Anónimos e Domésticos. Os freires das Ordens Militares nas cantigas dos trovadores

May 22, 2017 | Autor: Cláudio Neto | Categoria: Cultural History, Social Representations, Military Orders, Troubadour Studies
Share Embed


Descrição do Produto

Anónimos e Domésticos Os freires das Ordens Militares nas cantigas dos trovadores Cláudio Neto I.E.M. / Cardiff University

Celebrados pelas memórias da Reconquista, é nos relatos da guerra movida pelo nascente reino português ao mundo islâmico do Sul da Península Ibérica que os freires das Ordens Militares encontram a sua imagem mais difundida e reconhecível, que se poderá, inclusive, apelidar de clássica1. Refiro-me, concretamente, aos testemunhos que representam os cavaleiros das milícias no seio do cumprimento da sua missão essencial: a guerra movida ao inimigo muçulmano peninsular. Trata-se, provavelmente, do rosto dos freires mais visível e apreendido pela memória colectiva, encabeçado pelos feitos militares dos mestres das milícias, verdadeiras encarnações do miles christi, e que se cruza e confunde, quase eclipsando os restantes papéis dos freires no devir histórico, com a memória da aquisição dos espaços alentejano e algarvio por uma emergente entidade política cristã a partir de meados do século XII. Memória de guerra e de Cruzada, ou seja, de práticas de violência que se pretendem constituir como acto escatológico de fundação e consolidação política, mas também memória de um espaço que se opunha ao Norte atlântico rural e senhorial. Um espaço de alteridade, de influência mediterrânica, de espaços abertos compostos pela peneplanície alentejana, a ocidente tornada costa atlântica e a sul delimitada pelas serranias algarvias, que ultrapassadas se tornam num Algarve dividido entre as realidades do interior agrícola e da orla marítima. Espaços pontualmente povoados e hierarquizados em torno das realidades urbanas, onde as elites muçulmanas do Sul se organizavam implantando-se sobre o subtrato hispano-romano.

1

A imagem das Ordens Militares foi alvo de um estudo para os séculos XII e XIII em Helen NICHOLSON – Templars, Hospitallers and Teutonic Knights. Images of the Military Orders, 1128-1291, Leicester, Leicester University Press, 1995.

230

Com en das Urb an as das Or d ens Mi lit are s

Por se desenrolarem nestes espaços, os discursos da reconquista, onde os freires figuram desempenhando papéis fundamentais, constituem uma história de aquisição e defesa de cidades e vilas e, consequentemente, dos espaços a estas sujeitos. É, portanto, a realidade urbana do sul que fornece um palco para os freires, dotando-os de visibilidade na composição das narrativas que versam sobre a construção e defesa do território do reino. Do conjunto de memórias construídas em torno da acção dos freires, relembre-se Gualdim Pais, imortalizado não apenas pelas sucessivas edificações de castelos, mas também pelas suas estadias na Palestina e, sobretudo, pela bem-sucedida defesa de Tomar perante a invasão almóada de 11902. Relembrem-se, também, as milícias que integravam a hoste de D. Sancho I na conquista de Silves, em 1189, que captaram a atenção do cruzado responsável pela memória deste feito3. Já na centúria seguinte, na campanha contra Alcácer do Sal, em 1217, são as Ordens Militares, encabeçadas pelos seus mestres, que assumem um lugar de destaque nas narrativas que nos legam o relato da tomada desta urbe alentejana4. Prosseguindo pelo século XIII, é impossível contornar

2

3

4

Na década de ‘40 do século XIV, o Livro de Linhagens do Deão celebrava ainda a memória do mestre Gualdim Pais com as seguintes palavras: E este mestre dom Gualdim Paes fez Tomar e Pombal e castelo de Almoirol e pobrou outros muitos lugares que ganhou à Ordem, e foi muito forte em armas, e leixou ao Templo o que agora há em Abelamar: Livros Velhos de Linhagens [Livro Velho de Linhagens: LV; Livro de Linhagens do Deão: LD]. Portugaliae Monumenta Historica. Nova Série, vol. I, eds. Joseph PIEL; José MATTOSO, Lisboa, Academia das Ciências, 1980, LD XV D4; a memória da acção do mestre tinha sido construída na segunda metade do século XII através de um desenvolvido programa epigráfico comemorativo, que assinalava não só a edificação do sistema defensivo dos territórios dominados pela milícia do Templo em Portugal, como também a vida e os sucessos do homem que a chefiava: Cf. Mário BARROCA – Epigrafia Medieval Portuguesa (862-1422), vol. 2, t. I, Porto, FCG/FCT, 2000, pp. 271-276, 348-361, 367-369, 376-379, 389-391, 483-491, 522-527; o percurso biográfico de Gualdim Pais foi recentemente reconstituído por Miguel Gomes MARTINS – Guerreiros Medievais Portugueses, Lisboa, Esfera dos Livros, 2013, pp. 51-66. Cf. Charles Wendell DAVID – “Narratio de itinere navali peregrinorum Hierosolymam tendentium et Silviam capientium A. D. 1189” in Proceedings of the American Philosophical Society, vol. 81, no. 5, New York, 1939, pp. 630-631. São vários os textos que nos traçam os pormenores desta campanha militar e o papel decisivo desempenhado pelos freires aí presentes; o poema Quomodo capta fuit Alcaser a Francis, também conhecido por Gosuini de Expugnatione Salaciae Carmen, faz referência à entrega de Alcácer aos freires de Santiago após a conquista (Post triduum castri dux tingitur amne lauacri / Militibus gladii terraque rusque datur.), fazendo também menção às insígnias ostentadas pelos combatentes cristãos repelidos pelo aparelho defensivo da cidade (Armis multimodis domus hec munita uirisque / Magnanimos reddit, qui sua signa colunt.), sinais que têm sido interpretados pelos especialistas

