Análise, teoria e criatividade musicais: possíveis interações

June 1, 2017 | Autor: T. Moraes Taffarello | Categoria: Musicology, Musical Theory, Musical Creativity
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Actas do I Encontro Ibero-americano de Jovens Musicólogos Por uma Musicologia criativa…

Análise, teoria e criatividade musicais: possíveis interações

Tadeu Moraes Taffarello / Universidade Estadual de Campinas

Can musicology and creativity be together? Believing that yes, at least in relation to the methodology and the proposed objectives, this article defines the scope of musical analysis, music theory and creativity to then propose some possible interactions between them. The hypothesis to be followed is that creativity can be present both in a musical analysis per se, and in the relationships between analysis and theory and between analysis, theory and composition. To demonstrate the applicability of such hypothesis, it will be exemplified the way the invention of rhythmic characters brought final marks to Messiaen's compositional practice, in special at Turangalîla Symphonie, and how the theoretical study of such characters was used in the composition of As árvores do meu jardim de outono (2008), by Taffarello.

Introdução O tema do I Encontro Íbero-Americano de Jovens Musicólogos, “... por uma musicologia criativa”, foi a mola propulsora para o presente artigo. A questão que salta de tal tema é: em quais aspectos a musicologia – nas subáreas da teoria da música e da análise musical – e a criatividade podem estar juntas? Esta indagação ocorre, pois a musicologia é uma área ampla que estuda o fenômeno musical quer seja per si1, tal como fazem a análise musical e a

teoria da música, quer seja em relação ao meio social, histórico, cultural e econômico de uma determinada região e tempo, como fazem a musicologia histórica e a etnomusicologia. A criatividade não é tida como uma das possíveis áreas de abrangência em quaisquer das definições e objetos de estudo da musicologia. Ela, criatividade, seria o objeto de estudo da composição, da interpretação e da improvisação2. Não haveria, por esse raciocínio, uma musicologia da criatividade, apesar de toda a musicologia existir graças a um rastro gerado pela criatividade humana, sendo porém este rastro, e não a criatividade em si, o objeto de estudo da 1

Baseou-se essa posição na definição de Ian Bent para a análise musical como sendo “o estudo da música que tem como seu ponto de partida a música em si mais do que em relação a fatores externos” (Ian Bent: Analysis, New York, W. W. Norton & Company, 1987, p. 1. Tradução do autor do presente texto.) 2 Marc Leman: “Music”, Encyclopedia of creativity, San Diego, Academic Press, 1999, p. 285.

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musicologia. O objetivo do presente texto é mostrar que, ao contrário do que se poderia supor a partir desse senso comum, a análise musical e a teoria da música, subáreas da musicologia, podem sim ser criativas. Se a criatividade não faz parte do objeto de estudos da musicologia, ela pode, porém, entrar no estudo musicológico através da metodologia empregada e do

objetivo a ser alcançado. Para a compreensão da proposta de uma análise musical criativa, primeiramente discorrer-se-á sobre cada uma das áreas envolvidas, análise musical, teoria da música e criatividade, buscando delimitá-las em si mesmas. Após essa exposição inicial, procurar-se-á demonstrar de qual maneira a criatividade pode se fazer presente tanto em uma análise musical per si quanto nas relações entre teoria e análise e entre teoria, análise e composição. Por fim, será exemplificado como a análise e a teoria musicais criativas trouxeram marcas

definitivas para a prática composicional de Messiaen, em especial sob o aspecto da invenção dos personagens rítmicos, e como o estudo de tais personagens foi utilizado por Taffarello na composição de sua peça para piano solo As árvores do meu jardim de outono, de 2008.

Separando as sub-áreas Análise musical Um bom3 ponto de partida para o estudo sobre o alcance da análise musical é o livro Analysis de Ian Bent. Para o autor, a análise musical é “a resolução de uma estrutura musical em elementos constituintes realtivamentes simplificados e a

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Apesar do juízo de valor criado por essa afirmação não ser desejável em uma ambiente acadêmico, baseou-se tal afirmação nos escritos de Cook: “o artigo de Ian Bent mencionado (no caso, o artigo por ele escrito para o The New Groove Dictionary of Music and Musicians, do qual o livro Analysis aqui utilizado é uma derivação) é o melhor ponto de partida para tal estudo” (Nicholas Cook: A guide to musical analysis, Oxford, University Press, 1987, p. 8).

