Animalia exotica & mirabilia. Os animais brasileiros na cultura europeia da época moderna de Thevet a Redi.

June 15, 2017 | Autor: B. Martins Boto L... | Categoria: History of Science
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Bruno Martins Boto Leite

Animalia, exotica & mirabilia Os animais brasileiros na cultura europeia da época moderna de Thevet a Redi

A partir das extravagantes viagens de Marco Polo ao Oriente e da descoberta do Novo Mundo por Cristóvão Colombo, a geografia do globo se abriu aos olhos e à mente dos europeus. Com essa expansão, ampliava-se também, paulatinamente, o conhecimento que os europeus detinham da natureza dessas novas geografias. No início desse processo, os relatos dos viajantes, ainda carregados de imprecisões e de um olhar fortemente crédulo, eram permeados de alusões a animais fantásticos e estranhos monstros presentes naqueles espaços ainda desconhecidos. No mesmo ano da descoberta da América, 1492, o médico da Universidade de Ferrara, Nicolau Leoniceno (1428-1524), publicava uma importante crítica – dedicada ao humanista Angelo Poliziano – à obra Histórias naturais do romano Plínio, o Velho.1 O médico argumentava que Plínio havia cometido muitos erros e era particularmente responsável por várias incongruências terminológicas – plantas e ervas incorretamente rotuladas e o uso de nomes distintos para as mesmas ervas. Tudo isso dizia respeito aos simples medicamentosos. Isso ocorria porque, segundo Leoniceno, Plínio colocava em primeiro plano as informações tiradas de outras fontes gregas e não a observação direta da natureza. Era uma crítica explícita à adoção do ouvir-dizer e um elogio da autopsia. Essa crítica, prioritariamente filológica, representava, mais do que um simples comentário, uma nova forma de lidar com a autoridade textual e com a própria auctoritas. Não é de se estranhar que o “saber de botica”, que nascia dos alunos de Ferrara, conferia à leitura do livro da natureza maior destaque do que à erudição dos livros e ao peso das autoridades. Com o tempo e outras viagens às novas terras, os viajantes foram aportando um volume crescente de informações à cultura europeia bem como maior número de animais, plantas e minerais, aumentando, por um lado, a quantidade de relatos maravilhosos e, por outro, a massa de informações mais precisas sobre a natureza daquelas paragens. Ao lado disso, na Europa, a crítica de Leoniceno ganhava terreno entre muitos médicos e boticários como Antonio Musa Brasavola e Amato Lusitano e ia influenciando o modo de se estudar os seres, os animais e as plantas da natureza.2 No caso específico das ditas Índias Ocidentais, os primeiros grandes relatos de viagem que causaram impacto no pensamento europeu foram referentes à América espanhola, do militar Gonzalo Fernandez de Oviedo, relativo à natureza do Caribe, e aquele do jesuíta José de Acosta, abordando as coisas do Peru.3 Já no caso do Brasil, pode-se dizer que os relatos do franciscano André Thevet (1502-1590) e do protestante Jean de Léry (1536-1613) foram os mais propalados.4 Além desses relatos e de numerosos outros publicados na Europa, muitas informações viajaram o mundo por meio de cartas, como aquelas dos jesuítas do Brasil aos seus provinciais, e muitos animais foram levados, vivos ou mortos, aos gabinetes e viveiros de sábios e reis do Velho Mundo. Num momento cultural posterior ao humanismo e ao nascimento do método filológico, marcado por uma forte tendência intelectual historicizante e por práticas colecionistas de obras literárias, pinturas, esculturas, etc. (antiquaria), a cultura barroca renovava esses gostos mostrando seu apreço pelo colecionismo do maravilhoso, do curioso, do peregrino, e adicionando à antiga tradição das Kunstkammer ou gabinetes de curiosidades artísticas ou artificiais (artificialia), formados por homens de todas as épocas, a nova tradição dos Wunderkammer, ou gabinetes de curiosidades naturais e maravilhosas (naturalia & mirabilia) de todas as partes do globo terrestre. Nos gabinetes de curiosidades e criadouros da Europa, viam-se muitos exemplares da fauna brasílica. Dito isso, o conhecimento dos seres “novos” do Novo Mundo chegava aos europeus de muitas maneiras, seja por escrito, obras publicadas e manuscritos, seja pelo transporte de parte dessas coisas aos diferentes tipos de coleções e gabinetes europeus. Desse transporte de informações e coisas, ou seja, de cultura, o que nos interessa no presente trabalho é o impacto causado nos sábios europeus pelo conhecimento da fauna brasileira. O que está em questão neste estudo é, portanto, as consequências que o conhecimento da fauna brasileira teve para a cultura científica europeia.

Nas imagens do livro de Marco Polo pode-se observar como os primeiros viajantes referem-se a seres

míticos e fantásticos. Ao lado de cavalos e cisnes, animais já conhecidos dos europeus, surgiam

unicórnios, dragões e outras criaturas imaginárias marco polo (1254-1324)

À direita: Detalhes da ilustrações das páginas 56 (verso) e 85, respectivamente Embaixo: Página 56 (verso)

Do manuscrito iluminado em pergaminho intitulado Le livre des merveilles [...]

Acervo Bibliothèque Nationale de France, Paris

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Nos gabinetes de curiosidades, teólogos, filósofos

e naturalistas agrupavam, além de objetos criados pela mão humana (artificialia), coisas da natureza (naturalia), como animais empalhados,

plantas herborizadas, corais, conchas e minerais.

Visavam compor uma visão de conjunto (sistêmica) do mundo natural normalmente delineada pelo

colecionista responsável pelo acervo. As coleções

de George Marcgraf, Athanasius Kircher, Ole Worm e outros tiveram grande importância para os

debates definidores da compreensão que se tinha da fauna brasileira

josef arnold (1646-1674/75)

Kunstkammer der Regensburger Großeisenhändler- und Gewerkenfamilie Dimpfel

Pergaminho colorido e iluminado, 1668 Ulmer Museum, foto Oleg Kuchar, Ulm

Os primeiros estudiosos da natureza brasílica foram, sem sombra de dúvida, os jesuítas. Logo de sua chegada ao Brasil, em 1549, os padres enviaram cartas anuais a seus provinciais, as ditas Cartas ânuas, relatando tudo o que se passava por essas terras. Descreviam os costumes indígenas, os animais e as plantas, assim como os usos medicinais das coisas do Brasil. Um exemplo dessas cartas, a mais antiga delas, é a de José de Anchieta (1534-1597) ao padre geral de São Vicente, em maio de 1560,5 na qual o jesuíta descrevia um grande número de animais brasileiros, como o aig (preguiça), o guainumbi (beija-flor) e o ipupiara – monstro marinho encontrado no litoral brasileiro. Já na carta do padre Fernão Cardim (1540-1625) ao visitador Cristóvão de Gouveia, escrita entre 1583 e 1601, também conhecida como Tratados da terra e gente do Brasil, o autor reservava uma seção especial para os animais, na qual, assim como Anchieta, fazia profissão de grande conhecedor da fauna local. Cardim, mais do que Anchieta, mostrava-se a par das categorias empregadas pelos grandes naturalistas da época na classificação dos seres vivos. Em sua descrição, organizava os animais nos seguintes grupos: “quadrúpedes” (vivíparos), “serpentes”, “aves” e “peixes”. Essa forma de classificar condizia, ao menos em parte, com aquela, mais completa, proposta pelo naturalista Conrad Gesner (1516-1565), em 1560. Gesner separou os animais em “quadrúpedes vivíparos”, “aves”, “quadrúpedes ovíparos” (batráquios e répteis, exceto as serpentes), “peixes e cetáceos”, “serpentes”, “moluscos”, “crustáceos”, “testáceos”, “insetos” e “zoófitas”. As serpentes ocupavam um lugar destacado na classificação de Gesner, como naquela de Cardim. A categoria “peixes”, usada pelo jesuíta, não compreendia somente os animais hoje denominados pelo mesmo conceito, antes, abarcava também o peixe-boi, a baleia, os botos e as toninhas, – atualmente classificados como mamíferos – as tartarugas, os monstros marinhos, os polvos, as águas-vivas, os caranguejos e os lagostins, as ostras, as conchas e mesmo as aves, serpentes e outros animais que teriam seu hábitat em ambiente aquático. Na época moderna, a palavra “peixe” parecia significar simplesmente todo animal que vivesse na água. Os naturalistas Guillaume de Rondelet (1507-1566), Ippolito Salviani (1514-1572) e Pierre Belon du Mans (1517-1564), grandes estudiosos dos animais marinhos, tratavam vários tipos de animais sob a categoria “peixe” pelo fato de habitarem na água, corroborando a ideia de que o termo, na época, representava todo tipo de animal marinho. Nos livros desses autores, 6 além dos animais que hoje chamamos de peixes, eram estudados os cetáceos e grandes animais marinhos, os “peixes moles” (polvos, lulas e outros moluscos aquáticos), os “peixes cobertos de crosta ou casca” (crustáceos), os “peixes cobertos de conchas” (gastrópodes e lamelibrânquios), as aves aquáticas, os monstros aquáticos, etc. É interessante notar ainda hoje a permanência dessas categorias interpretativas na lógica de certos vocábulos compostos da língua inglesa que, terminados no sufixo -fish, designam os mais variados tipos de seres aquáticos, como jellyfish (água-viva), cuttlefish (sépia) e shellfish (termo culinário e pesqueiro para designar invertebrados aquáticos que possuem exoesqueleto e são empregados como alimento). Essas finas informações presentes nas epístolas eram enviadas à alta hierarquia da Companhia de Jesus e ficavam confinadas àqueles que a elas tinham acesso. As cartas jesuíticas raramente tornavam-se públicas e, portanto, não impactaram tanto a República das Letras 7 do período moderno.8 Isso já não se deu, por outro lado, com a obra Les singularitez de la France Antarctique, escrita pelo frei franciscano André Thevet, quando da invasão francesa ao Rio de Janeiro, e publicada em 1557. Esse relato de viagem teve enorme importância para a vida cultural europeia pelo fato de ter propagado amplamente muitas informações acerca da fauna brasílica. É notória a sua ampla divulgação e presença em muitas bibliotecas de naturalistas do Velho Mundo. 9 O livro de Thevet pode ser considerado o primeiro relato sobre o Brasil difuso nos ambientes culturais europeus e propalado pela República das Letras. No livro, cujo título faz referência ao gosto pelas curiosidades e coisas peregrinas que então aflorava entre os europeus, Thevet descrevia a viagem da frota francesa até o Brasil, incumbida de constituir aqui entre nós uma colônia, a França Antártica. Por isso, o frei narrava ali o percurso dos franceses, passando pela África, até o Brasil com uma bela descrição dessas terras: sua natureza, fauna e flora e seus povos. As singularidades de Thevet eram essas informações novas para a cultura europeia.

Vendo e ouvindo dizer OS PRIMEIROS RELATOS DOS ANIMAIS BRASILEIROS SÉCULO XVI

O franciscano descrevia novos e fascinantes animais brasileiros: peixes monstruosos, como aquele de água doce, “armado da cabeça à cauda como o tatu”, chamado pelos nativos de tamuatá,10 ou aquele, espécie de cação, chamado pelos nativos de panapaná. 11 Mencionava também um peixe denominado pirá-ipuxi, que dizia se originar das costas de outro peixe e com ele viver toda a vida, sendo uma espécie de rêmora,12 e o peixe-voador, conhecido pelos índios como pirauena, e seu opositor, o albacora.13 Relatava a grande diversidade de aves do Brasil, a beleza de suas plumas e o uso que delas faziam os índios. As primeiras aves descritas pelo francês são os tucanos, cuja monstruosidade se dava, segundo ele, pela relação entre suas partes – bico desproporcionalmente maior do que o resto do corpo14 – e os psitacídeos. Além dessas e de outras aves, o francês descrevia o estupefaciente gonambuch (guainambi, de Anchieta) ou beija-flor, que dizia ser do tamanho de um escaravelho ou de uma mosca, sendo uma das menores aves do céu. Ao contrário das informações que circulavam no interior da Companhia de Jesus à época, Thevet não mencionava em seu relato o aspecto mirífico da geração dessa ave a partir de borboletas ou moscas.

Dos naturalistas que viajaram ao Novo Mundo e

descreveram a fauna brasileira, André Thevet adquiriu enorme importância por ter sido um dos primeiros a tornar acessíveis suas descrições ao universo

intelectual do Velho Mundo de além Pirineus.

