Análises das refutações sobre a pessoa de Cristo na Fórmula de Concórdia (1580)

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Análise das refutações sobre a Pessoa de Cristo na Fórmula de Concórdia George Carlos Felten1

1. Introdução Desentendimentos, conflitos e controvérsias não são privilégios de hoje na Igreja Cristã. Não era diferente na época posterior à reforma e nesse contexto surge a Fórmula de Concórdia na tentativa de aplacar as dúvidas e conseguir a tão esperada concórdia na doutrina. HENDRIX; GASSMANN (2002, p. 47-50) explicam um pouco do contexto do surgimento dessa fórmula. De acordo com eles, logo após a morte de Lutero (1546), uma série de eventos, digamos, ruins ocorreu no contexto daquela época: a Liga de Esmalcalde foi derrotada (1547), o Ínterim de Augsburgo (1548) e o de Leipzig (154849), etc. Com esse momento de crise, Melanchthon e alguns de seus colegas fizeram algumas concessões em assuntos adiáforos, o que causou mais divisão ainda dentro do seio luterano. Durante esse tempo, muitas contradições foram surgindo, dentre elas a “controvérsia osiândrica”2 e a “controvérsia criptocalvinista”3. Nesse sentido, depois de várias tentativas de achar a concórdia entre os luteranos, finalmente em 1580 a fórmula de concórdia (bem como o livro de concórdia todo) foi colocada em circulação. Assim chegamos ao nosso objeto de análise. No fim do artigo VIII da Declaração Sólida na Fórmula de Concórdia, os redatores colocam os ensinamentos tidos como condenados pelos luteranos. Lembremos de que este período antecedeu o chamado período da “ortodoxia luterana”, ou seja, aquele período em que se dava uma ênfase tremenda na doutrina (por vezes se esquecendo da teologia prática). Assim, sete ensinamentos são condenados. (LIVRO DE CONCÓRDIA, 2006, p. 652-653)

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Formando no programa de bacharelado em Teologia – ULBRA (2015/2); Estudante do programa de licenciatura em Letras Português/inglês – UFRGS. 2

“André Osiander ensinava que uma justificação interior, real e transformadora resulta do fato de que a natureza divina de Cristo habita no crente” (HENDRIX; GASSMANN, 2002, p. 48) 3

Os seguidores de Melanchthon eram acusados de tenderem “a uma interpretação calvinista da presença pessoal de Cristo na ceia do Senhor, incluindo-se os pressupostos cristológicos que isso acarretava (ou seja, a negação de que a natureza humana de Cristo participa da onipresença de sua natureza divina.” (Ibidem, p.49)

2. Análise das refutações 2.1 “A crença ou ensinamento que, por causa da união pessoal, a natureza humana foi misturada com a divina ou foi transformada nela.” (FC, Decl. Sol. VIII In: Livro de Concórdia, 2006, p. 652) Esse erro não vem, de fato, da época da reforma. Desde Eutiques já se tinha essa má compreensão de que haveria uma mistura entre as duas naturezas. No entanto, esta é mais uma tentativa de explicar, por meios limitados (como a mente humana), aquilo que é inexplicável e só aceito pela fé. Já de acordo com o concílio de Calcedônia (451 A.D.), temos a refutação desse ensinamento, dizendo que as naturezas estão unidas sem conversão, de modo inconfusa, de modo inseparável, ininterrupto e, igualmente depois da encarnação, não se acha fora da carne4. 2.2 “A natureza humana em Cristo está presente em toda parte do mesmo modo que a divindade, como essência infinita, por virtude e propriedade essencial de sua natureza” (Ibidem, p. 653) Aqui parece que há um erro quanto ao gênero idiomático da pessoa de Cristo que diz que cada natureza tem sua própria essência e que, embora possa haver a transferência de atributos de uma natureza para a outra (Gênero majestático), esses atributos não se tornam essências às naturezas. Resumindo, o que é próprio, ou, essencial para uma natureza (humana = morrer, sentir dor, sentir fome, etc. divina = Onipresença, onipotência, onisciência, etc.) não é próprio ou essencial da outra. 2.3 “A natureza humana em Cristo igualou a natureza divina em sua substância e essência, ou em suas propriedades essenciais, e se tornou igual a ela nisso”. (Ibidem, p.653) Esse ensinamento parece ser muito similar ao anterior e ao primeiro, ou seja, estavam ensinando que a natureza humana se misturou com a divina e suas propriedades essenciais foram alteradas, o que vai contra o ensinamento crido, ensinado e confessado pelos autores da Fórmula na página 635 do Livro de concórdia, onde diz: 3. Cremos, ensinamos e confessamos igualmente que, como as duas naturezas mencionadas permanecem impermistas e inabolidas, assim também cada qual retém suas propriedades naturais e essenciais e, por toda a eternidade, não as depõe, nem jamais as propriedades essenciais de uma natureza se tornam as propriedades essenciais da outra.

