\"Anjos da morte: o lado negro da enfermagem nas práticas do Cuidar\". Comunicação apresentada no Congresso Internacional Culturas em Negativo, 1-3 de outubro, Universidade do Minho Braga

June 7, 2017 | Autor: Ana Monteiro | Categoria: Ethics, Health Care, Nursing Ethics, History and Epistemology of Nursing
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Anjos da morte: o lado negro da enfermagem nas práticas do Cuidar ANA PAULA MONTEIRO1 [email protected] Resumo A dimensão da violência em Enfermagem e a sua participação em processos de extermínio não tem sido objecto de análise sistematizada. Como é que o homicídio pode ser concebido como parte integrante de Cuidar em Enfermagem, como uma banalização de rotinas profissionais? Esta comunicação tem por objectivo partilhar uma reflexão sobre “o lado negro da enfermagem“ a partir da visualização do filme “Dasein ohne Leben” (Existência sem Vida). É um curto filme de propaganda nazi que pretende apresentar a “animalidade” de pessoas com doença mental, realçando a bizarria, a fealdade, a extrema dependência e, eventualmente, o sofrimento inútil destas pessoas. Pretendeu-se, através de um enquadramento histórico-conceptual e tendo em conta os referentes teóricos da enfermagem sobre o cuidar, a busca de algumas pistas de inteligibilidade. Alguns eixos emergiram desta análise: o uso acrítico da tecnologia e do “projecto tecnológico da modernidade” incorporado pela enfermagem e pelos enfermeiros a troco do reconhecimento social do seu papel; a instrumentalização da enfermagem por processos políticos; a falta de autonomia; a subordinação hierárquica da Enfermagem e a questão do biopoder na relação do cuidado. Palavras-Chave: Eutanásia; Nazismo; Cuidados de Enfermagem; Tecnologia; Biopoder.

Abstract The dimension of violence in nursing and its participation in processes of extermination has not been the object of systematic analysis. How can murder be conceived as an integral part of nursing care, as a banalization of professional routines? The goal of this paper is to share a reflection about "the dark side of nursing", starting with the viewing of the film "Dasein ohne Leben" (Existence without Life). This is a short film of Nazi propaganda which intends to showcase the "animality" of mentally ill persons, emphasizing their bizarre nature, their ugliness, their extreme dependence, and, eventually, their pointless suffering. Its aim is to search for some clues about intelligibility, through a historical-conceptual framing and considering the theoretical references in nursing care. A few axis emerged from this analysis: the acritical use of technology and "modernity's technological project" incorporated by nursing and nurses in exchange for the social recognition of their roles; the instrumentalization of nursing by political processes; lack of professional autonomy; the hierarchical subordination of nursing and the question of biopower in care relations. Keywords: Euthanasia; Nazism; Nursing care; Technology; Biopower.

Introdução A literatura recorrente sobre o Cuidar em Enfermagem reporta conceitos humanísticos e holísticos baseados nos valores da integridade pessoal, compaixão, acolhimento e respeito pelos direitos humanos fundamentais (Leininger,1978; Orem, 1987; Meleis, 2012). No entanto, precisamente porque os cuidados de enfermagem se situam no contacto directo com a mais extrema vulnerabilidade humana em situações de dependência física e emocional, 1

Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC) Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICISA: E); Unidade Científico Pedagógica de Enfermagem Fundamental. Coimbra, Portugal.