Nas imagens de sua principal obra, Les singularitez de la France Antarctique, vemos ainda estampado o

caráter fantástico presente nas obras dos primeiros

viajantes. Constantes na sua mundividência, animais monstruosos e desproporcionais andré thevet (1516-1590) Em cima: página 48

Embaixo: página 50

Do livro Les singularitez de la France Antarctique,

autrement nomée Amérique: [et] de plusieurs Terres [et] isles decouvertes de nostre temps. Paris: chez les heritiers de Maurice de la Porte, au

clos Bruneau, a l’enseigne S. Claude, 1557

Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

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Entre os muitos “quadrúpedes”, o franciscano descrevia, em As singularidades, um exemplar de jacaré-açu,15 os micos do Brasil – um dos quais ele denominava sagouin –, o tatu – que já havia sido descrito na Historia de Oviedo e nas Observations de Belon –, e a preguiça, chamada por ele de haüt. Este último havia sido descrito pela primeira vez pelos jesuítas, contudo, a descrição de Thevet se notabilizou por ser a primeira conhecida. Acerca do animal, era dito que ele não se alimentava de outra coisa a não ser de ar.16 As descrições desses animais, acessíveis ao público francês e a todos aqueles que pudessem ler na língua gálica a partir de 1557, enriqueceram o imaginário e as teorias naturalísticas europeias. Contudo, não se mostraram como as únicas no panorama daquela cultura acerca dos bichos do Brasil. Alguns anos depois da publicação do livro de Thevet, depois mesmo da derrocada do projeto de ocupação francesa da Baía de Guanabara, em 1560-1567, outro francês, também presente naquela expedição, ainda que associado à coluna genebrina ou à repartição de missionários calvinistas enviados àquelas partes pelo próprio reformador, escreveu outra narrativa. Jean de Léry, que permaneceu no Rio de Janeiro de 1556 a 1558, quando foi expulso pelo próprio Villegagnon, foi levado a publicar sua obra por conta de uma crítica feita por Thevet, que associava a falência do projeto da França Antártica à presença dos calvinistas naquele lugar, associação claramente política. Essa crítica havia sido proposta pelo franciscano na sua obra Cosmographie universelle (1575). Contra a crítica, e com base na observação feita à obra de Thevet por Martin Fumée em sua tradução da obra de Gomara, na qual este criticava o franciscano por incorrer em imprecisões e erros, – mais precisamente que a narrativa de Thevet calcava-se em narrativas imprecisas de marinheiros e em um sem-número de ouvir-dizeres que o destituíam de autoridade descritiva17 –, Léry propunha tornar seu relato o mais crível aos olhos do leitor. Além disso, ao contrário da narrativa de Thevet, católica, aquela de Léry apresentava-se como uma alternativa perspectivada pelo olhar de um calvinista. Na dependência da organização proposta por Thevet, Léry dividia os animais em quatro grupos, a saber, os “quadrúpedes”, as “serpentes”, as “aves” e os “peixes”. Na parte relativa aos quadrúpedes e às serpentes, ele mencionava, como o franciscano, o tatu, o jacaré, o sagouin e a preguiça, esta chamada pelo missionário de hay,18 sobre a qual Léry salientava que:

O livro Exoticorum (Das coisas exóticas) de Carlos

Clúsio inaugurou um novo modo de estudar o mundo natural e, em especial, a fauna e a flora das Índias,

oriental e ocidental. Ao invés de se basear em relatos

improváveis de viajantes, em ouvir-dizer, o naturalista holandês buscava descrever seus animais com

base em observação direta (autopsia). Além disso,

Clúsio cunhou nessa obra a categoria dos “exóticos” para classificar animais e plantas do Novo Mundo carolus clusius (1526-1609) Frontispício

Da obra Exoticorum libri decem:

Quibus Animalium, Plantarum, Aromatum [...] Antuérpia: Officina Plantiniana, 1605

Acervo Bibliothèque Numérique Patrimoniale, Estrasburgo

O que parece fabuloso, mas é referido não só por moradores da terra mas ainda por adventícios com longa residência no país, é não ter jamais ninguém visto esse bicho comer, nem no campo nem em casa e julgam muitos que ele vive de vento. 19 Apesar da crítica aos critérios de Thevet, Léry ainda se deixou levar por muitas histórias contadas por agentes secundários. Léry também tinha espaço para as fábulas fabulosas oriundas do ouvir-dizer. A Histoire de Léry se apresentava cheia de Singularités, como aquela do padre franciscano. Léry descreveu os tucanos, de bico monstruoso, os diversos psitacídeos, o beija-flor e muitas outras aves, bem como certas espécies de morcegos do Brasil. 20 Dos peixes e outros animais, o missionário descreveu muitas espécies além daquelas já mencionadas por Thevet. O relato de Léry acerca dos animais do Brasil é marcado duplamente por uma relação de crítica e dependência ao texto do franciscano. Por um lado, Léry repete uma série de informações de Thevet e, por outro, altera as informações adicionando novas ou complementando aquelas do franciscano. Se a obra do missionário protestante é mais crível do que a do franciscano, isso de forma alguma se deu por conta do modo como ele descreveu essas espécies animais. Os dois autores lançaram mão tanto de informações secundárias como primárias. Não há, no segundo, nenhuma predileção pela autopsia em oposição ao uso do ouvir-dizer. Essas narrativas constituíram o cabedal informativo acerca dos animais brasileiros durante todo o século XVI. Os relatos feitos pelos portugueses geralmente permaneciam manuscritos e não circulavam para muito além de Portugal e da instituição da Companhia de Jesus. Foram essas duas narrativas dos invasores franceses que, de certa forma notabilizaram muitas informações sobre o Brasil e, em especial, aquelas referentes aos animais, junto dos savants da Europa. representações da fauna no brasil, séculos xvi a xx

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Como dissemos, além das narrativas, manuscritas e impressas, que se tinha dos animais do Brasil, muitos exemplares vivos e mortos foram levados à Europa nas frotas de portugueses, franceses e holandeses por navegantes e pilotos. Havia animais brasileiros em cada um dos diversos tipos de coleções europeias. Nos gabinetes e criadouros de príncipes e nobres, como o do imperador Rodolfo II, o do grão-duque Ferdinando II da Toscana e o do nobre Jacques du Plateau, depois comprado por Charles de Croÿ, podiam ser vistos muitos animais brasílicos, vivos e/ou mortos. O criadouro do imperador Rodolfo II (1552-1612), em Praga, era repleto de aves e animais curiosos e peregrinos; ali, viam-se muitos exemplares de araras e papagaios brasileiros, assim como tucanos e uma preguiça.21 O imperador possuía também um famoso gabinete de fácil acesso aos intelectuais da Europa.22 Foi com base na observação dos animais vivos daquele criadouro e dos animais mortos daquele gabinete que o naturalista Carlos Clúsio (1526-1609) descreveu numerosos espécimes brasileiros que apareceram na sua importante obra sobre os animais do Novo Mundo, Exoticorum libri decem (1605). Já no serraglio do grão-duque, Francesco Redi (1626-1697) menciona a existência de dois animais brasileiros: a capivara e um falconídeo chamado pelos índios de hancohan.23 Além desses criadouros e viveiros de príncipes, alguns nobres europeus possuíam viveiros repletos de animais brasileiros. No criadouro de aves de Jacques du Plateau, por exemplo, podia-se contemplar diversos exemplares vivos de colibris brasileiros. 24 Também eclesiásticos como Claude Moulinet (1620-1687), de Paris, e Athanasius Kircher (1601-1680), de Roma, possuíam gabinetes repletos de animais brasileiros para além dos objetos de devoção e dos artificialia, agregando itens que atestassem a grandeza do criador. O gabinete do padre Kircher abrigava objetos de diversa natureza, como máquinas – relógios e instrumentos de medição – antiqualia e animais “maravilhosos” vindos da Ásia e da América. Entre estes, encontramos uma tartaruga, um tatu e um tucano brasileiros.25 O gabinete de Moulinet, na Bibliothèque Sainte-Geneviève de Paris, não obstante as parafernálias religiosas e históricas, era repleto de animais brasileiros, como o guiracereba, o colibri, o besouro (cerf-volant), o tatu, a cascavel, etc.26 Além desses gabinetes de príncipes, nobres e religiosos, cujo interesse voltava-se para o estudo do passado, das antiguidades e das religiões, mas que compreendiam, ademais, coisas da natureza, havia também aqueles cujos donos interessavam-se unicamente pela história natural. Estes eram, podemos dizer, de dois tipos: um teve sua origem nas próprias boticas europeias que agrupavam, nas dispensas, grande número de simples (de origem animal, vegetal e mineral) que serviam para compor as fórmulas de remédios. Grande exemplo são aqueles de Garcia da Orta (1501-1568) e de Nicolau Monardes (1493-1588). Nessas coleções, a preocupação com os usos oficinais das coisas colecionadas tem lugar central, adicionando-se interesses de tipo científico ou naturalístico. Outro tipo é aquele, mais antigo, dos filósofos naturais que, além de se preocupar com os usos medicinais das coisas colecionadas, buscavam estudar diferentes aspectos dos seres analisados. Os filósofos, tentando compreender a unidade da physis, organizaram suas coleções levando em conta aspectos os mais diversos do estudo dos seres. 27

OS GABINETES E OS CRIADOUROS EUROPEUS SÉCULOS XII E XVII

O artista da corte do Imperador Rodolfo II, Joris Hoefnagel, na sua obra de caligrafia Mira

calligraphiae monumenta, ilustra grande número de animais brasileiros. Os modelos usados eram

provenientes do criadouro do imperador, que contava com espécimes vivos originários do Brasil.

Na primeira imagem, nota-se uma preguiça e, na

segunda, um tucano, ambos do criadouro imperial À direita, joris hoefnagel (1542-1600) Guide for Constructing the Letter E

À esquerda, joris hoefnagel (1542-600) & georg bocskay, (s.d.- 1575) Frontispício

Ilustrações coloridas e iluminadas sobre

pergaminho pertencentes ao manuscrito

Mira calligraphiae monumenta, ca. 1591- 1596

Acervo The John Paul Getty Museum, Los Angeles

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Esses gabinetes tiveram grande importância para a proposição de uma sistemática dos seres vivos. O maior gabinete desse tipo era aquele do médico e protomédico 28 de Bolonha, Ulisse Aldrovandi (1522-1605), que ainda hoje se acha conservado no museu da universidade daquela cidade. A prática de envio de animais brasileiros à Europa já era frequente no século XVI. O naturalista francês Pierre Belon, em 1555, dava uma receita à base de sal para conservar os corpos, esvaziados de seus órgãos, e as peles.29 O naturalista George Marcgraf (1610-1648) enviava regularmente do Brasil espécies naturais para o humanista e diretor da Companhia das Índias Orientais, Johannes de Laet (1581-1649), que, por sua vez, presenteava com esses animais os sábios do Velho Mundo. O colecionador Johan Swammerdam, apotecário e anatomista em Amsterdã, tinha um papagaio e um ovo desse animal bem como o bico e o tórax de um pelicano e a pele de um martim-pescador brasileiros.30 João Maurício de Nassau (1604-1679) também teve um papagaio. Não era uma ave qualquer, mas um papagaio falante que pertencera originalmente a um português. O conde teria ouvido falar do animal por volta de 1642, quando da conquista do Maranhão. O embaixador inglês nos Países Baixos na década de 1660, William Temple (1628-1699), relatou que o papagaio foi levado a Nassau, em Recife, e ali conversou em língua geral com dois intérpretes do governador. De fato, os papagaios brasileiros eram muito cobiçados pelos holandeses. George Marcgraf elaborou desenhos de diferentes tipos de araras e papagaios durante sua estada no Brasil. Em um desses desenhos, Nassau anotou à mão: “Este é o papagaio, que tão habilmente responde e formula perguntas que as muitas centenas de pessoas que o ouviram nada mais puderam concluir senão que era o demônio que falava através dele. Comigo não viveu mais do que 14 dias. Quando morreu, estava tão duro como um pedaço de madeira.” 31 Na coleção do naturalista dinamarquês Ole Worm (1588-1655), especializada na natureza de seu país, podia-se notar uma aranha brasileira (nhandu-guaçu), dada a ele por Johannes de Laet, dois exemplares de beija-flor de espécies distintas, ofertados a ele por Sperlingi e George Rosaencrantz, um guará, presenteado por Cristophonus Lindenow e um quati, chamado por ele de “gato americano” (felis americana), vivo, oferecido pelo médico Christianus Fossius,32 além de um tatu e uma iguana.