Nesse sentido, a mistura ou a atribuição de atributos essenciais de uma natureza na outra, não são ensinamentos luteranos, pois acarretaria, entre outras coisas, em dizer

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Aqui, o axioma latino neque caro extra logon, neque logos extra carnem é introduzido.

que é também característica do ser humano (depois de Cristo) ser onipotente, onisciente, etc. Isso é falso e refutado pelos reformadores. 2.4 “Que a humanidade de Cristo se estende espacialmente a todos os lugares do céu e da terra, o que nem à divindade se deve atribuir. Que Cristo, entretanto, por sua divina onipotência, pode estar presente com seu corpo, que pôs à destra da majestade e do poder de Deus, onde quer, especialmente onde, em sua palavra, prometeu essa sua presença, como na santa ceia, isto a onipotência e sabedoria dele perfeitamente podem realizar sem mudança ou abolição de sua verdadeira natureza humana.” (Ibidem, p. 653) Aqui o problema que se mostra é o da Santa Ceia. Como dito já na introdução, a controvérsia criptocalvinista estava em alta e deveria ser combatida. Vale a pena lembrar um pouco sobre o entendimento de Calvino e de Zwinglio da presença de Cristo na Santa Ceia. Quando falamos em Zwinglio e Calvino, falamos também de seus extremos. Por buscarem concepções filosóficas para entender a Santa Ceia, eles se viram obrigados a largar os seus antigos conceitos, e com suas lógicas aristotélicas, negavam tudo o que viesse da ICAR5. Lutero respondia dizendo que as Palavras de Cristo na instituição da Ceia (“isto é o meu corpo,...”) era maiores e prevaleceriam aos fanáticos. Várias dúvidas de Zwinglio e Calvino quanto à presença real de Cristo na Santa Ceia foram explicadas por Lutero. Por exemplo, a mais clássica: Como pode Cristo estar presente na Santa Ceia e ao mesmo tempo sentado à direita do Pai? Lutero respondeu a isto explicando que estar à direita do Pai significa uma presença eficiente e não simplesmente local ou única. Jesus, por ser verdadeiro homem e verdadeiro Deus, pode estar em diversos lugares, pois não está preso a um tempo e espaço. Por fim, Lutero define que o sentido da presença real na Santa Ceia é determinado pela autoridade escriturística e não por mera filosofia. (transubstanciação, consubstanciação, etc.) 2.5 “por nós sofreu e nos redimiu a mera natureza humana de Cristo, com a qual o Filho de Deus nenhuma comunhão teria tido na paixão” (Ibidem, p. 653). O erro dessa afirmação se dá no campo do gênero Apotelesmático, que diz que cada natureza realiza aquilo que lhe é próprio, mas sempre com a participação da outra nos atos oficiais. Em resumo, contrariando o ensino de Nestório (e, por conseguinte o ensino de Calvino e Zwinglio) de que as naturezas de Cristo são como duas tábuas unidas, mas que podem se separar, os reformadores aqui afirmam que não há como 5

Igreja Católica Apostólica Romana.