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os enfermeiros estão numa posição privilegiada de poder face a pessoas em situações-limite (Salvado, 2010). Cuidar é também um modo de agir sobre o poder de existir, mobilizando-o, utilizando-o e desenvolvendo-o sempre que o amplia ou, pelo contrário, reduzindo-o, contraindo-o ou imobilizando-o de cada vez que o cuidar atenua as capacidades da pessoa para poder existir em plenitude (Collière, 1996). Esta “situação de poder” possibilita condutas de alienação e coisificação do outro, atitudes destrutivas e manipuladoras ou mesmo a tentação da omnipotência paternalista, que, nos casos mais extremos, pode conduzir efectivamente à morte intencional das pessoas alvo dos cuidados. Na investigação empírica e construção teórica sobre o sentido do cuidar, parece existir uma espécie de “buraco negro” sobre o papel dos enfermeiros e da enfermagem institucional em processos de aniquilamento, violência e tortura sistematizadas, tão bem documentadas noutras profissões, como se tais eventos nunca tivessem ocorrido. Como se não existisse qualquer possibilidade de conexão entre o imaginário romântico e maternal da enfermeira cuidadora (que serviu de ancoragem aos padrões de compreensão da enfermagem a partir de Florence Nightingale) e a possibilidade de tortura e aniquilação física no contexto do cuidado de enfermagem. E se é verdade que no imaginário popular, no folclore urbano e nas fantasias de morte expressas nos filmes de terror, as enfermeiras são por vezes retratadas como as matronas, as fabricadoras de anjos (uma imagética muito próxima das parteiras ou enfermeiras de cuidados maternos) ou como potenciais exterminadoras, pela sua implacável proximidade com os corpos vulneráveis e pelo seu manejo das agressivas biotecnologias hospitalares, essas dimensões não têm repercussão imediata na pesquisa teórica em enfermagem. Os casos pontuais e relatos de enfermeiras que cometem atentados contra a vida e integridade física dos seus doentes, intencionais ou negligentes, tendem a ser retratados apenas como “casos de polícia”, situações completamente excepcionais resultantes de particularidades exclusivamente individuais e subjectivas. Apenas muito recentemente alguma investigação analisou o papel activo de enfermeiros nos processos de extermínio institucional de doentes mentais e de programas de eutanásia em massa de doentes residentes em asilos e casas de repouso na Alemanha Nazi e a activa colaboração científica na experimentação em seres humanos (Benedict & Shields, 2014). Outra linha de pesquisa, igualmente ténue, tem-se debruçado sobre "lado negro de enfermagem" na relação com os doentes, identificando formas violência e abandono, negligência, processos de marginalização e rotulagem de alguns doentes (pessoas com SIDA ou com comportamentos suicidários, doentes mentais, pessoas de grupos minoritários) e o impacto de estereótipos culturais estigmatizantes nos cuidados de enfermagem (Corley & Goren, 1998). Esta questão do exercício dos cuidados de enfermagem, nos múltiplos settings onde se exerce a prática profissional, mas, muito especialmente em situações de internamento hospitalar, remete para uma compreensão do conceito de poder na relação de cuidado. 1 - Uma Existência sem Vida Esta comunicação tem por objectivo partilhar uma reflexão mais sistematizada sobre “O lado negro da enfermagem“ a partir da visualização do filme “Dasein ohne Leben,” (Existência sem Vida). É um curto filme de propaganda nazi que pretende apresentar a animalidade de pessoas com doença mental, a bizarria, a fealdade, a extrema dependência e, eventualmente, o sofrimento inútil destas pessoas. O programa de eutanásia foi a primeira campanha do regime nazi de assassínio industrializado contra populações específicas, consideradas inferiores ou uma ameaça para a saúde da comunidade.