O padre Athanasius Kircher foi responsável pela

criação do Museu ou Gabinete do Colégio Romano

da Companhia de Jesus. Muitas vezes apelidado de

Kircheriano, o museu agrupava objetos de interesse astronômico e matemático, como relógios e

astrolábios e animais empalhados do Novo Mundo. Sua organização pautava-se na visão harmônica

do neoplatonismo do padre Kircher, e deixava ver aos outros naturalistas a existência do divino e

do sobrenatural na natureza. As mirabilia, ou coisas maravilhosas, portentosas e fantásticas,

eram de grande interesse para os pensadores da Companhia de Jesus

À esquerda: bloemaert, cornelis (1602/1604-1692) (sculpt.)

p. Athanasius Kircherus Fuldensis (1602-1680)

Gravura, 1655

Acervo da Katholieke Universiteit Leuven, Lovânia À direita: autor desconhecido

A. Kircher, Romani Collegii Societatus Jesu

Gravura publicada em Amsterdã pela Officina Jansoniona-Waelbergiana, 1678

Acervo Wellcome Library, Londres

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O gabinete do padre Du Molinet na Biblioteca da

Abadia de Sainte Geneviève, em Paris, contava com numerosos animais empalhados e partes de

animais vindos do Brasil. Ali podia-se ver tucanos, besouros (cerf-volant), peixes, tatus e outros espécimes brasileiros

claude du molinet (1620-1687) À direita: página 16

Na página à esquerda: prancha 40, página 240 e prancha 42, página 258, respectivamente

Do livro Le Cabinet de la Bibliothèque de Sainte Genevieve, divisé en deux parties

Paris: Ches Antoine Dezallier, 1692

Acervo Institut National de l’Histoire d’Art, Paris

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Por meio de informações advindas de cartas e relatos, manuscritos ou impressos, e por meio da observação de animais nos criadouros e gabinetes de curiosidades europeus, os grandes naturalistas da Europa entraram em contato com os animais brasileiros e tiraram de sua notícia grande proveito e reflexão. Na história natural de Gesner, Aldrovandi e outros homens do Quinhentos, descreveram-se, sistematizaram-se e foram classificados os animais, construindo com isso uma leitura do lugar de cada ser no Teatro ou na Ordem do mundo. O primeiro desses grandes naturalistas do século XVI a levar em consideração os novos seres descobertos no Novo Mundo foi o francês Pierre Belon. Na sua obra L’histoire de la nature des oyseaux (1555), mencionava um bico de tucano que teria recebido de homens “que navegam as terras novas, tirando seu proveito de todas as coisas, levam o que encontram de bom para vender aos comerciantes”.33 Com base nesse bico, o naturalista fazia uma descrição possível do animal sem jamais tê-lo visto. Além disso, ele citava também o merle ou o melro brasileiro, que teria adquirido, como o bico do tucano, de navegantes. Belon obteve esses animais provavelmente por meio do afluxo de navios decorrente da invasão francesa da Baía de Guanabara. À época em que Belon escreve, os livros de Thevet e Léry ainda não haviam sido publicados e as informações que ele obtém das coisas do Brasil são oriundas diretamente das coisas circulantes nas redes de comércio. Além do melro brasileiro, Belon mencionava a “pega brasileira” e fazia uma importante descrição dos papagaios brasileiros, adicionando-a às descrições de papagaios feitas por Plínio. Todas essas aves Belon havia observado a partir de espécimes trazidos diretamente do novo mundo por comerciantes franceses. Belon descreve também, possivelmente pela primeira vez, um exemplar de tatu do Novo Mundo que ele teria adquirido em, uma de suas viagens, de um mercador ambulante na Turquia. É surpreendente como, naquela época, animais e coisas do Novo Mundo já circulavam pelos mercados orientais.34 Outro desses grandes naturalistas foi o suíço Conrad Gesner. Em sua obra Historiae animalium, publicada em cinco tomos, de 1551 até 1587, entre muitos animais da Europa e de todo o mundo, o suíço mencionava quatro animais brasileiros. O primeiro é o sagui, cuja imagem e descrição haviam sido enviadas a ele pelo boticário da Antuérpia, Peter Goudenberg, que viu o animal vivo.35

OS ANIMAIS BRASILEIROS NAS GRANDES OBRAS DE NATURALISTAS EUROPEUS DO QUINHENTOS

O naturalista Pierre Belon du Mans viajou por muitos lugares do Oriente recolhendo e observando animais diretamente. Além disso, recebeu dos franceses

da França Antártica diversos espécimes do Brasil.

Entre eles, temos o melro brasileiro (era costume na época descrever os novos animais comparando-os com os já conhecidos) e o tucano

pierre belon du mans (1518-1564) À direita: Merle du bresil

Página 319, capítulo XXVII, livro VI,

À esquerda: Portrait d’un bec d’oiseau apporté des terres neues

Página 184, capítulo XXVIII, livro III,

Da obra L’histoire de la nature des oyseaux, avec

leurs descriptions et naïfs portraicts retirez du naturel, escrite en sept livres

Paris: Gilles Corozet, 1555

Acervo Bibliothèque Nationale de France, Paris

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O segundo animal era a preguiça ou haüt que Gesner citava com base na leitura da narrativa de Thevet. Sua descrição é exatamente aquela feita pelo franciscano nas suas Singularidades. O terceiro animal é o tatu, que Gesner mencionava, inicialmente, com base na descrição e representação do tatu vendido nos mercados turcos feitas por Belon. Contudo, o suíço complementava as informações já obtidas com a descrição da carapaça, cauda e patas de um daqueles animais enviadas a ele pelo boticário de Ulm, Adriano Marsilio. Posteriormente, em 1560, na obra Icones animalium quadrupedes, Gesner adicionava às fontes do tatu a descrição que Julio César Scaligero (1484-1558) havia feito na sua obra Exotericae exercitationes de subtilitate adversus Cardanum (1557). 36 Por fim, na categoria das “aves”, Gesner mencionava o beija-flor (Passaro muscato), o tucano e os papagaios brasileiros. Para o beija-flor, o suíço baseou-se na primeira descrição da ave presente no livro De subtilitate de Jerônimo Cardano (1501-1576). 37 O tucano, ou “pega brasileira”, como havia sido denominado por André Thevet em As singularidades, é descrito por Gesner com base no texto do franciscano francês e na cabeça de um desses animais que havia sido dada a ele pelo sábio Giovanni Ferrerio do Piemonte. 38 Além de Gesner, o naturalista bolonhês Ulisse Aldrovandi, em seu gabinete e em seus livros, se mostrava conhecedor de muitos animais e seres oriundos das terras brasileiras. Temos os numerosos exemplares de papagaios do Brasil, o tucano ou, como denominado por Pierre Belon, a “pega brasílica”, o “melro brasílico” e uma “serpente vivípara” do Brasil cuja descrição foi dada ao naturalista pelos padres da Companhia de Jesus. 39 No tocante aos papagaios, Aldrovandi fazia uma síntese de todas essas aves conhecidas até então em todo o mundo e destacava as espécies brasileiras. A descrição do melro brasílico é integralmente extraída da obra de Pierre Belon. Quanto ao tucano, a descrição de Aldrovandi é assaz intrigante.

O naturalista Conrad Gesner foi o primeiro a pensar

No gabinete de curiosidades naturais do médico de

Separando-os em quadrúpedes vivíparos, quadrúpedes

trópicos como os tucanos, descritos pelo naturalista

um sistema de classificação universal dos animais.

ovíparos (batráquios e répteis, exceto as serpentes), aves, peixes e cetáceos, serpentes, moluscos,

crustáceos, testáceos, insetos e zoófitas, Gesner

não deixa de levar em conta os animais brasileiros. É o caso do tatu

Bolonha Ulisse Aldrovandi havia muitas aves dos

como Pegas brasílicas, e os papagaios, que serviramlhe para complementar as informações existentes

acerca dessas aves lançadas na Antiguidade por Plínio, o Velho. Nas ilustrações, vêem-se as imagens de um tucano, de um esqueleto de papagaio dissecado e a

conrad gesner (1516-1565)

figuração do animal presente na árvore do paraíso

Página 18 do Appendix Historiae Quadrupedum

Em sentido horário: De pica bressilica, lib. XII,

De Tato

ulisse aldrovandi (1522-1605)

uiuiparorum & ouiparorum Conradi Gesneri Tigurini,

página 802; Anatomia, páginas 643 e 644, lib. IX;

Tiguri Excudebat C. Froschoverus, 1554

Cortesia United States National Library of Medicine, Bethesda

Nidificatio, página 653, lib. XI.

Ilustrações do livro Ornithologiae, hoc est de avibus historiae libri XII

Bonon[iae]: sumptibus Marci Antonii Berniae: Apud Nicolaum Tebaldinum, 1645-1652

Acervo Bibliothèque Publique et Universitaire Neuchâtel, Neuchâtel

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O naturalista italiano descrevia o tucano lançando mão dos livros de Thevet e Belon, de uma descrição feita por Giovanni Botero (c. 1544-1617) que teria visto a ave com seus próprios olhos 40 e da descrição do cirurgião francês Ambroise Paré (1510-1590), a qual, dentre todas, é a mais intrigante. Paré descrevia o tucano com base na descrição de Thevet e numa dissecção de um animal que havia sido ofertado por um nobre provençal a Carlos IX. Paré o classificava na categoria de “monstro volátil” por ter um bico desproporcional em relação ao resto do corpo. Se Thevet já dava a entender a monstruosidade desse animal, Paré lançava a interpretação final de modo a dispô-lo naquela categoria. 41 Com base nessas descrições, portanto, Aldrovandi identificava dois gêneros de tucanos, o de Thevet e o de Paré, e classificava o animal não entre os monstros, como havia feito o cirurgião, mas entre os corvídeos, ao lado de corvos e aves do paraíso. 42 Finalmente, o naturalista do século XVI a tratar com maior profundidade os animais do Novo Mundo e, em especial do Brasil, foi o flamengo Carlos Clúsio que, já desde o final do século XVI, se interessava pelas coisas peregrinas, pelas plantas e pelos animais recentemente descobertos no Novo Mundo. Em 1605, Clúsio publicava a obra Exoticorum libri,43 na qual traduzia para o latim os livros de Pierre Belon, Garcia da Orta, Nicolau Monardes e Cristóvão da Costa, e implementava as traduções com um estudo próprio sobre animais e plantas das regiões descobertas. Clúsio juntava em um só livro todos os estudos sobre as coisas exóticas ou peregrinas. A partir das muitas descobertas naturalísticas e da organização desse livro, ficava evidente a proposição de uma nova categoria a ser empregada pelos filósofos para entender os seres do novo mundo: a de exóticos.44 Carlos Clúsio, como os naturalistas que até agora mencionamos, descreveu um grande número de animais brasileiros.45 Contudo, aqueles que mais interessam a este estudo, por servirem de termo de comparação com os animais de que tratamos até agora, são o beija-flor, o tatu, a preguiça e os macacos. No que diz respeito ao beija-flor, também denominado por ele ourisia – que significava “raios de sol” –, Clúsio utilizava os exemplares vivos presentes no criadouro de Jacques du Plateau, em Tournai, para a análise e descrição. Além disso, servia-se também das descrições de Oviedo, Francisco Lopez de Gomara, José de Acosta, André Thevet e Jean de Léry.46 Clúsio fazia uma compilação concisa de tudo o que havia sido dito acerca do animal. Destacava a informação sobre a geração da ave a partir das moscas, destoando do que diziam os primeiros jesuítas do Brasil acerca da geração a partir das borboletas, os quais justificavam essa mutação pela dupla coloração do animal. Além disso, Clúsio dizia ter havido uma congregação de jesuítas em Tournai, junto do criadouro de Plateau, de modo a discutir essa questão em pormenor. 47 A proposta da origem dessa ave a partir de uma mosca parece ter feito fortuna entre os franceses, visto que até hoje o beija-flor ou colibri é chamado por eles de oiseau-mouche (pássaro-mosca).