Anón imo s e Dom é sti cos

231

as memórias de aquisição do espaço alentejano entre a bacia do Guadiana e o Atlântico sem recorrer às memórias que celebram os feitos de Afonso Peres Farinha à cabeça dos hospitalários5 e do mestre de Santiago Paio Peres Correia6. Estas são, no fundo, as memórias dos feitos militares dos guerreiros que faziam da guerra profissão religiosa. Aos cenários urbanos da guerra sucedia-se uma implantação territorial das milícias onde a urbanidade assumia especial relevo, quer pela instalação dos conventos em espaço urbano, quer pela constituição de uma rede comendatária muitas vezes ancorada em bens

como uma referência aos freires presentes nas operações de cerco: Aires A. NASCIMENTO – “Poema de conquista: a tomada de Alcácer do Sal aos mouros (1217)” in

5

6

Ler contra o Tempo. Condições dos textos na cultura portuguesa (recolha de estudos em Hora de Vésperas), vol. I, Lisboa, Centro de Estudos Clássicos da FLUL, 2012, pp. 483-516; de orígem germânica, a Chronica Regia Coloniensis, nas passagens que dedica à expedição dos cruzados de 1217, várias vezes refere a presença dos freires, enaltecendo o heroísmo do comendador de Palmela, Martim Pais Barregão (Martinus commendator Palmele, parvus corpore, corde leo) e o papel decisivo dos reforços trazidos pelo mestre Pedro Alvites, do Templo (Post noctis medium venit in audiutorium christianorum Petrus Magister miliciae Templi): Chronica Regia Coloniensis. Monumenta Germania Historica. Scriptores Rerum Germanicarum, Hannover, publ. Georg Waitz, 1880, pp. 195, 240-242; outras fontes legam informações sobre a campanha de 1217, tendo sido já apontadas por Maria Teresa Lopes PEREIRA – “Memória Cruzadística do Feito da Tomada de Alcácer (1217) in 2.º Congresso Histórico de Guimarães. D. Afonso Henriques e a sua Época, vol. 2, A política portuguesa e as suas relações exteriores, Guimarães, Câmara Municipal, 1997, p. 321, n. 2. Uma memória construída pela inscrição na pedra do seu percurso biográfico, associado não só à conquista da margem esquerda do Guadiana, mas também às suas estadias na Palestina e ao culto da Vera Cruz do Marmelar; cf. Mário BARROCA – Epigrafia Medieval Portuguesa..., vol. 2, t. I, pp. 939-950, 1024-1025; para uma síntese do seu percurso biográfico veja-se Miguel Gomes MARTINS – Guerreiros Medievais Portugueses..., pp. 129-147. É nos capítulos dedicados à conquista do Algarve da Crónica de Portugal de 1419 que se encerra uma narrativa da campanha conduzida por Paio Peres Correia à cabeça dos cavaleiros de Santiago nos territórios algarvios: Crónica de Portugal de 1419, ed. Adelino de Almeida CALADO, Aveiro, Universidade de Aveiro, 1998, pp. 145-161; a hipótese de este trecho ser o vestígio mais palpável de uma crónica dedicada à vida do mestre Paio Peres, elaborada antes da Crónica de 1419, ainda subsiste: veja-se Juan Bautista AVALLE-ARCE – “Sobre una crónica medieval perdida” in Temas hispánicos medievales, Madrid, Gredos, 1974, pp. 13-63; Derek LOMAX – “A lost medieval biography: The Corónica del Maestre Pelayo Perez” in Bulletin of Hispanic Studies, vol. 38, 1961, pp. 153-154; Luís KRUS – “Crónica da Conquista do Algarve” in Giulia LANCIANI; Giuseppe TAVANI (coords.) – Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Caminho, 1993, p. 176; Filipe MOREIRA – A Crónica de Portugal de 1419. Fontes, Estratégias, Posteridade, Braga, FCG/FCT, pp. 277-302.

232

Com en das Urb an as das Or d ens Mi lit are s

situados nas cidades do Centro e do Sul. E se as memórias da guerra pelo domínio destes espaços tinham dado orígem às memórias heróicas de freires e dos seus mestres, será a permanência e a relação dos freires com o espaço urbano que originará outro tipo de memórias e representações dos homens das Ordens Militares, desta vez não versando já sobre as qualidades dos guerreiros e dos mártires, mas antes acerca das faltas e dos comportamentos mundanos dos freires e comendadores. São testemunhos satíricos, elaborados pelos trovadores do universo Galego-Português, em cantigas que expõem os freires ao ridículo apresentando-os em situações plenas de humor, onde os desvios aos votos e à disciplina das Ordens Militares são postos a nu, sendo também apontados os vícios e as características que, aos olhos dos trovadores, lhes pareciam mais vis nos homens das Ordens7. Sendo constituído pelos três géneros: cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e de mal dizer, o corpus trovadoresco Galego-Português é composto por cerca de 1680 cantigas8, compostas entre os finais do século XII e os meados do século XIV. É, no entanto, apenas no conjunto das cantigas de escárnio e de mal dizer que surgem as cantigas que se dirigem às milícias. Trata-se de um conjunto de dezasséis sátiras, número pouco expressivo, considerando-se que o género satírico deste corpus é composto por cerca de 470 composições9. Se estas composições legam elementos que permitem compreender a forma como a forma de vida religioso-militar integrava a mundividência da Nobreza, é importante assinalar desde logo que o reduzido número deste núcleo revela já indícios do desinteresse

