Angela Davis, o panóptico, as raças

July 3, 2017 | Autor: Silvio Carneiro | Categoria: Michel Foucault, Punishment and Prisons, Angela Davis
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ANGELA DAVIS, O PANÓPTICO E AS RAÇAS Silvio Ricardo Gomes Carneiro Doutor em Filosofia da FFLCH/USP e membro-pesquisador do LATESFIP/USP [email protected]

“Portanto, se há um desafio político global em torno da prisão, este não é saber se ela será não corretiva; se os juízes, os psiquiatras, os sociólogos exercerão nela mais poder que os administradores e os guardas; na verdade, ele está na alternativa prisão ou algo diferente da prisão” Foucault, Vigiar e Punir

Introdução Inicio de onde termina Vigiar e punir, para pensarmos o efeito deste livro 40 anos depois. Pensar, sobretudo, a alternativa final e seus debates. Gostaria de provocar uma reflexão sobre a alternativa final: entre a prisão ou algo que lhe seja diferente, encontrando no discurso contemporâneo do desencarceramento, quando Angela Davis considera a importância de realmente pensarmos a dificuldade de pensarmos uma sociedade sem prisões. À luz contemporânea, a busca de alternativas se faz urgente, uma vez que, lembrava Angela Davis já em 2003, mais do que nove milhões de pessoas no mundo todo habitam prisões, celas, casas de reabilitação de jovens, centros de detenção de imigrantes. Interessar-se por esta população ultrapassa qualquer razoabilidade humanitária, trata-se de compreender os mecanismos normativos de nossa própria sociedade. No entanto, considerar o discurso de Angela Davis como consequência de um discurso foucaltiano 40 anos depois merece algumas precauções. Primeiramente, é preciso dizer que a militante tem fortes bases marxistas, compreendendo em grande medida os efeitos ideológicos do capitalismo na formação contemporânea das prisões. Modelo crítico que Foucault leva à dúvida, quando percebe que, muito embora no regime prisional o corpo esteja ligado à sua relação econômica, isso só é possível se ele está preso em um sistema de sujeição, a qual não é obtida “só pelos instrumentos da violência e da

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ideologia”.1 Foucault atenta para a prisão como um espaço em que se estabelece uma rede de poder-saber propício aos dispositivos da tecnologia do poder do corpo; uma “instrumentação multiforme” em que poder e saber produzem processos de subjetivação. De modo que, não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem que determinam as formas e os campos possíveis de conhecimento. 2

Na crítica à ideologia estão implicados os limites de uma fé cega na atividade do sujeito, bloqueio para a compreensão de uma série de efeitos e de conflitos que se inscrevem nas prisões: os trabalhadores versus os presos quanto aos processos de produção e valor do trabalho, os juízes versus os guardas penitenciários quanto ao poder de executar a pena. Conflitos que aparecem em uma zona de indeterminações mais do que em projeções ideológicas de violência e dominação. Conflitos que estruturam toda uma tecnologia de instrumentalização dos corpos. Contudo, os corpos na prisão têm cor e sexo. Davis não dispensa o discurso das sociedades repressivas sobre a comunidade das mulheres negras. Na verdade, podemos afirmar com Robin Kelley, que a crítica mais poderosa de Davis a Foucault revela a “centralidade das raças nos processos de criação do estado carcerário no Ocidente”, em especial, com a crescente população negra e latina nas prisões estadunidenses. 3 Mais ainda, a autora compreende como os gêneros estruturam as prisões, de modo que se torna relevante observar o impacto devastador tanto para mulheres quanto para homens pelo recente aumento na taxa da população carcerária feminina (ainda minoritária, porém extremamente significativa). Não se trata, pois, apenas de observar a prisão como o encarceramento de mulheres negras, mas de como esta corporeidade se apresenta mediante técnicas de instrumentalização. Compreender esta materialização dos corpos, pois, auxilia não a fixar um discurso ideológico de resistência, mas a compreender como a prisão opera em seu exercício disciplinar através de uma gênese dos corpos. Assim, se é verdade que as prisões não podem ser compreendidas apenas como o reflexo direto de ideologias (perdendo a multiplicidade da relação de saber-poder, como afirma Foucault), também é preciso ver que esta economia dos corpos atua de diferentes

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FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 28. FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 30. 3 KELLEY, “Foreword” in DAVIS, The meaning of freedom and other difficult dialogues, p. 11 2