O cirurgião e médico francês Ambroise Paré incluiu o tucano do Brasil no seu livro sobre os monstros por

seu bico ser desproporcional ao resto do corpo. Muitos animais dos trópicos foram inicialmente vistos pelos europeus como monstros, pois destoavam da

normalidade da fauna das zonas temperadas. Antes

de Paré, Thevet já havia aventado em sua descrição a relação dessa ave com os seres monstruosos ambroise paré (1510-1590)

De l’oiseau nommé Toucan

Página 1.005, capítulo XXXV, Le Vingtcinquiesme, livre traitant des Monstres & Prodiges,

da obra Les oeuvres d’Ambroise Paré, conseiller, et premier chirurgien du Roy. Divisees

en vingt neuf livres. Paris: Chez la Vv. Gabriel Buon, 1598

Acervo Bibliothèque Interuniversitaire de Santé, Paris Na página à direita: A obra Exoticorum, de Carlos

Clúsio, teve grande repercussão entre os naturalistas posteriores, como é o caso de Guilherme Piso. Na

ilustração do beija-flor, do livro De India utriusque,

nota-se a clara reutilização da imagem do beija-flor

gravada no livro de Clúsio ambientado em uma planta brasileira

gulielmi pisonis (1611-1678) Guainumbi II

Página 319, lib. V, Historia Natural & Medica, da obra De India utriusque re naturali et

medica libri quatordecim. Amsterdã: Apud Ludovicum et Danielem Elzevirios, 1658

Acervo Bibliothèque Interuniversitaire de Santé, Paris O naturalista Carlos Clúsio, em seu livro Exoticorum, avaliou as narrativas maravilhosas lançadas sobre o beija-flor que, segundo os autores da época, nascia das moscas ou das borboletas. Contudo, Clúsio

analisou-o de perto, pela observação direta das aves do criadouro de Jacques du Plateau carolus clusius (1526-1609)

Colibri, página 96, lib. V da obra Exoticorum libri

decem: Quibus Animalium, Plantarum, Aromatum [...]. Antuérpia: Officina Plantiniana, 1605

Acervo Bibliothèque Numérique Patrimoniale, Estrasburgo

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Sobre o tatu, Clúsio empregava as descrições de Monardes, Oviedo, José de Acosta e Cristóvão da Costa, além de observar um exemplar presente no gabinete de Plateau. Para o boticário Cristóvão da Costa, o osso da cauda do tatu reduzido a pó e transformado em pílula serviria para sedar as dores e curaria a surdez. Com base nessas fontes, textuais e visuais, Clúsio falava de dois gêneros de tatu: aquele descrito por Thevet e ilustrado por Belon e outro descrito por Monardes e presente no gabinete de Plateau. Para descrever a preguiça, Clúsio servia-se das obras de Oviedo, Acosta, Thevet e Léry, mas afirmava ter observado o animal no museu de Rutgero Ioannis F., onde se colecionavam várias conchas e outras coisas peregrinas. Dizia também ter visto um desenho do animal feito por Clemente Coornhaert e Volcardus. Clúsio mencionava o canto da preguiça, coisa que já havia sido narrada pelos viajantes, em especial Thevet, e falava de um espécime levado do Brasil, em 1604, para Amsterdã, e que teria morrido no percurso, conforme narrado por Emanuel Zwerts. 48 Clúsio teria visto o animal morto em Amsterdã e fez dele uma gravura.

Página à esquerda: As preguiças brasileiras foram

amplamente descritas por Carlos Clúsio. Baseando-se em descrições mais antigas e em exemplares vistos diretamente, Clúsio considerou a existência de dois

tipos desse animal, como pode-se notar pelas gravuras apresentadas

carolus clusius (1526-1609) Preguiças

Página 111, lib. V

Página 389, Auctarium,

Da obra Exoticorum libri decem: Quibus Animalium, Plantarum, Aromatum [...]

Antuérpia: Officina Plantiniana, 1605

Acervo Bibliothèque Numérique Patrimoniale, Estrasburgo

À direita: O tatu e o sagui tiveram forte presença nos escritos e concepções dos naturalistas e filósofos

europeus. Os primeiros a tratarem do tatu foram o

naturalista Pierre Belon e o filósofo italiano Girolamo

Cardano. Já o sagui havia sido descrito primeiramente por Conrad Gesner. Clúsio serviu-se de todas essas narrativas na sua grande obra de observação.

É notável a semelhança entre as imagens de Clúsio, Belon e Gesner

carolus clusius (1526-1609)

Em cima: Armadillo, sive Tatou genus alterum Página 109, lib. V

Embaixo: Cercopithecus Sagouin

Página 388, Auctarium, da obra Exoticorum libri decem: Quibus Animalium, Plantarum, Aromatum [...] Antuérpia: Officina Plantiniana, 1605

Acervo Bibliothèque Numérique Patrimoniale, Estrasburgo

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Finalmente, o flamengo descreveu também os macacos brasileiros com base naquelas descrições de Jean de Léry e Gesner, complementando-as com o testemunho de Jacques du Plateau. Este havia-lhe enviado um ícone de um macaco que ele havia desenhado segundo o exemplar ofertado ao príncipe Charles, Duque de Croÿ e Aarschot, e a sua própria observação de um exemplar vivo enviado a ele, junto com alguns papagaios, de Pernambuco. O dito espécime, segundo o naturalista, exalava um odor peculiar. Dessas descrições, Clúsio concluía acerca de três gêneros ou tipos de macacos brasileiros, sendo o último deles aquele sagui já descrito e ilustrado por Gesner, no qual o flamengo se inspirou para gerar uma nova ilustração, mais detalhada por conta da observação direta que ele pode empreender com base em um espécime enviado de Portugal à Espanha e de lá para a Alemanha. Evidencia-se que o naturalista que se fiou menos nos relatos, no ouvir-dizer, e mais na observação direta, na autopsia, foi o francês Pierre Belon. Sua importância e destaque mostram-se evidentes com o despontar do século XVII. Não é por menos que ele se tornou um daqueles autores mencionados e traduzidos integralmente pelo naturalista das coisas exóticas, Carlos Clúsio. Isso porque o flamengo projetou em sua obra um novo programa de história natural quase totalmente baseado na autopsia e calcado nas relatos dos viajantes que viram os tais animais com seus próprios olhos, um programa que privilegiou a observação direta do Livro do mundo.

No século XVII, diversos naturalistas destacaram-se no estudo dos animais brasileiros. Contudo, aqueles que tiveram maior importância para a República das Letras, difundindo seus saberes por toda a Europa, foram, sem sombra de dúvida, George Marcgraf (1610-1644) e Guilherme Piso (1611-1678). Vindos ao Brasil com a comitiva enviada pela Companhia das Índias Ocidentais chefiada por João Maurício de Nassau com o intuito de quebrar o embargo estabelecido pelos castelhanos durante a Dominação Filipina, invadindo as praias nordestinas, esses naturalistas tinham a função de prover maior conhecimento àqueles que se fixariam na terra. Sua presença era crucial no projeto de fixação de um destacamento holandês no litoral brasileiro, mantendo fluido o comércio de açúcar e outros gêneros com os estados flamengos no período dito Nassoviano (1637-1644). A situação de Marcgraf e Piso, ainda que similar àquela de Thevet e Léry, era completamente diversa daquela dos outros historiadores. Ao contrário dos franceses, Marcgraf e Piso não vieram ao Brasil na condição de historiadores ou viajantes, seu estatuto era diverso, vieram para cá na condição de filósofos naturais e médicos e, apesar de terem se preocupado com a descrição desta terra, focaram sua atenção nos fenômenos naturais (clima) e no estudo da natureza local – descrevendo plantas e animais – , das virtudes medicinais dos seres brasileiros e das doenças frequentes nesta geografia. Esses conhecimentos eram essenciais à dominação flamenga. Como os invasores haviam tomado unicamente Pernambuco, essa é a região mais bem trabalhada por esses naturalistas; contudo, eles não se limitaram a ela. Com a ajuda dos nativos e de alguns colonos, Marcgraf e Piso, patrocinados por Nassau, agregaram uma espécie de gabinete de curiosidade a partir do qual estudavam diversas plantas e animais brasileiros. Essa experiência de estudos foi publicada em 1648, em Leiden e Amsterdã, e reeditada, unicamente por Piso, em 1658, em Amsterdã.49 Nessas obras,50 os dois naturalistas analisaram peixes, aves, quadrúpedes, serpentes e insetos brasileiros observando-os diretamente e com os próprios olhos (autopsia). Apesar de mencionarem alguns autores, o que fizeram de maneira extremamente econômica, Marcgraf e Piso confiam inteiramente na sua observação direta e rompem com uma história natural dependente de outros relatos e descrições. O projeto dos naturalistas flamengos decorre daquele formulado e pensado por Carlos Clúsio, que viu nas descrições de Pierre Belon o modelo ideal para uma “nova história natural”, elaborada a partir de observações diretas dos naturalistas, sem dar ouvidos a nenhum tipo de ouvir-dizer ou informações indiretas, que chegavam ao ouvinte sempre de forma deturpada. É por isso que, dos poucos autores mencionados por esses naturalistas, além de Gesner e Aldrovandi, predominava a menção a Clúsio. A aceitação e prática do projeto de Clúsio pelos holandeses no Brasil e por outros naturalistas torna esse procedimento hegemônico no campo da história natural. Daí em diante, toda descrição de plantas e animais passa a ser feita diretamente da observação. A autoridade da narrativa do texto vai perdendo lugar para a autoridade da vista, da observação direta.51 O que Clúsio havia feito nos gabinetes de curiosidades e criadouros europeus é agora feito in loco. É nesse momento que muitos seres que simplesmente constavam nas descrições por ouvir-dizer vão sendo postos a prova e criticados.

OS ANIMAIS BRASILEIROS NAS GRANDES OBRAS DE NATURALISTAS EUROPEUS DO SEISCENTOS

Um belo exemplo disso é o modo como os sábios passaram a tratar os monstros e, em particular, no caso dos estudos sobre os seres brasileiros, o famoso ipupiara. Pelo artigo de Camenietzki & Zeron,52 observamos a longa trajetória dos estudos e das leituras sobre o monstro que foi morto na Capitania de São Vicente. Com base unicamente em ouvir-dizer, muitos autores, desde jesuítas e colonos até importantes naturalistas, como o próprio Aldrovandi, acataram a existência desse ser. A partir do século XVII, pela constante crítica à narrativa do ouvir-dizer e pela necessidade de colocá-la à prova diante das informações transmitidas por viajantes que observavam as coisas diretamente, alguns autores se puseram o problema da verificação da existência desses seres. Foi o caso do médico holandês Pieter Pauw (1564-1617) que, no início do século, havia sido presenteado por Johannes de Laet com um exemplar de um monstro marinho capturado por marinheiros da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil. Ele teria realizado uma dissecção do monstro em Leiden. Quem narrou o fato foi o médico Thomas Bartholin (1616-1680), que possuía em seu gabinete uma pata e uma costela de um desses seres fantásticos e ofereceu delas, em seu livro,53 uma bela gravura. Torna-se fato, portanto, depois das publicações de Piso e Marcgraf, um tipo específico de relação com os animais, sobretudo aqueles do Brasil. Depois dessas publicações, todos os grandes naturalistas europeus, como John Jonston (1603-1672) e Francis Willughby (1635-1672), passam a mencionar, prioritariamente, o trabalho dos dois holandeses sem alusão alguma à enorme quantidade de descrições anteriores baseadas no ouvir-dizer. O polonês John Jonston, nas suas obras sobre insetos, serpentes e peixes, baseia-se somente nas obras de naturalistas de renome, como Aldrovandi, Gesner e Mouffet, e nos gabinetes de curiosidade, como aquele de Ferrante Imperato. No que tange a natureza brasílica, como dissemos, Jonston serve-se majoritariamente das descrições de Marcgraf e, em alguns casos, daquelas de jesuítas como Juan Eusébio Nieremberg (1595-1658), difundindo ainda mais as informações, mais precisas, acerca da natureza brasileira estudada pelos holandeses. Francis Willughby, o importante naturalista da Royal Society of London e colega de John Ray, faz conhecer aos europeus um grande número de aves e peixes brasileiros com base em Marcgraf e no projeto clusiano. A história natural do século XVII, partindo do germe infuso por Pierre Belon e Carlos Clúsio, tornava obrigatória a observação direta, levava o olhar dos naturalistas ao livro da natureza e quebrava fortemente a autoridade inconteste do livro. Isso posto, o caráter mirífico, monstruoso e sobrenatural da natureza brasileira ia perdendo lugar para uma compreensão mais secular. O processo que Weber convencionou chamar de “desencanto do mundo” se deu por essas vias, pela verificação paulatina das informações contidas nas narrativas, pelas críticas ao ouvir-dizer e pelo emprego de uma observação direta das coisas. Notava-se, portanto, uma crise de um registro de racionalidade que deixava espaço para a crença em seres maravilhosos e fenômenos fantásticos. Contudo, essa crise não se dava por um processo de “desenvolvimento” do conhecimento científico, mas por uma alteração de programa intelectual ou de paradigma que não ocorreu sem tensões, controvérsias e resistências.