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O programa de eutanásia, extenso e meticulosamente operacionalizado, teve o nome de código "Operação T4" assim designada porque era a abreviatura o endereço da sua sede em Berlim (Tiergarten 4). O alvo: doentes mentais e deficientes físicos internados em hospitais, asilos e casas de repouso por toda a Alemanha, considerados como tendo "uma vida indigna de viver" - lebensunwertes Leben (Freidlander, 2001). Os assassinatos iniciaram-se em agosto de 1939 com a eutanásia de bebés e crianças com deficiência ou malformações físicas. Todas as maternidades e unidades de pediatria e neonatologia da Alemanha receberam indicações para referenciar crianças até três anos com estas características. O programa de eutanásia das crianças envolveu a selecção e transferência de crianças identificadas e referenciadas por médicos, enfermeiros e parteiras, que foram deslocadas para enfermarias infantis especiais estabelecidas em mais de 20 hospitais. Nesta fase inicial foram mortas pelo menos 5.000 crianças através da administração de doses letais de medicamentos2 ou por meio de inanição, em que as crianças morriam à fome3. Nos hospitais alemães matar tinha-se transformado numa actividade clínica normal e corrente, com a legitimidade de uma “acção misericordiosa”. Neste processo, um número considerável de enfermeiros e parteiras, participou activamente quer na selecção, quer na eutanásia directa de crianças, realizando assassinatos sistemáticos como uma parte integrante do seu papel de cuidadores (Benedict & Shields 2014: 8). O programa foi considerado um êxito e posteriormente expandido para incluir as crianças mais velhas e doentes mentais adultos. Segundo alguns autores, o T4 permitiu a eliminação de mais de 200 000 doentes e deficientes, que, de uma forma mais organizada, foram as primeiras cobaias experimentais da “solução final” e do holocausto (morte através de gás)4. De acordo com a documentação fornecida por Michael Burleigh (1994), este filme foi provavelmente realizado durante 1941 por Hermann Schweninger e, juntamente com outro material deste tipo, foi exibido para um público muito restrito em 10 de maio de 19425. O filme fazia parte de uma poderosa operação de propaganda destinada a promover a aceitação pública de programas de eutanásia de doentes mentais - o Programa T4 e os guiões foram escritos em conjunto com médicos alemães. Havia instruções precisas para seleccionar os doentes mais aberrantes e mais fisicamente disformes em contraste com a beleza das enfermeiras, dos cuidadores e dos espaços hospitalares que deveriam ser devidamente evidenciados nas filmagens (Burleigh & Wippermann,1991). O título do filme - Dasein ohne Leben – Existências sem Vida, remete para uma propaganda crua da coisificação que passa por uma coreografia estética do grotesco. Tratando-se de um filme de marketing político, com uma ideologia muito própria, todos os espaços são encenados e coreografados de uma forma bastante específica, em que o aparato da tecnologia cinéfila, incluindo os jogos de luz e sombra, os movimentos encenados das pessoas filmadas, numa macabra “direcção de actor”, são usados para nos orientar emocionalmente num sentido poderoso, ao mesmo tempo que a sequência parece obedecer a pressupostos biomédicos. Numa normatividade estética usada pela ideologia médica da época, ou seja, parecendo apenas cumprir os pressupostos de cartografia técnica dos rostos, a filmagem da face e do olhar deliberadamente embrutecido pelos jogos de luz, é realizada com o objectivo de retratar a animalidade e a des-humanidade das pessoas que nos fitam, distorcendo os traços, os gestos, os repetitivos risos disformes.

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As overdoses de medicação consistiam em injecções intramusculares de Escopolamina ou era administrado Fenobarbital peros diluído nos alimentos e bebidas (Benedict & Shields, 2014). 3 Os doentes que foram designados para receber uma dieta restrita morriam em média ao fim de três meses, o que era considerado demasiado tempo (Benedict & Shields, 2014). 4 Num dos únicos filmes existentes sobre o extermínio de doentes mentais através de gás (inicialmente foi testado monóxido de carbono), uma jovem enfermeira encaminha gentilmente os doentes mentais para o “local de abate”. 5 Perdido após a II Guerra Mundial, o filme foi recuperado em 1989-1990 em Potsdam.