7

8 9

Para um estudo sobre o conjunto de sátiras trovadorescas relativas às Ordens Militares veja-se Cláudio NETO – As Ordens Militares na cultura escrita da nobreza – 1240-1350. Representações nas cantigas de escárnio e de mal dizer, diss. Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UNL, Lisboa, 2012. Para consulta da totalidade deste corpus, consulte-se a base de dados Cantigas Medievais Galego-Portuguesas em http://cantigas.fcsh.unl.pt/. O número de composições integrantes deste género tem oscilado consoante as opções dos seus editores: contabilizam-se 431 composições na derradeira edição da antologia de Rodrigues Lapa: Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses, ed. Manuel Rodrigues Lapa, 3.ª ed., Lisboa, Sá da Costa, 1995 [edição que utilizarei para fins de citação das composições constituintes deste núcleo, sob a abreviatura CEMD]; na edição de Graça Videira Lopes este número ascendeu já às 474: Cantigas de Escárnio e de Maldizer dos Trovadores e Jograis Galego-Portugueses, ed. Graça Videira Lopes, Lisboa, Estampa, 2002; sobre as cantigas de escárnio e de mal dizer, para além das introduções às edições supra-citadas, veja-se Giuseppe TAVANI – “Cantiga de Escarnho e Maldizer” in Giulia LANCIANI; Giuseppe TAVANI (coords.) – Dicionário da Literatura..., pp. 138-139; Giulia LANCIANI; Giuseppe TAVANI – A Cantiga de Escarnho e de Maldizer, Lisboa, Colibri, 1998, pp. 9-15, 71-142.

Anón imo s e Dom é sti cos

233

dos trovadores relativamente aos freires. Este aspecto poderá ser melhor compreendido se for relacionado com a natureza das críticas a eles dirigidas nos escárnios trovadorescos, como se terá oportunidade de observar adiante. Embora o fenómeno trovadoresco do Ocidente peninsular se possa datar de finais do século XII10, são os trovadores activos a partir da década de 1240 que compõem os primeiros escárnios que exibem as marcas do contacto entre trovadores e Ordens Militares11. Deve dizer-se, em primeiro lugar, que o surgimento de sátiras relacionadas com este tema é devido, sobretudo, à grande expansão do género satírico que ocorre durante este período, resultando numa verdadeira explosão da sátira trovadoresca a partir de 1240 (passando de 13 sátiras no período de 1220-1240, para 388 no período de 1240-1300)12. No entanto, não se pode compreender o surgimento de cantigas relacionadas com o mundo das milícias religiosas sem se considerar que é nesta fase que os trovadores rumam a Sul, acompanhando as mesnadas da Nobreza do Noroeste peninsular que se juntavam às operações militares encabeçadas pela Coroa de Castela13. Neste período, muito marcado pelo círculo trovadoresco do infante Afonso, futuro Afonso X, conjuga-se esta migração da Nobreza com o amadurecimento definitivo das capacidades militares das milícias religiosas, fenómeno que, sem dúvida, dependeu da consolidação das redes comendatárias das Ordens Militares.

10

11

12 13

Sobre a cronologia dos primeiros cantares veja-se José Carlos MIRANDA – Aurs Mesclatz ab Argen. Sobre a primeira geração de trovadores galego-portugueses, Porto, Guarecer, 2004, pp. 15-57. Deste período podem circunscrever-se as sátiras de Rui Gomes de Briteiros ( CEMD 409), João Soares Coelho ( CEMD 237), Vasco Gil e Afonso X ( CEMD 422), Vasco Gil e Pero Martins ( CEMD 423) e de Gonçalo Eanes do Vinhal ( CEMD 171, CEMD 173). Cf. o Apendice II de António Resende de OLIVEIRA – Trobadores e Xograres. Contexto histórico, Vigo, Edicións Xerais de Galicia, 1995, pp. 163-165. António Resende de OLIVEIRA – Depois do Espectáculo Trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séculos XIII e XIV, Lisboa, Colibri, 1994, pp. 173-174; sobre a migração da Nobreza portuguesa para Castela, veja-se Henrique DAVID – “Os portugueses nos livros de «Repartimiento» da Andaluzia (Século XIII)” in Revista da Faculdade de Letras. História, 2.ª série, vol. 3, Porto, Faculdade de Letras da UP, 1986, pp. 51-75; Henrique DAVID – “Os portugueses e a reconquista castelhana e aragonesa do século XIII” in Actas das II Jornadas de Luso-Espanholas de História Medieval, vol. III, Porto, INIC, 1988, pp. 1029-1041; Henrique DAVID; José Augusto PIZARRO – “Nobres portugueses em Leão e Castela (Século XIII)” in Revista de História, vol. 7, Porto, 1987, pp. 135-150.

