Análise social da obra de Primo Levi: interlocuções possíveis entre sociologia e literatura

July 24, 2017 | Autor: L. Amaral de Oliv... | Categoria: Primo Levi, Literatura, Sociologia da Cultura, Memoria, Narrativa De Testemunho
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SOCIÓLOGO ESTÁ SEMPRE PARTIDO ENTRE DOIS MUNDOS: UM ABERTO E COSMOPOLITA, HABITADO PELO EXPLORADOR VIAJANTE E POR COMPANHIAS imprescindíveis que cruzam seu caminho; outro, de solidão e clausura, do estudo rotineiro e da produção em tempos recordes. O primeiro é o mundo da delimitação da pesquisa, acumulação de experiências e coleção de dados, estágios, amizades, congressos e trocas de conhecimento. O segundo, mais espinhoso, do trabalho sistemático e disciplinado da criação textual: da biblioteca à casa, da casa à biblioteca. São extremos que se sustentam e recortam um modo bastante peculiar de produção do saber. Nesses dois mundos, também podemos dizer que são infinitos os caminhos que podem levar um leitor a um escritor. Da mesma forma, não podem ser contadas as vias e motivações subjetivas, ocasionais ou profissionais

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A literatura de Levi é um registro fundamental do passado, por relatos e reflexões sobre a infâmia vivida por ele e que marcou a memória coletiva do Ocidente.

Fotodivulgação: Flickr - Cary Bass

que conduzem um jovem sociólogo a investir anos de seu trabalho acadêmico em um autor da literatura. O que resta são relatos pessoais. É exatamente disso que se trata este texto, portanto: uma breve aproximação sociológica com o testemunho literário do escritor italiano Primo Levi, testemunha de Auschwitz. Encontrei pela primeira vez Primo Michele Levi (1919-1987), químico e escritor ítalo-judeu sobrevivente do campo de concentração e extermínio de Auschwitz, acidentalmente, quando, ainda no segundo ano da graduação, percorria as estantes da biblioteca da Universidade Estadual de Londrina. O primeiro contato, no entanto, não induziu a uma relação imediata e apaixonada entre leitor e obra, como era de esperar. Foram necessários ainda alguns meses de reencontros fortuitos por sebos, bibliotecas e livrarias, assim como a influência de um professor em minha trajetória acadêmica, para que Se questo è un uomo – na tradução brasileira, É isto um homem? –, essa obra inaugural e tão devastadora do escritor de Turim, passasse a fazer parte do rol de meus livros preferidos, dos clássicos de uma vida. O fato é que não se pode ser o mesmo depois de ler Primo Levi. Por diversos motivos. Sobretudo, porque o tratamento de seus textos demanda enorme energia emocional e uma complexidade analítica difícil de lidar, pois conduz o leitor desavisado da perplexidade, devido à leitura do horror indescritível, à empatia, no sentido de tornar-se próximo, receptor complacente de um mundo aparentemente sem sentido. Nessa medida, talvez bastasse aqui a equação do escritor, também italiano, Ítalo Calvino (1995), para quem o clássico, a obra essencial na biografia das pessoas, é aquela que exerce influência particular quando se impõe ao nosso interesse intelectual como inesquecível, marcando nossa memória e nossa trajetória. Para começar, com Levi pude aprender o italiano, conheci um pouco da cultura humanística, científica e filosófica que serviram de base para sua literatura e, ainda, muitos estudiosos de sua obra. Mas isso ainda não explica uma coisa: por que eleger Primo Levi, certamente um dos testemunhos em primeira pessoa mais importantes e impactantes sobre o genocídio nazista, como objeto de interesse sociológico? A própria questão contém em si sua justificativa. Sua literatura é um registro fundamental

do passado, tecido por relatos e reflexões sobre a infâmia vivida que marcou a memória coletiva do ocidente; afinal, sua obra logrou conjugar experiência, testemunho e narrativa, dando vida a uma estética exclusiva no século 20. Isso sugere um exercício epistemológico interessante, no sentido de se partir da premissa de que o testemunho que descreve uma experiência real pode, muitas vezes, exceder em riqueza de detalhes as apreciações macro-históricas, que, quando isoladas ou abstratas demais, não conseguem chegar tão a fundo no desvelamento das múltiplas possibilidades de desumanização postas em marcha pelo nazismo e por sua gigantesca experiência social. E como não é possível refletir sobre violências só com base em análises teóricas, distanciadas, de fora e de longe, digamos, do mesmo modo, é impossível fazê-lo só com documentos oficiais, sem levar em conta o testemunho de sobreviventes, dos que sofreram, de dentro e de perto, a barbárie. O testemunho literário é quase sempre elaborado a partir de uma fronteira epistêmica, quer dizer, entre a objetividade pretendida na ordenação dos fatos e a subjetividade alcançada quando da interpretação e descrição singular de um aconteci-