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modos sobre a diversidade dos corpos, como lembra Angela Davis. Se, por um lado, não se deve render a crítica do sistema penal ao jogo ideológico, é preciso compreender que diferenças este sistema perpetua. De modo que, à primeira vista, não se trata de opor a perspectiva foucaultiana à proposta de Angela Davis, mas de compreender suas reflexões sobre o mesmo campo discursivo, sobre o mesmo espaço em que estão dispostos as técnicas de disciplinarização dos corpos. Pois, como veremos, é possível compreender, de um lado, toda a economia de poder-saber enquanto efeito do espaço aberto pela prisão; por outro, notando quais corpos nela estão dispostos, é interessante notar as sutilezas de suas técnicas e o refinamento de seu poder. Com o auxílio de ambos os autores, podemos circunscrever de maneira mais precisa a economia de poder que impera no sistema penal atual.

Foucault, leitor de Davis, leitora de Foucault. Decerto, um aspecto foucaultiano que interessa a Angela Davis diz respeito ao aos resultados da investigação desenvolvida pelo autor francês. Pois, a alternativa de algo além da prisão, para uma sociedade sem prisões, exige de Davis uma reflexão mais detida sobre a gênese das prisões e o fluxo de poderes que estruturam tais instituições. Se há algo que converge na posição dos dois autores é o fato de que ambos recusam o lugar de reformadores da prisão. A participação de Foucault no Grupo de Investigação de Prisões (GIP) reflete, pois, uma intolerância ativa contra o sistema prisional, de modo que todo o interesse em investigar as condições de vida dos presidiários, os discursos e as práticas que rondam os corredores das celas contrariam qualquer atitude de acumular conhecimento mais apurado para a criminologia, como advogavam reformadores em suas lutas por prisões e penas mais humanitárias.4 De outro modo, a investigação deste grupo existe para alimentar a intolerância contra instituições como essa, que são apenas a ponta do iceberg de uma sociedade mais fria de controle. Portanto, uma “inquirição-intolerância” contra o

Como descreve Foucault em nota 7 de Vigiar e punir: “Deve-se ressaltar que a maior parte destes não eram filantropos, que criticavam do exterior a instituição carcerária, mas que estava ligados, de um modo ou de outro, à administração das prisões. Técnicos oficiais” (FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 270) – uma posição, pois, bem diversa de grande parte dos membros do GIP. 4

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panóptico penitenciário, como afirma Foucault na apresentação do grupo para a revista J’Accuse (1971).5 Nesse sentido, o modo como Angela Davis leva adiante seu combate pela desencarcerização converge com as inquietações de Foucault. De partida, a autora aprende com a genealogia de Foucault o quanto as alternativas para o sistema prisional se encerram em um circuito pelo qual a prisão surge junto com os processos de sua reforma. Conforme a autora: É irônico que a própria prisão foi um produto de esforços comuns dos reformadores para criar um sistema melhor de punição. Se as palavras “reforma das prisões” saem tão facilmente de nossas bocas, é porque “prisão” e “reforma” são intrinsecamente ligadas desde o início do uso do aprisionamento como o principal meio de punição para aqueles que violam as normas sociais.6

Nesse sentido, a aposta militante de Davis pela desencarcerização resulta da alternativa que retira a prisão do horizonte comum da pena, mas também capaz de pensar em um sistema de justiça para além do sistema punitivo que apenas retroalimenta a prisão e suas reformas, em um sistema contínuo de vigilância, castigo e saber. Uma reflexão comum à intolerância ativa que Foucault anuncia com o GIP. É preciso lembrar que Davis não está distante de Foucault. A militância da ativista converge com a natureza das investigações de Foucault e seu grupo, centrada nas perguntas àqueles que têm alguma experiência da prisão. Interessa ao GIP investigar as “condições de vida daqueles relacionados à prisão”. Nesse sentido, não se pode dissociar a publicação de Vigiar e punir desse esforço conjunto do GIP. E aqui está a peça principal de aproximação entre nossos autores. De acordo com a cronologia preparada por Daniel Defert, Foucault se entusiasma quando em 1968 lê os textos dos Black Panthers – a quem Davis estava profundamente ligada - afirmando que eles "desenvolvem uma análise estratégica liberada da teoria marxista."7 Notemos desde este entusiasmo, a presença de abertura de Foucault para o debate com o marxismo, muitas vezes despercebidas entre os intérpretes de ambos os lados. Por esta “estratégia liberada da teoria marxista” é possível

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Ver a série de textos publicados por ocasião do GIP, publicados em Estratégia, poder-saber (Ditos & Escritos - vol. IV). 6 DAVIS, Are prisons obsolete?, p. 40. 7 DEFERT, "Cronologia" in FOUCAULT, Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise - Ditos e escritos, vol. I, p. 28.