separar as naturezas de modo que “crucificaram o Senhor da glória” (1 Co 2.8). Não é essência da natureza divina a crucificação (morte), mas sim da natureza humana. Porém, com a morte de Cristo, não morre apenas o humano Cristo, mas sim o “Senhor da glória”. Os ensinos de Calvino (finitum non est capax infinitum – o finito não consegue suportar o infinito) e os de Zwinglio (Allóiosis – Jesus só sofreu na natureza humana) são negados e condenados pelos reformadores. 2.6 “Que Cristo esteja presente conosco na terra na palavra pregada e no uso correto dos santos sacramentos apenas segundo a sua divindade, e que essa presença de Cristo de modo nenhum diga respeito a sua natureza humana assumida” (Ibidem, p. 653) Também muito similar à premissa anterior, esse ensinamento foi refutado pelos reformadores e pode ser encarado por nós como um erro quanto à separação das naturezas. Mesmo depois da morte e ressurreição de Cristo, não há como separar as duas naturezas, pois fazê-lo seria o mesmo que dizer que Cristo não ressuscitou de corpo e que ainda está no túmulo. Novamente, a Santa Ceia é tida como exemplo de problemas quanto à interpretação. Como vimos anteriormente, Lutero vê a presença real de Cristo na Santa Ceia, com o verdadeiro corpo e sangue (diferentemente de Calvino – presença espiritual – e de Zwínglio – presença simbólica). Porém, também há de se notar que se trata de um mistério que devemos crer e nos firmar nas palavras “isto é...”. 2.7 “Que a assumida natureza humana em Cristo, de fato e de verdade, nenhuma comunhão tenha com a virtude, o poder, a sabedoria, a majestade e a glória divina, com quem apenas teria em comum o mero título e nome.” (Ibidem, p. 653) Novamente, o gênero majestático é atingido com esse tipo errôneo de ensinamento. O gênero majestático ensina que os atributos da natureza divina são transferidos para a natureza humana em razão da união pessoal das duas naturezas. No entanto, é mister dizer que esses atributos não se tornam essenciais da natureza humana. Além disso, essa transferência se dá unilateralmente, ou seja, apenas da natureza divina para a humana (haja vista que os atributos da natureza humana apenas oferecem barreiras aos atributos da natureza divina). Assim, Jesus, em diversas vezes, abdica de atributos divinos (Ex.: onisciência – Mt 24.36 – onipotência – Mt 26.50), mas nunca deixa de tê-los.

3. Conclusão

A busca pela concórdia, já na época da reforma, proporcionou um estudo aprofundado e preocupado com a Verdade Bíblica. Essa preocupação dos reformadores foi extremamente importante para que se fixasse aquilo que, de fato, “cremos, ensinamos e confessamos”. No entanto, devemos ter em mente a humildade de saber que a mente humana não consegue entender a plenitude de Deus por completo, mas sim apenas aquilo que ele nos revela através da Escritura. Esta deve ser a busca do teólogo: deixar as especulações de lado e deixar Deus ser Deus e falar por meio da Escritura. Os ensinamentos errôneos, infelizmente, nos acompanharão até o dia do Juízo final, mas cabe a nós investigar biblicamente a veracidade dos ensinos, assim como os reformadores fizeram no século XVI, sabendo que Deus nos guia nessa busca e não nos deixará desamparado. E, desde que a Sagrada Escritura chama a Cristo de mistério, em que todos os hereges rebentam a cabeça, admoestamos todos os cristãos a que não lucubrem impertinentemente com a razão sobre esse mistério, mas creiam simplesmente, com os diletos apóstolos, cerrem os olhos da razão, levem cativo seu pensamento à obediência de Cristo, consolem-se e, portanto, sem cessar, alegrem-se com o fato de que, em Cristo, nossa carne e sangue foram colocados a tão grande altura, à destra da majestade e onipotente força de Deus. Dessa maneira, seguramente, encontrarão consolo permanente em toda adversidade e ficarão bem protegidos contra os erros perniciosos. (Ibidem, p. 653)

4. Bibliografia HENDRIX, Scott; GASSMANN, Günther. As Confissões Luteranas: Introdução. Trad.: Enio Mueller. São Leopoldo: Sinodal, 2002. Fórmula de Concórdia In: Livro de Concórdia. 6ª Ed. Editado por Darci Drehmer. Trad.: Arnaldo Schüler. São Leopoldo: Sinodal; Canoas: ULBRA; Porto Alegre: Concórdia, 2006.

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