234

Com en das Urb an as das Or d ens Mi lit are s

De acordo com o modelo proposto por Carlos de Ayala Martinez14, este desenvolvimento das soluções de implantação territorial e de administração dos bens das milícias ocorre sensivelmente nas décadas anteriores ao arranque das campanhas de Fernando III. A partir do segundo quartel do século XIII, a rede comendatária é já uma realidade reconhecível e está perfeitamente adaptada para garantir uma maior eficácia administrativa dos bens das Ordens Militares, factor decisivo para o reforço da sua missão guerreira. Se não se considerar a cronologia desta evolução como sendo apenas coincidente com o crescimento da visibilidade dos freires nas cantigas trovadorescas, torna-se bastante significativo que um dos rostos dos freires mais reconhecível a partir dos testemunhos trovadorescos seja, precisamente, a condição de comendador15. Ainda, relativamente a este ponto, creio ser bastante plausível admitir que a familiaridade entre trovadores e freires terá crescido neste período devido à interacção das mesnadas senhoriais com os contingentes das milícias religiosas, não só nos momentos de condução da guerra, como também nos momentos de recreação cortesã que intercalavam as campanhas militares.16 Neste período que cerca o início da década de ‘40 do século XIII surgem os primeiros testemunhos do crescimento da visibilidade da forma de vida religioso-militar, em composições que exibem os sinais de uma contaminação do vocabulário dos trovadores com os termos próprios da profissão dos freires. Assim, Rui Gomes de Briteiros dava-nos conta de um freire17 que buscava um mouro que não era senão, de acordo com o jogo da cantiga, o visado pelo escárnio. Também João Soares Coelho referia, no final de uma cantiga dirigida ao seu rival, Airas Peres Vuiturom, um comendador cujos bens teriam sido constituidos à custa das comendas de João Soares18. Ainda,

14

15

16 17 18

Carlos de AYALA MARTÍNEZ – “Comendadores y encomiendas. Origenes y evolución en las órdenes militares castellano-leonesas de la Edad Media” in Isabel Cristina F. FERNANDES (coord.) – Ordens Militares. Guerra, Religião, Poder e Cultura, Actas do III encontro sobre Ordens Militares, vol. 1, Lisboa, Colibri/Câmara Municipal, 1999, pp. 101-147. Do núcleo de dezasséis cantigas de escárnio e de mal dizer que compõem este estudo, nove são dirigidas a comendadores ou, pelo menos, envolvem de algum modo o conceito de comendador ou de comenda: CEMD 121; CEMD 173; CEMD 200; CEMD 237; CEMD 325; CEMD 402; CEMD 415; CEMD 417; CEMD 423. Cf. Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 9-12. CEMD 409: «Joan Fernándiz, aqui é chegado / un freir’ e anda un mouro buscando». CEMD 237: «e ar chamad’o comendador i, / que fezeron comendador sen mi / de mias comendas, per força de rei; o sentido da última estrofe, onde se inserem estes versos, é difícil compreender, mas poderá estar associado ao contexto de deposição de D. Sancho II e à ascensão de D. Afonso III e dos homens que o rodeavam: Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 19-21.

Anón imo s e Dom é sti cos

235

neste âmbito, Gonçalo Eanes do Vinhal, numa composição de difícil compreensão, traçava-nos um quadro que expunha a relação de uma abadessa com um comendador, marcada pelo generoso acolhimento que este recebia cada vez que se deslocava à casa por aquela tutelada19. Se as dificuldades de interpretação destas composições tornam difícil afirmar cabalmente que tinham sido feitas com os freires em mente, e que, portanto, se reportavam às Ordens Militares, parece evidente que estas demonstram que a presença das milícias se ia fazendo progressivamente notar no vocabulário utilizado pelos porta-vozes da ideologia nobiliárquica. Ao mesmo tempo, outras composições surgiam no campo da sátira trovadoresca, essas já claramente apontadas às milícias e aos homens que as compunham. «– Pois, Don Vaasc’, un pouco m’ascoitade: os que mal fazen e dizen son mil: eno forníz[io] é Don Roí Gil e Roí Martiiz ena falsidade, e ena escasseza é o seu priol. non vos pod’om’ esto partir melhor; se mais quise[r]des, por mais preguntade.» (CEMD 423)

Era desta forma mordaz que Pero Martins respondia às interpelações de Vasco Gil de Soverosa, numa tenção entre ambos que consistia numa crítica violentíssima à Ordem do Hospital. A composição, datada do período em que Vasco Gil terá permanecido na Corte castelhana (1248-1258)20, traça-nos um retrato extremamente negativo do ramo português dos hospitalários, identificado ao longo da cantiga por Pero Martins, por sua vez ele também cavaleiro hospitalário21. A tenção desenrola-se de acordo com os moldes tradicionais que caracterizam este tipo de cantiga, com Vasco Gil a interpelar Pero Martins acerca da devassidão que grassava na milícia sanjoanina, respondendo este último com a denúncia não só do Prior da milícia, mas também apontando os nomes de comendadores e freires da Ordem cujo comportamento se revelava escandaloso. Não era, porém, comum entre os trovadores fazerem-se referências tão explícitas aos homens que constituiam as milícias. De facto, a tenção entre

19 CEMD 20 21

173.

