Análise Semiótica da Música Boa Esperança_Emicida

May 29, 2017 | Autor: Marcelo Gomes | Categoria: Comunicação, Música, Semiotica, Semiótica musical
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Análise Semiótica da Música Boa Esperança Marcelo Gomes – [email protected] Nicolle Pontes - [email protected] Professor Orientador – Diego Marques

Resumo A luta pelo reconhecimento e obtenção de direitos negros tem como instrumentos de trabalho a música, o rap. Nesse contexto, a música de Emicida, Boa esperança (2015), é o objeto deste artigo que busca analisar aspectos da música e da letra para revelar a mensagem de empoderamento negro, utilizando as matrizes de semiótica de Santaella – análise rítmica, harmônica, melódica e verbal.

Palavras-chave: análise semiótica; Emicida; rap; hip hop; boa esperança. Introdução A luta por uma sociedade justa e igualitária é a bandeira de vários movimentos sociais organizados no mundo. Um dos maiores talvez seja o Movimento Negro, que busca discutir questões raciais, de preconceitos, de empoderamento e afirmação cultural, social, política e econômica. Neste contexto, surgem os trabalhos musicais de rapper Emicida, que através de suas rimas e batidas transmite mensagens e discursos de empoderamento da classe negra.

Em seu mais recente trabalho – Sobre

Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (2014), Emicida constrói diversas linhas de pensamentos sobre a cultura negra que expõe as raízes do brasileiro com suas origens, as religiões de matrizes africanas, a musicalidade africana e claro, o protagonismo negro e suas questões raciais. A análise deste artigo evidencia o trabalho de Emicida sob a ótica da periferia

das

grandes

cidades

brasileiras,

os

modelos

positivos

de

representatividade e a tentativa de desvalorização e distanciamento de suas raízes.

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Movimentos sociais negros Movimento sociais podem ser entendidos como uma ação coletiva de um grupo organizado que tem por objetivos reverter quadros sociais de ordem primária ou não dentro de uma comunidade ou grupo de minorias, provocando uma mobilização social, despertando uma sensibilização na consciência dos demais indivíduos. Segundo Gianfranco Pasquino (2004), os movimentos sociais constituem alternativas – pautadas em valores comuns àqueles que compõem o movimento – de canalizar possibilidades de ação social para se chegar a determinadas mudanças ou resultados. Este fenômeno coletivo da sociedade civil provocando uma mobilização social, despertando uma sensibilização na consciência dos demais indivíduos. Deve-se levar em consideração a estrutura social de cada lugar e de cada época para se entender as lutas dos movimentos sociais. A existência deste fenômeno coloca em pauta os conflitos já existentes na estrutura social de uma sociedade, sendo uma possibilidade fundamental para a ação de intervenção e mudança dessa mesma estrutura. São exemplos de movimentos sociais: causa operária, o movimento negro, o movimento estudantil, o movimento de trabalhadores do campo, movimento feminista, movimentos ambientalistas, da luta contra a homofobia, separatistas, movimentos marxista, socialista, comunista, entre outros. Movimento Hip Hop Originário do movimento negro, o Hip Hop, movimentar os quadris (to hip) e saltar (to hop) é uma cultura popular de rua criada a partir do funk e soul dentro do processo migratório norte americano. Um dos principais responsáveis pelo seu nascimento foi o DJ Afrika Bambaataa1. Bem difundida nas comunidades carentes, chegou ao brasil na década de 80 em São Paulo.

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DJ norte americano que fundou a ONG Zulu Nation. Responsável por criar as bases para surgimento do miami bass, freestyle, e até ritmos que influenciaram o funk carioca na década de 90

