André Lira - Música, língua viva do silêncio

June 9, 2017 | Autor: André Lira | Categoria: Music, Musicology, Poetics, Poética
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Música, língua viva do silêncio

André Lira


"O pássaro luta para sair do ovo. O ovo é o mundo. Aquele que nasce deve
destruir um mundo".
- Hermann Hesse, Demian




Não escassos são os caminhos a se percorrer para pensar a música -
muito embora já sejam musicais, enquanto caminhos. Isso torna encontrar a
música fácil e difícil, assim como tudo aquilo em que se planta o homem e
seu pensar: Linguagem, Morte, Paixão, entre outros. Porém, essa ambigüidade
de encontro só torna mais difícil crer em conceitos universais que dêem
conta dessas questões. Isso ocorre exatamente porque a abstração se torna
esquizofrênica, já que não se consegue distinguir o objeto de análise de
quem analisa. Por isso, quando tratamos de suas formas e estruturas estamos
também falando de música – falamos de uma música.
Mas por que pensá-la quando tudo o mais nos compele a conhecê-la? Como
pisamos então em solo firme, por que alçar vôo e pensar para além dessas
categorias, ou melhor, pensar o de onde dessas categorias? Sem música,
ironicamente, não haveria uma estrutura proposicional engajada para dizer o
que ela é e então ser conhecida; contudo, continua em sua vigência, pois é
um conhecer humano proveniente do coração – é saber. Diferentemente de
procurar o que a música é em seu fundamento, vamos tentar buscar, num
sempre vislumbre de pensamento, as maneiras pelas quais a música se permite
ser vislumbrada. Uma música para algo quer dizer um empenho, à luz da
sacralidade, para se saber, conhecer, ler algo em sua intimidade – e
conseqüentemente também se deixar ser conhecido e alcançado. Essa
sacralidade diz, em sua simplicidade, da relação cúmplice entre o homem e o
além-homem, ou, no caso, aquilo que sabe ou busca saber.


O conto "Cantiga de Esponsais", de Machado de Assis, esse grande poeta-
pensador da língua portuguesa, pode nos dizer muito sobre essa música
ontofânica a que nos referimos. Mestre Romão é regente de uma orquestra de
uma igreja, um senhor de idade, apoiado numa bengala, benquisto em toda a
comunidade. Geralmente possuía um tom taciturno e tristonho, mas quando
regia "a vida derramava-se por todo o corpo (...) o olhar acendia-se, o
riso iluminava-se: era outro"[1]. Ele se entregava e se alimentava de todo
o vigor e espetáculo da sua regência, de música, de vida. Poesia é vida, é
corporal: é dança, que pinta um quadro, e celebrando uma música também é
teatral...
Mas Mestre Romão possuía aquele tom grave. Faltava-lhe algo. Em sua
casa, "alguns papéis de música; nenhuma dele...". É que lhe faltava um
cuidado mais radical da música. "Se Mestre Romão pudesse seria um grande
compositor (...) a causa da melancolia de Mestre Romão era não poder
compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia". Traduzir é dispor,
propor, verter, profetizar, conduzir além. Pois não conseguia atingir a
proficiência mais profunda do poeta como tradutor, criador de mundo,
profeta. "Trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias
novas e originais (...)", mas não lograva lhes dar sentido, lhes
mundificar. Contudo, dominava a técnica e a executava com perfeição.
Curiosamente, no período em que se casou, a inspiração lhe bate às
portas, e rabisca um canto esponsalício, que não só não é terminado, mas
que termina por frustrá-lo ainda mais pela morte alguns anos depois da
mulher.
Eventualmente, cai enfermo. O remédio do boticário não consegue curá-
lo, e perante a morte, o Mestre resgata o canto inacabado das gavetas, e se
obstina a concluí-la, para deixar algum legado. Perante da morte, ele busca
ser vida, se elevar na memorialização da obra. Sua existência, dedicada à
música, é uma de paixão. É essa paixão que buscará para conjugar sua obra
inacabada: põe o cravo para perto do quintal e insistentemente busca a sua
melodia no cravo. Ele avista um casal de namorados pela janela, com os
braços por cima dos ombros, e volta a tentar compor no instrumento. Faz ele
de tudo para se abrir para a "inspiração": "voltava ao princípio, repetia
as notas, buscava reaver um retalho da sensação extinta, lembrava-se da
mulher (...)". Contudo, em sua ansiedade de compor, Mestre Romão estava
atropelando as exigências da canção, estava se privando de escutá-la.
Estava operando em outro tempo senão o necessário à obra. Porém, um
acontecimento irá conduzi-lo aonde desejava chegar, irá impor seu tempo,
isto é, seu ritmo, música: a moça do casal, "embebida no olhar do marido,
começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes
cantada nem sabida (...) justamente a que Mestre Romão procurara durante
anos sem achar nunca. [grifo nosso]". Assim, como havia encontrado sua obra
final, embora frustrado por não ter sido ele quem a compôs, Mestre Romão
expira, morre no mesmo dia, pois sua busca terminara.
O princípio da identidade está no outro, no diferente. É que é o casal
de namorados que dá a Romão o que buscava, algo mais próprio, mais seu: "Em
1880, talvez se toque isto, e se conte que um Mestre Romão..."; algo que o
próprio Mestre não alcançou. O casal é a oferta da vida, é o acaso, a
profundidade e proveniência da Música em primeiro lugar na vida, numa vida
vigente, que é dita na palavra grega zoé. Não haveria técnica ou estrutura
que lhe propiciasse a adivinhação dessa melodia. É que o saber de fato está
na escala do sabor, do pensar, da experiência; não somente, portanto, da
racionalidade. Não há poeta que sobreponha a prática poética à leitura de
um manual de técnicas, prática esta que angustia o regente Romão, por saber
ele exatamente da incompletude do seu saber musical.
A paixão que procurava em sua obra final Mestre Romão encontra num
casal apaixonado. Ele lembra ao Mestre de seu próprio tempo de apaixonado,
algo que a pura lembrança não poderia abastecer e compor uma obra: era
preciso que a Memória se desse na experiência de ver e ouvir o casal
apaixonado, o que também significava ver e ouvir a sua própria paixão: a
paixão de si e a paixão do outro, numa melodia reunidas. É daí que o
caminho para a felicidade do homem se edifica na alegria de cantar. Não só
o esforço de reproduzir uma música do rádio, mas exatamente fazer o que o
rádio não faz e nem poderia: ouvir sua própria música e deixá-la surgir e
brotar.