Os dados biográficos de Vasco Gil de Soverosa foram coligidos em António Resende de OLIVEIRA – Depois do Espectáculo..., pp. 436-437. Para uma discussão desta cantiga veja-se Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 28-34; para a identificação de Pero Martins como freire da Ordem de S. João do Hospital veja-se António Resende de OLIVEIRA – Depois do Espectáculo..., p. 421.

Com en das Urb an as das Or d ens Mi lit are s

236

Vasco Gil e Pero Martins é a única que, no século XIII, refere os nomes dos visados. Sendo um dos interlocutores um membro da Ordem visada, justifica-se que o ataque tenha revestido contornos mais pessoais e tenha justificado a nomeação dos homens que encabeçavam o Hospital. Mas, de modo geral, pela pena dos trovadores a nomeação das milícias é geralmente mais elusiva. Já na segunda metade do século XIII, num cantar de difícil leitura, o jogral Caldeirom servir-se-á de uma referência genérica aos Hospitalários para denunciar a cobardia de aragoneses e catalães («non pararian os do [E]spital / de melhor mente a lide nen besonha.»)22. Num tom diferente referia-se Gil Peres Conde às milícias do Templo e do Hospital, na última estrofe de uma cantiga sua que poderá estar relacionada com a crise do final do reinado de Afonso X23. O trovador acusava os hospitalários de não se comportarem com a mesma lealdade que a milícia do Templo tinha mostrado relativamente ao rei durante a sublevação de 1282-128424. Ao designarem as milícias através da sua designação genérica, os trovadores minimizavam a importância dos freires enquanto actores políticos, reduzindo-os a uma pertença colectiva e desligada de valores individuais. Nas suas composições, a máscara do grupo apagava a importante actuação das milícias no devir político dos reinos cristãos25. Este apagamento da indivdualidade dos freires acompanha a grande maioria das composições que a eles se dirigem. O anonimato surge como uma

22 CEMD

431.

23 CEMD

161.

24

25

Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 49-52; para este contexto, veja-se Manuel GONZÁLEZ JIMÉNEZ – Alfonso X el Sabio, Barcelona, Ariel, 2004, pp. 342-371; para a posição tomada pelas milícias neste conflito veja-se Philippe JOSSERAND – Église et Pouvoir dans la Péninsule Ibérique. Les Ordres Militaries dans le Royaume de Castille (1252-1369), Madrid, Casa de Velázquez, 2004, pp. 501-508; embora o trovador contraponha as duas milícias do Templo e do Hospital na sua cantiga, a posição tomada pelos templários neste período esteve longe de ter sido consensual dentro da milícia e terá causado um cisma, cujas repercussões se terão extendido aos anos seguintes: cf. Philippe JOSSERAND – “Troubles and tensions before the Trial: The last Years of the Castilian Templar Province” in Peter EDBURY (ed.) – The Military Orders, vol. 5, Politics and Power, Aldershot, Ashgate, 2012, pp. 363-375. Retenha-se que estas composições surgem associadas a momentos de tensão e de crise política no seio da Coroa de Castela, nos quais os freires desempenharam papéis determinantes, tomando partido pelas facções em conflito e, em última análise, desviando-se da sua missão para incorrer na integração dos partidos em confronto. Este envolvimento das milícias religiosas nos conflitos internos das monarquias cristãs poderá constituir um dos factores mais marcantes da erosão da imagem das milícias religiosas após os meados do século XIII; veja-se Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 47-53, 63-73.

Anón imo s e Dom é sti cos

237

marca impressa pelos trovadores nos seus cantares dedicados às milícias religiosas: se no conjunto das composições do século XIII apenas a tenção entre Vasco Gil e Pero Martins se referia abertamente aos nomes dos visados, nas composições da centúria seguinte mantém-se o mesmo padrão. Apenas uma cantiga de Estêvão da Guarda26, satirizando um escudeiro do mestre da Ordem de Alcântara, se refere ao visado, de nome Macia27. Se se sabe mais acerca dos freires satirizados no século XIV nas cantigas de escárnio e de mal dizer, isso deve-se às preciosas informações transmitidas pelas rubricas das composições. Não é pela expressão da sua individualidade que os freires surgem na cultura trovadoresca, mas sim pela sua condição de comendadores, como aquele satirizado por Rui Pais de Ribela em duas composições28. Aqui, ao anonimato associa-se uma imagem negativa de um comendador acusado pelo trovador de se ter apoderado de uma mulher alheia, levando o marido à súplica para que ele lha restituísse. O motivo sexual, bem característico da sátira trovadoresca, servia nestas duas composições para denegrir o carácter faltoso dos homens das milícias. Porém, a situação de apoderamento da mulher em questão pode constituir também um jogo de duplos significados, em que a mulher simboliza a materialidade dos bens dos comendadores, neste caso mal geridos porque apropriados para proveito próprio, ao invés de serem mantidos para cumprimento da missão da milícia a que pertencia29. É na segunda cantiga em que Rui Pais de Ribela nos tece o retrato deste comendador que surge uma pista, outrora aproveitada por Luís Krus para demonstrar o desdém dos trovadores relativamente ao mundo urbano, onde as milícias detinham grande parte do seu património 30. É a referência a uma mulher de Alenquer, que este marido oferecia ao comendador para, por meio de uma troca, repôr a normalidade da situação «comendador, dade-me mia molher, / e dar-vos-ei outra d’Alanquer, / en que percades a caentura.» A referência a esta vila da Estremadura é bastante sugestiva não só no que toca à implantação urbana das milícias, mas também porque