No início da colonização brasileira, muitos relatos

foram escritos acerca da aparição de um estranho monstro marinho, o ipupiara, tomando por base

o ouvir-dizer, as informações contidas nas narrativas mais antigas e as releituras desses textos.

Com a proposição de uma nova forma de se estudar a natureza com base na observação direta, muitos

naturalistas procuraram pôr à prova, corroborando, as narrativas sobre o ipupiara. Esse foi o caso do médico Pieter de Pauw, que havia dissecado um monstro marinho trazido de Pernambuco pelos

holandeses, e de Thomas Bartholin, que tinha em seu gabinete uma mão de um desses monstros assim como uma de suas costelas

thomas bartholin (1616-1680) Siren

Página 165, cent. II do livro Historiarum anatomicarum rariorum, centuria I et II

Hagae Comitum: ex typographia Adriani Vlacq, 1654 Acervo Österreichische National Bibliothek, Viena

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À esquerda: Com a invasão holandesa de Pernambuco, vieram ao Brasil médicos e naturalistas de grande

importância que observaram a natureza brasileira diretamente. Guilherme Piso e George Marcgraf

estudaram os animais e as plantas do Brasil, assim como seus usos medicinais e as doenças que aqui grassavam. Desses estudos, Piso publicou, sem a

participação de Marcgraf, a obra De India utriusque re

naturali et medica, compilada a partir das informações lançadas na monumental Historia naturalis Brasiliae (1648), e de autoria de ambos os naturalistas gulielmi pisonis (1611-1678) De Indiae Utriusque Re Naturali et Medica, libri quatordecim

Amsterdã: Apud Ludovicum dt Danielem Elzevirios, 1658

Acervo Missouri Botanical Garden, Saint Louis À direita: O relato da aparição do ipupiara aos

primeiros europeus que chegaram ao Brasil teve

grande repercussão na Europa. A partir das narrativas jesuíticas muitas releituras da história foram feitas e

tiveram enorme importância no processo colonizador.

Contudo, essas releituras não foram somente textuais, muitos ilustradores contribuíram com a diversidade de relatos sobre o monstro brasileiro, como é o caso da ilustração de Adrien Coenen adriaen coenen (1514-?)

Het Braziliaanse zeemonster (O monstro marinho brasileiro – ipupiara) Página 52 (verso)

Ilustração aquarelada do Visboek (Livro dos peixes)

Acervo Koninklijke Bibliotheek, Nationale Bibliotheek van Nederland, Haia

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O imaginário do homem antigo, medieval e

moderno era marcado pela presença dos monstros. A palavra deriva do verbo latino mostro, mostrare que significa mostrar. O monstro era aquilo que

fugia à ordem regular da natureza, que era contra a natureza, e que denotava a ação direta de Deus

no mundo. Monstros, portentos e maravilhas eram sinais de Deus, ou dos deuses, na natureza. Por

meio deles, o Deus ou os deuses mostravam seus desígnios. Eram constantemente vistos por

viajantes e filósofos em suas viagens ao redor do

globo, como esses belos exemplares marinhos da representação de Coenen adriaen coenen (1514-?)

De meermin en meerman (A sereia e o tritão) À esquerda: página 189 (verso) À direita: página 190 (frente)

Ilustrações aquareladas do Visboek (Livro dos peixes)

Acervo Koninklijke Bibliotheek, Nationale Bibliotheek van Nederland, Haia

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O projeto de Clúsio influenciou muitos outros intelectuais além dos naturalistas europeus. Dentre estes, vemos destacar-se em importância os filósofos naturais jesuítas. Além dos estudos sobre astronomia e matemática, os padres da Companhia de Jesus também se interessaram pela história natural, tendo muitos irmãos boticários enviado informações e coisas das quatro partes do mundo para o centro da Companhia de Jesus.54 O maior exemplo disso são os trabalhos do jesuíta castelhano Juan Eusébio Nieremberg e os dos alemães Gaspar Schott (16081666) e Athanasius Kircher (1601-1680). O professor da Universidade de Madri, Juan Eusébio Nieremberg, na sua obra Historia naturae maxime peregrinae, de 1635, propunha uma “nova” maneira de se fazer filosofia natural. Aplicando o princípio caro à escolástica aquiniana de que philosophia ancilla teologia (a filosofia é escrava da teologia), o filósofo subordinava o conhecimento natural ao projeto teológico e propunha uma filosofia natural que permitisse ao filósofo conhecer a natureza divina dos seres.55 Nesse programa, bastante conivente com o lugar da Companhia de Jesus, estudava-se, ademais dos animais europeus, aquilo que se convencionou chamar de seres exóticos ou peregrinos. Para isso, o padre propunha um retorno ao modo antigo de se fazer história natural, qual seja, o de servir-se da autoridade daqueles que descreveram esses seres e atinar para as informações maravilhosas. O filósofo mencionava, portanto, vários animais brasileiros, dentre eles, o tatu, a preguiça e o beija-flor. Nieremberg citava todos os autores que trataram do tatu, salientando que, no momento em que escrevia, as espécies identificadas já contavam mais de duas. Desses autores, identificamos Oviedo, Monardes, Thevet, Maffeo, Gesner, Clúsio e Francisco Hernandez, que é o mais mencionado em todo o livro.56 O jesuíta também abordava a virtude medicinal de certas partes do tatu, como o suor que, acreditava-se, servia contra a sífilis, e outras que eram usadas como contraveneno. Esse aspecto da virtude curativa do animal era tido pelo padre como coisa mirífica ou maravilhosa. O jesuíta, depois de mencionar a descrição de diversos autores, desmentia a informação sobre o fato de a preguiça viver sem se alimentar. Acrescentava que o animal se nutria do orvalho de certas folhas e de animais (insetos) que comia às escondidas. Tratava os animais descritos por Thevet e Léry, o haüt e o hay, comparados por muitos naturalistas à preguiça, como animais distintos, um dos quais, ao contrário da preguiça, alimentar-se-ia de ar. Nieremberg colocava em evidência a imprecisão dos relatos para destacar as informações convenientes, desmentindo as análises que se opunham à existência do maravilhoso. Por fim, Nieremberg descrevia o beija-flor com base em todos os autores desde Oviedo, destacando, ao final, o maravilhoso “fato” de o animal gerar-se a partir de uma mosca. Afirmava que alguns contemplaram o momento preciso dessa geração, estando o animal na sua forma intermediária: parte mosca, parte ave; caracterizada pela presença da coloração referente a um e outro animal.57 O beija-flor, como outros, aparecia inserido na categoria dos animais que nascem de outros animais e vinha referido como elemento do debate filosófico acerca da individuação dos seres.58 Com base nesses exemplos extraídos do livro de Nieremberg, vemos que o interesse do autor, para além da descrição dos animais e de sua diversidade, residia naquilo que cada um daqueles seres tinha de maravilhoso, de fabuloso. O tatu era estudado por suas virtudes medicinais espantosas, a preguiça pela lenda de que ela, como muitas moças pias na Europa, não se alimentava de nada sólido ou líquido, e o beija-flor, por sua geração a partir das moscas, como já havia ressaltado o próprio Clúsio. Vemos ainda Nieremberg afirmar em outro livro, Curiosa filosofia (1644), em especial no capítulo IX, que cada planta e cada animal tinham um anjo da guarda. Nieremberg preocupava-se com coisas sobrenaturais e seu projeto científico nada mais era do que um projeto teológico formulado com base num registro de racionalidade muito específico, que sofreu duras críticas da proposta clusiana. Para corroborar ainda mais o que dissemos, um dos pontos de sua análise era o domínio do homem sobre as bestas, no qual narrava o poder mirífico do “santo padre José de Anchieta” sobre os animais. 59

Athanasius Kircher tratou dos animais americanos em diversas obras. Embora não tenha um livro especificamente de história natural, Kircher menciona esses animais nos seus tratados sobre a música, o magnetismo e a peste, ocupando-se, como havia proposto o padre Nieremberg, daquilo que neles havia de mirifico, de maravilhoso. O que interessava a esses homens era o que havia de divino na ordem de mundo. Um belo exemplo disso consta de seu livro Musurgia universalis (1650), no qual relata experimentos dos jesuítas do Brasil com a preguiça, sua voz e seu sistema fonador e todas as maravilhas que dela se dizia. Outro autor da Companhia de grande importância nesse trabalho é o padre Gaspar Schott, conhecido por ser um grande colaborador do famoso padre Athanasius Kircher e tido, por ele próprio, como o matemático taumaturgo. Na sua obra Physica curiosa (1662), 60 o jesuíta dispunha-se a estudar prioritariamente o que chamou de mirabilia ou maravilhas, 61 ou seja, os aspectos fabulosos da natureza, ou melhor, os aspectos da natureza que apontavam para a existência do sobrenatural e glorificavam a Deus. Nesse ponto, o padre Schott estava em perfeito acordo com o projeto de Nieremberg de estudar o aspecto mais beato que sapiente da natureza, sendo que, ao contrário do primeiro, este padre ligava seu projeto de estudo da natura arcana, ou natureza secreta, escondida ou misteriosa, ao grande debate da magia natural. 62 Para isso, o padre se servira do exemplo de alguns animais brasileiros,63 dos quais destacamos a preguiça, o tatu e o beija-flor. Sobre o tatu, Schott baseava-se na autoridade de muitos autores e lançava mão do que havia de mais novo em matéria de história natural sobre o animal em questão. Falava da existência de três gêneros já isolados pelos índios brasileiros em sua nomenclatura. E mencionava as mesmas virtudes que Nieremberg havia incluído em sua obra. Na verdade, Schott citava quase que inteiramente a descrição que o espanhol havia feito do animal. Sobre a preguiça, Schott retomava aquilo que os outros padres e demais naturalistas haviam dito a seu sujeito. Chegava à conclusão que havia dois gêneros do animal, mencionava a sua curiosa vocalização e retomava a discussão acerca da alimentação. Segundo ele, a questão ainda se achava irresoluta, e contava a experiência do padre Joannes Torus, procurador do reino na América, que teria pendurado uma preguiça por quarenta dias sem deixá-la beber, comer ou dormir.64 A experiência tampouco resolvia a questão, mas apontava para o tipo de programa científico abraçado pelos padres da Companhia. O beija-flor era mencionado por Schott na sua Dissertatio physiologica de phoenice, na qual discutia a existência da fênix na natureza. Para o padre, o beija-flor era um animal similar à fênix, pois nascia ou renascia de outro, no caso, uma mosca. Pela existência desse fenômeno, o jesuíta pretendia comprovar a realidade, ainda que não diretamente observada, do pássaro fantástico que renascia das cinzas.