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No centro do filme estão os rostos6. Um olhar com treino clínico consegue identificar neste filme, quase automaticamente, traços de patologia na imediatez das imagens a preto em branco – “idiotia”, baixo quociente de inteligência, Síndrome de Down, movimentos coreicos, tiques neurológicos. A mentira como arte, de que falava Arendt (1972), mas que perpassa uma mensagem poderosíssima e indelével. No filme, uma sequência de rostos fitam-nos de uma forma pungente. Perplexidade, medo, apatia, tristeza profunda, riso inocente. É para nós que olham estes homens e estas mulheres com um estranho sentido de proximidade e desafio. No minuto 0:43:21 uma mulher de cabelo preto provavelmente judia olha-nos directamente. Nada no rosto demonstra patologia, estado confusional, desvio ou perturbação. Pelo contrário – é um olhar profundamente lúcido e inquisidor que nos observa para dentro do futuro. Há uma suspensão do tempo na sequência das imagens, permitindo “dar a ver o que não tem vestígios” - o processo de aniquilação que se anuncia nesta evidência de propaganda. Os rostos filmados revelam o fulgor das “vidas relâmpago” de que falava Foucault (1977), uma colectânea de registos sintetizados de vidas através de fotogramas. As palavras de Levinas (1982) convocam-nos: “Para ver o rosto é preciso ver muito para além do rosto. (…) O rosto do outro, na sua nudez e na sua fragilidade de ser único exposto à morte, é ao mesmo tempo o enunciado do imperativo que me obriga a não o deixar sozinho”. Nos últimos minutos do filme, um doente mental é alimentado à força através de uma sonda nasogástrica por enfermeiros. A nutrição é tipicamente um procedimento de enfermagem. Procedimento inicialmente articulado com a maternage do cuidado centrado na pessoa (alimentar e nutrir é a primeira forma de cuidar de uma pessoa, remetendo para os laços primitivos da vinculação emocional e do cuidado materno), nos espaços clínicos das tecnologias da saúde a alimentação e o equilíbrio nutricional aparece claramente referenciado como uma necessidade humana básica colmatada através de cuidados de enfermagem (Henderson, 2006), se necessário através de procedimentos e artefactos tecnológicos de carácter invasivo (alimentação parentérica, por gavagem, através de sonda nasogástrica, suplementos farmacológicos, etc.). Neste filme, atrevo-me a presumir que foi seleccionado o Enfermeiro mais hábil e capaz da instituição para fazer esta intervenção. A forma mecânica e eficaz como é introduzida a sonda nasogástrica e realizada a alimentação forçada, a “rapidez limpa” do procedimento técnico conjugada com o acto final pacificador e púdico da enfermeira a tapar o doente reduzindo-o à sua condição de docilidade passiva, o ritual das filmagens em que todos os pormenores de luz sombra e gestos são minuciosamente coreografados, remetem para uma ambiguidade violenta do “cuidar”. O acto de se alimentar enquanto cuidado de enfermagem é ainda hoje considerado central, mesmo que seja mediado por artefactos tecnológicos mas neste caso, para além de algum exibicionismo fútil, existe a mensagem de que a pessoa nem sequer se tenta alimentar e que é necessária uma série de recursos extraordinários para manter esta vida inútil. Há uma estética construída entre o perfil da enfermeira, que surge, por breves momentos iluminado (uma jovem e bela mulher a que correspondem os traços da pureza da raça), com o seu uniforme icónico de enfermeira e o perfil do doente e dos doentes filmados. A enfermagem surge retratada como uma extensão do biopoder médico aliado a uma estética que legitima a aniquilação de seres humanos com base em conceitos de racionalidade técnica mas também de sensibilidade, emoção primária, bondade e gentileza.

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Sobre o rosto enquanto alteridade, Levinas (2006).

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2 - As Biotecnologias da Morte - Compreender “o lado negro”? Uma questão essencial surge a partir destes factos históricos: como é que a Enfermagem, que se afirmou a partir da ideia do cuidado centrado na pessoa (caring), em que a relação de confiança entre cuidador e cuidado é central, se pode transformar numa actividade de homicídio? Em termos históricos, a Enfermagem alemã teve uma profunda mudança positiva durante o regime nazi: de profissão socialmente pouco qualificada, transformou-se, através de legislação específica, melhores condições de trabalho, exigência de maior qualificação, unificação das organizações de enfermagem profissional e politização Ilustração 1 – Fotografia do da profissão. último bebé assassinado pela Enfermeira-Chefe no hospital Artigos escritos por enfermeiros e entrevistas mais recentes sugerem de Kaufbeuren-Irsee, que, pelo menos uma parte dos enfermeiros alemães aceitou a Alemanha a 1 de Maio de reinterpretação nacional-socialista da ética em enfermagem e a releitura 1945. Fonte:US Holocaust Memorial Museum. nazi dos seus princípios humanitários. A evolução científica e profissional da enfermagem na Alemanha no início do século XX tinha profundamente inculcada a ideia de obediência e submissão para com a profissão médica, numa concepção de rigidez hierárquica (Steppe,1992)7. Paradoxalmente, as enfermeiras tinham uma posição de grande poder relativamente aos seus doentes e um grande poder informal dentro do sistema de saúde, porque havia já um corpo teórico autónomo de enfermagem e porque os enfermeiros, na sua praxis clínica, mobilizavam um vasto reportório de técnicas específicas que permitiam influenciar directamente o comportamento das pessoas alvo dos seus cuidados (Foth, Kuhla & Benedict, 2014). Esse vínculo parece não ter sido perdido mesmo nas circunstâncias mais atrozes. Testemunhos de enfermeiras quando questionadas sobre o porquê de terem participado activamente na morte de crianças, deficientes ou doentes mentais, revelam um distorcido sentido do “cuidar”: “Se não fosse eu a fazê-lo com gentileza, outros o fariam de maneira mais violenta para os doentes, logo, foi melhor para os doentes ter sido eu”; ou “ Os doentes conheciamme e confiavam em mim”; ou ainda “Foi um acto de bondade tê-lo feito gentilmente e com dignidade”. Noutras palavras, disseram que matar é cuidar (Shields, 2005). A nova legislação sobre a organização da profissão e formação em enfermagem tinha implícita uma forte componente ideológica. Na Gejek zur Drdnung der Krankenpflege (Lei para a reorganização da Enfermagem - de 28 de Setembro de 1938) o curriculum de formação em enfermagem previa, ao lado das cadeiras convencionais, novas cadeiras como “Genética e estudos raciais”; ”Genética e cuidados raciais”, “Políticas populacionais “ e “Execução das ordens médicas” (Foth, Kuhla & Benedict, 2015: 41). Nenhum enfermeiro foi forçado a fazer parte do T4. Os que se negaram ou objectaram não sofreram sanções graves – não foram transferidas para campos de concentração ou executados, foram simplesmente transferidos para outros serviços ou outros hospitais. Por outras palavras, os enfermeiros e as enfermeiras que participaram nestes programas fizeramno por opção e com alguma margem de liberdade (McFarland-Icke, 1992). Uma das possíveis abordagens para compreender estes paradoxos tem a ver com o uso acrítico da tecnologia por parte dos enfermeiros, como se a tecnologia e o conhecimento científico fossem neutros ou inócuos (Feenberg,1999). A racionalidade tecnológica é um 7