26

27 28 29 30

Sobre Estêvâo da Guarda, veja-se Miguel Gomes MARTINS – “Da Esperança a S. Vicente de Fora: um percurso em torno de Estêvão da Guarda” in Cadernos do Arquivo Municipal, n.º 3, Lisboa, Arquivo Municipal, 1999, pp. 10-60. CEMD 114. CEMD 415, 417; para os dados biográficos de Rui Pais de Ribela, veja-se António Resende de OLIVEIRA – Depois do Espectáculo..., pp. 434. Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 44-45. Luís KRUS – “A cidade no discurso Cultural Nobiliárquico (sécs. XIII e XIV)” in Maria José Ferro TAVARES (coord.) – A Cidade. Jornadas Inter e Pluridisciplinares, II, Lisboa, Universidade Aberta, 1993, pp. 383-393.

238

Com en das Urb an as das Or d ens Mi lit are s

aponta no sentido das ligações dos próprios freires às gentes que povoavam o mundo urbano. É de Pero Mendes da Fonseca a composição que melhor ilustra o desdém votado pelos trovadores à figura destes comendadores anónimos que ascendiam pelas hierarquias das Ordens Militares. Cantiga que durante muito tempo foi associada à figura de Paio Peres Correia31, «Chegou Paio de maas artes» conta-nos a história de um homem reles, de baixa condição, que pela manipulação de artes mágicas teria conseguido guindar-se à posição de comendador da milícia de Santiago mesmo sem o apoio do Conselho dos Treze32: «Chegou Paio de maas artes con seu cerame de Chartes; e non leeu el nas partes que chegasse a ũu mês, e do lũes ao martes foi comendador d’ Ocrês.» (CEMD 402)

A cantiga prossegue dando-nos uma visão do aspecto deste homem prestes a tornar-se comendador. Um indíviduo de aparência imbecil e andrajosa, de baixa condição, apresentando-se inclusive descalço. Sem que nada fizesse suspeitar que pudesse ascender à dignidade de comendador «cobrou manto con espada / e foi comendador d’Ocrês.». A composição exprime bem a caracterização que era feita pelos trovadores destes indivíduos. Homens obscuros, de baixa condição, saídos do anonimato, de tal forma desconhecidos que Pero Mendes toma a liberdade de os fazer representar através de uma figura bem conhecida do romanceiro popular – o Paio de Más artes33. Desse 31

32 33

Elisa FERREIRA PRIEGUE – “Chegou Paio de maas artes…» (CBN 1600 = CV 1132)” in Cuadernos de Estudios Gallegos, t. XXXI, Santiago de Compostela, Instituto Padre Sarmiento, 1978-1980, pp. 361-369; Ana MUSSONS FREIXAS – “El escarnio de Pero Meéndez da Fonseca” in La Lengua y la Literatura en tiempos de Alfonso X, Múrcia, Facultad de Letras de la Universidad de Murcia, 1985, pp. 393-414; a crítica a esta interpretação foi feita por António Resende de Oliveira com base nos dados prosopográficos do trovador: António Resende de OLIVEIRA – “Pero Mendiz da Fonseca” in Giulia LANCIANI; Giuseppe TAVANI (coords.) – Dicionário da Literatura..., p. 549; a ficha prosopográfica de Pero Mendes da Fonseca pode ser encontrada em António Resende de OLIVEIRA – Depois do Espectáculo..., pp. 421-422. Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 53-63. Sobre esta figura e o seu lugar no romanceiro tradicional português, veja-se Joaquim LEITE DE VASCONCELLOS – Tradições populares de Portugal, org. M. Viegas Guerreiro, Maia, INCM, 1986, pp. 318-319; Teófilo BRAGA – Contos Tradicionais do Povo Português, vol. I, Lisboa, Dom Quixote, 1995, pp. 209-211.

Anón imo s e Dom é sti cos

239

modo, ilustrava não só a baixa condição destes homens, mas associava também a sua ascensão na hierarquia das milícias a intrigas e à manipulação de artes divinatórias34. Só assim se poderia compreender que estes indíviduos, cuja caracterização estava longe de ser a do cavaleiro aristocrático dotado das virtudes da honra e do sangue, ascendessem aos lugares cimeiros destes institutos religiosos. A opção pelo anonimato e a caracterização negativa dos comendadores feitas pelos trovadores podem ser compreendidas à luz daquilo que, actualmente, se sabe acerca das orígens do tecido humano que compunha as milícias religiosas. Durante muito tempo assumiu-se que as Ordens Militares eram o receptáculo privilegiado para os filhos-segundos da aristocracia, por permitirem uma continuação da vocação guerreira da Nobreza em contexto religioso35. Porém, estudos recentes com base prosopográfica têm vindo a demonstrar que a profissão de indivíduos provenientes da aristocracia não era tão significativa como se pensava anteriormente. Os dados recolhidos relativos ao recrutamento dos cavaleiros teutónicos revelaram que os homens que compunham esta milícia eram sobretudo provenientes da pequena nobreza e das elites urbanas36. À apresentação destes dados para as regiões de implantação da Ordem Teutónica corresponderam outros levantamentos de dados que forneceram um quadro semelhante para as regiões da Provença37,