HISTÓRIA NATURAL JESUÍTICA E A NARRATIVA DO MARAVILHOSO DE NIEREMBERG A KIRCHER

Os naturalistas jesuítas preocuparam-se muito com o caráter mirífico ou maravilhoso da fauna brasileira. No caso da preguiça, o que lhes chamou a atenção

foi sua capacidade de permanecer muitos dias sem

se alimentar e o som melodioso que emitia. O padre Kircher, em sua obra Musurgia universalis, sobre a

música, pôs em pauta musical o som da preguiça. Notem que a gravura da qual Kircher lança mão é

muitíssimo similar àquela do livro de André Thevet athanasius kircher (1601-1680) Figura Animalis Haüt

Página 27, lib. I. Anatomicus de Natura

soni et vocis, do livro Musurgia universalis, sive ars

magna consoni et dissoni, in X libros digesta [...] Roma: ex typographia haeredum Franscisci Corbelleti, 1650

Acervo ETH-Bibliothek, Zurique andré thevet (1516-1590) Haüt (preguiça)

Página 100 do livro Les singularitez

de la France Antarctique, autrement nomée Amérique: [et] de plusieurs Terres [et] isles decouvertes de nostre

temps. Paris: chez les heritiers de Maurice de la Porte, au clos Bruneau, a l’enseigne S. Claude, 1557

Acervo Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

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É interessante notar em todos esses autores da história natural jesuítica, substancialmente constituída no século XVII, que todos eles, sem exceção, conheciam e citavam o que havia de mais novo em matéria de história natural. Todos mencionam o Exoticorum de Carlos Clúsio e o Historia naturalis brasiliae de Piso e Marcgraf. O reitor do colégio da Bahia, Simão de Vasconcelos, em sua obra Crônica da Companhia de Jesus no Brasil, quando abordava a descrição dos animais do Brasil, em especial dos marinhos, dizia que Veja-se um livro inteiro composto com curiosidade por Jorge Marcgravi, e é o quarto da História natural do Brasil: ali se acham tantas espécies, que parece não devia haver mais na primeira formação das águas, desde a grande baleia até o peixe mínimo, e se verá que não dão nesta parte vantagem as nossas águas a alguma do orbe.65 Ainda assim, mesmo conhecendo e empregando esses autores novos, os naturalistas da Companhia de Jesus atinham-se ao registro de racionalidade anterior, da época das narrativas do ouvir-dizer, reformulando-o numa nova proposição de saber. A imprecisão do método de observação dos seres do início do século XVI abria espaço para a narrativa do fabuloso, para a crença em coisas que não haviam sido verificadas por espíritos inquiridores. Por isso, a presença da auctoritas e de certo método filológico permitia aos padres da Companhia fazer valer a subsistência daquele antigo registro de racionalidade. Mas não era só isso. Os padres lançavam mão também dos métodos mais recentes para subverter a nova racionalidade que se impunha. Sobre isso, basta lembrar das estranhas experiências do padre Kircher, que se servia do experimentalismo emergente das sociedades científicas para comprovar o aspecto mirífico da natureza. Era a defesa de uma mundividência com base numa nova metodologia. Assim sendo, aquilo que se convencionou chamar de ciência jesuítica, a nosso ver, pelo menos no que se refere ao estudo dos seres vivos, revestia-se de um programa que, sem sombra de dúvida, colocava a filosofia na dependência da teologia e do interesse teológico. A ciência jesuítica foi um saber voltado para a compreensão daquilo que havia de divino na natureza e não da natureza em si, na sua materialidade, ou iuxta propria principia. Contudo, essa formulação não se viu livre de críticas.

Em sua obra Physica curiosa, Gaspar Schott

preocupou-se primordialmente por aquilo que ele

mesmo chama de mirabilia, ou seja, as maravilhas da natureza, e pelas coisas que fogem à constância

natural, pelo curioso. Nesse sentido, a preocupação

primordial do conhecimento natural desses padres era com o que havia de sobrenatural e divino na natureza i. sandrart (s.d.) (sculpt.) Frontispício

Do livro de P. Gaspar Schott (1608-1666)

Physica curiosa, sive, Mirabilia naturæ et artis libris XII [...]. Herbipoli: Sumptibus Johannis Andreae Endteri & Wolfgangi Jun. haeredum, excudebat Jobus Hertz, 1662

Acervo Smithsonian Institution Libraries, Washington DC

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Em 1671, o importante médico grão-ducal Francesco Redi (1626-1697), um dos fundadores e propaladores do que podemos chamar de método experimental, publicava um polêmico opúsculo acerca das coisas naturais trazidas das Índias, oriental e ocidental. A obra, que se intitulava Esperienze intorno a diverse cose naturali e particolarmente a quelle, che ci son portate dall’Indie, tratava especialmente da virtude medicinal e mirífica de certas coisas, de origem vegetal e animal, trazidas dessas novas terras que davam o que falar a todos os grandes sábios da época e em especial aos padres da Companhia de Jesus. O opúsculo vinha a público no formato de uma carta dirigida diretamente ao padre Athanasius Kircher, já mencionado neste trabalho. O autor começava sua digressão expondo que, em 1662, alguns padres franciscanos da ordem dos Zoccolanti haviam trazido da Índia para a Toscana algumas pedras como aquelas mencionadas por Garcia da Orta em seus Colóquios, cuja virtude era contrariar todo tipo de peste e/ou veneno. A tal pedra, extraída da cabeça da venenosíssima cobra indiana dita “de cabelo” – conhecida hoje por naja –, era então famosa por suas virtudes miríficas e antidotais e tal fama era então aceita sem nenhuma verificação ou contestação, exceto por algumas experiências que haviam sido feitas em Roma: uma pelo padre Kircher num cão,66 e outra pelo senhor Carlo Magnini, em um homem doente. Redi então tomava a famosa pedra e fazia algumas experiências, servindo-se de galos que, primeiramente, ele havia “contaminado” com o venenoso “óleo de tabaco”. 67 Uma vez “envenenados”, os galos eram submetidos ao contato da pedra que, segundo os relatos, absorveria o veneno. Dos três galos, apenas um sobreviveu. A partir de então, na presença de muitos homens doutos, Redi servia-se de quatro galos, fazendo-os serem mordidos por venenosíssimas víboras e, então, aplicava-lhes a pedra. O resultado era o total insucesso do funcionamento da pedra e a ocasional morte dos quatro animais. 68 Com base nesse experimento e no seu resultado, Redi seguia fazendo experimentos em muitas outras coisas vindas da Índia Oriental e Ocidental, as quais autores versados em coisas peregrinas afirmavam ter virtudes maravilhosas, sobrenaturais e milagrosas. Das coisas oriundas do Brasil, Redi mencionava o araticum, a cauda e o osso do tatu, os ossos do “peixe-mulher”, a pedra do estômago ou da cabeça da “iguana aquática”, as pedras de rio engolidas por jacarés e as grandes aranhas. O que Redi pretendia com seus experimentos era pôr à prova, sobretudo refutando, a virtude maravilhosa atribuída a essas coisas advindas do Brasil, a qual era usada pelos padres da Companhia de Jesus na sua proposição de saber. Assim sendo, Redi tomava cada uma dessas coisas e as submetia a uma rigorosa e controlada experiência pública de modo a verificar refutando o que se dizia nos relatos sobre suas virtudes, seja pela observação direta, pela autopsia, seja pela observação indireta, pelo ouvir-dizer. Francesco Redi levava a nova história natural de Clúsio a sua nova fase, demolindo de vez o registro de racionalidade que subsistia às custas do ouvir-dizer e do novo método científico jesuíta com base num método experimental de verificação. Como exemplo dessa novidade rediana, podemos observar a verificação da virtude maravilhosa da carapaça de tatu, da virtude da pedra de iguana e dos usos medicinais da grande aranha de Pernambuco. Segundo Redi, dizia-se na época que um dracma (pouco mais de três gramas) da carapaça do tatu provocava o suor daqueles acometidos de sífilis, e que um ossinho da cauda do animal, reduzido a pó, agia contra a surdez se aplicado na orelha. Redi havia testado todas essas qualidades das partes do tatu e afirmava que tudo era mera fábula e, baseando-se na autoridade de Piso, postulava que este autor não mencionava as qualidades dessas partes por nunca ter empreendido uma experiência para testá-las. 69 Acreditava-se, ainda, que a pedra extraída do estômago ou do cérebro das iguanas aquáticas do Brasil sanava milagrosamente as dores nefríticas, tendo virtude diurética, de romper as pedras e abrir as vias à urina. Redi, que possuía muitas dessas pedras, as havia testado em diversas ocasiões sem obter nenhum resultado satisfatório. Havia mesmo provado ao marquês Girolamo Biffi, que o presenteara com um exemplar, a ineficácia de tal substância. 70

REDI E A QUESTÃO DAS COISAS PEREGRINAS

O florentino Francesco Redi teve enorme importância

para o debate médico de sua época, em especial sobre as coisas provindas do Novo Mundo, classificadas por Clúsio na categoria de exóticos. Na obra Esperienze

intorno a diverse cose naturali [...], Redi serviu-se de experimentações para pôr à prova os efeitos de

muitos produtos de origem animal e vegetal tidos por todos como milagrosos. Ao fazer isso, Redi confrontou o conhecimento dos padres da Companhia de Jesus. Na prancha 3, observa-se a pedra retirada da cabeça

da iguana brasileira, que se acreditava possuir grandes virtudes medicinais

francesco redi (1626-1697) Frontispício e tavola 3

Do livro Esperienze intorno a diverse cose naturali e

particolarmente a quelle, che ci son portate dall’Indie Florença: All’Insegna della Nave, 1686

Acervo Bibliothèque Nationale de France, Paris

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CONCLUSÃO

Finalmente, havia a crença na virtude e nos usos medicinais de enormes aranhas vindas de Pernambuco, uma das quais se achava entre as coisas do gabinete do dinamarquês Ole Worm (1588-1655). Essas aranhas, misturadas ao ouro ou à prata, somente com o toque, poderiam curar, subitamente como por milagre, a dor de dente. Coisa que o eminente médico Zacuto Lusitano havia testemunhado e comprovado com grande sucesso e eficácia. Para verificar tal afirmação, Redi havia feito experiências com as unhas dessas aranhas levadas à corte toscana por Dom Antônio Morera, sem nenhum sucesso ou eficácia. Juntamente com essa experiência, Redi também colocava à prova a eficácia medicinal do chifre de rinoceronte, por séculos tido como importante remédio. Assim, o médico toscano mostrava à intelligentsia europeia a falácia de muitos desses simples e descreditava não somente os jesuítas mas também muito pensadores de importância, como o mencionado Zacuto. Como dissemos, Redi lançava um ataque direto ao elogio daquele aspecto inexplicável das coisas do Novo Mundo tão admirado pelos padres da Companhia de Jesus. Opunha-se diametralmente aos intentos da história natural jesuítica e a opugnava, servindo-se do instrumento experimental como meio de testar a dimensão da eficácia farmacêutica de certas coisas do Novo Mundo, muitas delas de origem animal. Redi usava a lógica do boticário contra a lógica do teólogo. Servia-se dos interesses dos Pharmacopolae para mostrar e comprovar os erros dos naturalistas de seu tempo. E somava a isso tudo um método experimental usado de acordo com sua perspectiva. Pois, é necessário lembrar, o mesmo método era talvez usado pelos padres jesuítas em suas análises. Francesco Redi apresentava-se, no final do século XVII, como uma espécie de Nicolau Leoniceno experimentalista, que mostrava a fragilidade de muitas observações tiradas de relatos sem posterior verificação pública. Redi servia-se do experimentalismo para atacar aquele registro de racionalidade presente em todo o século XVI no programa científico da Companhia de Jesus de sua época, que cedia lugar à presença do sobrenatural na natureza. Ele dava forças ao novo registro proposto pela nova história natural pelo ataque direto aos pressupostos teológicos da leitura jesuítica. O dinamarquês Ole Worm teve grande importância para a cultura de fins do século XVII. Seu gabinete

abrigava vários espécimes empalhados de animais brasileiros, muitos dos quais, como esta aranha, haviam sido estudados por Francesco Redi

e usados em sua invectiva contra os jesuítas ole worm (1588-1655) Página 244

c. van mander (del.) & g. wingendorp (sculpt.). Retrato de Ole Worm

Ilustrações do livro Museum wormianum seu historia rerum rariorum

Lugduni Batavorum: ex officina Elseviriorum, 1655 Acervo Bibliothèque Numérique Patrimoniale, Estrasburgo

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Os animais do Novo Mundo e, em especial aqueles do Brasil, deram muito a pensar aos sábios da Europa. Desde os minúsculos beija-flores até as lentas preguiças, esses animais se apresentaram como um fenômeno que impactou o conhecimento da natureza que se tinha então. Mas mais do que isso, foram também objeto de diversos olhares baseados no que podemos chamar de programas intelectuais ou paradigmas. Pelo estudo do modo como, de meados do século XVI até fins do XVII, os europeus interpretaram a natureza brasílica, podemos ver que muitas lentes foram empregadas na leitura do mundo natural dos nossos trópicos. Com base neste estudo, podemos falar da existência de um outro registro de racionalidade na época moderna e de sua crise ao longo do século XVII. Estamos nos referindo ao fato de que, para muitos cientistas, ver o maravilhoso, o prodigioso e o milagroso na natureza não aparecia como um contrassenso em seu programa. Os homens do século XVI percebiam a natureza como a obra de Deus e, por conta disso, levavam em consideração determinados aspectos que hoje apresentam-se não somente obsoletos, mas sobretudo excêntricos aos cientistas. 71 Foi pela crítica de homens como Leoniceno, Belon, Clúsio e Redi que esse aspecto do olhar europeu foi se distanciando do seu horizonte cultural. Contudo, apesar da aparente derrocada daquele olhar, daquele registro de racionalidade, o aspecto maravilhoso, mirífico e milagroso sempre conviveu lado a lado com o olhar despreocupado com esses aspectos. Os usos da ciência condicionavam sua natureza, condicionavam a própria definição de realidade. Enquanto os padres trabalharam nessas terras buscando não só a catequese indígena mas também obter a civilização do colono por meio da fé, a marca do maravilhoso não deixou de preocupá-los. O processo que aqui ilustramos à vol d’oiseau é complexo e tenso, e tem o seu eixo na estreita relação entre cultura e agente da cultura. Se o florescer dos Estados modernos buscou numa cultura menos regada de “crendices”, o seu pressuposto programático, as diversas ordens e instituições ainda associadas aos vários movimentos religiosos tinham na crença o princípio de seu saber. Assim, o estudo dos novos animais do Brasil trouxe para o velho olhar europeu muitos motivos de reflexão, debate e controvérsia. Isso serviu de combustível importante para a reoxigenação daquela cultura e teve consequências diretas para a cultura empregada no processo de colonização das terras em questão. Conhecer a fauna local era um aspecto incontornável da cultura necessária ao europeu no intuito de assenhorear-se da natureza brasílica.

