo mais baixo para a culpabilidade por omissão, se não houver estudos adequados e opção por técnicas menos impactantes. Não chega a haver responsabilização objetiva, mas é bastante razoável atribuir onus probandi da efetiva tomada de medidas necessárias ao Estado utente dos recursos, ou seja, se o sujeito lesado comprovar o dano e o nexo de causalidade, cabe ao acusado, eventualmente, buscar eximir-se de responsabilidade ao comprovar que realizou os estudos e as medidas razoáveis e, portanto, que eventual redução da utilidade para o outro Estado se encontra dentro dos limites da equidade e razoabilidade. Deve o Estado, portanto, comprovar que agiu no sentido de cumprir integralmente o dever jurídico de evitar e mitigar as eventuais reduções do benefício. Essa compreensão é reforçada pelo texto do art. 7 (2), o qual prevê que, ocorrendo o dano, deve-se buscar implementar medidas para sua eliminação ou mitigação (restitutio in integrum) ou, sendo o caso, discutindo a eventual compensação. Decerto, a elaboração convencional de uma obrigação de evitar, mitigar e compensar danos resultantes da utilização não razoável de um curso d’água não pode ser interpretada no sentido de que possa existir, com tal fundamento, qualquer direito a impedir o uso ou implementação de projeto no território de qualquer Estado do curso d'água. Trata-se, tecnicamente, de regras de responsabilidade, as quais, portanto, apenas incidem se e quando houver dano; a ilicitude, portanto, deriva de culpa, estrita ou ampla, balizada pelos deveres de informar (art. 9), dar parcela equitativa e de cooperar (art. 8). Há, também, o dever convencional de cooperar pautado pela necessidade de equilibrar a igualdade soberana, a integridade territorial, os benefícios mútuos, a boa-fé e a utilização ótima do recurso. A criação de comissões e outros mecanismos conjuntos é prevista como meio de facilitar a cooperação (art. 8). Em termos de estabelecimento de obrigações e responsabilidade, cria-se um dever jurídico de cooperar. É certo que a noção de cooperação, no Direito e nas Relações Internacionais, é termo de conteúdo extremamente variável, abrangendo até mesmo a ideia de que se pode cooperar de maneira tácita, desde que seja possível a verificação de comportamentos coordenados para incrementar as vantagens dos atores envolvidos. 22 É difícil identificar claramente um mínimo jurídico, até mesmo porque a própria convenção deixa claro o caráter facultativo do estabelecimento de instituições. No entanto, é importante saber se e quando o descumprimento do dever de cooperar enseja responsabilidade. Como já se mencionou, as regras convencionais específicas nessa matéria aumentam as exigências a respeito do zelo com que cada país trata os recursos hídricos dos cursos d’água internacionais; tal compreensão se estende ao dever de cooperar de boa-fé e, portanto, implica culpa em decorrência de eventuais falhas em seu devido cumprimento. Havendo nexo causal entre o descumprimento do dever de cooperar e dano ocorrido, configura-se a responsabilidade. A falta de resposta tempestiva, demora excessiva em comunicar dados, injustificada indisponibilidade para negociação e o atraso na realização de obras e projetos capazes de mitigar o dano são possíveis exemplos de tais situações. Recorde-se, porém, que o descumprimento do dever de cooperar também dá à exclusão da culpabilidade quando é o Estado que vem a sofrer o dano que deixou de cooperar e disso resultou a lesão ou sua majoração. A troca regular de dados e informações é aspecto explicitamente vinculado ao dever de cooperar. São comunicações regulares a respeito das condições e uso dos cursos d’água, particularmente informações “hidrológicas, meteorológicas, hidrogeológicas e de natureza ecológica” (art. 9). O art. 31 aclara estarem fora do rol de informações que podem ser pedidas qualquer aspecto relativo à segurança e defesa ou segurança. Finalmente, o art. 10 retoma a questão dos usos rivais e múltiplos, discutida na interpretação das normas referentes ou uso equitativo e razoável associado ao dever de não causar dano significativo. Dispõe não haver uso qualificado por uma “prioridade inerente sobre outros usos”, embora se deva dar especial atenção às “necessidades humanas vitais” (art. 10). A questão da prioridade é das mais complexas, mesmo nos Página 12

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Direitos internos (por exemplo: FRACALANZA et al.: 2013; HOBBS JR: 2002). A determinação brasileira de preferência do consumo humano e dessedentação de animais (Lei 9.466/1997, art. 1.º, III) não pode ser generalizada para o Direito internacional ou comparado. Por seu turno, a interpretação do dispositivo convencional inspira cuidados. Com efeito, a regra expressamente se refere à hierarquização dos usos conforme as noções de utilização equitativa e razoável (arts. 5 e 6) e à responsabilidade (art. 7), deixando ao uso para as “necessidades humanas vitais” como elemento ao qual “deve-se dar especial atenção”. Ora, todos os usos são, por definição, relacionados a necessidades humanas; a diferença está em seu aspecto “vital”, ou seja, necessário para a continuidade da vida. No limite, a noção se refere à vida biológica, mas pode-se estendê-la para concepções mais abertas, como “vida digna” e “vida da nação/povo/comunidade”. Sobretudo para o jurista brasileiro, habituado à regra da Lei 9.446/1997, imprime sua marca o primeiro entendimento, aquele que equaliza necessidades vitais com o consumo humano; não é assim. Pesca e agricultura, por