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O hip hop é uma força que mobiliza jovens das grandes cidades brasileiras e reforça discursos de empoderamento negro, feminino e a luta de classes sociais, tornando-se uma ferramenta contra o status quo e a hegemonia midiática que os contrapõe. O movimento se caracteriza pelas músicas com forte cunho político e protagonismo negro, além de ter quatro principais pilares como base: RAP, DJ, Break Dance e o Grafitti. O jamaicano Kool Herc foi um dos primeiros a utilizar um sistema de dois toca discos, ao mesmo tempo, repetindo a música. Assim, era possível aumentar e controlar o tempo da música. O responsável por esta operação é o DJ ou Disc Jockey, que produz as batidas ou os samples – criação a partir de outras músicas já gravadas. O MC, ou Mestre de Cerimônia é o cantor das letras de RAP que utiliza as bases e batidas do DJ. Outro pilar é o Break Dance. Praticada pelos b-boys e b-girls, é uma linguagem artística dentro do Hip Hop que utiliza a expressão corporal e a dança com grande impacto visual, acrobático e estético. O Grafite é um estilo de desenho de traços livres cores diversas utilizando as paredes e muros como suporte de trabalho. Os grafiteiros utilizam tintas spray ou látex para se expressarem nos espaços públicos, o que gera outras discursões sobre a legalidade dessa atividade. Muitas vezes confundido com vandalismo, o Grafite é umas das formas mais originais de expressão do hip hop e tem no Brasil grandes artistas como Os Gêmeos, Alex Sena, Binho Ribeiro, Zezão e Narcélio Grud. Um dos pilares é o RAP ou Rhythm And Poetry. Um estilo musical onde a poesia ou letras são elaboradas para se encaixar com uma “batida”, uma pulsação rítmica, geralmente produzida por um DJ. A montagem, mixagem e arranhões (scratches) fazem do rap um estilo com uma gama enorme de variedades e possibilidade na música. No Brasil se destacaram no começo, os nomes de Sabotage, Facção Central, Racionais Mc’s, RZO e Thaíde. Atualmente nomes como, Criolo, MV Bill, Rapin’ Hood surgem como sucessores. Um dos nomes mais fortes da nova geração do rap nacional, ganhando prêmios e mercado é o paulistano de trinta anos, Emicida. 3

Emicida - Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa... Leandro Roque de Oliveira ou Emicida, nasceu em uma família humilde na periferia de São Paulo em 17 de agosto de 1985. “Emicida" é a junção da palavra “MC” e "homicida", apelido que ganhou do seus amigos quando vencia outros MCs na famosa Rinha dos MCs2. Começou a se tornar conhecido pela rapidez e o improviso nas rimas, tornando-se um dos MCs mais respeitados da Rinha dos MCs. Emicida cresceu ao lado de sua mãe viúva e seus dois irmãos mais velhos na zona norte de São Paulo. Sua história é constantemente contada em suas músicas, assim como as mazelas sociais da periferia deu bairro. O rapper já figura entre os nomes da música brasileira depois duas mixtapes3 dois EPs4, dois discos (O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui – 2013, Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa... - 2015) e várias participações em trabalhos de artistas do rap, do samba, rock e do pop. O disco Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa... é o segundo CD gravado em estúdio de Emicida. Esse trabalho se caracteriza pelas 14 faixas inéditas, algumas músicas e outras apenas poemas declamados, que foram pré-produzidas em uma viagem que o rapper fez pelo continente africano, visitando Cabo Verde e Angola. O título do disco procura evidenciar a essência desse processo de gravação e o encontro tão significativo do artista com suas raízes. Durante a viagem, esses pontos do título foram imagens muito fortes na minha mente: crianças sorrindo, quadris dançando, pesadelos em volta deles, tentando roubar a alegria que lhes restou, e no meio de tudo isso cada um cumpria suas obrigações, fazia sua lição de casa. Achei que no meio de tanta informação poderia ter um título que

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Tradicional encontro da cultura Hip Hop de São Paulo. Compilação de canções, gravadas em fontes alternativas e caseiras como aparelho cassete. 4 “Extended Play” é um tipo de Cd como menos músicas, geralmente com quatro ou cinco músicas. 3

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apontasse essas imagens todas, como uma lista de coisas que encontrei. (EMICIDA, 2015).5

O disco traz, além de músicos africanos, referências das cidades, ritmos e cânticos africanos. A pesquisa musical e etnográfica corrobora em um disco aclamado pela crítica e público. Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa é um trabalho para quem deseja entender a questão racial negra no Brasil, a riqueza da cultura hip-hop, as referências culturais que herdamos do continente africano, é também para quem quer descobrir a rima de um rapper que põe o dedo na ferida. Fenomenologia Fazemos parte do mundo e das linguagens nela contida, então para investigar os modos de constituição de significados e de sentidos dos fenômenos, recorremos a fenomenologia (SANTAELLA, 1983, 13). Para que possamos dar início às nossas análises, precisamos compreender e contextualizar os processos que utilizaremos nos tópicos a seguir, para facilitar a compreensão da obtenção do resultado final. Fenomenologia ou Faneroscopia, é todo e qualquer fenômeno que acontece em nossa mente. Um fenômeno é qualquer coisa que esteja presente sob diferentes intensidades em nossa mente, podendo ser externa (um raio de luz, o som de um trovão, ou uma mão batendo em uma mesa) ou interna (uma lembrança, dor de cabeça). Que nos dê sensação de sonho ou uma ideia abstrata, podendo ser real ou não. Um fenômeno é qualquer coisa que aparece à mente, seja ela meramente sonhada, imaginada, concebida, vislumbrada, alucinada... Um devaneio, um cheiro, uma ideia geral e abstrata da ciência, ou seja, qualquer coisa. (SANTAELLA, 2000, p.7).