34

35

36

37

A associação dos freires à magia ou a fenómenos sobrenaturais que se podem caracterizar como exóticos de tipo oriental constituia um tópico das representações das milícias, muito devido às relações destes institutos com o Oriente: Helen NICHOLSON – Templars, Hospitallers and Teutonic Knights..., pp. 81-85; a permanência desta associação estará bem patente nas acusações dirigidas aos templários, durante o processo que levou à extinção desta Ordem; sobre este assunto veja-se Malcolm BARBER – The Trial of the Templars, Cambridge, Cambridge University Press, 2006; Jochen BURGTORF; Paul CRAWFORD; Helen NICHOLSON (eds.) – The debate on the Trial of The Templars (1307-1314), Farnham, Ashgate, 2010. Uma posição que pode ser lida em José MATTOSO – Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros [Narrativas dos Livros de Linhagens], Lisboa, Círculo de Leitores, 2001, pp. 162-164, 173. Karol GORSKI – “L’ordre Teutonique: un nouveau point de vue” in Revue Historique, t. 230, fasc. 2, Paris, PUF, 1963, pp. 285-294; Klaus MILITZER – “The Recruitment of Brethren for the Teutonic Order in Livonia, 1237-1562” in Malcolm BARBER (ed.) – The Military Orders, vol. 1, Fighting for the Faith and Caring for the Sick, Aldershot, Ashgate, 1994, pp. 270-277; Alain DEMURGER – Moines et Guerriers. Les ordres religieux-militaires au Moyen Âge, Paris, Seuil, 2010, pp. 100-101. Damien CARRAZ – L’Ordre du Temple dans la basse valée du Rhône (1124-1312). Ordres militaires, croisades et sociétés méridionales, Lyon, PUL, 2005, pp. 295-296, 308.

240

Com en das Urb an as das Or d ens Mi lit are s

de Leão e Castela38 e de Portugal39, bem como para os conventos centrais das Ordens do Templo e do Hospital40. O baixo estatuto social dos freires, bem como as suas raízes urbanas justificavam o desdém que lhes era votado pelos trovadores, porta-vozes de uma ideologia nobiliárquica que se estruturava em torno do sangue e da linhagem. Já na década de ‘80 do século XIII, o compositor do Livro Velho de Linhagens votava os freires de Santiago ao mesmo tratamento, associando-os a uma representação profundamente negativa que envolvia um bastardo régio e a cidade de Évora41. Se o mais antigo nobiliário português incluia menções a outros freires, estes eram referidos com um profundo laconismo, sintomático da tendência para silenciar a voz dos freires no seio do discurso ideológico nobiliárquico42. Na centúria seguinte, o padrão mantém-se. Outro comendador – de novo anónimo e de novo associado às artes mágicas – será alvo de uma sátira de João Fernandes de Ardeleiro. Nesta cantiga o trovador amaldiçoa um comendador que lhe teria usurpado um conjunto de bens na região de Pavia, no Alentejo, contando para isso com o apoio da vontade régia43. Mais uma vez a marca do anonimato surge numa cantiga, uma vez que o trovador apenas utiliza um trocadilho com a expressão comenda que nos permite compreender que a sátira era, de facto, dirigida a um comendador («ao Demo o acomendo / que o aja en sa comenda.»). No entanto, por lhe estar associada uma rubrica, o jogo de palavras da cantiga é plenamente esclarecido, não havendo, porém, menção ao nome deste comendador44. À semelhança da leitura

38

39 40 41 42

43 44

Philippe JOSSERAND – “La figure du commandeur dans les prieurés castellans et léonais du Temple et de l’Hôpital: una approche prosopographique (fin XIIe-milieu XIVe siècle)” in Isabel Cristina F. FERNANDES (coord.) – Ordens Militares. Guerra, Religião, Poder e Cultura... vol. 1, pp. 149-178. Luís Filipe OLIVEIRA – A Coroa, os Mestres e os Comendadores. As Ordens Militares de Avis e de Santiago (1330-1449), Faro, Universidade do Algarve, 2009. Jochen BURGTORF – The Central Convent of Hospitallers and Templars. History, Organization and Personnel (1099/1120-1310), Leiden/Boston, Brill, 2008, pp. 379-383. LV I B7. A respeito do tratamento dos freires no Livro Velho de Linhagens, veja-se Cláudio NETO – “«E mataram-no os freires d’uclés em Evora»: a memória das ordens militares através do Livro Velho de Linhagens” in Patrice CRESSIER; Vicente SALVATIERRA – Las Navas de Tolosa. 1212-2012. Miradas Cruzadas, Jaén, Universidad de Jaén, 2014, pp. 255-264. CEMD 200; Cláudio NETO – As Ordens Militares…, pp. 76-82; sobre João Fernandes de Ardeleiro: António Resende de OLIVEIRA – Depois do Espectáculo..., pp. 363-364. «Esta cantiga foi feita a un comendador que ouvera sas palavras con este escudeiro que lhi esta cantiga fez, por que o moveo a fazer del queixume a el-rei, e fez-lhi perder a terra que del tiinha e avia nome Pavia».

