\"Andança, Agitação, Luta, Autonomia, Evolução. Sentidos do Movimento e da Mobilidade\". Ruris, v. 9, n. 1, março 2015.

June 28, 2017 | Autor: André Dumans Guedes | Categoria: Mobility/Mobilities, Anthropology of Mobility, Rural Development
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ANDANÇA, AGITAÇÃO, LUTA, AUTONOMIA, EVOLUÇÃO SENTIDOS DO MOVIMENTO E DA MOBILIDADE ANDRÉ DUMANS GUEDES

Vocês que fazem parte dessa massa Que passa nos projetos do futuro É duro tanto ter que caminhar E dar muito mais do que receber [...] Vida de Gado! Povo marcado, esse!Povo feliz! (Zé Ramalho, “Admirável Gado Novo”)

R E S U M O Neste artigo, busco discutir alguns dos múltiplos sentidos que as ideias de movimento e mobilidade assumem entre garimpeiros atingidos por barragens na cidade de Minaçu, localizada no extremo-norte de Goiás. Considero assim como o movimento pode se referir à circulação e ao deslocamento espacial; à agitação característica de certos contextos específicos; e às ideias de luta, autonomia e evolução. No mesmo movimento analítico em que apresento tais sentidos, busco discutir a forma como tais pessoas encaram a difícil situação em que se encontram no momento, também em função do fato de que foram incapazes de obter o que elas chamam de “seus direitos”. P A L A V R A S - C H A V E Garimpo, movimentos, mobilidade, atingidos por barragens. A B S T R A C T This paper presents some of the multiple meanings associated

to the ideas of movement and mobility among small-scale miners affected by the building of three large dams in the municipality of Minaçu, located at the North of the Brazilian state of Goiás. In doing so, it intends to grasp how these ideas connects to spatial circulation and displacement; the turmoil that is characteristic of certain specific contexts; to the ideas of struggle, autonomy and evolution. Discussing these multiple meanings, it also tries to present the ways this people think about the difficult situation they face as they have not been able to get what they consider to be their “rights”. K E Y - W O R D S small scale mining, movements, mobility, dam affected social movements.

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Uma cidade de aposentado, uma cidade que estava acabando, um lugar parado ou morto: constantemente, assim os moradores de Minaçu, no norte de Goiás, descreviam este lugar quando lá estive para realizar o trabalho de campo para minha tese de doutorado. Tais comentários se prestavam, sobretudo, para digressões a respeito do que se passara aí ao longo das duas últimas décadas, quando a construção de três usinas hidrelétricas de grande porte – Serra da Mesa, Cana Brava e São Salvador – inviabilizou a extração de ouro nos garimpos situados nos rios onde foram instalados tais empreendimentos. Ruas desertas, casas fechadas, construções abandonadas ou em ruínas: não eram poucos os indícios de que, de fato, aquela cidade vivenciara dias mais movimentados e agitados no passado – seja no que se refere à época do garimpo ou ao próprio período em que eram construídas as usinas hidrelétricas. A maior parte das pessoas que conheci ali – na secretaria de um movimento social de atingidos por barragens – se dedicara no passado à extração de ouro ou a atividades relacionadas a ela. E se elas permaneciam em Minaçu, era também porque, após sua extinção, não tiveram como andar e procurar melhor sorte em outros lugares – por estarem velhas, doentes ou terem família para cuidar. Para meus conhecidos, pouco restava a fazer ali senão esperar: por uma pouco provável reparação financeira relativa aos prejuízos que lhes foram impostos pelas barragens, pela eventual chegada de firmas que trouxessem de volta algum movimento à cidade, por alguma iniciativa por parte dos políticos, também ela improvável, que os ajudasse a novamente caminhar com as próprias pernas. Enquanto isso, sem trabalho e parados, eles viviam de cestas básicas distribuídas pelo movimento de atingidos, de programas de renda mínima e aposentadorias ou de um ou outro bico realizado aqui e ali. ****

O que significa viver – após a agitação do passado – em um lugar parado e morto, sem movimento, onde não vem sendo

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possível caminhar com as próprias pernas: é também esse um dos meus objetivos neste artigo. No esforço para descrever a complicada situação enfrentada por meus interlocutores, e como sugerido por estes termos em itálico, as categorias e expressões nativas associadas às ideias de mobilidade e imobilidade irão aqui desempenhar um papel decisivo – o que irá oferecerme a oportunidade para, igualmente, considerar alguns dos possíveis sentidos, neste universo mas não só lá, assumidos pelos movimentos. Concedendo tamanha relevância analítica aos movimentos, parece-me necessário situar minimamente a perspectiva aqui adotada em relação a certas abordagens teóricas que vêm concedendo dando crescente atenção à questão da mobilidade. Urry menciona, por exemplo, essa “mobility turn”, movimento intelectual recente que, “disseminando-se através das ciências sociais, vem buscando atribuir dinamismo a análises que se desenvolveram historicamente via um foco no que é estático e fixo, preocupando-se sobretudo com ‘estruturas sociais’ a-espaciais” (URRY, 2007, p. 6, tradução minha). Na antropologia em particular, essa “guinada” ou “virada” se articula intrinsecamente a perspectivas teóricas que questionam aquelas correspondências anteriormente tomadas como dadas entre grupos, lugares e culturas. Essas perspectivas seguem a crítica feita por James Clifford quando, nos anos 1990, este autor argumentava que a antropologia deveria deixar de lado sua preocupação com a descoberta das “raízes” [roots] das formas socioculturais para dedicarse ao traçado das “rotas” [routes] através das quais elas se (re)produzem (SALAZAR, 2013, p. 533). [tradução minha].

Todas essas discussões estão ancoradas numa associação, substantiva e/ou analítica, entre as mobilidades e certa caracterização dos tempos contemporâneos: orientado por “uma preocupação com os processos de diáspora e desterritorialização,

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e com a irregularidade dos laços entre nações, ideologias e movimentos” (1996, p. 18, tradução minha), Appadurai argumenta, por exemplo, que “essas relações cambiantes e imprevistas entre eventos midiáticos de massa e suas audiências migratórias define o cerne da relação estabelecida entre a globalização e o moderno” (APPADURAI, 1996, p. 4, tradução minha). Recorro a afirmações como essa para destacar como, na perspectiva desses autores, o interesse pela mobilidade se justifica justamente em função de transformações e processos que – marcando e definindo os tempos “contemporâneos”, “(pós) modernos” ou “globais” – pressupõem uma diferença substancial entre eles e um passado no qual tudo se passava de outro modo (com menos mobilidade, portanto). É justamente em função da popularidade dessa perspectiva – nas ciências sociais e no nosso senso comum erudito – e dos pressupostos que naturalizam essa diferença entre um antes e depois que busco deixar claro, desde já, que aqui encaminho meu argumento em outra direção, privilegiando outros diálogos e quadros analíticos. Em primeiro lugar, a mobilidade se faz presente na minha discussão menos pela menção a certos referenciais teóricos do que pela frequência e força com que emerge nas formulações nativas. Minha investigação se articula assim com uma série de outros trabalhos recentes que, privilegiando o estudo de pequenas comunidades – não necessária ou exclusivamente rurais – no interior do país (sobretudo em Minas Gerais, Goiás e Maranhão), têm buscado levar a sério e capitalizar a importância que as pessoas estudadas nesses universos atribuem às práticas, ideias e valores associados aos movimentos (cf. RUMSTAIN, 2009; CARNEIRO, 2010; ANDRIOLLI, 2011; DAINESE, 2011; MEDEIROS, 2011). Privilegiando as formulações nativas, esses autores e eu terminamos por deixar em segundo plano certos debates e temas que, tradicionalmente, fazem-se presente no campo de estudos das sociedades camponesas – por exemplo, as questões referentes às “economias camponesas” ou à especificidade