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compreender o que alimenta a intolerância ativa praticada por Foucault, e como Angela Davis se apresenta no meio disso. De fato, a literatura corrente dos Black Panthers nos fins dos anos 1960 e início dos anos 1970 apresentava uma série de descrições das condições de vida daquela raça. Nelas, não apenas estão contidos relatos da vida nas prisões, dos modos como os dispositivos de poder atravessam as celas e distribuem seus prisioneiros. Esses escritos apresentam-se também por diversos estilos: tanto de um modo mais narrativo-conceitual como em Angela Davis, an autobiography, quanto no sentido epistolar como em Soledad Brother - the prision letters, e também no registro literário de Toni Morrison em The bluest eye. Paralelamente a isso, proliferavam narrativas da vida do negro americano através de novas formas estéticas que compreendem desde uma composição jazzística de vanguarda, como encontrada em 1969 no disco Crisis de Ornette Coleman, mas também na poética de LeRoi Jones (que posteriormente será conhecido como Amiri Baraka) ou Sun-Ra. Desde essa época, Davis se alinhava a um modo político que extrai de sua experiência nas prisões americanas os signos de resistência contrários à sociedade de controle. Em sua autobiografia - que narra o processo de sua prisão, acusada como inimiga pública pelo governo estadunidense – a autora se localiza no interior da engrenagem da máquina-prisão, tal como descreve a seguir: Eu não estava angustiada para escrever este livro. Escrever uma autobiografia na minha idade parece presunção. Além disso, eu sentia que escrever sobre minha vida, o que fiz, o que pensei e o que aconteceu comigo demandava uma postura de diferença, uma crença de que era diferente de outras mulheres - de outras mulheres negras - e, portanto, precisava explicar a mim mesma. Eu sentia que um tal livro poderia deixar por obscurecer o fato mais essencial: as forças que fizeram minha vida o que ela é são as mesmas forças que formaram e deformaram as vidas de milhares de minha gente. Além disso, estou convencida de que minha resposta a estas forças também tenha sido corriqueira, que meu envolvimento político, agora como um membro do Partido Comunista, foi uma maneira natural e lógica de defender nossa humanidade em combate.8

Decerto, não se sabe até que ponto Foucault teria acesso a esse material, mas é verdade que todas essas narrativas circulavam nos modos, nas palavras e sons do universo

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DAVIS, Angela Davis: an autobiography, p. XV.

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do movimento negro. De fato, tal relação se aprofunda cada vez mais, quando em 1971, Catherine von Bülow, membro do GIP, viaja para os Estados Unidos para visitar George Jackson e Angela Davis em seus cárceres, intensificando ainda mais os planos de luta. Com o assassinato de Jackson, alguns meses depois, ela organiza junto a Genet, Deleuze, Defert e Foucault um dos volumes da coleção "Intolérable" com o intuito de desmontar a versão oficial do assassinato de Jackson. Apesar desse contato inicial, há poucos registros de Foucault sobre o movimento negro, não obstante seja curiosa essa associação entre o interesse do autor pela literatura Black Panther e seu ativismo no GIP, uma vez que a maior parte dos escritos desse período são autobiografias com inúmeras experiências nas prisões. O impacto dessa experiência descrita em diversas frentes do movimento negro estadunidense – mas também na realidade prisional francesa – se resume neste questionamento de Foucault, que bem poderia vir de Davis: “Dizem-nos que as prisões estão superpovoadas. Mas, e se foi a população que foi superaprisionada?”9 Neste jogo de palavras, é válida a questão: e se a prisão for a utopia da sociedade burguesa? Uma questão que oferece diagnósticos diversos entre nossos dois autores, uma vez que cada qual carrega consigo uma genealogia diversa do que seria tal grupo social. Diferença que, na verdade, faz com que Davis avance sobre os 40 anos de Vigiar e punir.

Estruturas das prisões Os dois autores, certamente, concordam com a necessidade de investigar a história das prisões a partir das condições de possibilidade que fizeram do encarceramento o principal regime de punição a quem se desvia da norma social. É interessante analisar o lugar que Foucault dispõe a prisão na economia de poder-saber descrita em Vigiar e punir: A prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca certamente um momento importante na história da justiça penal: seu acesso à ‘humanidade’. Mas também um momento na história desses mecanismos disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: o momento em que aqueles colonizam a instituição judiciária.10

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FOUCAULT et al., “Manifesto GIP” in FOUCAULT, Ditos e escritos (Estratégia, Poder-saber), p. 2. FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 207.