Médicos e naturalistas, como Ole Worm, interessavamse em colecionar espécimes animais e vegetais de sua região e de outras distantes com o intuito de melhor compreender o uso medicinal da fauna e da flora.

Esse costume iniciou-se na segunda metade do século XVI com boticários como Nicolau Monardes e Garcia da Orta

ole worm (1588-1655) Página 244

Do livro Museum wormianum seu historia rerum

rariorum. Lugduni Batavorum: ex officina Elseviriorum, 1655

Acervo Bibliothèque Numérique Patrimoniale, Estrasburgo

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1 Tratava-se de Leoniceno, Nicolau. 1492. De Plinii et plurium aliorum medicorum in medicina erroribus. Ferrara: per L. de Valentia et A. de Castronovo. A crítica que se dirigia principalmente a Plínio, também tocava outros médicos antigos. 2 Sobre o impacto que a crítica de Leoniceno teve entre médicos e boticários, em especial em Portugal, conferir: Leite, Bruno Martins Boto. 2012. Entre bibliotecas e boticas: a controvérsia dos simples entre Amato Lusitano e Pietro Andrea Mattioli, século XVI. In: Alessandrini, Nunziatella et alii. Di buon affetto e commerzio – Relações luso-italianas na idade moderna. Lisboa: Cham, p. 113-142; ver também: Grendler, Paul. 2002. The medical curriculum. In: The Universities of the Italian Renaissance. Baltimore: The John Hopkins Press, capítulo 9. 3 Oviedo, Gonzalo Fernandez de. 1526. Sumario de la historia natural de las Indias. Toledo: s.e.; 1535. Historia natural de las Indias, tomo I, Sevilha: Juan Cromberger; Acosta, José de. 1590. Historia natural y moral de las Indias. Sevilha: Juan de Leon. 4 Thevet, André. 1558. Les singularitez de la France Antarctique, autrement nommée Amerique, & de plusieurs Terres & Isles decouvertes de nostre temps. Paris: Chez les héritiers de Maurice de la Porte, au Clos Bruneau, à l’enseigne S. Claude; Léry, Jean de. 1578. Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil, autrement dite Amerique. La Rochelle: Pour Antoine Chuppin. 5 Anchieta, José de. 1988. Carta ao padre geral de São Vicente ao último de maio de 1560. In: Cartas Jesuíticas 3. Belo Horizonte: Itatiaia, p. 113-153. 6 Rondelet, Guillaume. 1554-1555. De piscibus libri 18. Lyon: M. Bonhomme; 1555. Universae aquatilium historiae pars altera. Lyon: Apud Matthiam Bonhomme, 1558. Histoire naturelle des Poissons. Lyon: Par Mace Bonhomme à la Mace d’or; 1608 (tradução francesa dos dois livros latinos); Salviani, Ippolito. 1554-1558. Aquatilium animalium historiae. Roma: Apud eumdem; Belon, Pierre. 1553. De aquatilibus libri duo. Paris: Charles Estienne. 7 O termo República das Letras é oriundo da cultura clássica e designava, desde o Renascimento, um espaço virtual que transcendia as entidades territoriais e reunia as letras europeias por meio das publicações e da adoção de valores compartilhados. O espaço somente foi possibilitado pela existência de uma língua comum europeia: o latim. 8 Além dos jesuítas, outros habitantes do Brasil da época também haviam relatado e descrito a fauna local em manuscritos, anotações e cartas enviadas à Europa. Era o caso do colono Gabriel Soares de Sousa e do humanista Pero Magalhães Gândavo, que descreveram amplamente os animais e monstros brasileiros. Contudo, como os relatos dos jesuítas, grande parte das narrativas sobre o Brasil escritas por portugueses permaneceu na sua forma manuscrita até o século XIX, quando foram trazidas ao público, exceto os manuscritos sobre o Brasil publicados na coletânea de Giovan Battista Ramusio sobre as viagens. Cf. Ramusio, Giovan Battista. 1550-1559. Delle navigationi et viaggi. 3 vols. Veneza: Apresso gli heredi di Lucantonio Giunti. Contudo, esses manuscritos não tiveram grande importância para os intelectuais europeus como podemos ver neste estudo. 9 O livro, amplamente mencionado pelos naturalistas europeus de fins do século XVI e do século XVII, teve uma edição italiana em 1561 e outra inglesa em 1568. A obra foi vertida duas vezes para a língua portuguesa: a primeira em 1944 pelo antropólogo alagoano Estevão Pinto na coleção Brasiliana e, na segunda, em 1978, por Eugenio Amado pela Editora Itatiaia. A primeira tradução, mais desconhecida do público atual, é bastante cuidadosa e plena de notas, apesar de ter sido feita por um antropólogo inábil com a empresa de traduções e com as análises filológicas. Utilizaremos a tradução do antropólogo Estevão Pinto nas citações deste texto, buscando sempre remediar qualquer imprecisão pela leitura e análise direta do original.

10 Thevet. 1944. Op. cit., p. 158. 11 Thevet. 1944. Op. cit., p. 170. 12 Thevet. 1944. Op. cit., p. 322. 13 Thevet. 1944. Op. cit., p. 401-403. 14 Thevet. 1944. Op. cit., p. 286-288. 15 Thevet. 1944. Op. cit., p. 203. 16 Outra coisa digna de memória é que ninguém jamais viu comer a esse animal, muito embora os selvagens, conforme me afirmaram, o tenham tido sob observação por longo tempo. Nunca acreditaria nisso se não acontecesse o seguinte: os capitães De l’Espiné e Mogneville (aquele da Normandia), passeando, certo dia, por entre as altas árvores de um bosque, atiraram, com o arcabuz, em duas de tais feras, que se achavam trepadas no cimo de uma dessas árvores; ambas caíram em terra, uma seriamente ferida, mas a outra apenas aturdida. Tendo-me sido feito presente da última, verifiquei que esta não quis comer ou beber por espaço de vinte e seis dias, permanecendo sempre no mesmo estado, quando, afinal, foi estrangulada por alguns dos nossos cães, que os franceses tinham levado para a América. Acreditam algumas pessoas que esse animal vive somente das folhas de certa árvore, chamada na língua dos índios de amahut. Trata-se de uma árvore mais alta que todas as outras da região, de folhas, entretanto, pequeninas e delicadas. [...] Tive, a propósito do assunto, ocasião de ver, em Constantinopla, certos camaleões engaiolados; afirmava-se que viviam exclusivamente do ar. Motivo pelo qual penso ser verdade o que dizem os selvagens a respeito do haüt. Demais, aconteceu que o animal permanecesse noite e dia ao vento e à chuva (à qual essa região está sempre sujeita), conservando-se, todavia, sempre enxuto, como dantes. Thevet. 1944. Op. cit., p. 308-310. Naquela época, com base em algumas informações advindas dos antigos, acreditava-se que certos animais não se alimentavam de nada a não ser de ar ou vento. Houve algumas controvérsias a esse respeito entre os médicos da época. Cf. Leite, Bruno Martins Boto. 2012. Lire le livre du corps par le livre du Monde: essai sur la vie, philosophie et médicine d’Estêvão Rodrigues de Castro (1559-1638). Tese de doutorado. Florença: Instituto Universitario Europeu. 17 J’avais vu aussi un livre, qui parle des Singularitez de la France Antarctique, où Monsieur de Villegagnon alla il y a treize ans. Mais, hors-mis la description du pays où nos français descendirent, la plus grande part de cette histoire n’est farcie que de mensonges, non pas forgés par l’autheur, mais par des mariniers, qui lui en comptaient ainsi qu’il recite. Vouz y verrez de beaux comptes des Amazones, des fautes en la situation des lieux, & des abuz, en l’interpretation de beaucoup de choses, comme quand il veut décrire la séparation des terres du Roy d’Espagne, & du Roy de Portugal. Gomara, Francisco Lopez de. 1577. Histoire généralle des indes occidentales et terres neuves qui jusques à present ont esté descouvertes. Tradução de M. Fumée. No prefácio “Au lecteur”. Paris: Chez Michel Sonnius. 18 Além desses, Léry também descrevia o tapir, o seouassou (cervo), o taiassou (porco do mato), o aguti (cutia), o tapiti, o pag (paca), o sarigoy (gambá), o teiú (lagarto), certos sapos grandes, diversos tipos de serpentes, um lagarto monstruoso, o ian-u-are (jaguar ou onça), o cay (pequeno macaco) e o coati. 19 Léry, Jean de. 2007. Viagem à terra do Brasil. Tradução de Sergio Milliet. Belo Horizonte: Itatiaia, p. 145. 20 É importante notar que o morcego, nessa época, era classificado entre as aves por suas asas.

30 Catálogo Johan Swammerdam, 1679, p. 24-26. 31 Libri Principis, 1995, vol. I, p. 69. Sobre o gosto dos holandeses pelos papagaios, cf. Campos, Mariana Françozo de. 2009. De Olinda a Olanda: Johan Maurits van Nassau e a circulação de objetos e saberes no Atlântico holandês (século XVII). Tese de doutorado. Campinas: Unicamp. 32 As descrições desses animais, assim como suas imagens, encontram-se no catálogo do gabinete de Worm. 1655. Museum Wormianum, seu, historia rerum rariorum, Leiden: Apud Jean Elsevier, p. 244, 298-299, 308, 312-313, 319. 33 Tradução livre. [...] qui naviguent aux terres neuves, faisant leur profit de toutes choses, portent ce qu’ils trouvent de bon, pour vendre aux marchands. 34 Cf. Belon, Pierre. 1553. Op. cit. Observa-se no título dessa narrativa de viagem a presença da palavra singularitez, usada por Thevet no título de sua obra. É bem provável que Thevet tenha se inspirado na proposta de Belon para escrever seu relato e pontuar seus interesses. 35 A descrição e a imagem do sagui aparecem no Icones Animalium quadrupedes (1560). 36 Scaligero, Júlio César. 1557. Exotericarum exercitationum liber quintus decimus de subtilitate ad Hieronymum Cardanum. Paris: Ex officina Typographica Michaelis Vascosani, p. 277a. 37 Cardano, Gerolamo. 1551. De subtilitate libri XXI. Lyon: Apud Gulielmum Rovillium, p. 406. Cardano trata, neste capítulo do livro em que fala do beija-flor, de uma série de animais novos, desconhecidos dos antigos, que colocam em xeque a clássica teoria dos seres de Aristóteles. Isso mostra a importância da notícia desses animais na inovação do debate filosófico da época moderna. 38 Autor do livro De vera cometae significatione, contra astrologorum omnium vanitatem libellus. Paris: ex officina Michaelis Vascosani, 1540. 39 Aldrovandi, Ulisse. 1640. Serpentum et draconum historiae libri duo. Bolonha: Apud C. Ferronium, p. 309. 40 Infelizmente não fomos capazes de localizar a dita descrição da ave feita por Botero. 41 Paré, Ambroise. 1585. Les oeuvres d’Ambroise Paré, [...] divisées en vingt huict livres avec les figures et portraicts, tant de l’anatomie que des instruments de chirurgie, et de plusieurs monstres, reveuës et augmentées par l’autheur. Quatriesme Edition. Paris: Gabriel Buon, Avec privilege du Roy, 1585. Capítulo XXXV: Des monstres volatiles, p. 1.086. 42 Ave que deu muito o que falar aos filósofos da época moderna. 43 Clúsio, Carlos. 1605. Exoticorum libri decem. Antuérpia: Ex officina Plantiniana. 44 Sobre isso, Emile Guyénot disse que: Pendant ce temps, les voyageurs, les missionnaires rapportaient des contrées lointaines les descriptions ou les dessins d’animaux inconnus qui ne faisaient, en accroissant le nombre d’espèces, que compliquer la tâche des classificateurs. Souvent, ceux-ci créeront, faute de mieux, l’ordre des “exotiques”. Guyénot, Emile. 1941. Les sciences de la vie aux XVIIe et XVIIIe siècle – L’idée d’évolution. Paris: Albin Michel, p. 58. 45 Clúsio descreve o morcego brasileiro com base no relato de Léry; o beija-flor, o tatu, a preguiça e os papagaios, com base no relato de Léry e, na síntese aldrovandina, os macacos e as serpentes. 46 Coisa interessante a se notar: apesar de Clúsio mencionar Thevet, o naturalista flamengo toma claramente a posição de Jean de Léry contra aquela do franciscano. Isso provavelmente devido a sua postura religiosa.