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das formas e dos modos de produção desse ou daquele grupo. Por outro lado, e como espero ser capaz de mostrar ao longo deste artigo, tal deslocamento traz também a possibilidade de recriar certos diálogos com algumas pesquisas clássicas desse campo de estudos – estas últimas sendo agora “postas em movimento” pelo seu confronto com questões e perguntas em cuja formulação desempenharam papel preponderante as preocupações e ideias de nossos interlocutores em campo. MOVIMENTO E ANDANÇA

Ao contrário do que ocorreu em praticamente todas as outras regiões do país em que se constituíram grupos ligados ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), onde os atingidos e as lideranças eram camponeses ou pequenos agricultores, em Minaçu foram os garimpeiros que extraíam ouro no Rio Tocantins os principais responsáveis pela organização desse movimento. Para tanto, eles contaram inicialmente com a ajuda de militantes do movimento nacional. Estes últimos eram originários do Sul do país, e se deslocaram para Minaçu e ali residiram por determinado período. Como costumavam afirmar alguns garimpeiros, foram esses militantes que os ensinaram a “falar a linguagem do movimento social”, “formando-os” e “organizando-os”. E foi sob a liderança deles militantes que os garimpeiros entregaram-se a andanças e marchas por todo o país. Buscavam assim pressionar o governo federal, as empresas responsáveis pelas barragens e os financiadores do projeto (em especial o Banco Interamericano de Desenvolvimento, BID) a reconsiderar a situação dos garimpeiros que, tendo suas atividades prejudicadas por esses empreendimentos, não foram considerados elegíveis a uma reparação. Por outro lado, a partir de 2006 uma série de mobilizações realizada por todo o Brasil levou o governo federal a assinar um acordo com o MAB Nacional, garantindo à organização o repasse

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mensal de certo número de cestas básicas para serem distribuídas para as famílias atingidas de todo o país. Desse total, 1.350 cestas foram alocadas para o MAB de Minaçu. As pessoas que conheci se encontravam assim na delicada situação delineada pelo encontro dessas duas dinâmicas: após anos de andança e luta pelo que chamam de seus direitos (as reparações acima mencionadas) tudo o que conseguiram foi receber, mensalmente, uma cesta básica. Para compreender os sentidos e efeitos de tais processos, voltemos alguns anos no tempo, para considerar, inicialmente, algo do que se passou naqueles anos movimentados em que essas pessoas rodaram pelo país lutando por seus direitos em mobilizações, acampamentos e marchas. Regina nos fala assim de uma viagem com o MAB que lhe é particularmente significativa, e oferece-nos também uma sugestão para entender porque ela é considerada desse modo.

A não ser quando indicado, todas as transcrições de falas nativas referem-se a entrevistas gravadas na secretaria do MAB de Minaçu, em novembro e dezembro de 2009. 1

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Ah, esse povo daqui de Minaçu: povo andado... E que andou ainda mais junto com o MAB. Como se a gente fosse rico... Porque rico anda muito também, rico viaja, vai pro sul, vai para o Rio de Janeiro... E a gente, os pobres, fomos também para o Rio de Janeiro, o MAB levando nós pra cima e pra baixo. O pessoal aqui em Minaçu vem de tudo quanto é canto, é um povo andado, é essa gente que você conhece, gente que está acostumada com lugares diferentes e com reconhecer os costumes diferentes do povo. Mas pro Rio de Janeiro, acho que ninguém de nós tinha ido não...1

Jandir também se lembra dessa ocasião e de como todos eles estiveram no Rio de Janeiro, invadindo Furnas e a Tractebel, duas das empresas envolvidas com a construção das barragens. Invadir, ocupar, “botar pra quebrar”... Otacílio trabalhava numa fazenda que foi alagada, e para receber parcos R$ 4.500,00 de direito também teve que se esforçar muito.

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Pra receber esse dinheiro, foi uma luta danada. Tive que lutar pra continuar sereno, pra acreditar... E andei muito por aí. Tive que enfrentar a polícia... Eu fui um daqueles que não teve medo de botar pra quebrar quando a gente ocupou o BID em Brasília, a gente entrou mesmo e quebrou as coisas. Depois de tudo isso, aí veio o meu dinheiro. E às vezes eu me pergunto: será que se a gente fizesse isso de novo não dava pra resolver o problema desse povo que ficou sem receber, ou mesmo de quem, como eu, recebeu muito pouco?

Terezinha tem uma fama de briguenta de longa data, fama que surgiu da “rédea curta” com a qual ela mantém seu marido nos eixos. Na ocasião em que os atingidos ocuparam a Usina de Cana Brava, ela não decepcionou: enfrentou sem dó a polícia que tentava tirá-los lá de dentro. Não são poucos os que se lembram da firmeza dela naquela situação, e que viram com seus próprios olhos a mulher enfrentando a tropa de choque... Narrando o que se passou na ocasião, Marilda da Balsa, outra mulher conhecida pela sua valentia, se exalta ao se lembrar do que se passou. Ela fica de pé, e com seus mais de 50 anos demonstra que ainda está em boa forma: salta pra lá e pra cá, reproduzindo os “golpes de karatê” que aplicou nos policiais que tentaram (e conseguiram) imobilizá-la. Ela foi presa e algemada, e só libertada alguns dias depois. Matilde e Gracinha relatam também que “já sofreram muito” nessas andanças, nos acampamentos, nas marchas... Matilde, lembra daquela marcha que durou 17 dias, de Goiânia até Brasília? Moço, a gente andou muito. Dormíamos nas fazendas, nos matos, debaixo daquelas barracas de lona preta. Chegava em Brasília era a hora de dormir no chão frio. E teve aquele acampamento, com tiro para todo lado. A gente tocado pela polícia, feito gado... E na hora de enfrentar a polícia, de invadir os lugares? Me lembro do Juvenal, uma bala que passou pertinho da cabeça dele, e do Marconi que tomou uma coronhada na cabeça

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dele. E depois teve aquele monte de entrevista, a gente passou por tudo. Agora a gente espera uma recompensa... Somos muito agradecidas por estas cestas, que ajudam muito. Mas continuamos esperando uma recompensa...