exemplo, são atividades sem as quais algumas comunidades podem ser condenadas à inanição ou, pelo menos, à emigração. A geração de eletricidade pode atender a necessidades de desenvolvimento sem as quais não se promove uma vida digna. Não cabe esgotar as hipóteses interpretativas. Deve-se, porém, alertar para o fato de que a avaliação das necessidades vitais não pode ser feita em abstrato, sem uma cuidadosa apreciação das circunstâncias concretas. Há, também, de se considerar uma situação que se põe acima das querelas hermenêuticas: ao se identificar uma população que padece de desabastecimento hídrico para consumo em razão de outros usos da água e, por conseguinte, há risco de vida ou efetivo incremento de taxas de mortalidade, tais usos devem ser emergencialmente revertidos, independentemente de quaisquer perdas econômicas, sem implicar dever de remuneração pela água adicional recebida (se risco a jusante) ou indenização pela redução do fluxo (se risco a montante). 7 Medidas planejadas A Parte III da Convenção é denominada “Medidas Planejadas” e abarca os arts. 11 a 19, que detalham o tratamento convencional das medidas planejadas e, principalmente, a sistemática de notificações, informações, consultas e negociação. Há regras voltadas a interromper ou suspender a implementação de medidas a pedido de Parte interessada, bem como efeitos para o regime da responsabilidade. Não há uma definição convencional de “medida planejada”, mas se pode entender que esta se refira a qualquer uso que um Estado do curso d'água, isoladamente ou em conjunto, pretenda realizar no futuro e cujo impacto sobre os demais Estados deva ser avaliado e notificado. É em tal sentido que o art. 11 estabelece um dever de informar e consultar os outros Estados, negociando se for preciso. Tais notificação e informação devem ser tempestivas e prévias à implementação, contendo as informações técnicas disponíveis e estudo de impacto ambiental (art. 12). O Estado notificado deve responder em seis meses, prorrogáveis por outros seis a seu pedido (art. 13). Entrementes, podem ser pedidas informações adicionais e não se permite a implementação da medida planejada. A Convenção não estabelece expressamente se é ou não necessária a anuência do outro Estado para a prorrogação do prazo, mas é bastante evidente que não se trata de direito potestativo do notificado. Caso a norma pretendesse dar a esse país o condão de, a seu simples alvedrio, estender para 12 meses o tempo da resposta, bastaria estabelecer tal prazo em dispositivo único. O próprio uso de uma técnica escalonada (6 + 6) e não concentrada em período único (12) é suficiente para revelar que não se trata de mero exercício da vontade. Por outro lado, dar semelhante poder ao notificante tenderia a tornar a norma inefetiva, não podendo ser a anuência um pressuposto da extensão do prazo. Melhor entender haver exigência de justificativa para pedir mais tempo, bem como para sua negativa, incentivando a negociação. Página 13

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A réplica à notificação deve ser apresentada no menor tempo possível, respeitando-se o período estabelecido no art. 13 ou negociado pelas partes. Se houver desconformidade com a medida, com fulcro nas regras dos arts. 5 a 7, a parte deve comunicar, incluindo documentação e as razões de tal decisão (art. 15). Se não houver resposta, o Estado pode dar seguimento à implementação da medida. Essa, porém, não pode desrespeitar os princípios estabelecidos na Convenção, mas qualquer reclamação reparatória apresentada por estado que deixou de responder tempestivamente deverá ser compensada nos custos incorridos na implantação das obras após o decurso do prazo de resposta (art. 16). A responsabilidade convencional não desaparece com a ausência de resposta; justo, porém, indenizar o Estado que implementa a medida nos custos incorridos. Não se regula a hipótese de resposta tempestiva desprovida de oposições à medida; entende-se não implicar derrogação voluntária dos princípios, devendo-se, porém, avaliar a responsabilidade em padrões mais estreitos que no caso de mera ausência de resposta. Caso o estado notificado entenda haver desconformidade das medidas com as regras dos arts. 5 a 7, inicia-se período de consultas e negociações para buscar solução equitativa, as quais devem ser tidas de boa-fé e com atenção aos interesses legítimos da outra parte. No período de negociações e consultas é possível o Estado notificado solicitar a suspensão da implementação da medida por até seis meses (art. 17). Quando, sem ser notificado, um Estado acredita haver planejamento de medidas com efeitos adversos para si, pode exigir informações. Se as informações providas forem tidas por insatisfatórias, pode haver consultas e negociações, sendo possível solicitar a suspensão da implementação da medida por até seis meses (art. 18). Por fim, a Convenção prevê um regime especial para a implementação de medidas urgentes, as quais podem ter a implementação iniciada a despeito dos prazos para resposta da notificação ou da realização de consultas e negociações. Interesses importantes devem estar em jogo, como a saúde ou segurança públicas. A urgência não desobriga o Estado de notificar, informar, consultar e negociar (art. 19). As regras a respeito de notificação, consultas e negociação tem por objetivo facilitar o entendimento entre as partes mediante a facilitação do acesso à informação e a criação de incentivos para a consecução de soluções negociadas e mutuamente satisfatórias. Para tanto, cria os deveres de notificar, informar, consultar e negociar, os quais são apoiados (1) por deveres preventivos de suspender ou interromper a implementação durante o período de informação e resposta e de consultas e negociação e (2) mediante a estruturação jurídica da responsabilidade por dano resultante da implementação de medida planejada, evidenciando-se com maior clareza o nexo causal e incrementado o dano apurado se houver desrespeito aos prazos e dispositivos convencionais. 