Pierce definiu três elementos universais que contribuem para a formação de um fenômeno, são eles: qualidade, relação e representação. Para ele, os elementos

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citados

anteriormente,

fazem

parte

das

experiências

Entrevista disponível em: site.laboratoriofantasma.com

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fenomenológicas e que são gradativamente generalizados para qualquer fenômeno, não sendo necessária a determinação de seus acontecimentos particulares no mundo, ou seja, as manifestações desses elementos como signos. Esses elementos compõe uma tríade: primeiridade, secundidade e terceiridade. O primeiro está ligado ao potencial de qualidade do signo, luzes, cheiros, quando sugere algo, a sua potencialidade, imediaticidade. O segundo está ligado à ação e reação, a capacidade que algo tem de significar o aqui e agora, o esforço e a resistência. O terceiro é o fundamento, quando esse está ligado a uma convenção, lei, partindo das ideias gerais, as representações, crescimentos e continuidades. Signo Pode-se dizer que signo é uma coisa que está no lugar de outra coisa para alguém. O seu fundamento é aquilo que aparece para nós, interpretantes. Porém, nem sempre é necessário que o interpretante exista. Ele é o ente fundamental para a semiótica peirceana. Os correlatos da representação triádica de Pierce são: signo ou representamen, objeto e interpretante. Os signos, que representam algo, se relacionam com os objetos e que se transforma numa qualidade, para o interpretante. Desse modo, este artigo irá enfatizar a relação de significação do primeiro correlato com o segundo, sendo assim, exposta a sua objetivação e assim irá enfatizar o terceiro correlato que será a interpretação. O papel do signo está em transmitir noções, e fazer com que a mente humana o receba e o interprete. Um signo pode ser um ícone, um índice ou um símbolo. Ícone é um signo que se assemelha com um objeto. Índice representa um objeto por proximidade ou contiguidade, como uma fumaça que sugere fogo ou uma batida na porta que sugere que alguém está do outro lado. Símbolo se refere ao objeto através de associação de ideias criadas a partir de convenções pré-estabelecidas. Semiose

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O processo de semiose se define na capacidade do ser humano de compreender e produzir relações signicas e de descobrir novos signos das mais diversas naturezas. Ele se inicia quando pegamos os elementos do mundo físico, transformando-os em signos, aprendendo e percebendo o fenômeno, o transformamos em um mundo psicológico, refletindo sobre a sua realidade, com características simbólicas, assim chamada de semiótica. Matrizes de Santaella Para a compreensão da análise, precisamos compreender o há por trás do ritmo, harmonia, melodia e letra. Para Santaella (2005, p.168), esses três componentes da música são quase sempre inseparáveis, uma vez que um depende do outro para a colaboração rítmica da música, tendo o ritmo presente na harmonia e melodia. Pode-se definir som como uma percepção sensorial, produzida através das vibrações regulares do ar em maior ou em menor grau. Por isso, se distinguem, através das propriedades que o som possui (altura, duração, intensidade e timbre) e das suas qualidades, podemos constatar isso com clareza. Todos os sons musicais estão submetidos a uma variabilidade na sua duração, quer dizer, o som pode ser sustentado em extensões variáveis do tempo. A duração está na base do ritmo, um dos componentes da música. Assim, como os sons variam na sua sustentação no tempo, eles também variam no seu grau de força e suavidade. Essa propriedade do som é chamada intensidade que também é fundamental ao ritmo (como no acento), servindo de base para um ingrediente das peças musicais que é chamado de dinâmica. Esta se refere aos graus de força, suavidade e aos processos envolvidos na passagem de um ao outro. (SANTAELLA, 2005, p. 167).