Já para o caso dos atingidos por barragens, essa mesma “ética do sofrimento”, de fundo explicitamente cristão e estritamente vinculada à ideia de peregrinação, está evidente na importância que, na história do movimento, assumem iniciativas como a Romaria da Terra, realizada em 1983 no Alto Uruguai pela Comissão Regional dos Atingidos por Barragens (CRAB, embrião do que viria a ser o MAB). Não por acaso, o lema desse evento – “Águas para a Vida, e Não para a Morte” – foi posteriormente incorporado pela CRAB e depois pelo MAB (MORAES, 1994). 2

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Não restam muitas dúvidas de que essa imbricação entre as ideias de sofrimento e merecimento, atualizando-se nas referências a peregrinações e marchas (CHAVES, 2000), diz muito sobre os valores e experiências associados a organizações como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Originando-se nas mesmas áreas do país (a região de colonização estrangeira no Sul do país) a partir de dinâmicas e processos bastante semelhantes, não é surpreendente que até hoje os “valores e princípios” desses movimentos sociais, assim como seus formatos organizativos, em muito se assemelhem. Num caso como no outro, o andar ou o caminhar remetem à ideia de um sofrimento que é vivido tendo em vista alguma espécie de redenção – não necessariamente ou apenas espiritual, podendo essa redenção, conforme o outro sentido que esse termo possui, ser também um recurso material ou conquista que traz alívio aos que sofrem. No que se refere ao caso das ocupações de terra em Pernambuco, Sigaud (2000, p.40) destaca, por exemplo, que, uma vez dentro do acampamento, o indivíduo deve legitimar perante os outros a sua pretensão a se tornar beneficiário da desapropriação. A forma adequada de “dizê-lo” tem sido o “socar-se debaixo da lona preta” e compartilhar com os demais os sofrimentos causados pela chuva, pelo calor da lona, os despejos, a alimentação precária e a incerteza em relação ao futuro. Quanto mais “virtuoso” do ponto de vista dessa ética do sofrimento — para usar aqui um termo de Max Weber —, mais legítimo será o indivíduo aos seus olhos e aos olhos dos companheiros, pois o sofrimento dá sentido à sua ação2.

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Aqui, porém, pretendo seguir outra trilha. Ao invés de privilegiar aqueles contextos e categorias vinculados a esses movimentos sociais, eu buscarei capitalizar a importância assumida pela ideia de movimento entre meus interlocutores. “Movimento social”, um caso particular de movimento: os movimentos “sociais” serão aqui encarados, assim, como uma atualização de fenômenos e dinâmicas de caráter mais geral – justamente aqueles que pretendo descrever através das categorias nativas associadas às ideias de (i)mobilidade. Lembremo-nos, desse modo, do que nos dizia logo acima Regina, no início desta seção: o “povo de Minaçu” de uma maneira geral é um “povo andado”. Quanto àqueles que se envolveram com o MAB, que ela saiba nenhum deles tinha ido até então ao Rio de Janeiro. Mas tal colocação apenas explicita que tal cidade não se encontra nos roteiros costumeiros de uma gente que certamente está acostumada a rodar no mundo – ou no trecho, como costuma-se falar por aquelas bandas. Em outros trabalhos, investi longamente nesse ponto, mostrando como tais experiências de viagem e deslocamento são não apenas relevantes nas vidas das pessoas como se prestam de maneira privilegiada para que essas vidas sejam narradas e significadas (GUEDES, 2012; 2013a; 2013b). Aqui, limito-me a destacar, novamente com a ajuda de Regina, um aspecto em particular: aquilo que chamei alhures (GUEDES, 2013a) de “ambivalência dos caminhos”. Na sua cozinha, ela e Anderson, seu filho adolescente, se entregam a uma discussão acalorada. Mãe e filho estão a comparar suas experiências, ele e ela tendo já rodado muito com o movimento de atingidos por barragens, tendo conhecido tantos lugares diferentes, lá pras bandas de Minas, Rio de Janeiro, São Paulo... Anderson se aproximara do movimento nos últimos dois ou três anos, tornado-se um jovem militante; já sua mãe tinha encerrado suas andanças com o MAB algum tempo antes.

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– Ah esse pessoal mais novo, vocês não entendem nada sobre o que é curtir... Vocês tinham que ver como era no meu tempo, aquela turma nossa toda junta, a gente rodando pra tudo que é canto, quanta coisa nós não aprontamos! Dá uma saudade: eu vejo vocês, essa meninada saindo pelo mundo, dá até uma vontade de ir junto. Como se eu pudesse... Mas quanta agitação, como tudo era movimentado naquela nossa época! A gente no ônibus, com sanfona e viola, e muita cachaça, cantando, festando muito. E ninguém nem ligava de dormir no chão. Feito um bando de porcos... Era muito bom. Aí um vinha e arrastava o colchão para um lado, em silêncio, pra que ninguém percebesse: queria era ficar mais perto de uma mulher, queria era dormir do lado dela, e sei lá mais fazer o quê! E o pessoal enchia a cara... Beber, cantar, namorar, rodar por aí, aquilo era muito bom sim! E como é bom abrir a cabeça com o movimento, com estas viagens! Ver o mundo, andar, conviver com gente diferente, fazer amizade com os outros, reconhecer os costumes diferentes... E curtir! - Mas, uai, mãe, como é que a senhora fala isso? Sem nem saber o que a gente apronta hoje em dia? Pois a gente curte muito sim, aposto até que muito mais que vocês! Se eu pudesse contar pra senhora tudo o que gente apronta...

Nesse caso, as viagens estão marcadas pelo curtir e festar, e pela experiência do que há de inusitado, incrível, movimentado ou agitado no mundo. Já nos depoimentos apresentados no início desta seção, o que está em foco são andanças repletas de dificuldades e sofrimento, marcadas por incertezas e agruras: dormir no chão frio, ser tocado pela polícia, acampar e marchar. O que pretendo destacar aqui é que não são apenas essas viagens – as que foram realizadas junto com o MAB – as que são experimentadas e descritas dessa forma. Essa oposição (alternância, sobreposição, ambivalência?) entre os sofrimentos e curtições parece caracterizar, de fato, as vivências de qualquer um que experimente o mundo ou o trecho – afastando-se de sua terra natal ou da família no percurso de caminhos e distâncias, ou habitando provisória e precariamente localidades estranhas. 120

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Foi isso o que a própria Regina experimentou quando, ainda adolescente, abandonou a cidade de Uruaçu, onde morava com a família, para tentar a sorte mais ao norte, nos garimpos no Rio Tocantins. Foi também isso que se passou com seu filho, Anderson, quando saiu de casa para estudar e trabalhar em Goiânia (abordei esse caso em particular em GUEDES, 2012);e também as andanças de Altino, marido dela e pai de Anderson, circulando do Pará a Goiás nos tempos do garimpo, podem ser lidas à luz dessa ambivalência. “A incerteza, o desconhecido, o perigo” que marcam esse afastamento do familiar, para Woortman (2009, p. 219), marcam “a superioridade dos que agora são homens com relação aos que ainda são rapazes”. E isso ocorre, em grande medida, justamente pelo aprendizado propiciado por essas dificuldades. Tais viagens e andanças são então não apenas normais e frequentes como desejadas, pelos familiares ou pelo que parte, em função de seu papel na formação da pessoa (GUEDES, 2013): “o trecho ensina” (RUMSTAIN, 2009), afinal de contas3. Ao mesmo tempo, e via aquelas alternâncias, sobreposições e ambivalências mencionadas no parágrafo anterior, o trecho aparece também como um contexto privilegiado para que as pessoas possam curtir de modo paroxístico, usufruindo de uma sociabilidade “juvenil” nitidamente contraposta às obrigações associadas ao universo familiar, elas podendo ainda vivenciar aquelas maravilhas, emoções, aventuras e experiências inusitadas que só o movimento pode propiciar (PIERSON, 1972, p. 59-63). Voltarei a tratar desse ponto mais adiante.