21 Depuis les grandes découvertes, les perroquets et les aras sont très admirées. Vivants, on ne les trouve guère que chez les princes. […] La volière la plus importante, bien qu’elle fût quasi inacessible, était celle de l’empereur Rodolphe II, connue aujourd’hui encore grâce aux peintures que l’empereur faisait exécuter par les Hoefnagel (Vienne, Bibliotheque Nationale), et que Clusius avait utilisées pour ses Exoticorum libri de 1605. Schnapper, Antoine. 1988. Le géant, la licorne et la tulipe – Collections françaises au XVIIe siècle. Paris: Flammarion. 22 Um inventário completo desse gabinete encontra-se em Bauer, Roland & Haupt, Herbert. 1976. Die Kunstkammer Kaiser Rudolfs II in Prag. Ein Inventar aus den Jahren 16071611. In: Jahrbuch der Kunsthistorischen Sammlungen in Wien, 72, 1976. 23 Tra gli animali stranieri, che non antico, e real costume si mantengono ne’ serragli del Serenissimo Granduca mio Signore, vi si vede un’uccello di rapina, che di grandeza, di figura, e di color di penne, è similíssimo al Bozzagro, se non quanto ha una fascia nera in quella parte, nella quale il collo si unisce al capo. Nasce nel Brasil, e si chiama Hancohan, e dicono esser questi il primo, che sia stato portato vivo in Europa. [...] E quanto prima ancora osservero minutamente un’altro animale quadrupede, che venuto, pochi giorni fa, dal Brasil, vive ne’ medesimi serragli; ed è quello stesso, che da Guglielmo Pisone fu chiamato Capybara, ovvero Porco di fiume; Redi, Francesco. 1671. Esperienze intorno a diverse cose naturali e particolarmente a quelle, che ci son portate dall’Indie. Florença: All’insegna dela Nave, p. 77-78. 24 À la même époque, Charles de Croy, plus célèbre pour ses médailles, avait formé au Château Beaumont une superbe volière, acquérant notamment en 1605 la collection rassemblée à Tournai par Jacob Plateau. On y voyait des oiseauxmouches du Brésil […]. Schnapper. Op. cit., p. 78. 25 Kircher, Athanasius. 1678. Romani Collegi Societatis Jesu Musaeum Celeberribum. Amsterdã: Ex officina Janssonio-Waesbergiana. Caput VI: Apparatus rerum peregrinarum ex omnibus orbis plagis collectus, p. 23-35 26 Moulinet, Claude. 1692. Le cabinet de la Bibliothèque SainteGeneviève. Seconde partie: Histoire naturelle. Paris: Antoine Dezallier, p. 186-188, 191-192. 27 Aspectos como a “etimologia” dos nomes dos seres estudados, a “anatomia”, aquilo que hoje chamamos de “etologia e fisiologia”, a “simpatia e antipatia” que cada um dos seres tem por outros seres vivos e por substâncias, a “fisiognomia”, os diversos “provérbios” envolvendo o ser estudado, os “emblemas e símbolos” levando em conta esses seres, os “milagres, presságios, prodígios e monstros”, as “mitologias, apologias e fábulas”, os “sonhos”, as “histórias”, as “morais”, os “usos alimentares”, etc. Estudar a natureza naquela época envolvia conhecimentos filológicos, filosóficos, teológicos e médicos. Sobre esse aspecto mais abstrato das coleções e do princípio que norteava a organização dos gabinetes de filósofos e teólogos, ver: Vasoli, Cesare. 2005. L’enciclopedismo del Seicento. Nápoles: Bibliopolis. 28 A função de “protomédico” na estrutura organizacional dos médicos nas cidades europeias dizia respeito à regulação do modo como eram produzidos os remédios pelos boticários. Aldrovandi tinha a função de regular a produção dos medicamentos pelas boticas de Bolonha. Ele teve grande importância na produção da teriaca daquela cidade. Cf. Olmi, Giuseppe. 1977. Farmacopea antica e medicina moderna: la disputa sulla Teriaca nel Cinquecento bolognese. In: Physis, 19: 277. 29 Schnapper. Op.cit., p. 62.

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bruno martins boto leite

47 Eam quum Provincialis eorum qui in Brasilia viventes, patres è Societate Iesu se profitentur conspiceret in urbe Tornacensi apud ipsum Iacobum, portentosam illius originem praesentibus quibusdam ex ea societate enarrabat: Brasilienses videlicet huic aviculae nomen Ourissia impossuisse, quod Latinè redditum, Solis radium significat: ex musca procreari: & se conspicatum partim muscam, partim avem, testari posse: primum ejus colorem esse nigrum, deinde cineraceum, postea roseum, denique rubentem postremo caput ejus Solis radiis expositum, omnem colorem referre. Clúsio, Carlos. Op. cit., p. 96. Infelizmente ainda não temos nenhum indício escrito dos argumentos e pontos desse debate travado entre os jesuítas em Tournai sobre a natureza do beija-flor. 48 Clúsio, Carlos. Op. cit., p. 372. 49 Piso, Willem; Marcgraf, George. 1648. Historia Naturalis Brasiliae, auspicio et beneficio illustriss. I. Mauritii com. Nassau. Leiden & Amsterdã: Apud Franciscum Hackium / Apud Lud. Elzevirium; Piso, Guilherme. 1658. De India utriusque re naturali et medica libri quatordecim. Amsterdã: Apud Ludovicum et Danielem Elzevirios. A primeira edição da obra apresenta-se dividida em duas partes: a primeira, de autoria de Guilherme Piso, intitula-se Sobre a medicina brasileira e trata-se da composição do clima brasileiro, das doenças locais, dos venenos e antídotos e das faculdades dos simples; a segunda, de autoria de George Marcgraf, que se intitula-se História das coisas naturais do Brasil e trata das plantas, dos animais e dos povos indígenas locais. Ficam evidentes, nessa edição, o lugar e a função ocupados por cada um desses naturalistas no estudo da natureza brasileira. Piso apresentava-se como o médico e Marcgraf, como o historiador natural. Na segunda edição, ao contrário, Piso apresentava-se como ambas as coisas. Há portanto diferenças no modo como Marcgraf e Piso descreveram os animais brasileiros. 50 A historiografia geralmente compreende a publicação de Piso, de 1658, como uma reedição da edição de 1648. Nós acreditamos haver muitas diferenças entre as edições, contudo, não convém neste estudo fazer a distinção entre uma e outra. Por conta disso, trataremos ambas como fruto de um único projeto intelectual relativo ao estudo da natureza brasílica. 51 Deriva disso o projeto cartesiano, esboçado no Discurso do método, em se servir das viagens como melhor meio de se conhecer a natureza em oposição ao estudo das letras e das línguas (studia humanitatis). 52 Camenietzki, Carlos Ziller & Zeron, Carlos Alberto de Moura Ribeiro. 2000. Quem conta um conto aumenta um ponto: o mito do ipupiara, a natureza americana e as narrativas da colonização do Brasil. Revista de Índias, 60(18): 111-134. 53 Bartholin, Thomas. 1654. Historiarum anatomicarum rariorum – Centuria I & II. Amsterdã: Apud Ioannem Henrici, p. 169-173. 54 Já mencionamos anteriormente o Museu Kircheriano ou Museu do Colégio Romano. Nesse gabinete, haviam muitos objetos enviados do Brasil. Ainda falta saber em que condições as coisas brasileiras do gabinete do Colégio haviam sido para ali enviadas e qual a parte das boticas dos colégios do Brasil nessa história.

55 No primeiro capítulo do livro, cujo título é Usus, & voluptas, & dignitas Philosophiae de natura animata (Uso, prazer e dignidade da filosofia da natureza animada), Nieremberg dizia que Ubinam Deus, ubi homo ex naturalibus disciplinis plus notet? Illud beatitudo, istud sapientia est. Nullo alio natura beneficio, ave ingenium solertia humanam dignitatem, divinamque dignationem explanavit evidentius, quam in speculatione animatae substantiae. Si Theologiam demas, scientiarum omnium est praestantissima: nulla latios, excellentior, placidior, certior, utilior, ausim dicere divinior. Nieremberg, Juan Eusebio. 1635. Historia naturae maxime peregrinae. Antuérpia: Officina Plantiniana Balthasaris Moreti, p. 1. O programa filosófico de Nieremberg deve ter bebido bastante da filosofia de Marsilio Ficino, que propunha como meio de compreensão da natureza divina das coisas uma pia philosophia. 56 Convém lembrar que o trabalho de Francisco Hernandez já vinha sendo publicado, em partes, desde 1615. A primeira veio a público no México por Francisco Ximenes na referida data. O restante foi editado em Roma com o patrocínio da Accademia dei Lincei, em 1628. 57 Nieremberg. Op. cit., p. 239. 58 A “individuação dos seres” era uma questão lapidar no interior da escolástica, em especial aquela escotista. O modo como cada indivíduo se gerava era ainda um ponto tenso e discutido entre os filósofos da época moderna. O exemplo do beija-flor trouxe para o debate importantes elementos de argumentação que fizeram com que os filósofos saíssem da órbita da abstração e observassem e discutissem fenômenos perceptíveis. 59 Nieremberg. Op. cit., capítulo XCIV: De dominio in animalia S. Patris Josephi Anchietae, p. 203-205. 60 Reparem que a palavra curiosa é recorrente entre esses autores da Companhia. Vemo-la na Filosofia curiosa de Nieremberg e na Physica curiosa de Schott. 61 Os capítulos do livro em questão são organizados da seguinte forma: I. Mirabilia Angelorum ac Daemonum; II. Mirabilia Spectrorum; III. Mirabilia Hominum; IV. Mirabilia Energumenorum; V. Mirabilia Monstrorum; VI. Mirabilia Portentorum; VII. Mirabilia Animalium in genere; VIII. Mirabilia Animalium terrestrium; IX. Mirabilia Animalium volatilium; X. Mirabilia Animalium aquatilium; XI. Mirabilia Meteororum; XII. Mirabilia Miscellanea. 62 Esse autor já havia publicado uma obra, em quatro tomos, especialmente sobre a magia: 1557-1559. Magia universalis naturae et artis, 4 vols., Wurzburgo: sumpt. haeredum J. G. Schönwetteri. 63 Schott menciona, além dos três animais que estudaremos em pormenor, a anta, o tamanduá, o gambá, a maritacaca, o cuandu, os macacos e os papagaios. 64 Schott. Op. cit., vol II, p. 908. 65 Vasconcelos, Simão de. 1977. Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis: Vozes, p. 161-162. 66 A experiência do padre Kircher é narrada na sua China illustrata (1667). 67 Na época, o tabaco era tido por alguns médicos como venenoso. 68 Note-se que a prática de testar alexifármacos em galos envenenados já era usual em épocas anteriores no Grão-Ducado da Toscana. Na peste de 1630-1633, o médico português, Estêvão Rodrigues de Castro, usou alguns galos para testar a eficácia de certos remédios. 69 Redi. 1671. Op. cit., p. 66-67. 70 Redi. 1671. Op. cit., p. 71. 71 Sobre isso, cf. Céard, Jean. 1996. La nature et les prodiges. Genebra: Droz.

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