8 Proteção, preservação e gerenciamento A Parte IV da Convenção trata da proteção, preservação e gerenciamento dos ecossistemas dos cursos d’água internacionais. É composta pelos arts. 20 a 26. Os arts. 20 a 23 se ocupam da proteção e preservação ecossistêmica, ao passo que os demais tratam do gerenciamento. Não obstante a aparente falta de conexão entre os dois conjuntos de regras, pode-se afirmar que o primeiro tem por objetivo a manutenção da qualidade da água, ao passo que o segundo visa à manutenção da quantidade e regularidade do fluxo. Há situações em que uma mesma ação gerará efeitos em ambos os campos, como quando, por exemplo, a instalação de uma represa servir para regularizar o fluxo ao mesmo tempo em que prejudica a reprodução de espécies migratórias. 8.1 Proteção e preservação do ecossistema dos cursos d’água internacionais O art. 20 estabelece um dever geral de, individual ou conjuntamente, proteger e preservar os ecossistemas dos cursos d’água internacionais. Trata-se, precipuamente, do Página 14

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meio ambiente aquático, conforme interpretação gramatical e sistemática da Convenção. No mencionado dispositivo optou-se pela expressão “ecossystems of international watercourses”, “ecosistemas de los cursos de agua internacionales” e “écosystèmes des cours d’eau internationaux”. Em todas as redações fica claro se tratar de ecossistemas do curso d’água, não a este relacionados. É verdade que não se pode desvincular os biomas terrestres do rio, seus regimes hidrológicos e da qualidade de suas águas. Ademais, são comuns zonas de alternância, como várzeas e igapós. Sem embargo, é clara a intenção de não estender o âmbito da cobertura convencional para além daquilo que é especificamente vinculado ao curso d’água. Em termos sistemáticos, os deveres de prevenir, reduzir e controlar a poluição (art. 21), evitar a introdução de novas espécies (art. 22) e proteger e preservar o ambiente marinho (art. 23) são especificamente vinculados à qualidade e fluxo da água. Não havendo especificação de aspectos que ultrapassem o específico limite dos corpos d’água e se refiram a biomas terrestres, a leitura sistemática reforça vigorosamente a gramatical. A poluição é definida como “qualquer alteração prejudicial da qualidade das águas de um curso d’água internacional que resulte direta ou indiretamente de conduta humana” (art. 21, 1), sendo dever das Partes atuar individual ou conjuntamente para prevenir, reduzir e controlar a poluição que prejudique a outro Estado do curso d'água, inclusive afetando a saúde ou a segurança humanas, o uso da água ou os recursos vivos do curso d’água (art. 21, 2). Há um dever de consulta para o estabelecimento de medidas concertadas, como, por exemplo, critérios objetivos de qualidade da água, técnicas de controle e mitigação da poluição e listas de substâncias proibidas, limitadas, investigadas ou monitoradas (art. 21, 3). A definição de poluição é bem ampla, composta por três elementos: (1) causa antrópica direta ou indireta, (2) alteração da qualidade da água e (3) caráter danoso. A construção de uma barragem pode implicar poluição, pois, sendo necessariamente resultado de ação humana, pode afetar a qualidade da água em termos de teor de oxigênio, prejudicando a pesca. Não se limita o conceito aos atos de verter ou alijar substâncias que alterem quimicamente a água. Embora possa ser, logicamente, englobada na definição de poluição, há proibição específica da introdução de novas espécies (art. 22), as quais possam ter quaisquer “efeitos prejudiciais ao ecossistema do curso d’água e resultem em dano significativo para outro Estado do curso d'água”. Não se esclarece se o princípio ambiental a ser seguido seria o da prevenção, conforme o qual deve haver corroboração científica do risco de dano potencial, ou da precaução, conforme o qual a ausência de corroboração científica de não haver tal situação é suficiente para caracterizar a proibição. Seria precipitado, aqui, oferecer solução interpretativa, mas há uma convicção generalizada de que a invasão de espécies alienígenas pode prejudicar equilíbrio ecossistêmico e seria de se esperar que sua introdução voluntária siga o princípio precautório. Ainda a respeito da introdução de espécies alienígenas ou novas, é preciso distinguir sua utilização como parte de uma medida planejada, hipótese em que estará sujeita ao regime discutido na seção anterior, e a existência de um dever geral do Estado de evitar sua ocorrência. A regra do art. 22, conforme a qual a Parte deve “tomar todas as medidas necessárias para evitar a introdução de espécies”, cobre, sobretudo, o segundo caso e, portanto, desenha-se responsabilidade internacional pelo descumprimento de um dever de especial cuidado, o qual, portanto, independe da caracterização de dolo ou culpa ampla, ganhando foros de responsabilidade objetiva, pelo menos para efeitos de inversão do onus probandi: basta indicar a origem da invasão no território de outro Estado para configurar o nexo, cabendo, não obstante, defesa apoiada na tomada de todas as medidas razoavelmente exigíveis. Há, também, deveres de proteger e preservar o ambiente marinho em conformidade com as “regras e padrões internacionais geralmente aceitos” (art. 23). É, seguramente, de grande importância o reconhecimento de que o regime jurídico convencional Página se 15