Na mesma direção, os interlocutores de Carneiro (2011) afirmam que “quem não caminha não conhece”. Tratando da relação intrínseca entre movimento e conhecimento, Medeiros (2011, p. 94) toma como material de trabalho essas “narrativas que privilegiam o movimento, em um conhecimento que se forja a partir do quanto se caminha”. 3

MOVIMENTO E AGITAÇÃO

Recuperando a trajetória da luta do MAB ao longo de todos esses anos, Norberto aproveita para refletir sobre os rumos que o movimento tomou.

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Pois a gente fez um monte de ocupações, e se não tivesse feito não tinha conseguido nada. É pouco o que a gente conseguiu, eu sei. Mas é alguma coisa. (...) E você acha que se a gente tivesse ficado parado a gente estava ainda com estas cestas básicas? A cesta é pouca coisa, ninguém quer viver disso, eu sei. Mas olha pra esse povo daqui, vê a quantidade de gente que fica esperando essa cesta, vê se ela não ajuda, um povo pobre desses, sem trabalho, sem nada? Olha, eu acho que em nenhuma outra barragem desse país o povo lutou tanto. Teve a luta de 2004, a luta de 2005, a de 2006... Mas em 2007, em 2008, em 2009... Nada! O povo gelou. Como assim, você não sabe o que é gelar? O povo parou, cansou, gelou – e movimento tem que estar em movimento...

Para esclarecer esse ponto, evoquemos inicialmente o que busquei mostrar em outra ocasião (GUEDES, 2014): o quão significativas foram, nas vidas de meus interlocutores, a vivência das febres que, a partir dos anos 70, trespassaram a cidade de Minaçu: febre da cassiterita, febre do ouro, febre da construção das barragens. Em todos esses casos estamos diante de situações em que uma atividade econômica particular, de modo mais ou menos súbito, fez-se presente de modo marcante na vida da cidade, para algum tempo depois desaparecer por completo (provavelmente para ressurgir num outro momento ou lugar, aí também se manifestando de maneira transitória). Cidade movimentada e animada, com suas ruas abarrotadas, o dinheiro correndo, idas e vindas de gente de todo canto, confusão, malandragem, morte e festa se misturando... Caracterizados pelos modos particulares através dos quais exacerbam a agitação e o movimento, os tempos e espaços das febres são marcados assim por certos traços que se fazem presentes de maneira relativamente independente de uma ou outra atividade produtiva específica. Em linhas muito gerais, e sem qualquer pretensão à exaustão, poderíamos evocar assim: a) o predomínio da população masculina, decorrente da chegada de forasteiros atraídos pelas oportunidades abertas pela febre; b) a presença massiva de cabarés, prostíbulos e casas de jogo

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destinados a atender tal público; c) a rápida multiplicação de toda uma gama de pequenos e médios negócios e serviços, formais e informais, “locais” ou “de fora”, destinados a oferecer bens e serviços à população afluente, ou a amparar a atividade produtiva deflagadora da febre; d) um peculiar padrão de “urbanização”, no qual construções, acampamentos e alojamentos provisórios se sobrepõem às “provisoriedades” previamente existentes de espaços e modos de vida “populares”; e) uma reorganização dos fluxos econômicos regionais mais amplos como decorrência das bruscas mudanças relativas no conjunto das mercadorias negociadas, nos padrões de oferta e demanda e na estrutura dos preços. As referências às febres ajudam aqui a explicitar os sentidos do movimento enquanto agitação ou frenesi. Mas seria preciso destacar que tal agitação ou frenesi não diz respeito apenas à movimentação econômica de certos recursos (dinheiro, máquinas, força de trabalho, mercadorias), mas igualmente a uma paixão. A agitação e o frenesi que caracterizaram a região após o anúncio da descoberta do ouro – para ficarmos no exemplo mais evidente – parecem ter tomado conta também dos que aí se encontravam. Cidade febril, corpos e corações febris, espíritos exaltados e perturbados... A febre, num caso como no outro, remete a um movimento que não é apenas súbito e temporário, mas marcado por intensidades bastante particulares, em que o processo mais amplo que contagia e movimenta as localidades reproduz-se nas pessoas, corpos e vidas que foram por ele arrastados (GUEDES, 2014). Mas se o correlato de uma cidade febril são corpos e espíritos febris, também uma cidade parada está correlacionada a vidas, coisas e pessoas paradas. Nesse sentido, e levando adiante a associação entre movimento e agitação, fica mais evidente o sentido da afirmação de Norberto de que, após alguns anos de luta, “o povo gelou”. O povo gelou, cansou. E não deixa de ser sugestivo, assim, que tal “diminuição de temperatura” seja explicitamente

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associada por alguns dos participantes do MAB de Minaçu com o fim definitivo da febre desencadeada pela construção das barragens. Digamos que, para tal caso, o que está em jogo é também uma avaliação do “clima político” para as reivindicações do movimento, ou do tempo da luta. Passada a febre, com a cidade e o movimento se esvaziando, foram sendo reduzidos também o entusiasmo, o fôlego e a energia dos atingidos. Da mesma forma que nos tempos de agitação, em que as ruas fervilhavam e tantos se deixavam arrastar por essa excitação, estamos diante de uma situação em que os movimentos que atingem a cidade replicam-se nas pessoas e coisas que aí se encontram: movimento social sem movimento, povo gelado e cansado, cidade parada... E note-se que o movimento analítico através do qual eu comparo essas diferentes velocidades e temperaturas é explicitamente inspirado pelas comparações nativas a esse mesmo respeito, bastante frequentes nas rodas de conversa. A própria secretaria do movimento de atingidos por barragens parecia estar constantemente induzindo discussões dessa ordem. Localizada naquela que foi uma das mais movimentadas esquinas da cidade, no edifício em que funcionou no passado um famoso cabaré. As confusões, a agitação e o movimento dos tempos da febre ficaram para trás, e as transformações nas funções e sentidos atribuídos àquela casa parecem ilustrar bem mudanças mais amplas, na cidade e nas vidas das pessoas. O que era um cabaré virou uma secretaria – local onde são atendidas pessoas pobres, onde elas recebem alguma ajuda, uma cesta básica, um saco de leite em pó... MOVIMENTO E LUTA

Após certos desentendimentos que não vêm ao caso evocar aqui, os garimpeiros de Minaçu optaram por “expulsar” os militantes gaúchos e levarem adiante, por si próprios, a luta dos atingidos. Se isso pode ocorrer, foi também porque os garimpeiros

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foram capazes de aprender algo do que sabiam aqueles militantes, podendo então eles próprios se arrogar a capacidade de “falar a linguagem dos movimentos sociais”. Domingos comenta: Pois eles [os militantes gaúchos] que a gente tinha direitos... E que se a gente corresse atrás, se lutasse, a gente ia conseguir. Tinha que lutar, não tinha jeito: a gente aprendeu também que pra conseguir alguma coisa com a empresa não adianta pedir. Tem que se organizar, e ir pra luta, cobrar. Ocupar, se for o caso...