Em termos sociológicos e ao contrário do desenvolvimento de Enfermagem em países de influência inglesa, sob o paradigma de enfermagem de Nightingale, a enfermagem alemã não era vista como uma profissão de classe média ou média alta, onde as jovens de "boas famílias” se tornavam enfermeiras por motivos nobres e altruístas. Pelo contrário, era uma maneira de jovens mulheres alemãs pobres e de baixo estatuto social obterem um emprego permanente e alguma educação. Implícita na sua formação estava a ideia de estrita obediência aos médicos, sem direito a questionar uma ordem (Steppe, 1992).

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projecto da modernidade que racionaliza o espaço e o tempo, numa tentativa de normalização sistemática dos sujeitos. A impossibilidade de separação entre o humano e a tecnologia reveste-se de profundas questões antropológicas e ontológicas. Muito para lá do tecno-essencialismo ou da concepção de que a tecnologia é uma ferramenta instrumental para obter vantagens ou “controlar a natureza”, afirma-se a tecnologia como parte integrante da própria essência da condição humana. A atitude tecnológica da modernidade traduziu-se na desintegração, na descontextualização e na produção de dispositivos e artefactos tecnológicos para consumo e fruição. Estes dispositivos tecnológicos, sejam eles naturais (como as plantas ou animais para usufruto e consumo humano) ou artificiais (como artefactos), mas também todos os objectos sociais e culturais, são reduzidos a meios instrumentais para fins circunstanciais, num reducionismo coisificante, “focal” e de dimensão prática (Borgmann, 1984). O conceito de tecnologia como um modo de revelação da existência (Heidegger, 1977) permite uma aproximação ao seu significado ontológico mais profundo num contexto contemporâneo, onde a tecnologia tem sido reduzida a um mero conceito de aparato técnico instrumental de produção utilitária de artefactos e de ambientes tecnológicos. A tecnologia não se reduz à concepção essencialista da tecnociência, mas constitui um princípio de construção do mundo em determinadas condições específicas e expressa um modo de ser do mundo, um processo de posicionamento face ao real e uma forma de pensamento. A tecnologia está intimamente relacionada com a afirmação da enfermagem enquanto “profissão científica”, na viragem do século XIX e início do século XX. O desenvolvimento e a utilização diferenciada das tecnologias “cientificamente legitimadas” foi uma das dimensões que permitiu a diferenciação da Enfermagem das práticas leigas e religiosas que até então caracterizavam a noção de Cuidar nos processos saúde/doença. Assim, a tecnologia contribuiu para conferir a esta prática social – considerada como um trabalho de mulheres orientado para o cuidado sistematizado – o estatuto de profissão socialmente reconhecida e regulada, com exigências específicas de formação (Colliére, 1996). A a ruptura epistemológica de construção de um corpo autónomo de conhecimentos em enfermagem traduziu-se, inicialmente, na assimilação de um discurso positivista e materialista biomédico, ligado à noção de eficácia de resultados ou na ideia conceptual de conhecimento baseado em evidências, consolidando-se no espaço hospitalar das novas tecnologias biomédicas (Monteiro, 2014). A ideologia da “cientificação da técnica” e a pura intenção tecnocrática (Habermas,1969) aplicadas às organizações hospitalares e a apropriação destes conceitos pela praxis de enfermagem, conduz a uma impossibilidade de agir de outra forma que não a rotineiramente estabelecida, integrando, no agir profissional sobre “o outro”, formas legitimadas de aniquilação. O vínculo metafórico entre enfermagem e tecnologia, identificando a enfermagem como instrumento ou utensílio tecnológico ao serviço da medicina moderna é profundamente perturbador, porque “tem como referente cultural a ideia de que máquinas, criadas e mulheres são serviçais que apenas desejam servir alegremente os seus donos ou patrões, aliviando-os do trabalho monótono, árduo e sujo mas que precisa de ser feito” (Sandelowski, 2000:4). Desta forma, a identificação