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estende para as áreas de desembocadura dos rios internacionais. A opção do texto é pela sobreposição dos deveres de proteger e preservar, não restringindo sua cobertura às regras costumeiras ou convencionais (sobretudo da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982). Existe, em tal sentido, uma precisão técnica: a regra da Convenção não se refere à CNUDM, mas apenas ao Direito costumeiro e, portanto, apenas este enseja qualquer discussão no âmbito de sua sistemática jurídica e jurisdicional. Nada impede, entrementes, que pleitos fundados na CNUDM sejam levados ao seu sistema de solução de controvérsias. 8.2 Gerenciamento dos cursos d’água internacionais As disposições dos arts. 24 a 26 da Convenção se referem ao gerenciamento ou gestão dos cursos d’água internacionais. Mesmo havendo sido postas na mesma Parte em que são tratadas questões ambientais, nada implica que os mecanismos ora previstos se destinem apenas a tais temas. O gerenciamento pode ser instituído mediante consultas requeridas por uma das partes e pode ser levado a cabo mediante negociações ad hoc, regulamentadas – quando há estabelecimento de um quadro normativo orientador do gerenciamento – ou institucionalizadas, quando há a criação de um mecanismo conjunto de gerenciamento. Este deve, para os fins do art. 24, se referentes ao “planejamento do desenvolvimento sustentável” e outras formas de promoção do “uso ótimo, proteção e controle do curso d’água” (art. 24, 2). A “regulação” a que se refere o art. 25, não obstante sempre existir a possibilidade de criar regime jurídico específico, se refere especificamente à regularização do fluxo das águas de um curso internacional, para a qual os Estados ribeirinhos devem cooperar, se for o caso. Trata-se, portanto, de atividade técnica que depende de projetos e obras de engenharia para sua implementação e, nos termos do art. 25, 3, significa “o uso de obras hidráulicas ou de qualquer outra medida continuada para alterar, variar ou controlar de outro modo o fluxo de águas de um curso d’água internacional”. Deve haver participação equitativa nos custos da regulação, conforme acordado. As instalações e outras obras nos territórios das Partes devem ser objeto de esforços para sua manutenção e proteção, sendo possível a convocação para consultas para a operação segura e manutenção das instalações e sua proteção contra atos voluntários, culposos ou simples ação da natureza (art. 26). Destarte, as regras referentes ao gerenciamento, regulação e instalações se referem a aspectos dos cursos d’água internacionais, sobretudo quanto à regularidade de seu fluxo. Aqui, também, o objetivo é facilitar a gestão conjunta e cooperativa, com regras sobre a distribuição de custos e responsabilidades, vinculando o dever de manter e conservar instalações à localização territorial. 9 Situações nocivas e casos de urgência Composta apenas pelos arts. 27 e 28, a Parte V da Convenção trata da mitigação de condições nocivas e dos casos de urgência. O art. 27 estabelece um dever geral de prevenir e mitigar situações que possam causar dano a outros Estados ribeirinhos, a despeito de se originados por condutas humanas ou causas naturais. Há, aí, uma lista exemplificativa que inclui os seguintes fenômenos: “inundação, degelo, doenças transmitidas pela água, assoreamento, erosão, intrusão de água salgada, seca e desertificação”. Estabelece, assim, a possibilidade de responsabilizar um Estado-parte pela falha em realizar ações preventivas ou mitigatórias de fenômenos no curso d’água, a despeito de haver ou não dado origem a este. Se, por exemplo, houve o derramamento de uma substância tóxica a montante do Estado e este nada faz para deter seu curso, poderá haver responsabilização pelo descumprimento desse dever em favor do país a jusante. Página 16

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Não há, no texto convencional, a descrição de parâmetros de razoabilidade ou de distribuição de custos para a implementação de medidas protetivas e mitigatórias. São, porém, evidentemente necessárias considerações em termos de proporcionalidade e sopesamento dos custos e benefícios, pautando-se a eventual responsabilidade pelas demais regras da Convenção e do Direito internacional costumeiro. As situações de emergência, reguladas no art. 28, se referem à ameaça iminente de dano grave resultante de causas naturais repentinas ou conduta humana. Disso decorre um dever de notificar imediatamente outros possíveis afetados e tomar “todas as medidas possíveis e necessárias conforme as circunstâncias para prevenir, mitigar e eliminar os efeitos prejudiciais da emergência” (art. 28, 3). Os Estados ribeirinhos também devem estabelecer planos de contingência, quando necessário, inclusive cooperando com outros Estados potencialmente afetados e organizações internacionais. Situações de emergência, portanto, geram deveres de notificar e de prevenir, mitigar e eliminar efeitos, os quais, sendo o caso, deverão ser cumpridos mediante cooperação entre Estados e, inclusive, com organizações internacionais. Observe-se que no art. 28 se emprega a expressão “Estados potencialmente afetados” ao invés de “Estados ribeirinhos”, definida no art. 2 (c) como referente às Partes da Convenção. Consequentemente, o dever de buscar a cooperação necessária em caso de emergência extrapola o estrito âmbito territorial, podendo haver, por hipótese, responsabilização de Estado do curso d'água em favor de outra Parte decorrendo da falha de buscar cooperação com país que não tenha ratificado ou aderido à Convenção. 