Na música que iremos analisar, o grau de força do som e ritmo estão bem acentuados de acordo com a letra da música, sempre fazendo referências aos elementos da cultura negra. Todo esse sentimento é transmitido através da força do som e do ritmo cadenciado. “Qualquer combinação de notas de diferentes durações produz ritmo, por exemplo, na alternância de notas longas e breves, duas breves e uma longa, ou uma longa e várias breves.” (SANTAELLA, 2005, p.169) 7

Em relação ao ritmo, pode-se notar vários acentos, com uma variação de notas longas e curtas, com acentos nas notas longas, algumas parecidas com tiros, como componentes da melodia entrando no ritmo para compor o cenário da música, permanecendo assim até o final. Para Haas (1984: 17-21 apud SANTAELLA, 2005, p.169), “o ritmo ordena os sons em padrões de duração através do uso de acentos, impulsos, ênfases e relaxamentos. É o ritmo que cria a regularidade ou irregularidade do pulso.” Diferente do ritmo, que pode ficar sem a melodia, ela não consegue simplesmente existir sem o ritmo. Podemos dizer que a música é um corpo. O esqueleto é o ritmo e os órgãos seja a melodia. O esqueleto dá suporte para que os órgãos funcionem em harmonia, tendo a vida, ou seja, o conteúdo musical. Ela tem enumeras propriedades, sendo elas o ritmo, dimensão (altura, ou seja, distância e comprimento) e progressão (intervalo entre as notas, ou seja, distância na altura). Tal como as linhas de um desenho, a melodia musical deve ter movimento, tensão e variedade. Da combinação de suas propriedades resulta a ideia musical em torno da qual uma melodia se constrói. Essa ideia se chama tema. Uma mesma melodia pode ter vários temas e o modo como os temas, por sua vez, são combinados constitui-se na estrutura peculiar de cada melodia. (Miller apud SANTAELLA 2005, p. 175).

O terceiro elemento que compõe a música é a harmonia, que segundo Miller e Haas (1978 e 1984), citados por Santaella (2005), é definida como a junção de notas com uma base melódica, onde uma complementa a outra dentro de um equilíbrio sonoro. Partindo disso, podemos compreender que a harmonia está para a melodia, assim como a perspectiva está para a pintura. “O papel da harmonia pode ser o de uma simples acompanhante da melodia, mas ela também pode se transformar em uma cúmplice, sustentando, guiando e até mesmo desafiando a melodia” (Santaella, 2005, p. 178). Análise da música Boa Esperança (2015)

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Boa Esperança (2015) é uma das músicas mais fortes do disco de Emicida. Foi a primeira a ser lançada oficialmente com um clipe e um curta metragem documental com making of e depoimentos sobre racismo e injustiças sociais. Composta por Emicida e o rapper Nave6, o nome Boa Esperança faz referência ao navio negreiro do romance A rainha Ginga (2015) do escritor angolano José Eduardo Agualusa. Com pouco mais de três minutos de duração, a música tem seus refrãos cantadas pelo rapper J. Guetto7. Todos os elementos rítmicos da música provocam uma sensação de tensão e pulsação forte. Tanto do ritmo, melodia e harmonia, quanto nos vocais de Emicida, se verifica uma urgência e uma agressividade na música. Como em um trecho da letra quando Emicida diz: “Bomba relógio prestes a estourar”, o discurso do rapper elucida uma postura primitiva, instintiva e agressiva, mas não violenta. A bateria mantém a mesma dinâmica do começo ao fim – com exceção da introdução - e não produz outras levadas ou células. Essa parte rítmica sem tantas informações é importante pois Emicida canta com muita energia, de forma visceral e quase sem parar, garantindo que as informações cantadas não tenham ruídos. O elemento rítmico da música é composto basicamente por uma célula de bateria com alguns efeitos para destacar o som da caixa 8. Esse som da caixa, com efeito, produz uma reverberação, ou seja, algumas repetições que ajudam a fixar a batida e o tempo da música. Tratando-se de uma letra com conotação racial negra, pode-se perceber um signo icônico do som da caixa, que possui frequência média/aguda, duração alongada (devido aos efeitos) e intensidade forte, ecoando com um barulho de

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Rapper paulistano integrante do coletivo Contra Fluxo tendo trabalhos com Marcelo D2 e Karol Conká. 7 Júlio Cezar Lopes de Souza, conhecido também por J.Ghetto é rapper paulistano, militante da Cultura Hip-Hop da cidade e produtor musical organizador do Festival Sanca Hip-Hop. 8 Peça da bateria que possui duas peles fixadas e tensionadas, possui uma esteira de metal. Produz um som repicado, característico das marchas militares.