A própria música, ao se constituir como um espólio divino e ad-
divinhador da guerra entre silêncio e dito, é curiosamente também o que
delineia a possibilidade humana de experienciá-los: silêncio e dito. Música
é também pro-ducere, produzir: nos conduz para algo que não nós mesmos, e
também assim conduzimos. Conduzir é poeticamente obrar, dar as mãos
calejadas e ainda finas ao silêncio, ou melhor, à música, e fazer dela sua
companheira: reconhecer sua importância e por ela repartir o pão da vida e
da existência: canto, diálogo.
O canto haure e irrompe do monte, da Terra. Ele desafia um mundo, como
uma lâmina cortante, mas ao mesmo tempo o faz mundo, pelo desafio. E ainda
é um método, lâmina pela qual o homem faz a travessia (ou tenta). Mas essa
lâmina não é uma espada, reta, rígida e uniforme, ela é mais como um
chicote, uma labareda, que afaga queimando. E não pode fazer isso se já não
for uma linguagem essencial, a nortear qualquer anseio nosso de existir. A
graça da linguagem-música é a graça venenosa de sempre oferecer um sentido
entre muitos: é o lugar do poético.


Só se consegue viver musicalmente. A radicalidade da vivência irá
depender diretamente da escuta das desenvolturas da música. Um antigo xamã
animista tinha seu totem animal, um lobo, cervo ou urso: dele tirava suas
forças místicas de acessar o mundo e re-conhecê-lo. E sabia que não
deixaria de ver seu espírito guia se olhasse para os lados ou os olhos
fechasse: ele era o guia, a força propulsora que melodicamente constituía
tanto seu Ser como a capacidade de agir e inter-agir no mundo. Assim se
moviam, também, sociedades inteiras. Entrincheira-se no mito algo que,
então, todos sabiam: mito é essencialmente música. É linguagem, é
princípio, é mousiké [das Moûsai]. Ouvir e celebrar a música em sua
dinâmica em quanto phýsis se plenificava quando o sagrado aedo dava a todos
essa possibilidade, ao resgatar a música como método, caminho exatamente
para experienciar os mundos e seus corpos a bailarem: o espetáculo da vida.

Frén, em grego, significa o bom entendimento, o com-cordar, ligado ao
coração, mas também à mente e à inteligência. É porque se trata de um
pensar integral e dialógico, como todo pensar que radica na música. É por
isso que o entendimento lógico e metodológico de música é esquizofrênico:
ele entende com a mente e a racionalidade, pois se confunde na incompletude
e contraditoriedade, ao invés de situar aí o lugar, o espaço da música. O
entendimento humano concretiza a medida de cada homem, sua música, seu
ritmo, e toda a possibilidade de diálogo melódico que funda um ouvir
experienciador. Mais uma vez, o caminhar é musical e metódico.