Poderíamos assim sugerir que o sucesso do trabalho pedagógico empreendido pelos militantes gaúchos se assenta no fato de que os garimpeiros de Minaçu aprenderam que o movimento se faz na luta, e que essa se atualiza em formas organizadas de levar adiante “cobranças” e reivindicações. Tratando do termo luta, Comerford (1995, p. 40) mostrou que, entre os trabalhadores rurais que estudou, tal termo possuía um duplo sentido, remetendo a “diferentes redes de relações sociais e conjuntos de práticas e representações”: de um lado, há o que se refere ao “âmbito do movimento de trabalhadores ou da comunidade” (a luta coletiva via a atuação das organizações); de outro, existe o “cotidiano dos pobres em seu trabalho” (a luta do pobre em seu dia a dia, seus esforços para sobreviver). Argumento aqui que a fusão entre os dois sentidos é ela também um elemento significativo no aprendizado “político” do fazer a luta: pois as práticas e dinâmicas vinculadas aos movimentos sociais são constituídas e consolidadas também pelo empréstimo de sentidos associados à luta cotidiana através da qual “os pobres” buscam resolver essa ou aquela questão. Nada mais emblemático para a expressão dessas formas de luta cotidianas que um termo destacado na fala de Domingos acima, ele mesmo evocando a ideia de movimento: o correr atrás. Uma das interlocutoras de Borges (2003) apresenta-nos assim os imperativos regendo a vida no Recanto das Emas, uma área pobre de uma cidade-satélite de Brasília.

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A realidade de vida aqui é o dia-a-dia. Aqui é uma vida sem sonho, é realidade. Quem mora no Plano Piloto leva uma vida na sombra, acorda a hora que quer. Tá entendendo? Só na hora que quer. Não precisa nem se esforçar muito que o dinheiro está vindo na porta. Aqui é preciso correr atrás. Então, muitas coisas aconteceram nessa cidade (Borges, 2003, p. 16).

Correr atrás disso ou daquilo, ou intransitivamente (simplesmente correr atrás!), resolver e fazer as coisas acontecerem, não parar quieto, não ficar parado – esses imperativos e a urgência por eles transmitida estão a marcar também a vida dos meus interlocutores. E a eles se aplica também o que Borges (2003, p. 16) comenta a respeito do depoimento citado acima: “Vemos que não teriam acontecido coisas nessa cidade, se as pessoas não tivessem corrido atrás. O lugar Recanto das Emas não pode ser dissociado do evento diário que é correr atrás”. No que se refere à luta dos atingidos de Minaçu, porém, o correr atrás, via movimento e luta, não resultou em muita coisa – ou ao menos não naquilo que parecia justo ou necessário a essas pessoas. Depois de tanto sofrimento, passando frio e fome, sendo tocados de um canto pra outro, os garimpeiros não conseguiram nada dos seus direitos. Amarildo, um ex-garimpeiro agora desempregado, e sem saber mais o que fazer para sustentar a própria família, exprime sua insatisfação. Eu parei de lutar. Dez anos na estrada, e não consegui nada! Hoje sou só revolta. A vontade que tenho, às vezes, é de dar um pipoco em alguém. O que é dar um pipoco? É dar um tiro, moço...

Zé Ramalho já nos lembrava, na epígrafe deste artigo, o quanto é duro tanto ter que caminhar, tanto ter que correr atrás, sacrificando-se em andanças pelo país afora... Mais duro ainda, porém, é entregar-se e doar-se – como convém a qualquer um que se sacrifica – sem receber a contrapartida esperada. Amarildo

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prossegue no seu desabafo: “Tá vendo aquilo ali?” – e ele me aponta uma peça enferrujada em cima de um monte de areia, provavelmente o que restou de um motor – “Parado, parado como aquilo ali. É assim que eu estou nos últimos tempos, foi isso o que aconteceu com minha vida”. Certamente ele não está parado por preguiça, ou por não se esforçar o suficiente: está parado porque, independentemente do tanto já correu atrás, não consegue providenciar mais nada. Tantos esforços, tanto correr atrás, e ainda assim ele não consegue resolver seus problemas, não consegue arrumar um emprego, não consegue dinheiro. Ninguém parece poder ajudá-lo, seus companheiros estão na mesma situação – foi Minaçu também que parou e que é hoje uma cidade incapaz de prover o retorno para os esforços de seus habitantes. A ele não está dada a possibilidade de sair dali – aos cinquenta anos e sofrendo do estômago, com uma família grande para cuidar, como ele poderia abrir no mundo ou no trecho? Ainda no que se refere a Amarildo, a relação entre aqueles dois diferentes contextos e significados do termo luta se realiza de modo privilegiado por um dos sentidos assumidos pelo fracasso do movimento dos atingidos: pois toda aquela luta nas marchas e andanças não redundou em nada que pudesse assegurar algum sossego ou descanso para ele e seus companheiros (por exemplo, em recursos que permitiriam começar um pequeno negócio, o investimento na educação dos filhos ou o recomeço da vida em outro lugar). O estar parado, nesse sentido, implica no aparente paradoxo de que, a essa altura da vida, doente e tendo passado por tanta coisa, seus esforços não foram recompensados. E ele precisa continuar lutando e correndo atrás como se fosse um rapaz4... MOVIMENTO E AUTONOMIA

Como diversos de seus companheiros de andanças, Marilda e Gracinha não se esquecem da humilhação que é ser tocado pela polícia. Ser tocado, feito gado... Mas pior ainda, do ponto de vista

Numa outra direção, a aproximação entre as ideias de movimento e luta pode se realizar via os efeitos de conhecimento ou aprendizado produzido por ambos. Argumentei na seção 1 que o movimento – sobretudo aquele vivenciado no trecho – possui também um papel “educativo” e de formação da pessoa, sobretudo via vivência de diversidades. Tratando do caso de um sindicalista rural da zona da mata pernambucana, Figurelli (2013, s/p) nos lembra como também a luta produz conhecimento ou aprendizado, ao argumentar que “[a] entrada de Antônio na luta traz à tona um momento de entendimento que acontece aos 15 anos, no qual sai da esfera do trabalho familiar e vincula-se diretamente ao proprietário e ao trabalho obrigado que ele impunha”. Note-se que, tal como se passa no caso do trecho, a luta aqui emerge também por uma “saída” do que é “familiar”. 4

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Tratando das tensões presentes durante a construção das fábricas do Projeto Albrás-Alunorte em Barcarena, no Pará, Antonaz (1995, p. 67) destaca: “além das reclamações pela qualidade da comida ou pela falta de comida, o que gerou diversos quebra-quebras, rebeliões eclodiram por causa da exigência de ‘ter que bater cartão de ponto mil vezes’, ou ter que entrar nos caminhões com aquele curral”. 5