10 Disposições diversas A Parte VI da Convenção, sob o título “Disposições diversas” é composta pelos arts. 29 a 33. O último destes artigos trata da sistemática de solução de controvérsias, a qual será comentada separadamente em razão da complexidade e conveniência de leitura associada ao Anexo à Convenção, o qual trata da arbitragem. O art. 29 regula os cursos d’água e as instalações para situações de conflito armado, internacional ou não, os quais seguirão as normas de Direito internacional aplicáveis a situações de conflito, deixando-se claro que não poderão ser utilizados em violação a tais princípios e regras. Trata-se, portanto, da expressa aplicabilidade do Direito internacional humanitário aos cursos d’água e instalações relacionadas. É certo, nesse sentido, que a água e a regularidade e continuidade de seus usos pode ser elemento fundamental para garantir o adequado tratamento das pessoas que deixaram de participar das hostilidades, bem como não é difícil divisar seu uso ilícito como agente de transporte e dispersão de elementos químicos e biológicos utilizados como armas, assim como a alteração do fluxo da água para causar escassez ou alagamentos. Considerando o caráter geral e cogente das principais disposições do Direito humanitário, qual seria a razão da inclusão desta referência explícita? Decerto, nada há a acrescentar aos deveres jurídicos dos Estados, mas a inclusão convencional serve como reforço, tendo em vista a possibilidade de utilizar sua sistemática de solução de controvérsias e princípios específicos quando houver questão entre Estados ribeirinhos levantada a partir do descumprimento daqueles preceitos. Seu objetivo é tornar possível, sem que as condutas dos Estados sejam consideradas ilícitas, de cumprir as disposições a respeito de notificação, informação, consulta e negociação mediante procedimentos capazes de circundar situações de conflito, sobretudo pela colaboração de terceiro. Considerando que a troca de informações e a cooperação em matéria do aproveitamento e gestão de recursos hídricos pertencentes ao mesmo sistema podem ser mutuamente benéficas para os Estados ribeirinhos, tal regra busca isolar a temática de áreas conflituosas das relações entre estes. Também se fez breve menção ao art. 31 ao se discutir, nos comentários à Parte III, os limites da informação que um Estado é obrigado a prover nos termos da Convenção. Página 17

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Sendo o campo da defesa e segurança absolutamente fundamental para a manutenção da soberania, bem como compondo interesses prioritários nas relações exteriores, não se pode imaginar a possibilidade de exigir dados que afetem a segurança de um Estado, ou o responsabilizar por os deixar de entregar. Apresentada sob o título de não discriminação, o dispositivo do art. 32 estabelece o dever convencional de prover acesso ao sistema jurisdicional estatal às pessoas naturais e jurídicas afetadas ou sob grave ameaça de serem afetadas por danos transfronteiriços, independentemente de sua nacionalidade ou lugar de residência. Tal regra, em princípio, cria apenas uma obrigação para o Estado do curso d'água de garantir acesso à justiça aos nacionais de ou domiciliados em outra Parte se este for garantido para seus nacionais ou domiciliados em seu território, responsabilizando-se por tanto. Não é regra imediatamente aplicável que estenda a jurisdição internacional do Estado a menos que seu Direito interno (1) aceite a eficácia imediata de tal norma como ampliadora das hipóteses de jurisdição internacional ou (2) estabeleça norma específica com o mesmo fim. Não se cria aqui nenhuma espécie de direito subjetivo titularizado por pessoa de Direito interno, nem de acesso à jurisdição, nem substantivo. O caráter não discriminatório, portanto, se refere apenas à circunstância de ser internacionalmente vedada ao Estado do curso d'água a discriminação contra nacional ou domiciliado em outra Parte da Convenção no que se refere ao acesso à jurisdição e, portanto, não gera qualquer efeito se as regras de jurisdição internacional não são, de direito, discriminatórias em razão da nacionalidade ou residência. 11 Solução de controvérsias A Convenção estabelece um sistema de solução de controvérsias formado por dois mecanismos obrigatórios, as negociações e as comissões de inquérito, e dois facultativos, a jurisdição da Corte Internacional de Justiça (CIJ) ou a arbitragem em conformidade com o disposto no Anexo. Deste modo, o simples vigor não implica submissão de controvérsias à decisão de terceiros, dependendo estes de declaração específica. Apenas Montenegro, Holanda e Hungria aceitaram a jurisdição compulsória da 23 CIJ e arbitral, nenhum país declarou aceitar apenas uma delas. Deve-se iniciar a busca de solução mediante negociações. Estas não prosperando, é facultado às partes de comum acordo, a qualquer tempo, buscar os meios que julgarem mais adequados e convenientes. Não obstante, uma parte na negociação pode iniciar nova fase unilateralmente, decorridos seis meses do pedido de início de negociações. Esta pode se consubstanciar na