de enfermagem com tecnologias hospitalares traduz também, numa perspectiva simbólica, a hierarquia masculina de poder das profissões médicas e a diferenciação de género, alimentando a tradicional invisibilidade dos cuidados de enfermagem (Sandelowski, 2000; Fairman & D'Antonio, 2003). Subjacente afirma-se a ideia de polaridade, que relaciona o feminino/enfermagem com a ideia de natureza, cuidar, nutrir e masculino/medicina com poder, controle sobre a natureza, tecnologia, posicionando a enfermagem como uma cultura feminina em desacordo com tecnologia, essencialmente uma cultura masculina, mas sob o seu domínio. Esta perspectiva reforça a ideia de tecnologia 6|Página

enquanto tendência para a desumanização de doentes e mas também para a desumanização das próprias enfermeiras (Sandelowski, 1999: 202). Outra possibilidade de inteligibilidade tem a ver com a questão do biopoder (Foucault, 1972; 1984; 1992), da sua assimilação por parte da Enfermagem e da instrumentalização da praxis profissional da enfermagem para aplicação do poder disciplinar. O nascimento do hospital contemporâneo, tal como hoje o concebemos, dá-se pelas técnicas do poder disciplinar. O poder é a forma como funcionam as tecnologias políticas, inscritas em espaços e tempos determinados e produtoras de relações desiguais e assimétricas. Só se pode compreender o poder na sua concretude e no seu funcionamento quotidiano ao nível das micropráticas de poder (Foucault, 1984:109). Desta forma, a moderna forma de dominação tem raiz no poder disciplinar, através do funcionamento das tecnologias disciplinares nas instituições (na família, na escola, no hospital, nas profissões, na prisão), fundamentado no discurso científico de normalização das ciências e a enfermagem afirma-se enquanto tecnologia disciplinar. A disciplina é uma técnica de exercício do poder, que permite gerir os homens, controlar as suas multiplicidades, utilizá-las ao máximo e majorar o efeito útil do seu trabalho e actividade. É também uma forma de organização do espaço, uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos num espaço organizatório, classificatório, com o objectivo de produzir o máximo de eficácia e rentabilidade (Foucault, 1992). Enquanto técnica de exercício do poder, implica uma vigilância permanente e constante dos indivíduos, sobre a actividade por eles desenvolvida e implica a existência de um registo contínuo desta actividade classificatória. O exercício da enfermagem no hospital moderno foi o cerne do exercício deste biopoder normalizador de comportamentos individuais e colectivos, permitindo, como revela Foucault (1984), o controlo minucioso dos corpos, impondo-lhes uma relação de docilidade/utilidade. Um sistema e uma organização social de total controlo, que bane completamente a incerteza e o inesperado. Assim, a des-humanidade da eficiência tecnológica associada à industrialização da saúde, resulta numa praxis profissional desprovida de reflexividade traduzida numa “burocracia do cuidado” em enfermagem. Aqui, não há espaço para a autonomia ou reflexividade ética mas para o resultado do adestramento normativo do poder disciplinar. Foth (2011), no seu estudo sobre a enfermagem psiquiátrica como dispositivo de biopoder durante o regime nazi, evidencia as múltiplas formas como a enfermagem exerceu este aniquilamento sob a forma de prescrição de cuidados, influenciando directamente os diagnósticos e as terapêuticas instituídas pela equipa médica. A construção de corpos dóceis e domesticáveis na relação de cuidado entre enfermeiradoente, a fantasia de “doentes ideais” (os doentes dóceis, que aderem passivamente aos tratamentos, os doentes subservientes, os doentes que se podem curar) exclui da eventualidade da relação terapêutica todos os outros que infringem a normatividade do êxito da tecnociência nos processos de saúde doença – desde logo os doentes “incuráveis”, mas também os doentes que violam normas instituídas dentro da hierarquia da instituição hospitalar, os doentes disruptivos, negativistas ou agressivos, os doentes incapazes da palavra racional, os “impuros”. Os “indignos de viver”.