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Actas do I Encontro Ibero-americano de Jovens Musicólogos Por uma Musicologia criativa… investigação das funções desses elementos dentro de uma estrutura”4. Ou seja, o objeto de estudo da análise musical é sempre uma música, quer seja ela registrada sobre um suporte (partitura, gravação ou outros meios), quer seja ela existente apenas no momento exato de sua execução. Uma análise musical, portanto, não tem o alcance de estudar quais foram as escolhas, a criatividade do compositor ou do conjunto de criadores no momento exato da composição/criação. Por consequência, não é possível à análise musical ter por objeto de estudo a criatividade simplesmente pelo fato de a criatividade ser subjetiva e a análise, assim como toda a musicologia, almejarem ser objetivas. Perceber-se-á, porém, mais adiante, que a criatividade pode fazer parte da análise na metodolgia e nos objetivos. Para Bent, a análise musical pode ser uma ferramenta para a própria análise, valendo-se por si própria e não interagindo com os demais campos de estudos musicais. Dessa maneira, ela é uma atividade fim, uma análise per si. A análise musical, contudo, preza-se também para uma atividade meio, servindo como ferramenta para as demais áreas do conhecimento. Um intérprete pode utilizá-la para elucidar alguns aspectos da música que irá tocar ou então um historiador musical pode utilizá-la para determinar alguns aspectos composicionais em voga em determinada prática musical de época, por exemplo. A análise musical, portanto, pode ser ou uma atividade fim, fechada em si mesma, ou uma atividade meio, interagindo com outras áreas do conhecimento musical.

Teoria da música A teoria da música é a síntese de um conhecimento. Ela existe a posteriori de uma prática musical e é um filtro sobre os procedimentos composicionais sintetizados a 4

I. Bent: Analysis..., p. 1. Apesar de tal definição estruturalista não ater-se às várias explorações de formas abertas iniciadas no séc. XX, partir-se-á dela por se achar que é a mais em voga no campo de uma análise musical mais tradicional.

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partir dos fatos mais relevantes para o teórico. A teoria tem, portanto, a intenção de criar regras que possam ser aplicadas a um repertório preferencialmente o mais amplo possível e, dessa maneira, explicá-lo. E, por isso mesmo, nem sempre ela esclarece as exceções que é aquilo que cria personalidade a um determinado compositor ou a um determinado período/local. Para englobar essas diferenças estilísticas, antigas teorias são revistas ou novas são criadas. Na prática da música de concerto mais atual, sobretudo a partir do séc. XX, há uma dificuldade para o estudo musicológico que é a profusão indeterminada de novas teorias. Isso ocorre principalmente pelo não distanciamento histórico que ainda não temos de tal ou tais prática(s). Por outro lado, a teoria da música tem sido auxiliada pela escrita dos próprios compositores sobre as suas próprias músicas5. É o caso, por exemplo, do Traité de rythme, de couleur et d’ornithologie de Olivier Messiaen6. Nesse livro, através de uma série de relatos e de análises, o compositor francês fornece material para a compre ensão não só de sua própria obra como também de peças de Ravel, Mozart, Debussy e Stravinsky, dentre outros. Tanto a falta de informação sobre os detalhes de uma prática musical como a profusão indeterminada de teorias decerto não são desejáveis teoricamente. A solução ideal para a teoria da música seria uma síntese única que envolva os aspectos mais variados das práticas musicais mais diversas, uma utopia talvez inalcansável.

Criatividade

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Mais frequente sobretudo a partir do séc. XIX, deve-se ter a ressalva, entretanto, que nem sempre o que um compositor escreve diz respeito realmente aos elementos composicionais empregados por ele em sua(s) peça(s). Há também muitos textos de compositores que tratam, muitas das vezes, de sua poética e não da teoria por trás da construção das peças. 6 Olivier Messiaen: Traité de rythme, de couleur et d’ornithologie, Paris, Alphonse Leduc, 2002. VII Tomes.