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mento. Quando a sociologia propõe se debruçar sobre uma literatura com alto teor testemunhal, é necessário colocar em tensão e problematizar essa dimensão limite do testemunho. De que modo, então, um evento limite tão paradigmático para a modernidade, como o campo de concentração e extermínio nazista, foi traduzido na literatura de Primo Levi? Tal questão parece-me de considerável relevância, sobretudo porque creio não ser possível compreender o sofrimento pessoal de cada um sem observar a história que o circunscreve; mas, também, não é possível apreender a história de eventos traumáticos, de penúrias passadas, sem olhar com cuidado para aqueles que a sofreram realmente. Ou seja, é necessário ter em mãos um telescópio e um microscópio. São duas as obras de maior relevo memorialístico de Primo Levi. A primeira, Se questo è un uomo, de 1947, pode ser tida, inclusive, como um dos testemunhos pioneiros sobre os campos de extermínio. Trata-se de um denso diário de memória no qual o autor reconstruiu episódios cotidianos de sua experiência de Häftling (“homem do Lager”), não para fazer denúncias ou julgar os “carrascos” da história, mas com o intuito de fornecer documentos para um estudo de certos aspectos do “espírito humano” (Levi, 1998; 2005). Em certos aspectos, esse livro consegue subverter nossa noção de obra de arte e estética – mas o faz por necessidade, espontaneamente, às vezes até brutalmente, e nunca por redenção. Nesse testemunho, há um corte quase jurídico, cujo tom é mais de acusação e reflexão do que um ato de provocação, represália, vingança ou punição. O que prevalece é a tentativa de superar a tensão entre memória (difícil, quase impossível, porém necessária) e esquecimento (traumático, coletivo, social), mesmo quando o que parece sugerir Levi é que o sofrimento silencia no homem tanto os códigos morais quanto a aptidão de narrar o vivido. É nessa medida que ele relata o processo de desumanização a partir dos episódios mais significativos e que revelam a essência e estrutura de Auschwitz, desde os momentos cruciais das seleções e dos bombardeios aéreos, até a opressão cotidiana. Mesnard (2005), estudioso de Levi, lembra, inclusive, que Se questo è un uomo foi precedido, em 1946, pelo Rapporto sulla organizzazione igienico-sanitaria del campo di concentramento per Ebrei di Monowitz

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(Auschwitz-Alta Slesia) – “Relatório sobre a organização higiênico-sanitária do campo de concentração para judeus de Monowitz” –, que saiu na Minerva Medica, assinado por Primo Levi e um amigo médico, Leonardo De Benedetti. Trata-se da edição número XXXVII do periódico, referente a julho-dezembro de 1946. O relatório foi republicado outras vezes, sobretudo a partir dos anos 1990, e esmiuçava o funcionamento e as condições dos campos, dando especial atenção a algumas das doenças contraídas pelos presos. As anotações do relatório serviram como base para a sua primeira obra, mostrando que sua literatura nasceu de documentos e fatos empíricos vividos e coletados em Auschwitz, de tal modo que, pelo menos como intenção e concepção, o livro já nasceu nos dias do campo (Levi, 1988; 2005). É importante acrescentar que essa sua obra inicial teve escasso prestígio na época em que foi lançada, porque, escrita entre dezembro de 1945 e dezembro de 1946, passou por um percurso editorial um tanto quanto turbulento. Se questo è un uomo foi primeiramente recusada pela editora Einaudi, de Turim, na figura da célebre escritora italiana Natalia Ginzburg, com a justificativa de que haveria ainda na Itália um clima pesado de pós-guerra, e que, por isso, os leitores italianos não estariam interessados por uma literatura que versasse sobre os horrores dos campos de extermínio. O crítico Franco Antonicelli, que havia tido um papel de destaque na resistência, “Entre a objetividade pretendida na ordenação dos fatos e a subjetividade alcançada quando da interpretação e descrição singular de um acontecimento.”

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Quarenta anos depois de escrever Se questo é un uomo, um ano antes de seu polêmico suicídio, o desfecho da sua carreira literária ficou por conta de I sommersi e I salvati, de 1986.