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De fato, a justiça penal tem acesso à humanidade na mesma medida em que a humanidade se faz visível, em que a liberdade se mostra o valor principal na sociedade forjada pelas revoluções modernas dos fins do século XVIII e início do século XX. Lembremos aqui as passagens de As palavras e as coisas sobre o “sono antropológico”. Em Vigiar e punir, é neste estado que repousa a justiça penal, que acessa a humanidade na medida em que se converte na “análise de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do homem”.11 Exercício do juízo que faz da justiça penal um instrumento de “castigo igualitário” capaz de privar o indivíduo criminoso de sua liberdade conforme um tempo mensurado em anos de prisão. Todavia, há um outro lado da moeda prisional: os mecanismos disciplinares que se convertem em verdadeiros aparelhos para melhorar os indivíduos e que, aos poucos, acabam por colonizar a instituição judiciária. Foucault recupera aqui a descrição dos esquemas dos mecanismos disciplinares da estrutura penitenciária para a transformação dos indivíduos: o esquema político-moral do isolamento dos indivíduos (que passam a ter a instrução moral e o espaço para refletir sobre seus crimes), o esquema econômico do trabalho obrigatório (e toda a adaptação dos indivíduos ao ritmo industrial nascente), bem como em grande medida, o esquema técnico-médico de cura e normalização dos delinquentes mediante as “modulações de penas”. Explicita-se, sobretudo neste último ponto, um elemento significativo para compreendermos a colonização da instituição judiciária pelos mecanismos penitenciários. Em grande medida, Foucault reconhece neste último esquema o retorno do poder soberano sob a forma da sabedoria do guardião. Toda a arbitrariedade dos castigos distribuídas na modulação soberana dos juízes e reis em tempos pré-revolucionários retorna sob a roupagem do poder disciplinar da vigilância. Para transformar o indivíduo mediante a privação de sua liberdade, é preciso sujeita-lo à arbitrariedade dos seus vigias: o que aparece como violência “inútil” dos guardas é o reflexo da “utilidade social” que se espera das prisões responsáveis por um “papel técnico positivo” de transformação dos indivíduos. Desse modo, a penitenciária não é apenas o lugar em que os indivíduos são depositados pelo tempo relativo aos cálculos jurídicos de sua infração, mas a pena se modula com variações aplicadas no decorrer de toda a estada do “delinquente” (esta

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FOUCAULT, As palavras e as coisas, p. 358

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novidade subjetiva derivada dos processos da penitenciária), conforme conclui Vigiar e punir: se a pena deve ser individualizada, não é a partir do indivíduo-infrator, sujeito jurídico de seu ato, autor responsável do delito, mas a partir do indivíduo punido, objeto de uma matéria controlada de transformação, o indivíduo em detenção inserido no aparelho carcerário, modificado por este ou a ele reagindo. (...) A qualidade e o conteúdo da infração não deveriam tampouco ser determinados só pela natureza da infração. A gravidade jurídica de um crime não tem absolutamente valor de sinal unívoco para o caráter corrigível ou não do condenado. 12

É tal matéria corpórea delinquente que passa a ser objeto de disputa pela ordem de poder soberano. Condição que desperta entre os juízes e técnicos administrativos penitenciários o que Foucault denomina “desejo de prisão”: modo de afirmar que a instituição deixou de ser um mero espaço de reclusão, mas uma estrutura de poder-saber em que se misturam, como todos sabemos, vigilância e saber. É esta estrutura que confere força ao projeto panóptico que passa a organizar o espaço penitenciário: “local de constituição de um saber que deve servir de princípio regulador para o exercício da prática penitenciária.”13

Abolicionismo e desencarcerização No entanto, como explicitado anteriormente, o que chama a atenção de Angela Davis é que a estrutura panóptica da prisão, tal como descrita por Foucault, deixa de lado o dado – crucial para compreender a realidade prisional atual – de que os corpos encarcerados têm cor e gênero. Isso não significa uma defesa da análise do sistema prisional através de um corpo naturalizado por sua raça e sexo. Davis compreende processos em que o personagem-delinquente na prisão não é apenas o indivíduo a ser transformado, mas também é efeito de um processo de racialização e sexualização – elementos que escapam da análise foucaultiana de Vigiar e punir. Por quê? Uma primeira resposta deriva do fato de que Davis estende o conceito de prisão ao de escravidão. Nesse sentido, a perspectiva estruturante das prisões deixa de ser os movimentos abertos pelos reformistas da Revolução Francesa ou mesmo pela

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FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 218. FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 223.