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A criatividade é uma capacidade humana inata que pode ser estimulada e ampliada. Deleuze7, pensando a partir dos escritos de Bergson, desenvolve os conceitos de virtual e atual. Virtual é tudo aquilo que está em pensamento, tudo o que foi vivido e o que pode vir a ser elaborado. Já o atual é tudo aquilo que existe. Virtual e atual são reais. “Haveria entre o virtual e o atual um processo positivo de diferenciação, ou seja, uma produção da multiplicidade atual a partir da multiplicidade virtual do ser, que ele [Deleuze] passará a designar por plano de imanência”8. Os atuais se virtualizam em um plano de multiplicidades virtuais enquanto que a multiplicidade de virtuais se atualiza para se concretizar em um plano de imanência. “A vida imanente carrega as singularidades sob o aspecto de virtualidades que se atualizam como coisas”9. Apesar de o pensamento de Bergson via Deleuze não tratar diretamente da criatividade, é possível estabelecer um paralelo entre criatividade e a relação existente entre atual e virtual. A criatividade surge na atualização de virtuais. Ou seja, a criatividade se manisfesta na criação, sob uma nova perspectiva, de coisas do Mundo. Ela é, dessa maneira, o fruto de uma intensa elaboração interna evocada pelo conhecimento anterior de algo (ou de algos). Carlos Franchi reforça tal perspectiva. Para ele, a criatividade “não se manifesta somente em um ato individual, isolado. Desenvolve-se no diálogo e na contradição. Na multiplicação dos interlocutores, [...] é um trabalho a muitas mãos”10. Ou seja, ela é constituída nas multiplicidades que atravessam uma pessoa pelo contato que esta tem do Mundo.

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Gilles Deleuze: Bergsonismo, São Paulo, Editora 34, 1999 (Trad. Luiz B. L. Orlandi). Sandro Kobol Fornazari: “O Bergsonismo de Gilles Deleuze”, Trans/Form/Ação, 27, 2, 2004, pp. 31-32. 9 S. K. Fornazari: O Bergsonismo..., p. 32. 10 Carlos Franchi: Mas o que é mesmo gramática?, São Paulo, Parábola, 2008 (2ª ed.), p. 47.

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Marc Leman, pensando sobre a criatividade no campo musical, a situa nas áreas de perfomance, composição e improvisação. Para o autor, “um compositor, um performance ou um improvisador é considerado criativo quando ele ou ela não apenas repete o que aprendeu ou o que outros fizeram anteriormente mas quando um ponto de vista é introduzido que é inesperado e que adiciona novas possibilidade para futuras explorações”11. A partir dessas afirmações, percebe-se que a criatividade pode ser pensada como uma inovação pessoal, regional ou global do conhecimento. Ela é, dessa maneira, o meio do caminho e o passo adiante de uma ideia que está no ar, porém ainda não foi totalmente elaborada. Contrariando um pouco a afirmação de Leman, a perspectiva apresentada pelo presente artigo parte da prerrogativa de que, em música, a criatividade pode estar tanto em um processo criativo (uma nova composição), quanto em outras áreas do conhecimento musical, impulsionando também o desenvolvimento da musicologia em suas subáreas da teoria e da análise musicais.

Por uma análise musical criativa Da necessidade do uso da criatividade em uma análise musical A análise musical como atividade fim, conforme definida acima, é uma maneira de se explicar determinada música a partir das próprias ferramentas da análise. Ela não almeja, dessa forma, dialogar com nenhuma outra área do conhecimento musical e basta-se em si própria. Dentro dessa perspectiva, seria possível haver nela alguma forma de criatividade? No presente artigo, defende-se a tese de que sim, é possível haver criatividade na análise per si, dependendo, porém, do objetivo e da metodologia com que se conduz o 11

M. Leman: Music..., p. 285.

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estudo. A análise musical quer seja ela per si, quer seja em relação a outras atividades musicais, corre um sério risco que é a inversão do objetivo da própria análise. Se, segundo Bent, a análise deve responder à pergunta “Como tal peça funciona?”12, o analista muitas vezes cai na tentação de não conseguir responder tal indagação pois preocupa-se, antes de tudo, em provar a validade de tal ou qual teoria analítica. O compositor Luciano Berio, pensando sobre tal problemática, afirma que os analistas nesses casos “antes de procurarem o significado de um trabalho musical, usam o trabalho para clarear o significado de seus próprios processos analíticos”13 Também pensando sobre isso, Nicholas Cook escreve na introdução de seu A guide to musical analysis que há sempre um problema quando “o analista acredita que o propósito de uma peça musical é provar a validade de seu método analítico, mais do que o propósito de o método analítico sendo o de iluminar a música”14. Essa inversão de objetivos da análise é diretamente relacionada à falta de criatividade, pois uma análise que se preocupe apenas em aplicar uma teoria, torna-se um treinamento técnico e não uma atividade criativa. A aplicação de uma teoria analítica a toda e qualquer música nem sempre trará os melhores resultados analiticamente dizendo. Um analista, para ter uma análise que responda à pergunta básica que norteia a disciplina (como tal peça funciona?) deve ter o bom senso de adequar uma (ou mais) ferramenta(s) de análise musical à peça a ser estudada. Ian Bent, em seu compêndio analítico, alerta que “nenhum método ou abordagem únicos revelam a verdade sobre música acima de todos os outros” 15. Ele, na realidade, está argumentando que é sim possível, com adequação de metodologia,