Muito se diz sobre um dos méritos do cinema ser poder dar uma trilha
sonora aos fatos, aos acontecimentos das pessoas apresentadas. Mas será que
isso não existe fora da tela de fato? Claro, seria ingênuo imaginar um
grande diretor dirigindo nossas vidas e tocando músicas para elas conforme
achar mais cabível. Ora, só porque em certas situações não ouvimos a música
como conhecemos[2], não quer dizer que não se manifeste. Além disso, a
música não é só o que se manifesta: está para além do fenômeno físico. Pelo
contrário: só pode ser vista objetivamente por aprovação e cumplicidade do
que não se manifesta, ou não está se manifestando.
Com isso se resgata o silêncio da música. Sua vivacidade no silêncio.
Música é princípio. Principia nossas vidas, desde harmonicamente pela
canção tocada no rádio para nos acordarmos até nossa própria capacidade de
nos constituirmos como seres e co-respondermos a sua dinâmica como
princípio motor: verdade, alétheia. Tudo vibra, o vazio não vibra; ele está
a vibrar assim como acolher o que já vibrou e dar a possibilidade àquilo
que vibra sua possibilidade de ser e seus modos de ser.
Tudo e vazio, talvez o exemplo mais extremo de "coisas que não existam
na realidade", mas a que temos acesso e, portanto, existem. Mas esse acesso
só se dá pela arte, ou ainda, pela música. E, curioso o suficiente, podemos
experienciar o tudo pelo silêncio e o vazio pelo dito: são maneiras pelas
quais a música permite esse conhecimento, se doando ora de uma forma, ora
de outra. Trata-se tão-somente da dinâmica da poíesis, ou sua
originariedade[3].
A todo o momento temos nossa trilha sonora. Isso que chamamos de
trilha sonora é, de fato, nossa vida: nosso caminhar não pode o ser senão
for sonoro. Porém, não se reduz a ele. Até mesmo entendido no seu sentido
mais comum, o de andar com os pés, é também e antes de tudo música. Não é o
encadeamento de sons, mas antes um projetar. Não andamos porque "empurramos
o chão para trás". Isso já é em si um desdobramento[4] do andar. Andamos
porque somos também Terra.
Somos talvez seu mais ambicioso projeto. Também essa ambição se faz
presente no andar. No andar vemos o grande salto. Afirmamos nossas raízes-
pés teluricamente ao separar uma delas da Terra – um novo passo é iminente.
O pé finca-se na Terra silenciosa, e o fincar já é um estrondoso passo.
Forma-se a dimensão do caminho. Cumprindo o projeto, também dá um novo
passo com o pé que ficou, agora o pé que vai, e o que tinha ido agora
precisa ficar. E se não estiver satisfeito, a música continua por sua vida
inteira, até na memória dos homens, em si já melodias incompletas.
Homens são melódicos. Eles reúnem no dizer e enquanto eles próprios um
dizer. E um homem que busca o humano, a travessia, é um que busca a sua
própria música, a música de seus semelhantes, de tudo. Gostamos de uma
música tocada quando ela nos diz algo. Esse dizer não é comunicativo. A
música não tem "substância" para ser comunicada – nem harmonia, nem
estrutura, nem mensagem. Nem poderíamos ao menos supor que fosse uma coisa
e, em segundo lugar, feita e já dada. O lugar, ou o originário da música é
sua proveniência da experiência. Do tempo e do momento. Do que tempo e
momento prenunciam: método. Método de cada um, da exigência de cada Ser. E
quando gostamos de uma música tocada quer dizer que ela dialoga com nossa
sinfonia, quando se convida para dentro de nós e não temos como resistir:
seria niilista negar nossa própria sinfonia. Então já é tarde demais, nós e
a música nos tornamos um só, mas ainda dois diferentes. É o princípio da
sintonia, da sinfonia.
A música perdeu seu revestimento sagrado e de pensamento aos olhos dos
homens, apreendida física e conceitualmente até por seus reprodutores.
Reprodutores, pois se somente dessa forma pensarem a música, terão
destituído de suas "criações" seu vigor, isto é, sua força como presença
apaixonada (essa perda nota-se facilmente nas obras musicais) e portanto
sua possibilidade de seu operar mundificante enquanto obra-de-arte, ao
abrir mão do poético. Ora, o ato de plantar não é só um conjunto de
técnicas de plantio. A música planta quando o homem é capaz de ouvir e co-
responder àquela música com a sua própria, através dos seus feitos, também
musicais. Cosmogônica e teogonicamente, assim se semeiam e crescem mundos,
obras, plantas, homens e canções no amplo seio da Terra, do Vazio, da
Fortuna.




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[1] ASSIS, Machado de. "Cantiga de Esponsais". In: Contos. São Paulo:
Editora Ática, 1998, assim como as demais citações.
[2] "Arte e ciência de combinar os sons de modo agradável ao ouvido."
DICIONÁRIO AURÉLIO eletrônico, século XXI. Rio de Janeiro: Nova Fronteira e
Lexicon Informática, 1999, CD-rom, versão 3.0.
[3] Aqui lembramos o primeiro parágrafo de Heidegger em A Origem da Obra de
Arte, na valiosíssima tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio
de Castro: "Originário significa aqui aquilo de onde e através do que algo
é o que ele é e como ele é. A isto o que algo é, como ele é, chamamos sua
essência".
[4] Talvez não seja a palavra apropriada, porque o andar, enquanto música,
dobra e desdobra. Andar-caminhar é dobrar e compôr o espaço-tempo do
caminho e, o superando, trazê-lo para seu horizonte: caminhar gera caminho.
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