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de quem passou por essas experiências, é ter sofrido isso tudo sem que, no final das contas, elas tenham recebido seus direitos. A indignação dessas pessoas aumenta ainda mais ao constatarem que, após tanta luta e sofrimento, elas estão “comendo cesta básica”. E, não por acaso, é necessário passar por um curral para ter acesso a essas mercadorias. Pois na secretaria do MAB de Minaçu assim foi nomeada – como “curral” – a passagem estreita, balizada por uma cerca de madeira, onde uma vez por mês se desenrola a fila que encaminha o “beneficiário” até a bancada em que sua cesta básica lhe será entregue5. Nessa mesma direção, Comerford (1995, p. 60) sugere como a imagem do boi se presta bem para essa expressão “simultânea de resignação e indignação” que se faz presente, frequentemente, no termo luta: “Um agregado (...) em Santa Maria da Vitória, ao comentar sua relação com o proprietário, disse que ‘pobre é na canga, na canga igual boi’”. Ser tocado feito gado, ou viver como um; ter que passar por um curral ou suportar o peso e a lentidão induzidos pela canga: tais referências à atividade pecuária ganham mais sentido se lembramos que até hoje, não só em Goiás como em outras áreas do centro-norte do país, as referências ao passado boiadeiro do povo são algo como um patrimônio compartilhado, reproduzindose através de estereótipos que não deixam por isso de informar linguagens comuns. Na Minaçu de hoje, não chega assim a ser surpreendente a profusão de imagens, metáforas e expressões relacionadas ao gado e aos processos, práticas e espaços a ele associados. Mas para os nossos propósitos seria preciso especificar um pouco mais o sentido assumido por tais referências, em virtude da própria riqueza dessas imagens e termos. Via as histórias de Dona Domiciana, evoquemos então os maranhenses que chegaram ali quando aquela região era “só mato”, nos anos 50, e que vinham em busca de terras livres para criar seus próprios rebanhos. Muitos deles traziam consigo “uma cota de gado boa” recebida em função de seu trabalho como

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vaqueiro nas fazendas do que é hoje o centro-norte do Tocantins. A aquisição do gado se deu de acordo com aquele tradicional sistema de partilha que, no sertão brasileiro, começou a vigorar já no século XVII, persistindo em diversas dessas áreas até os anos 70: “em geral, depois de cada cinco anos, o vaqueiro recebia, como pagamento de seus serviços, a quarta parte das crias. Assim, depois de algum tempo, podia estabelecer-se por conta própria” (VELHO, 1981, p. 22-23). Na época em que estive em Minaçu, começava a ser discutida a implantação de alguns projetos de geração de renda, destinados também à mitigação das dificuldades enfrentadas pelos atingidos. Por inúmeras vezes ouvi críticas relativas às atividades a serem desenvolvidas: uma horta comunitária e uma cooperativa de pesca, “coisas que não levam ninguém pra frente”. Com frequência as sugestões das pessoas atingidas evocavam a criação de gado: “Se eles dessem para a gente um rebanho, e a gente transportasse bodes... Ou então, quem sabe, criar carneiros!”. Ao que parece, mesmo que a maior parte delas não tenha se dedicado a essas atividades no seu passado, lançaram mão de memórias de familiares ou conhecidos que o fizeram, e permanecem as encarando como alternativas particularmente interessantes para os pequenos que, não dispondo mais do garimpo, precisariam tocar seu negócio próprio para viver com alguma dignidade. Tais afirmações nos ajudam igualmente a entender alguns dos sentidos atribuídos por meus interlocutores ao trabalho no garimpo; assim como ajudam a entender o quão humilhante era para eles, quando os conheci, viver de ajuda, dependendo dos outros ou “comendo cesta básica”. Pois tanto o garimpo quanto o sistema de partilha abrem (ou abriam) possibilidades concretas para que, após algum tempo de trabalho para um patrão, uma pessoa se torne (ou se tornasse) autônoma – dona de seu “próprio negócio”. As “enormes distâncias sociais” (RIBEIRO, 1998, p. 143) que separam patrões e empregados nas fazendas e plantações não se fazem tão significativas em tais atividades, implicando

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Não me alongarei aqui nesse ponto, já discutido por uma vasta literatura. Sobre os sentidos do garimpo pensado como negócio próprio, ver Póvoa Neto (1998, p. 152-3) e Cleary (1990); sobre a proximidade entre garimpo e gado, ver Geffray (2007, p. 153); sobre a hierarquia e a patronagem “suave” no garimpo, ver Cleary (1990, p. 100101); sobre a autonomia no sistema de partilha ver, além da já citada Andriolli (2011), Furtado (1971, p. 59), Freyre (1973, p. LIX) e Ribeiro (1998, p. 139-143); sobre as “regalias” do vaqueiro, ver Ribeiro (1998, p. 43); e as do garimpeiro, ver (GASPAR, 1990, p. 105). 6

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igualmente numa relação menos hierarquizada ou exploratória, uma maior “generosidade” dos primeiros dando a tônica de sua relação com os segundos. São inúmeras as discussões na literatura a esse respeito6. A título de ilustração e tratando especificamente dos antigos vaqueiros do Norte de Minas Gerais, Andriolli (2011, p. 101) destaca que: O vaqueiro, muito embora agregado, diferenciava-se, assim, daquele agregado que trabalhava a terra, pois além de acumular bens, não tinha seu trabalho vinculado ao cabo da enxada. O fato de campear gado ao invés de trabalhar preso à terra proporcionava ao vaqueiro uma sensação de liberdade. Sentia-se, sobretudo, independente do patrão por se tornar dono de bens, por poder acumular.

Parece-me que é também em virtude dessas imagens que aquelas comparações que as pessoas fazem a respeito de si próprias e do gado ganham sentido. E se são imagens idealizadas ou não, pouca diferença isso faz para meu argumento. O que me interessa é justamente como a “boa vida” é apresentada aí. A inversão de papéis, com as pessoas se identificando ao gado e não aos vaqueiros, permitiria assim dramatizar de forma ainda mais contundente a situação difícil em que se encontram: “vida de gado” seria também isso. Já no que se refere ao garimpo, Cleary (1990, p. 209) discute algumas das implicações da “menor distância social” associando patrões e empregados, destacando como a relativa autonomia e a liberdade de ação dos segundos eram fundamentais para “a organização social da garimpagem e para a identidade social de muitos garimpeiros”. Esse autor (1990, p. 101) estabelece, assim, um nítido contraponto entre o garimpo e as “outras atividades extrativas e agrícolas hierarquicamente estruturadas da Amazônia”:

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O diarista e o percentista [no garimpo] podem ir e vir como lhes convier, e nunca devem nada ao dono se nenhum ouro for extraído. A não ser que seja especificamente combinado de antemão, eles não estão engajados por um período definido e podem sair a qualquer momento, recebendo o que lhe é devido. Esta independência do dono e liberdade de ação do trabalhador são os traços essenciais da organização do garimpo (...). Pode haver uma hierarquia ocupacional, mas há também no sistema uma quantidade razoável de mobilidade ascendente e, o que é mais importante, as pessoas podem se deslocar para outra região ou optar por saírem a qualquer momento. Do ponto de vista dos trabalhadores, a garimpagem tem muito a oferecer. Apesar da natureza cansativa do trabalho, e da falta de segurança, trabalhar na corrida do ouro oferece autonomia e até mesmo oportunidades. Esta autonomia é central na vida econômica e nas relações sociais da corrida do ouro (CLEARY, 1990, p. 100-101).