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I. Bent: Analysis…, p. 5. Luciano Berio: Remembering the future, Cambridge, Harvard University Press, 2006, 14 Nicholas Cook: A guide to musical analysis, Oxford, University Press, 1987, p. 2. 15 I. Bent: Analysis..., p. 5. 13

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chegar a resultados tão ou mais satisfatórios a partir da mudança ou da mistura de ferramentas analíticas. A tarefa de adequar ferramentas analíticas à(s) peça(s) estudada(s) requer, logicamente, criatividade e um alto grau de conhecimento prévio de tais ferramentas. Ilza Nogueira, em entrevista a Carlos Kater, reflete sobre a questão:

Para definir-se por uma estratégia de análise, portanto, o analista deve ser sensível não somente à observação das propriedades lingüísticas do seu objeto de observação, como também inventivo às técnicas de utilização das ferramentas que a tradição analítica colocou à nossa disposição. O repertório dos últimos 40 anos, em especial, exige uma postura criativa do musicólogo analista16.

A adequação de uma ou mais ferramentas analíticas às peças estudadas, de acordo com as especificidades requeridas, é uma solução criativa que responde à questão proposta por Bent como a base de definição da análise musical. A criatividade em análise musical per si consiste, portanto, em um adequar as ferramentas analíticas à peça em estudo, para que dela se possa extrair realmente aquilo que seja de fato importante para a compreensão da mesma.

Análise, teoria e criatividade A análise musical como atividade-meio tem uma relação estreita com a teoria da música. A análise elabora hipóteses para que teóricos possam provar ou rejeitar as suas validades e desenvolverem novas teorias. Essas novas análises são alimentadas tanto por novas composições, quanto por um olhar novo sobre peças já anteriormente estudadas. A teoria da música cria, por sua vez, ferramentas teóricas para novas 16

Ilza Nogueira em entrevista a Carlos Kater: Cf. Carlos Kater (ed.): Cadernos de Estudo - Análise Musical, Nº6/7, Fevereiro de 1994. Disponível em http://www.atravez.org.br/ceam_6_7/encontro.htm (10/01/12).

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análises. É, portanto, uma via de mão dupla: análise e teoria são duas áreas do conhecimento musical que se alavancam uma à outra e há sempre criatividade nessa relação. A análise e a teoria fornecem ferramentas que, muitas vezes, podem ser utilizadas na composição. Para compor, um compositor sempre se vale da análise, quer seja ela formalizada ou não por uma teoria. A teoria não é imprescindível para a composição, porém a análise sim. Por menor que seja o emprego, um compositor sempre analisa, mesmo que apenas informalmente, ao menos a sua própria peça enquanto ela está sendo criada, ensaiada ou executada ou, para os casos em que se aplica, quando a mesma encontra-se ainda no papel. Nos empregos mais aprofundados, um compositor pode se valer também da análise de peças outras que possam vir a alimentar a sua prática composicional. Essa é a opinião do compositor Silvio Ferraz que afirma em entrevista a Carlos Kater:

O ato de analisar sempre se estendeu para fora dos domínios restritos do verbal. E, nesse campo aberto, compor é analisar. Analisar não significa necessariamente se deter sobre uma única obra, ou um conjunto de obras de um autor qualquer. Analisar significa também percorrer as entranhas dos objetos sonoros que estamos trabalhando no ato de composição - modos de encadeamento, de transformação, de justaposição, de contraposição. Esse ato implica também em perceber as relações do material em uso com o mundo sonoro que o rodeia: outras músicas que já o utilizaram, referências históricas, referências culturais, recordações... Em suma perceber o quão pequeno somos dentro deste micro-cosmos que é uma ‘poeira sonora’17.

“Compor é analisar!” escreveu Ferraz. Se se pensar dessa maneira, não haveria também a possibilidade de uma inversão de direção? Não seria possível analisar uma peça valendo-se da composição? 17

Silvio Ferraz em entrevista a C. Kater: Cf. Carlos Kater (ed.): Cadernos de Estudo - Análise Musical, Nº6/7, Fevereiro de 1994. Disponível em http://www.atravez.org.br/ceam_6_7/encontro.htm (10/01/12).