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chicote, em clara referência aos castigos e maus tratos que os negros escravos sofreram durante a história. O elemento harmônico é composto por uma linha simples de contrabaixo executada em poucas notas com a mesma função minimalista da bateria, ou seja, garantir que a melodia e a letra cantada ou dita por Emicida se sobressaia na música. A harmonia sincopada9 do contrabaixo é baseada no ritmo Kilapanga, oriundo de Angola. A relação entre o ritmo (bateria) e a harmonia (contrabaixo) é simples e não possui uma sofisticação musical notória. Nesta relação cumpre-se o papel de base sonora para simplesmente acompanhar a melodia cantada pelo rapper, como afirma Santaella (2005) em sua definição de harmonia. Emicida parece propor assim, que todas as atenções se voltem para a letra do RAP e sua forte interpretação, elucidando as temáticas negras e sociais envolvidas. Os vocais de Boa Esperança (2015) são compartilhados com o rapper J. Guetto que canta o mesmo refrão no início e no final da música, sem grandes mudanças tonais ou de interpretação. Já Emicida, bastante conhecido pela acidez crítica em suas letras, busca uma interpretação mais agressiva, forte e intensa. Parece tomar um único fôlego, como se fosse derramar séculos de sofrimento, dor, humilhação e ódio em uma única música. A mensagem é clara, depois de tantas discussões, tantos movimentos em busca de diretos e reparações históricas, depois de muitos líderes, ativistas, pacifistas e pessoas comuns morrerem em prol da causa negra, o instinto humano básico de defesa parece ser mais forte: "Cês diz que nosso pau é grande/ espera até ver nosso ódio". Boa Esperança – Emicida e Nave Por mais que você corra, irmão Pra sua guerra vão nem se lixar Esse é o xis da questão Já viu eles chorar pela cor do orixá?

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Síncope é uma figura rítmica caracterizada pela execução de som em um tempo fraco, que se prolonga até o tempo forte, criando um deslocamento da acentuação rítmica.

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O refrão começa fazendo ligações com as problemáticas sociais do movimento negro e a luta pelo seu reconhecimento cultural. A frase “pra sua guerra nem vão se lixar”, elucida todos os discursos, instituições e papeis sociais que doutrinam e inferiorizam a cultura negra. O final do verso: “Esse é o xis da questão / Já viu eles chorar pela cor do orixá? aponta para as alternativas a se discutir sobre o tema durante a música. O “xis” da questão é a afirmativa central da música, a prerrogativa de que tentarse fazer entender, por meio do diálogo, a importância de uma sociedade justa e igualitária já não é mais uma possibilidade eficaz. O questionamento sobre como as outras etnias não legitimam as religiões de matrizes africanas é exposta na última frase. Os deuses, ou orixás, são negros e assim como a população negra tem suas imagens constantemente atacadas com termos pejorativos, além de sofrerem perseguição religiosa. E os camburão o que são? Negreiros a retraficar Favela ainda é senzala, jão Bomba relógio prestes a estourar

Na última parte do refrão se percebe, em um primeiro aspecto, as condições sociais da população negra no regime de escravidão e nos dias atuais. Há uma predominância de um signo icônico quando o autor afirma que a viatura da polícia de hoje é o navio negreiro de ontem. Aqui se faz alusão a população carcerária brasileira, composta em sua grande maioria por negros. A predominância icônica continua com ligação entre favela e senzala, onde o autor sugere semelhanças físicas, habitacionais e nos aspectos sociais dos moradores dessas comunidades à margem das capitais. Hoje, a favela se configura como uma grande reserva de mão de obra, além de serem negligenciados pelo Estado. O tempero do mar foi lágrima de preto Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto 11

Só desafeto, vida de inseto, imundo Indenização? Fama de vagabundo Nação sem teto, Angola, Ketu, Congo, Soweto A cor de Eto'o, maioria nos gueto.