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3 - Pode acontecer outra vez? Em síntese e retomando a pergunta de Shields (2005), “pode acontecer outra vez?” Como compreender que matar possa ser concebido como parte integrante de cuidar em Enfermagem? Na abordagem sobre algumas pistas de inteligibilidade, os referentes teóricos apontam para alguns eixos: o uso acrítico da tecnologia e do “projecto tecnológico da modernidade” incorporado pela enfermagem e pelos enfermeiros a troco do reconhecimento social do seu papel; a manipulação e utilização da enfermagem enquanto instrumento de um processo político e ideológico; a falta de autonomia e subordinação hierárquica da enfermagem ao poder-saber da medicina convencional, em que estão subjacentes aspectos mais globais como as questões de género; a questão do biopoder na relação do cuidado. A concepção de que a Enfermagem é uma ciência humana essencialmente prática (Meleis, 2012; Queirós, 2014) e que a prática profissional de enfermagem é substancialmente dependente de prescrições médicas e de outros normativos hierárquico-funcionais (Gameiro, 2003) abre a porta a formas de instrumentalização do cuidado, esvaziando-o da possibilidade ética. O “lado negro” existe e persiste, agora ainda mais agudizado, embora de forma subtil. A tecnologia intensiva, o ideário post-humano e a digitalização do corpo tendem a ocupar o lugar central dos cuidados de saúde (Fukuyama, 2003; Monteiro, 2015). Os discursos sobre “os limites” da dignidade humana, a eutanásia sistematizada e legalizada apresentada enquanto conquista civilizacional, a busca obrigatória do corpo perfeito a par do conflito armado e da tensão económica global ressurgem hoje. Na enfermagem, a ausência da possibilidade autoreflexiva, a urgência de formação tecnológica de alta intensidade para um mercado global, a necessidade de uma perfomance de indicadores de produtividade economicista (onde o próprio conhecimento e investigação em enfermagem aparecem associados a indicadores utilitaristas de rentabilidade tecnológica), podem conduzir a novas formas de concepção do cuidado enquanto aniquilamento do outro. Por isso mesmo, o estudo da história e pressupostos filosóficos da Enfermagem, em todas as suas dimensões (incluindo os percursos obscuros), é um factor decisivo para a construção da identidade profissional, para a compreensão dos percursos assistenciais/modelos de organização dos cuidados e de tendências longitudinais de fenómenos em saúde. A investigação avançada e a formação académica em enfermagem devem contribuir para o exercício da autonomia e para o cuidado profissional reflexivo e eticamente responsável, em vez de se centrar nas vertentes essencialmente tecnológicas e num conhecimento pragmático e utilitarista. Na questão da saúde e da doença desvela-se, afinal, o essencial da condição humana: “um ser que não se deixa reduzir nem a artefacto, nem a pura obra de arte, mas que sempre se revolta contra o sofrimento e o mal, desejando o bem e dele procurando dar testemunho através de uma relação de permanente cuidado, consigo mesmo, com o mundo e com os outros” (Portocarrero, 2008: 180). E é nesta tensão que o filme “Dasein ohne Leben,” tem uma actualidade avassaladora.

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