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Para aprofundar essa proposta, cabe perceber que a diferença primordial entre o estudo em processos criativos e uma análise musical auxiliada pela composição é que, conforme mencionado acima, a teoria musical não é imprescindível para a composição. Um compositor, ao iniciar uma nova peça, nem sempre está pensando em trabalhar um conceito teórico. Por outro lado, uma análise musical auxiliada pela composição é justamente aquela que se vale da composição para trabalhar um objeto teórico advindo de uma análise. A ideia da utilização de ferramentas advindas da análise musical, teorizadas ou não, para um uso criativo em uma nova composição com certeza não é nenhuma novidade. Porém, ressalta-se que a análise musical não cria compositores, ela cria analistas. Para que o resultado obtido seja uma nova peça, algo novo, deve haver a criatividade no emprego de tais ferramentas teóricas em uma composição. Do ponto de vista de um musicólogo analista, a junção de elementos já teorizados a uma estética mais livre pode ser chamada, por assim dizer, de uma espécie de análise auxiliada pela composição. É, segundo Berio, como “alguém que analisa música produzindo música”18. No Brasil, a classe de “escritura musical”, tal qual existe no Conservatório de Paris sob o nome, em francês, de écriture musicale, não é bem delineada e, muitas vezes, é ignorada inclusive nos cursos superiores de música. A diferença primordial entre uma escritura musical e uma análise musical auxiliada pela composição é grande. Na escritura musical pressupõe-se a adoção de um estilo, algo que se possa comparar e julgar a partir de outro algo. Já em uma análise auxiliada pela composição, não há tal necessidade pois ela não visa ser um pastiche da teoria empregada. Ela teria o objetivo de ser algo criativo e original pela conjunção inédita de fatores. Se a teoria advinda da 18

L. Berio: Remembering... 2006, p. 129.

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análise for empregada integralmente ou parcialmente, gerando um estilo próprio diverso do qual se partiu, não haveria nisso grandes problemas. Para Berio, a criação “sempre implica um certo nível de destruição e infidelidade”19. Há, entretanto, uma ressalva: a não fidelização a um modelo pode levar também a uma liberação total das regras que fogem do princípio da análise auxiliada pela composição e adentra a própria área dos processos criativos, da composição livre. Seria, portanto, uma espécie de grau de fidelização à fonte teórica que delimitaria os campos da escritura musical, da análise auxiliada pela composição e da composição propriamente dita.

Exemplos musicais Messiaen – Exemplo de personagens rítmicos na Sinfonia Turangalîla A partir de uma análise de A Sagração da Primavera de Stravisnky, Messiaen descobre os personagens rítmicos. São estruturas rítmico-melódicas que se expandem, contraem-se ou permanecem imóveis. Para Messiaen, a criação da teoria dos personagens rítmicos foi fundamental no desenvolvimento de sua própria estética. Em sua Sinfonia Turangalîla (1949), por exemplo, o compositor francês revisa e amplia o uso desses personagens. Um uso diferenciado dado por Messiaen é a aplicação dos personagens rítmicos por camadas de orquestração. Na introdução do 2º movimento, “Chant d’amour 1”, por exemplo, o compositor distribui 3 sucessões de acordes sobrepostos em três grupos rítmicos em aumentação, por número total de semicolcheias.

19

Ibid., p. 78.

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Figura 1- sobreposição de três grupos rítmicos em aumentação no início de “Chant d’amour 1” da Sinfonia Turangalîla, de Olivier Messiaen.

Outra consequência do estudo dos personagens rítmicos por Messiaen foi a concepção da aumentação ou diminuição de durações rítmicas através da inclusão ou supressão de pontos de aumento ou de uma figura de pequena duração. É o caso, por exemplo, da percussão do 6º movimento da peça, “Jardin du sommeil d’amour”. A partir da anacruse do compasso 18 até o fim desse movimento, o 2º temple block e o ximbau fazem um contraponto rítmico ao 1º temple block e ao triângulo. Os dois primeiros iniciam-se com figuras de total de 7 semicolcheias indo para 8, 9 etc. até chegarem a uma duração de 37, enquanto que os dois últimos iniciam-se no compasso 20 com uma figura de duração total de 48 semicolcheias, diminuindo para 47, 46 etc. até chegarem a 33.

Figura 2 - personagens rítmicos tratados por aumento ou diminuição de semicolcheias em “Jardin du Sommeil d’amour” da Sinfonia Turangalîla, de Olivier Messiaen.