No verso “O tempero do mar foi lágrima de preto” Emicida faz uma alusão a qualidade salgada da água do mar e das lágrimas. O sal, sendo um ícone simbólico de tempero, lembra mais uma vez os navios negreiros que transportavam negros escravos da África e todo o sofrimento vivido à bordo. Nos versos seguintes: “Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto/ Só desafeto, vida de inseto, imundo/ Indenização? Fama de vagabundo.” Aqui se faz uma analogia com a desvalorização do negro em sua história. Também pode ser uma referência ao filme Vida de Inseto, Emicida utiliza várias destas referências da cultura pop em suas letras. Como herança dessa subjugação histórica dos negros, os negros, hoje, recebem a “fama de vagabundo”, frequentemente empregada pela sociedade atual. Nação sem teto, Angola, Ketu, Congo, Soweto A cor de Eto'o, maioria nos gueto Monstro sequestro, capta três, rapta Violência se adapta, um dia ela volta pu cêis Tipo campos de concentração, prantos em vão Quis vida digna, estigma, indignação O trabalho liberta, ou não? Com essa frase quase que os nazi, varre os judeu – Extinção!

Emicida inicia os versos citando lugares africanos conhecidos também pela extrema pobreza, e em seguida afirma que sua população é maioria negra, assim como o jogador de futebol Eto’o. No verso: “Monstro sequestro, capta três, rapta/ Violência se adapta, um dia ela volta pu cêis” o rapper expõe o discurso frequente na música de que o ódio e a violência, acaba retornando para quem os criou. Nos versos acima o autor faz uma referência da vida de negros como um campo de concentração, onde no primeiro aspecto há o famoso discurso de “O

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trabalho dignifica o homem”. Emicida faz ligação com a frase “O trabalho liberta”, utilizada nos campos de concentração alemães, onde o trabalho era uma forma de genocídio ou como chamavam: “extermínio por meio do trabalho”. A crítica colocada também serve para evidenciar como o trabalho se tornou uma forma de opressão e controle social. Depressão no convés Há quanto tempo nóiz se fode e tem que rir depois Pique Jack-ass, mistério tipo Lago Ness, sério és Tema da faculdade em que não pode pôr os pés

Emicida continua utilizando referências do campo semântico do navio negreiro Boa Esperança, ao ligar umas das enfermidades da modernidade, a depressão, e o convés que é a parte superior do navio que transportava escravos. A referência da cultura pop como Jack ass, um famoso programa de TV americana onde a dor é o dispositivo para o riso, elucida a sofrida história negra. O Lago Ness, tido como um mistério, exemplifica o fato de como o racismo e preconceito ainda são tabus na sociedade. Esses tabus e outras questões da negritude são objetos de pesquisas, estudos e trabalhos nas faculdades e universidades que ainda não são ocupadas em sua maioria por pessoas negras. Apesar da ampliação de políticas públicas de reparação, como as cotas universitárias, serem um avanço na garantia de direitos da população negra, a sociedade não é unânime em relação a estas medidas. Nessa equação, chata, polícia mata – Plow! Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão Desacato invenção, maldosa intenção Cabulosa inversão, jornal distorção Meu sangue na mão dos radical cristão Transcendental questão, não choca opinião Silêncio e cara no chão, conhece? Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece Vence o Datena, com luto e audiência Cura baixa escolaridade com auto de resistência

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Nos versos acima há uma mudança de intensidade nos vocais de Emicida. A rima fica mais rápida, intensa e agressiva quando o texto fala em violência policial e negação de direitos. O rapper impõe seu texto sem grandes preocupações de concordâncias gramaticais. Sua dicção faz as palavras fortes se evidenciarem, guiando a atenção do ouvinte para uma melhor interpretação do texto. “Nessa equação, chata, polícia mata – Plow!/ Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão”. Emicida utiliza a metáfora da equação para denunciar os grandes números de mortes de jovens negros pela violência e abuso policial. A denúncia continua na negligência no atendimento a negros em hospitais. A equação é “chata” por que a vida do negro é que é sempre subtraída. Os versos seguintes dão conta de um sistema, composto por instituições públicas, estruturas midiáticas e grupos segmentados da sociedade, que fazem todas as engrenagens das questões racistas funcionarem. O uso “maldoso” da acusação de “desacato” por policiais, fazem muitas vezes a “inversão” da relação de acusado e culpado por um suposto desrespeito ou crime. Isso é amplificado para a sociedade através das mídias que espetacularizam ou usam a “distorção” dos fatos. Emicida lembra novamente da perseguição que as religiões de matrizes africanas sofrem pelos radicais cristãos. Também vale ressaltar os grupos de políticos que compõe a chamada “Bancada Evangélica”. Esta, se utiliza dos meios políticos para impor e demonizar as instituições religiosas negras. O texto continua explicando que não dá para esquecer, nem silenciar estas violências praticadas. A referência do Datena, apresentador de programas policiais na TV, reforça a espetacularização da violência contra negros, colocando-os como bandidos, criminosos ou ajudando a popularizar o “bandido bom é bandido morto”. O sofrimento da população negra é um “luto” aparente de uma sociedade racista, e “audiência” para os anunciantes dos programas policiais.