instalação de uma comissão de inquérito (art. 33, 3 a 9) ou na adjudicação (art. 33, 10 e Anexo). As comissões de inquérito são formadas por membros indicados pelas partes ou, se necessário, pelo Secretário Geral das Nações Unidas. Podem pedir informações e devem ter o acesso franqueado às instalações e áreas sensíveis, podendo obter dados suficientes para elaborar um relatório, o qual será distribuído entre as partes na controvérsia. A adjudicação à CIJ se dá nos termos do art. 36, 1, de seu Estatuto, conforme o qual, sem necessidade de acordo especial (compromis) uma parte pode, unilateralmente, iniciar o processo com base no consentimento dado em convenção internacional. Os limites materiais e do Direito aplicável, evidentemente, se estabelecem a partir dos âmbitos próprios da convenção, não podendo se estender a matérias ou regras convencionais estranhas ao fundamento voluntário da jurisdição. A arbitragem é regulada em anexo relativamente simples, o qual pode vir a ensejar algumas dúvidas interpretativas. 12 Tendências e limitações Vistas em algum detalhe as regras da convenção e seus efeitos jurídicos, é importante Página 18

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realizar uma análise geral de seus potenciais impactos para Partes e terceiros. Esses dependem da estrutura de regras e direitos efetivamente adotados e, em seguida, da análise da possível influência da Convenção sobre a formação e alteração do Direito costumeiro em matéria de cursos d’água e bacias de drenagem internacionais. Da leitura do preâmbulo deflui a impressão de uma Convenção voltada precipuamente aos aspectos ambientais. Não há menção explícita à soberania ou direitos soberanos e se utiliza linguagem adequada às percepções ambientalistas, falando-se em problemas de superexplotação e poluição, uso sustentável, gerações futuras e importância das organizações não governamentais. Deste modo, as declarações feitas vestibularmente devem direcionar toda a leitura do documento, de maneira a possibilitar procedimentos e soluções o mais adequadas possível à proteção ambiental. Não obstante, a composição do articulado é bastante clássica. Embora existam frequentes menções a organizações regionais de integração como potenciais Partes, o que não se concretizou até o presente, os sujeitos contemplados pela Convenção não vão além do rol dos formalmente constituídos: Estados e Organizações Internacionais, compreendidas como entidades com personalidade de Direito internacional, constituídas mediante tratado internacional; sujeitos derivados, portanto, da vontade estatal. Os princípios são lavrados para serem observados pelos Estados do curso d’água, os quais se submetem a regime especial de responsabilidade e assumem deveres de cooperar e informar a respeito dos fatos e usos referentes à parcela da bacia em seu território. O sistema de solução de controvérsias, do mesmo modo, é integralmente voltado a disputas entre Estados. Deste modo, embora reconheça a importância de entidades não oficiais no preâmbulo, as normas da Convenção colocam-se estritamente no âmbito do Direito internacional clássico, admitindo apenas os sujeitos e as estruturas de deveres e direitos tradicionalmente consagradas. Trata-se de normas estabelecidas por Estados e para Estados, com responsabilidade, direitos, deveres e acesso ao sistema de solução de controvérsias limitados aos Estados. Porém, há aspectos importantes a serem discutidos quanto ao conteúdo material da Convenção, sobretudo a respeito de seu impacto sobre o Direito internacional geral. Há, neste sentido, dois pontos que serão brevemente apresentados: (1) a tensão entre direitos estritamente territoriais e o reconhecimento de direitos sobre a quantidade e qualidade do recurso afetados por outros Estados e (2) a tensão entre regimes peculiares a cada um dos cursos d’água internacionais e um regime comum. A respeito da primeira tensão, mesmo sem aprofundar o debate, é possível afirmar que há cerca de um século era inequívoca a tendência a afirmar direitos soberanos absolutos 24 sobre os rios, considerados parte do território de um país (por exemplo: DESPAGNET, Frantz. Op. cit., p. 505). Havia, nesse então, predomínio do foco na navegação, a respeito da qual se admitia, pelo menos no Direito europeu a partir do início do século XIX, a liberdade dos Estados ribeirinhos. Com a diversificação dos usos e, principalmente, a partir dos grandes impactos sobre os fluxos da construção de represas voltadas à produção de hidroeletricidade, a temática dos usos múltiplos veio à tona e trouxe afirmações de direitos sobre a água, sobretudo dos Estados a jusante em relação 25 aos a montante. A Convenção tende, claramente, para o segundo polo. Embora não existam meios concretos de impedir qualquer uso pelo Estado territorial, os princípios, deveres e procedimentos estabelecidos mitigam tal possibilidade. Admite-se, se não um princípio de unidade da bacia de drenagem como recurso integrado, expectativas juridicamente protegidas sobre qual, quanta e como a água deve chegar ao território de um país. Pode-se, não obstante, questionar se os deveres e direitos são principiologicamente articulados em torno da proteção ambiental, ou se o centro valorativo convencional é predominantemente econômico, pautado pela busca de utilização ótima. De qualquer modo, há um sensível afastamento em relação à percepção mais tradicional, embora as categorias empregadas na Convenção favoreçam uma perspectiva que preserva a Página 19 soberania estatal, mesmo que em silêncio.