Fotodivulgação: Flickr - Enesse Bhé

sobretudo na região do Piemonte, depois de entrar em contato com o texto seminal de Primo Levi, percebeu seu grande valor literário e histórico e de imediato propôs publicá-lo em sua modesta editora Francesco De Silva, recentemente aberta. O livro foi lançado com pouco êxito no final de 1947, com uma tiragem de 2.500 cópias, dentre as quais um pouco mais da metade – 1.400 – foi vendida. A “insignificante” difusão de Se questo è un uomo fez com que Levi renunciasse quase totalmente à atividade de escritor e se dedicasse com maior energia à profissão de químico. Porém, entre 1952 e 1957, passou a colaborar com Paolo Boringhieri, responsável pelas edições científicas da Einaudi, com traduções, revisões e pareceres. Depois de um evento bem sucedido sobre a história dos deportados, em 1955, Levi refez a tentativa de publicar sua obra pela grande editora. Com pareceres positivos de Luciano Foà e Ítalo Calvino, em julho de 1955, foi firmado o contrato para que o volume fosse publicado na série econômica da “Piccola Biblioteca Scientifico-Letteraria” a um preço acessível. Todavia, a dificuldade econômica pela qual passava a editora fez com que a edição só fosse lançada em 1958. Quase quarenta anos mais tarde da escritura de Se questo è un uomo, e um ano antes de seu polêmico suicídio, o desfecho de sua carreira literária ficou por conta de I sommersi e i salvati, de 1986, um tipo de “testamento espiritual”, como se referiu Todorov (2007) no prefácio à edição italiana da obra, em que a voz de sobrevivente, aliada ao trabalho de memória, testemunho e revisão crítica, tentou recriar a vida no limite da destruição, buscando esclarecer as novas gerações sobre os riscos da exceção dentro da ordem democrática. Essa última obra do escritor traz à tona um sentimento paradoxal de vergonha por haver sobrevivido, que ele chama de “culpa do sobrevivente” e que, muitas vezes, pode levar à crença de que se está vivo no lugar de outro, mais fraco e menos afortunado – às vezes, mais “honesto”. Nesse derradeiro trabalho – que funciona como conclusão de seu primeiro testemunho –, Levi retornou a temas de seu texto inicial, mas com uma identificação mais reflexiva com o trabalho da memória. Aliás, I sommersi e i salvati precisou de uma década de elaboração para ser finalizado e lançado, em 1986, pela Einaudi (Levi, 2004; 2007). Talvez seja esse o escrito mais lúcido e madu-

ro do literato italiano sobre os mecanismos sociais subjacentes ao universo concentracionário, já que se trata de um texto capital para entender o humano em situações de grande opressão – e as possíveis formas de resistir a elas. Nessas páginas convergem preocupações que afligiam a mente de Levi no último período de sua vida, a saber: o perigo de desvanecimento da memória coletiva de Auschwitz, a falta de conhecimento histórico dos jovens estudantes, que parecem aceitar seu testemunho com demasiado ceticismo e distanciamento, e o advento dos revisionistas e “negadores do holocausto”, que duvidam da existência do extermínio massivo de pessoas e dos próprios campos de morte. Trata-se de um livro escrito por alguém que se quer comunicar com os indiferentes, os resignados, os mornos e até com os antigos algozes; um testemunho de quem se esforça para compreender a experiência vivida, e mais, para compreender a mente daqueles que contribuíram em alguma medida, direta ou indiretamente, com a ignomínia. Talvez I sommersi e i salvati deva sua grandeza a algumas perguntas que enseja: quais as estruturas sociais do Lager nazista e as técnicas ali presentes para destruir a personalidade de um indivíduo? Qual a relação criada entre opressores e oprimidos?

Para finalizar este ensaio, deixo como sugestão, a partir dos excertos seguintes, três chaves interpretativas da literatura de testemunho de Primo Levi, mas sem elaborá-las de fato: “Horror, horror, horror! Não pode o coração nem a língua conceber-te ou nomear-te.” William Shakespeare, MacBeth ([1606] 2009). “O inferno dos vivos não é algo que será. Se existe um, é o que já está aqui, o inferno no qual habitamos todos os dias, que formamos apenas de estarmos juntos. E há dois modos para não sofrer nele. O primeiro é fácil para a maioria: aceitá-lo e tornar-se parte dele até o ponto de deixar de notá-lo. O segundo é arriscado e exige atenção e aprendizagem contínuas: buscar e saber avistar quem e o que, no meio deste inferno, não é inferno, e assim fazer com que dure, dar-lhe espaço.” Ítalo Calvino, Le città invisibili ([1972] 1993). “Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que um acontecimento lembrado é sem limites, porque ele é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. Num outro sentido, é a reminiscência que pode prescrever, com rigor, o modo de textura.” Walter Benjamin, Imagem de Proust ([1929] 1994). O primeiro remete ao paradoxo do indizível que atingiu a todos os sobreviventes, ou seja, da fala impossível – porém, necessária – acerca do sofrimento, e a impotência da linguagem comum, corriqueira, literária ou não, em expressar uma experiência limite de horror. O segundo contempla o inferno enquanto metáfora plausível da experiência concentracionária, lugar de morte pautado, sobretudo, pelo tormento inimaginável e pela consequente destruição moral do indivíduo afetado, o que produziu uma indistinta “zona cinzenta”, composta por todo o tipo de cumplicidades, desde a colaboração indireta até o crime explícito. E, por fim, o terceiro excerto trata da memória, lida enquanto potência e recurso ético das vítimas, e suas implicações sociais na construção do testemunho da barbárie.

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