Uma expressão particular da autonomia associada ao “ser patrão de si mesmo” remete ao domínio do próprio tempo. Jandir me dizia: “o valor que o cara dá no garimpo tá nisso. Ele diz: ‘hoje eu vou pra cidade gastar com as primas’. Sem hora pra chegar, sem hora de voltar...”. É justamente a possibilidade desse ir e vir relativamente autônomo o que me interessa nesse ponto, tal liberdade de movimento estando intrinsecamente vinculada a certas atividades produtivas específicas que também (ou sobretudo) por isso são tão valorizadas. Sem ter maiores condições de aprofundá-la aqui, destaco apenas que a importância assumida por essa questão pode ser explicitada pela menção àquelas situações em que, ao contrário do que se passa no garimpo, autonomia, mobilidade ou liberdade são cerceadas de modo marcante. Não por acaso, nos debates dos anos 80 a respeito do cativeiro, ele estava constantemente associado às

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Para Garcia Jr. (1983, p. 77), o cativeiro designa, entre outras coisas, “uma posição de disponibilidade completa do morador e de sua família, de quem, a qualquer momento, o usineiro ou senhor do engenho pode exigir os serviços”. Já Leite Lopes (1979, p. 48) destaca: “O que torna o engenho um cativeiro é o fato de que, vivendo nele, o trabalhador está sempre à disposição do proprietário, é sujeito a ele e portanto obrigado a trabalhar no serviço da cana a qualquer momento e em quaisquer condições, independentemente de sua vontade. (...) O cativeiro, para os trabalhadores, consiste não na obrigação de trabalhar, mas no fato de fazê-lo doente, cansado, à noite e os seis dias de semana”. Por outro lado, tratando especificamente do garimpo, no vale do Tapajós, Gaspar (1990, p. 53) afirma que: “esses homens continuaram a falar com os vocábulos que a primeira experiência de vida e de trabalho lhes deu, mas com uma visão diferente, onde o recorte principal se faz no ‘antes’ e no ‘depois’ do garimpo. O ‘antes’ é o cativeiro, a insegurança, a miséria; o ‘depois’ é o ouro, o dinheiro em espécie, liberdade, melhores dias para a família, a esperança de uma grota rica”. 7

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situações em que uma pessoa perde “o controle sobre a [sua] vida, o [seu] trabalho e o [seu] tempo” (VELHO, 2007, p. 24)7 . MOVIMENTO E EVOLUÇÃO

Prosseguindo a discussão do item anterior, consideremos a maneira através da qual Gumercindo explicitava sua indignação com os rumos que o MAB de Minaçu havia tomado. Os direitos dos garimpeiros não haviam sido pagos, e as perspectivas de que isso fosse acontecer eram cada vez menores. Nos projetos para geração de renda através da horta e da pesca ele não acreditava. Só restava ao movimento distribuir as cestas, e aquilo era uma coisa complicada e perigosa. – Ah, isso é cativeiro. Porque aí eu lembro aquela história... Quando a Princesa Isabel libertou os escravos da escravidão, tinha aquelas pessoas que diziam: ‘O que será de mim agora? Vou morrer de fome?’ Porque estas pessoas libertas não sabiam fazer nada... Se for desse jeito, aqui no movimento as coisas estão caminhando no mesmo caminho. Porque do jeito que está, a tendência é de ficarem as pessoas mais pobres ainda. Porque se você envolve numa entidade em que você não tem salário, não tem ajuda de custo, e você precisa de comer e beber e calçar e educar seu fi lho e manter a sua saúde em dia, sem ganhar durante tantos anos, a tendência é você acabar o que você já tem. Você acabou o que tem, não construiu mais nada, acostumou aqui só de comer cesta básica, o dia que você sair daqui perdeu toda a disposição que você tinha. – Além de estar mais velho, cansado e sem ânimo... [acrescentou uma senhora que ouvia a nossa conversa]. – Isso mesmo...

Amarildo, já velho conhecido do leitor, prossegue com sua reflexão: Pois Minaçu vai é virar, se é que já não virou, uma cidade de aposentado. Os jovens saindo, porque tem pouco emprego

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aqui. E aí a gente fica na dependência das aposentadorias para o dinheiro girar. O Bolsa-Família? Ah, tem sim, dá uma ajuda, mas é pouco dinheiro, é menos que estas aposentadorias...

Cidade de aposentado: de fato, e em especial no que se refere ao sexo masculino, fica evidente a existência de um grande número de pessoas mais velhas na cidade. “Olha por essas ruas, olha a quantidade de velhos, os jovens foram todos embora!”. Na secretaria do MAB, isso fica ainda mais explícito. E mesmo entre aqueles que não são tão velhos assim – aqueles homens com seus 30 ou 40 anos –- predominam os aposentados por invalidez: gente doente, o corpo já combalido pelos serviços grosseiros ou brutos executados mundo afora... Mas a formulação de Amarildo se presta a algo mais do que a uma referência aos idosos e inválidos ou à questão da dependência dos repasses do governo para que o dinheiro gire na cidade. O que está em jogo aqui é o problema de uma cidade onde todos vivem de ajuda, e dependem dessa ajuda para viver; onde todos estão parados: velhas e velhos, doentes, desempregados, os que não vão conseguir emprego, as mães solteiras... Mas se a ajuda é tão necessária nessas circunstâncias, e se de fato o MAB ajuda muito com suas cestas, qual seria o problema de viver de ajuda? Por que para Gumercindo, no depoimento acima, isso remetia a um cativeiro? “As cestas são boas, ajudam sim, e muito! Mas não é certo ficar dependendo delas”. Inflamado e impaciente, Rui me dizia: “Ah, o governo tem que ser como um pai!”. Seguindo sua linha de raciocínio, o governo deveria ajudar, e com isso tornar possível que o povo se encontre em condições de evoluir por si mesmo – não é isso o que um pai deve fazer para um filho? Ele mesmo, Rui, havia dilapidado suas poucas economias restantes ajudando seu filho, pagando os gastos que teve para tirar sua carteira de motorista. Pois agora o menino não só trabalha num moto-táxi como também é motorista de um médico da cidade. Assim e idealmente, a ajuda não se opõe ou nega o esforço próprio ou a luta – antes se compõe com eles.

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A ajuda aparece então como uma condição necessária – mas certamente não suficiente – para que uma pessoa se ponha em movimento. Nesse sentido, o que está em jogo é o próprio esforço comparativo nativo a respeito de diferentes modalidades de patronagem, se com esse termo entendemos, de forma ampla, o conjunto de valores e práticas permeando as relações de reciprocidade explicitamente hierárquicas. Aquilo que o patrão “governo” ou o patrão “senhor de escravos” oferece está, dessa forma, sendo contraposto às possibilidades associadas a outros patrões – aqueles discutidos na seção anterior, presentes no garimpo ou no sistema de partilha na pecuária. Essa comparação entre os diferentes patrões pode ser explorada à luz daquele problema que Velho (2007, p. 117-118) – tratando especificamente da relação das pessoas com o “Patrão” mor (Deus) – coloca: “Como compatibilizar o óbvio desejo de autonomia com o não menos óbvio desejo de dependência – ambos expressos, no que diz respeito ao sistema de patronagem, na oposição do ‘ser patrão de si mesmo’ versus ‘a busca de um bom patrão’?”. A solução ou resposta seria, nesse nível da análise, bastante simples: um bom patrão é o que torna possível a alguém – num horizonte mais ou menos próximo – tornar-se patrão de si mesmo (tal como ocorre, idealmente, no garimpo ou sistema de partilha). Ficam claros, assim, os limites e perigos relacionados a certas formas de ajuda. Pois o governo pode se assemelhar a um senhor de escravo, que fornece ajuda na forma de comida – como Gumercindo nos lembrava acima – mas impede que seus subjugados corram atrás, construam, consigam algo de próprio. A ajuda é mesmo necessária, ela “ajuda”. Mas há sempre a possibilidade de ela ser uma forma de “cativar” (VELHO, 2007), de prender, de laçar, de cercear a liberdade, de impedir que as pessoas avancem – construindo algo de próprio, ou tornando-se patrões de si mesmos. Além disso, as pessoas escravizadas, cativas, dependentes das migalhas que lhes são oferecidas como ajuda são