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Quanto ao sentido e necessidade de um regime jurídico universal sobre cursos d’água internacional, considerando a imensa diversidade geológica, ecossistêmica, social, histórica e política de cada bacia de drenagem, os argumentos ambiental e de direitos humanos se colocam no cerne da discussão. Em primeiro lugar, há consenso científico de 26 que a governança da água doce gera efeitos globais e, portanto, se justifica a jurificação de princípios e regras ambientais capazes de proteger interesses de todos. Por outro lado, preocupações a respeito da segurança alimentar e do acesso a água adequada para o consumo humano ganham proporções que ultrapassam os estreitos limites de um rio e afetam a toda a humanidade. Mesmo que no preâmbulo da Convenção haja maior apoio em termos e argumentos ambientais, não há dúvidas de que a outra questão também cobra protagonismo. Não obstante, a efetiva estrutura jurídica da Convenção, como já se mencionou, é bastante clássica. Especificamente, não estabelece qualquer responsabilidade, direito, mecanismo de cooperação e informação e acesso ao sistema de solução de controvérsias senão aos Estados do curso d’água em questão. Estados de uma bacia não têm qualquer pretensão a respeito da gestão hídrica em outra, mesmo que por Parte da Convenção. Assim, o esforço de codificação e a pretensão de universalidade do regime jurídico convencional se arriscam a não alcançar uma realização plena. 13 Conclusão A Convenção apresenta um conjunto coeso e significativo de princípios, suficientes para estabelecer deveres internacionais e redimensionar a responsabilidade internacional na matéria. Na tensão entre a percepção mais tradicional, garantidora de direitos soberanos bastante amplos com base na territorialidade, e a pautada pela noção de integralidade das bacias e direitos de todos ribeirinhos, tende mais para a segunda. Discutida em algum detalhe a Convenção de Nova Iorque de 1997, é possível constatar algum grau de avanço na direção de um Direito das bacias de drenagem internacional caracterizado por alguma universalização, pelo reconhecimento de direitos dos Estados à qualidade, quantidade e regularidade do fluxo d’água, bem como pela adoção de meios capazes de gerar mais informação e cooperação. A estrutura clássica dos princípios, direitos e deveres estabelecidos, mesmo que possa ser vista como conservadora, termina por implicar em qualidade de clareza técnicas, as quais fortalecem a possibilidade de gerar maior efetividade da gestão conjunta de recursos hídricos pelos Estados dos cursos d’água. É bastante duvidoso, porém, que suas regras possam ser afirmadas como constituintes de um novo consenso universalizado, capaz de afastar as doutrinas mais territorialistas da condição de juridicamente aceitáveis. Há vários fatores neste sentido: as vicissitudes da aprovação, o fato de nenhuma grande bacia hidrográfica estar integralmente sob a égide da Convenção, a completa ausência de Partes no continente americano e o caráter peculiar e especial de cada rio internacional. Mesmo considerando que estes diversos aspectos não foram discutidos no presente artigo, a própria estrutura jurídica convencional – como se vê nos comentários aos princípios – corrobora uma verdadeira tendência à integração per se no Direito internacional geral. Uma análise bem circunstanciada da possível importância da Convenção para o Brasil e para a América do Sul, com suas gigantescas bacias do Amazonas e do Prata, deve ter em conta as características da Convenção e sua importância para as diversas políticas brasileiras que dependem do uso de tais recursos. Os princípios convencionais, as limitações à realização de obras, a responsabilidade estendida e a existência de direitos à informação e deveres de cooperação devem ser, portanto, claramente projetados sobre a realidade efetiva de cada curso d’água internacional para que se saiba de sua real conveniência e compatibilidade com os interesses nacionais, dentre os quais, não se deve olvidar, está o de proteger o ambiente. Página 20

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1 Textos em: [legal.un.org], baixados em 10.06.2014. 2 SCHWABACH, Aaron. The United Nations Convention of the Law of Non-navigational Uses of International Watercourses, Customary International Law, and the Interests of Developing Upper Riparians. Texas International Law Journal. vol. 33. 1998, p. 257-280. 3 LOUKA, Elli. International Environmental Law: Fairness, Effectiveness, and World Order. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. p. 171-175. 4 DESPAGNET, Frantz. Cours de droit international public. 3. ed. Paris: Librarie de la Societé du Recueil Général des Lois et des Arrêts, 1905. p. 505. Todas as traduções são dos autores, exceto se indicado de modo diverso. Talvegue, conforme o glossário hidrológico da Unesco (disponível em: [http://webworld.unesco.org/water/ihp/db/glossary/glu/HINDEN.HTM].Acesso em: 14 jun. 2014) é “a linha que percorre a parte mais funda do leito de um curso de água ou de um vale”. 5 Nesse trecho, Oppenheim utiliza o termo “mid-channel”, traduzido por “canal médio”, ambos sem correspondente no glossário hidrológico da Unesco (disponível em: [http://webworld.unesco.org/water/ihp/db/glossary/glu/HINDEN.HTM]. Acesso em: 14 jun. 2014). Tal expressão se refere ao principal canal de um rio meandrizado, o qual é “parte de um sistema fluvial no qual o escoamento é feito através de um número de pequenos canais entrelaçados separados por barras ou bancos”. 6 BONFILS, 1895, p. 280: “Les fleuves sont précieux éléments de communication entre les hommes. Vois de transport naturelles, ils facilitent les relations commerciales et permettent d’écouler les produits d’un territoire. Les habitants d’un Etat placé sur le cours d’un fleuve doivent pouvoir en user librement pour commercer avec les autres peuples et pour aboutir a l’Océan, la grand voie de communication. Les questions concernant les fleuves et rivières se rattachent aux deux points de vue du droit de propriété et du droit de libre navigation”. DESPAGNET, Frantz. Op. cit., p. 505: “Mais cette souveraineté de l’Etat ne peu aller jusqu’à interdire la navigation étrangère dans les fleuves qui longent ou traversent son territoire: les fleuves sont en effet les voies nécessaires à certains pays pour communique avec d’autres Etats ou avec la mer, et les considérations tirées du droit des peuples à un commerce mutuel justifient la liberté de la navigation sur les fleuves comme elles la justifient sur la mer”. 7 ACCIOLY, Hildebrando. Tratado de direito internacional público. São Paulo: Quartier Latin, 2009. vol. 2; ______; NASCIMENTO E SILVA, Geraldo Eulálio do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. DESPAGNET, Frantz. Op. cit. OPPENHEIM, Lassa. Op. cit. 8 MCCAFFREY, Stephen C. The Harmon Doctrine one hundred years later: buried, not praised. Natural Resources Journal. vol. 36. 1996, p. 549-590. 9 SETTE CAMARA, José. Pollution of international rivers. Recueil des Cours. vol. 186. 1984, p. 117-217. 10 CANO, Guillermo J. Recursos hídricos internacionales de la Argentina. Buenos Aires: Victor P. de Zavalía- Editor, 1979.