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Messiaen utiliza os personagens rítmicos de uma maneira diversa à de Stravinsky. Na Sinfonia Turangalîla, por exemplo, eles aparecem, dentre outros casos, na sobreposição em camadas de orquestração e na adição ou subtração gradual de figuras de menor valor.

Taffarello – As Árvores do Meu Jardim de Outono A peça As árvores do meu jardim de outono, em 2 movimentos, foi fruto de um estudo sobre os personagens rítmicos conforme descrito por Messiaen em Stravinsky. No primeiro movimento, “Platanus orientalis”, os personagens são tratados realmente como personagens nem sempre apenas rítmicos. Eles têm um perfil melódico, textural e de tessitura bem definidos e vão, ao longo da peça, modificando-se ao contato com os demais personagens e adquirindo as características uns dos outros.

Figura 3 - Os três personagens rítmicos usados em “Platanus orientalis” de As árvores do meu jardim de outono, de Taffarello.

O 2º movimento, “Aesculus hippocastanum”, mantém o conceito de personagem rítmico mais parecido com o descrito por Messiaen. Trata-se de uma figura melódica em fusas e outra de acordes em colcheias que, alternadamente, expandem-se e contraem-se. 1071

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As entradas da figura de fusas baseam-se em números primos e têm o total de ataques de: 13, 11, 17, 7, 19, 5, 23, 3, 28 e 2. As figuras de colcheias têm o total de ataques de: 5, 6, 4, 7, 3, 8, 9, 11 e, na última página, 116.

Figura 4 - expansão e contração alternadas em “Aesculus hippocastanum” de As árvores do meu jardim de outono, de Taffarello.

Essas duas propostas de emprego do personagem rítmico utilizadas na peça As árvores do meu jardim de outono não estavam, à princípio, delimitadas nem por Stravinsky quando da escrita do Sacre du Printemps e nem por Messiaen em sua análise da peça. Porém, no emprego demonstrado, a atualização de tais virtuais sucedeu-se de uma maneira criativa gerando algo novo.

Resumindo a história toda e considerações finais A análise musical e a teoria da música são dois ramos da musicologia que tratam do fenômeno musical per si. A criatividade na análise musical manifesta-se:



em uma análise musical per si, na adequação da(s) ferramenta(s) analítica(s) utilizada(s) em uma análise. Essa metodologia visa trazer

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uma compreensão da peça estudada e tem, por oposto, uma análise que procure demonstrar a validade da própria ferramenta analítica utilizada; 

na relação com a teoria da música, em uma via de mão dupla: uma análise musical criativa pode gerar hipóteses para a criação de novas teorias da música que, por sua vez, podem gerar novas ferramentas para a análise;



na relação entre teoria, análise e composição musical, na possibilidade do emprego em uma composição livre de ferramentas teóricas geradas pela análise musical.

Como conclusão, percebe-se que a musicologia se quer ciência, se quer objetiva. Porém, tal como a própria ciência e a objetividade, o uso da criatividade se faz indispensável para o seu aperfeiçoamento e desenvolvimento. A musicologia, portanto, somente conseguirá atingir o patamar de ciência o quanto mais arejada for pela criatividade em suas inúmeras manifestações.

Referências Bibliográficas Fontes Impressas Carlos Franchi: Mas o que é mesmo gramática?, São Paulo, Parábola, 2008 (2ª ed.). Gilles Deleuze: Bergsonismo, São Paulo, Editora 34, 1999 (Trad. Luiz B. L. Orlandi). Ian Bent: Analysis, New York, W. W. Norton & Company, 1987. Luciano Berio: Remembering the future, Cambridge, Harvard University Press, 2006. 1073

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Marc Leman: “Music”, Encyclopedia of creativity, San Diego, Academic Press, 1999. Nicholas Cook: A guide to musical analysis, Oxford, University Press, 1987. Olivier Messiaen: Traité de rythme, de couleur et d’ornithologie, Paris, Alphonse Leduc, 2002. VII Tomes. Sandro Kobol Fornazari: “O Bergsonismo de Gilles Deleuze”, Trans/Form/Ação, 27, 2, 2004, pp. 31-50.

Fontes Digitais Carlos Kater (ed.): Cadernos de Estudo - Análise Musical, Nº6/7, Fevereiro de 1994. Disponível em http://www.atravez.org.br/ceam_6_7/encontro.htm (10/01/12).

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