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pessoas que desaprenderam, perderam ou não desenvolveram sua capacidade de andar com os próprios pés. Assim, o que está em primeiro plano nessa discussão é justamente o movimento associado ao que poderíamos chamar, grosseiramente, de “mobilidade social” – a evolução, o progresso, as possibilidades de melhorar na vida e a vida, de ir pra frente, de avançar. COMENTÁRIOS FINAIS

Busquei tratar, neste artigo, de 5 “eixos” em torno dos quais os movimentos, do ponto de vista dos meus interlocutores, podem ser vividos e pensados: a) o movimento como circulação, como deslocamento espacial, como viagem ou andança, remetendo às experiências de quem, longe de casa, experimenta o trecho ou o mundo; b) o movimento como agitação, como animação, como frenesi, como febre; c) o movimento como esforço ou luta, emblemático da dura e onipresente realidade do pobre que tem sempre que correr atrás; d) o movimento como autonomia, associada à liberdade de quem domina o próprio corpo, a própria vida, o próprio tempo; e) este último aspecto estando associado intimamente ao movimento como evolução, progresso, avanço, melhora de vida, “mobilidade social”8. Tais eixos podem ser apreendidos também pela referência àquilo que, em cada um deles, tensiona ou se contrapõe à ideia de movimento: a) a vivência da casa e da família (GUEDES, 2012), ou do sossego ou descanso experimentados após as jornadas e andanças; b) o que é gelado, desanimado, morto, sem vida; ou, por outro lado, calmo ou sossegado; c) o não poder andar com as próprias pernas d) o estar ou cativo ou preso; e) o permanecer parado. A definição das situações aqui apresentadas foi orientada também pelo esforço de tornar mais evidentes e nítidos, analiticamente, cada um desses eixos, realçando a variedade de dimensões e sentidos associados a eles. Por outro lado, o esforço de análise levado a cabo pelo analista (sic) deve ser balizado

Por razões de espaço, deixei de lado aqui outro eixo possível para se pensar a questão da mobilidade, evocando a questão da “mobilidade ocupacional”. Explorei esse ponto em Guedes (2013b), a partir das vicissitudes e alternâncias que podem ser acionadas pela noção de peão. 8

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por aquelas “sínteses” nativas em que tais distinções tornamse indiscerníveis, ou não tão facilmente apreensíveis assim. Um fragmento etnográfico apresentado por Dawsey (2007) – mais uma vez colocando em questão nossas imagens “bovinas”, no contexto do que esse autor chama de “teatro dos boias-frias” – nos interessa aqui justamente pelo que poderíamos chamar de sua “concisão poética”. Nessas sínteses, poderíamos mesmo sugerir que não estamos tão distantes de algo como um fato social total: encarnadas nas experiências individuais, essas múltiplas mobilidades “sintetizadas” articulam sincronicamente domínios diversos da vida social ao mesmo tempo em que integram diferentes momentos das trajetórias pessoais e familiares (cf. LÉVI-STRAUSS, 1974, p. 14-15). Dawsey (2007, p. 543) afirma assim que: Ao passar por um caminhão de transporte de gado, um dos rapazes [um boia-fria] levanta-se e, fazendo um gracejo, grita: “Ê boi! Boia-fria! Sou boy”.

Boias-frias sendo transportados nesses veículos, originariamente destinados ao gado, ou substituídos por este último no campo, em virtude da transformação da “terra de trabalho” em áreas destinadas à pecuária (DAWSEY, 2007, p. 544). Também aqui estamos diante daquelas situações em que “a vida de gado” sinaliza agruras e dificuldades, expressas também nesses modos de deslocamento dos boias-frias que, no seu “desenraizamento”, não deixam de se aproximar de meus interlocutores com suas experiências de trabalho itinerante ou móvel, no trecho. Mas também aqui estamos diante de movimentos menos árduos: é o que sinaliza a referência ao “boy”. Dawsey (2007, p. 544) interpreta a menção a esse termo como vinculada à “realização de um desejo proibido (...) ser dono de um carro (...) [tal como os] filhinhos de papai” – o que se vincularia ao fato da cana cortada por tais trabalhadores estar sendo destinada à produção de álcool automotivo. Tudo o

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que foi dito aqui autoriza-nos, por outro lado, a esboçar uma interpretação alternativa. Comerford (1995, p. 53) havia destacado, a respeito da luta, como ela “deve ser empreendida visando resguardar o que resta ao pobre, sua dignidade”. Tal noção comportaria, ao mesmo tempo, a ideia de resignação – “uma vez que a vida do pobre é mesmo assim, sofrida” – como também “uma sugestão de indignação potencial”. Já para Zé Ramalho, a “vida de gado” parecia encerrar aquela virtualidade de, via os mesmos movimentos, produzir um povo que é simultaneamente “marcado” e “feliz”. Isso poderia ser articulado àquela inversão nas posições do vaqueiro e do gado mencionada na seção anterior. Já no que se refere a meus interlocutores, tal inversão se manifestaria na “queda” de um passado (mítico, que seja) de autonomia vaqueira ou garimpeira para um presente em que é preciso encarar um curral para ter acesso à comida. Nada impede, porém, a “sincronização” de tal oposição, o que nos faria encarar os polos em questão à luz de sua alternância ou reversibilidade possíveis. Nessa direção, não estaríamos muito longe daquela “ambivalência dos caminhos” que, como argumentei no início do artigo, caracteriza a maneira como os deslocamentos no trecho são vivenciados: por um lado, como fontes de curtição, festa, maravilhas; por outro, produzindo sofrimento e aprendizado. É a complexa composição entre esses elementos “inconciliáveis” o que a fórmula do rapaz boia-fria parece também expressar. Nesse sentido, o boy não seria tanto o “filhinho de papai” – mas antes o cowboy. Que há de fato aproximações possíveis entre ambos, isso é inegável: mas tal aproximação passa menos pela referência a essa ou aquela “condição social” (“filhinho de papai”) que às velocidades disponibilizadas a essas figuras. No norte rural de Minas Gerais, é comum referirse às motocicletas como “cavalos de fogo”. O desejo pelo que tais máquinas possibilitam – movimento como deslocamento, movimento como agitação – parece-nos assim anterior aos bens

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de consumo (carro, moto) que poderiam concretizá-lo. Ainda que marcado, tocado nos currais, e transportado feito gado, o boia-fria ainda crê lhe restar alguns dos movimentos definidores do vaqueiro (e do cowboy): os seus “don-juanismos”, por exemplo – tais quais aqueles de que usufruem os garimpeiros e os peões do trecho, todos eles notórios conquistadores e amantes (GUEDES, 2013a): “Ummmm. Ó, eu... uma mão no volante e outra aqui, ó... a menina do lado, assim, ó’” (DAWSEY, 2007, p. 544). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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________ ANDRÉ DUMANS GUEDES – Doutor em Antropologia Social, Pós-Doutorando Faperj no IPPUR/UFRJ.

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