11 Dados em: [https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src="IND&mtdsg_no=XXVII-12&chapter=27&lang=en] Acesso em: 04 fev. 2015. 12 Disponível em: [www.un.org/depts/dhl/resguide/r51_en.shtml]. Acesso em: 18 jun.21 Página

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2014. 13 COSTA, José A. F. Institutos jurídicos e mercado de recursos genéticos: discursos de legitimação e incentivos à conservação da biodiversidade. In: WACHOWICZ, Marcos; MATHIAS, João Luís Nogueira (org.). Propriedade e meio ambiente: da inconciliação à convergência. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011. 14 Disponível em: [http://webworld.unesco.org/water/ihp/db/glossary/glu/EN/GF1359EN.HTM].Acesso em: 18 jun. 2014. 15 Em contrário, Frantz Despagnet (op. cit., p. 506): “Enfin il serait aussi logique qu’utile d’entendre la liberté de navigation aux affluents des fleuves internationaux, même lorsque ces affluents ne traversent pas plusieurs Etats“. Em interessante síntese, Hildebrando Accioly afirma (op. cit., p. 194): “De fato, se cada Estado proceder, no trecho de rio que lhe corresponda, da maneira que julgar preferível, o resultado poderá ser dos mais complicados: enquanto um ribeirinho se manifestar pela liberdade da navegação, outro se declarará favorável ao fechamento do rio, e a decisão de um poderá anular, por completo, a decisão do outro. O que parece não sofrer dúvida é, apenas, que os Estados ribeirinhos de rios internacionais (...) podem regular livremente a navegação (mas, não impedi-la, pelo menos no tocante aos Estados ribeirinhos) nas partes de tais rios que se acham dentro de seus limites, principalmente e, por motivos óbvios, quando não se tratem de rios contíguos”. 16 Neste sentido, Julio Barboza (Derecho internacional público. Buenos Aires: Zavalía, 2001. p. 440-441): “Se trata, entonces, de un sistema hidrológico, integrado por distintos componentes a través de los cuales fluye el agua, tanto de superficie como subterránea. Es esencial esta interrelación de los componentes que hace del curso de agua un verdadero sistema.” 17 Embora presente em grande parte da doutrina, não se discute aqui a utilização ambígua da expressão “rios internacionais”, empregada para se referir igualmente aos rios de interesse internacional, mesmo que territorialmente vinculados a um único Estado. A respeito, veja-se, i. a., FAUCHILLE, Paul. Traité de droit international public. Paris: Rousseau e Cie. Editeurs, 1925. t. I, parte 2, p. 241 e ss.; ACCIOLY, Hildebrando.Op. cit., p. 189 e 190. 18 Op. cit., p. 443. 19 YOUNG, Oran R. International Cooperation: building regimes for natural resources and the environment. Ithaca and London: Cornell University Press. 1989. 20 ABBOTT, Kenneth W.; SNIDAL, Duncan. Hard and Soft Law in International Governance. International Organization. vol. 54. n. 3. Cambridge: IO Foundation and the MIT, summer 2000. 21 ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 22 AXELROD, Robert. The evolution of cooperation. Nova Iorque: Basic Books, 1984. GONÇALVES, Alcindo; COSTA, José A. F. Governança global e regimes internacionais. São Paulo: Almedina, 2011.

23 Disponível em: [https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src="IND&mtdsg_no=XXVII-12&chapter=27&lang=em Acesso em: 03 fev. 2015. 24 OPPENHEIM, Lassa. International law: a treatise. 2. ed. Londres: Longmans, Green Página 22

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and Co., 1912. vol. 1, §§ 176 e 177. 25 SOLA, Fernanda. Direito das águas na Amazônia. Curitiba: Juruá, 2015. 26 POSTEL, Sandra L.; DAILY, Gretchen C; ERLICH, Paul R. Human Appropriation of Renewable Fresh Water. Science, New Series. vol. 271. n. 5250. 1996, p. 785-788.

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