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Revolução Industrial na Inglaterra, mas passa a ter relevância todo o processo das plantations em terras americanas e, sobretudo, o destino dos ex-escravos após a abolição. Decerto, o referencial europeu ainda está presente em certas estruturas de prisões-modelo situadas nos EUA, citadas por Foucault, como em Filadélfia e em Auburn, constituídas pelos modelos políticos-religiosos do isolamento em vistas da transformação dos indivíduos encarcerados. Contudo, Davis quer compreender a genealogia dos corpos aprisionados, a sua racialização. O que explica, segundo Davis, a racialização das prisões é a aproximação entre os sistemas de penalização e os sistemas de trabalho e punição que se conjugam na penitenciária. Não se trata de afirmar um paralelo imediato de ordem econômica e ideológica dos dois sistemas. Apenas isso não explica o processo da racialização do cárcere. Antes, é preciso compreender que, mesmo após o regime de abolição, o sistema jurídico-prisional carregou consigo uma nova ordem de punições que atinge de maneira mais direta a população negra. Decerto, com a 13ª Emenda, a escravidão é abolida legalmente nos EUA, com a exceção de casos de crime, organizados nos Black Codes das federações. Neles, seriam determinados crimes pelos quais somente os negros seriam devidamente condenados. Em muitos casos, os negros se tornaram os alvos principais de um sistema de trabalhos forçados em contrato com grandes empresas, o convict lease system. Para tanto, em casos como os Black Codes de Mississipi, o condenado por vagabundagem teria características muito próximas aos escravos que, outrora, procuravam escapar de seus senhores.14 Toda uma tecnologia de torturas, privações e todo um regime de trabalho desenvolvidos nas plantations passam a ser recebidos em um novo sistema prisional. Como efeito desta tradução, é o corpo negro (e, mais contemporaneamente, os corpos muçulmanos e latinos) que passam a estruturar todo um aparato prisional. A aproximação entre o sistema prisional e o regime das plantations, nesse sentido, permite dar uma volta a mais no parafuso da história e compreender todo um campo de torturas e privações na versão mais atual das prisões: espaços de segurança máxima, como Guantánamo. Regime maior de exceção, não se trata mais de um espaço de privação dos direitos sociais, mas é a própria privação do estado de direito. Segundo Davis, “A justificativa prevalecente da prisão de segurança máxima é que os horrores que elas criam

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DAVIS, Are prisons obsolete?, p. 29.

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são o complemento perfeito para as personalidades horríveis condenadas ao pior do pior do sistema prisional.”15 Com efeito, o isolamento dos indivíduos nas prisões deixa de ser o momento do recolhimento, e passa a ser a privação do indivíduo diante de qualquer condição de reconhecimento dos direitos sociais. Dos presídios superpovoados de Pedrinhas à população superaprisionada de Guantánamo incide todo um dispositivo de técnicas que colonizaram os sistemas prisionais. De modo que é compreensível a postura de Angela Davis que associa seu movimento de desencarcerização ao abolicionismo. Deste conjunto de análises avançadas por Angela Davis, a pergunta pela alternativa social de uma vida sem prisões é a pergunta pela possibilidade de uma sociedade sem escravos. Enfim, seria a prisão o regime de punição das sociedades democráticas?

Referências bibliográficas: DAVIS, Angela Y. Angela Davis – an autobiography, New York: International Publisher, 1988. _______. Are prisons obsolete?, New York: Seven Stories Press, 2003. _______. The meaning of freedom and other difficult dialogues, San Francisco: City Light Books, 2012. FOUCAULT, Michel, Vigiar e punir: história da violência nas prisões, trad. Raquel Ramalhete, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1977. _______. As palavras e as coisas, trad. Salma T. Muchail, São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1995. _______. Problematizações do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise (Ditos & Escritos - vol. III), Manoel B. da Motta (org.), trad. Vera L. A. Ribeiro, 2a. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. _______. Estratégia, poder-saber (Ditos & Escritos - vol. IV), Manoel B. da Motta (org.), trad. Vera L. A. Ribeiro, 2a. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

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DAVIS, Are prisons obsolete?, p. 50.

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