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O verso “Cura baixa escolaridade com auto de resistência”, explica um artifício de defesa usado frequentemente pela polícia para legitimar assassinatos nas comunidades carentes. Pois na era cyber, cês vai ler Os livro que roubou nosso passado igual Alzheimer, e vai ver Que eu faço igual Burkina Faso Nóiz quer ser dono do circo Cansamos da vida de palhaço É tipo Moisés e os hebreus, pés no breu Onde o inimigo é quem decide quando ofendeu

Graças a cibercultura, a era da informação e as facilidades no acesso a obras literárias, é possível conhecer, ampliar e compartilhar outras histórias sobre a cultura e a história do povo negro. História essa, que é esquecida pelas instituições educacionais, assim como uma pessoa com a doença de Alzheimer. Emicida sugere fazer revolução ao citar Burkina Faso, país africano colonizado pelos franceses, que conquistou sua independência na década de 1960. Cansado da “vida de palhaço”, Emicida volta a fazer referência a humilhação, a espetacularização do sofrimento negro e ao menosprezo cultural sofrido e sugere ser dono de sua história. Ainda sobre revolução, o autor cita “Moisés e os hebreus”, passagem bíblica que retrata a libertação dos escravos no Egito, referenciando também quando o opressor é quem determina como e quando o oprimido deve se comportar diante de uma opressão. No veneno igual água e sódio Vai vendo sem custódio Aguarde cenas no próximo episódio Cês diz que nosso pau é grande Espera até ver nosso ódio

Nos últimos versos Emicida adota um tom mais brando, como se já tivesse alertado e mobilizado seus ouvintes. Nos versos “No veneno igual água e sódio/ vai vendo sem custódio/ aguarde cenas do próximo episódio”, o rapper usa a

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metáfora de duas substancias, água e sódio metálico, que ao entrarem em contato, podem causar explosões – também é referência do verso do refrão “Bomba relógio prestes a estourar” – alusão às violências sofridas nas mais diferentes situações que vão gerar uma reação agressiva para sociedade em algum momento. Mesmo não comprovada cientificamente, é comum associar o tamanho do pênis à raça negra. Nos versos “Cês diz que nosso pau é grande/ espera até ver nosso ódio”, Emicida utiliza essa associação de tamanho do pênis, para terminar sua mensagem dizendo o que pode vir nos “próximos episódios”. Ao cantar estes versos há uma ligeira duplicação do vocal de Emicida, principalmente ao dizer a palavra “Ódio”. Dessa forma, a palavra ganha mais força sendo a palavra mais forte a ser dita na música. O ódio do povo negro, tão grande quanto “seu pau”, é fruto de tudo exposto na letra de Boa Esperança (2015). Esse ódio ainda, segundo Emicida, pode voltar-se contra uma sociedade racista, que renegou, e continua renegando e boicotando seus direitos, sua cultura e suas crenças da raça negra. Considerações Finais A análise da música Boa Esperança evidencia seus signos e apresenta uma interpretação mais crua do discurso de Emicida. Mesmo dialogando com a juventude, seja negra, branca, pobre ou rica, a mensagem crítica é assimilada graças a sua letra direta e cheias de referências populares, e sua interpretação forte nos vocais. A música cumpre seu papel de exibir e denunciar mazelas sociais negras, mesmo que seja por um viés menos incomum, uma ótica mais agressiva, que foge dos instrumentos convencionais de empoderamento de classe. A música ganhou um clipe e um documentário sobre a temática das empregadas domésticas, classe de trabalhadoras escolhida por Emicida para representar as questões negras. Isso significa o poder de absorção da música Boa Esperança nos mais variados temas sociais.

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