Anón imo s e Dom é sti cos

241

nas partes utilizada pelo Paio de Más Artes de Pero Mendes da Fonseca, este comendador teria utilizado outro metodo de adivinhação para amedrontar o trovador, afirmando que lhe teria previsto a morte. A caracterização dos comendadores mantinha, nas composições do século XIV, os mesmos traços gerais que os definiam nas composições da centúria anterior. No fundo, a avidez do comendador da cantiga de João Fernandes de Ardeleiro não era mais que um pálido reflexo da avidez desses outros privados d’el-rei, que pela pena do bastardo de D. Dinis, D. Pedro, Conde de Barcelos, viam denunciada a sua ambição desmesurada: «Os privados, que del-Rei an, por mal de muitos, gran poder, seu saber é juntar aver; e non o comen nen o dan, mais posfaçan de quen o dá; e, de quanto no reino á, se compra tod’a seu talan.» (CEMD 325)

Mais uma vez, é a rubrica da cantiga que nos permite saber que esta se dirigia ao Bispo Miguel Vivas e ao Comendador-Mor da Ordem de Santiago, Gomes Lourenço de Beja45. A antipatia do Conde de Barcelos por este comendador é sobejamente conhecida, sendo motivada pela proximidade deste «vyllãao vogado que avya nome Gomez Lourẽço de Beja que era filho de hũu carpẽteiro dessa villa e despois foy freire de Santiago»46 a D. Afonso IV, relação que vinha já do tempo em que o Bravo era infante. A par de D. Pedro, também Estêvão da Guarda dirigia uma invectiva contra outro freire que integrava o grupo de homens da confiança do monarca, o comendador do Mosteiro de Santos, Rui Fafes47. Mais uma vez é a rubrica desta composição que permite identificar o cavaleiro referido na cantiga, satirizado por ter adquirido uma peça de vestuário exuberante, com a qual pretendia ocultar a calvicíe que o afectava48. O jogo de

45

46 47 48

«Esta cantiga foi feita a Miguel Vivas, que foi enleito de Viseu, e a Gómez Lourenço de Beja»; para uma análise desta cantiga veja-se Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 104-108; os dados biográficos de Gomes Lourenço de Beja foram coligidos em Luís Filipe OLIVEIRA – A Coroa, os Mestres e os Comendadores..., pp. 437-440. Crónica Geral de Espanha de 1344, ed. Luís Filipe Lindley Cintra, vol. IV, Lisboa, INCM, 2009, p. 253. CEMD 121. «Esta cantiga foi feita a un vilão rico, que avia nome Roí Fáfez, e feze o el Rei Don Afonso, filho del-Rei Don Denis, cavaleiro, a rogo de Miguel Vivas, eleito de Viseu, seu privado, por que casou com ũa sua sobrinha, e era calvo; e el empero fez un capeiron grande de marvi con pena veira e con alfreses, aberto por deante, e anchava-

242

Com en das Urb an as das Or d ens Mi lit are s

sentidos da composição remete mais uma vez para as orígens vilãs deste cavaleiro, oriundo da Estremadura, que procuraria esconder as suas raízes humildes através da ostentação de um vestuário opulento, mas que, no fundo, caia no ridículo perante homens mais seguros da sua posição social. O trovador fazia questão de não deixar de lado todas as associações que pudessem vincar ainda mais a ligação de Rui Fafes ao mundo urbano, questionando-o sobre que mesteiral lhe teria feito o manto – se um alfaiate, se um peliteiro. Como se comprova, as ligações dos homens das Ordens ao mundo urbano não eram, de modo algum, ignoradas pelos trovadores. As relações dos comendadores com o património urbano, bem como as suas origens vilãs serviam de motivo para os cantares que lhes eram tecidos pelos trovadores. No seio destas duas questões reside o problema das relações entre os freires e as casas das milícias em contexto urbano, que acolhiam os freires e davam apoio às suas actividades 49. Se no âmbito das críticas tecidas pelos trovadores aos homens das milícias não constam menções à sua actividade guerreira, subsiste, não obstante, um retrato dos freires associado à vida urbana, ao apego dos bens e à vida doméstica que caracterizava as comendas urbanas das Ordens Militares 50. Bem exemplificativa disto é aquela composição de Gonçalo Eanes do Vinhal 51 que põe em

49

50

51

-se pelas costas e pelos ombros todo arredor; e levava-o en cima da calva pera lhe parecer a pena veira»; veja-se Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 94-100; para os dados biográficos de Rui Fafes: Luís Filipe OLIVEIRA – A Coroa, os Mestres e os Comendadores..., pp. 495-500. Damien CARRAZ – “Maison” in Nicole BERIOU; Philippe JOSSERAND (dirs.) – Prier et Combattre. Dictionaire européen des ordres militaires au Moyen Âge, Paris, Fayard, 2009, pp. 572-574. Sobre a implantação urbana das milícias, para além dos textos reunidos neste volume, veja-se Kristjan TOOMASPOEG – “Ville” in Nicole BERIOU; Philippe JOSSERAND (dirs.) – Prier et Combattre..., pp. 964-966; Thomas KRÄMER – “The role of the Military Orders in German and French Towns: functional comparisons” in Isabel Cristina F. FERNANDES (coord.) – As Ordens Militares. Freires, Guerreiros, Cavaleiros, Palmela, GEsOS, 2012; pp. 519-542; Damien CARRAZ (éd.) – Les ordres militaires dans la ville médiévale (1100-1350). Actes du colloque international de Clermont-Ferrand. Clermont-Ferrand, Presses Universitaires Blaise-Pascal, 2013. Gonçalo Eanes do Vinhal figura entre os principais cortesãos de Afonso X, tendo um percurso ligado à conquista e repovoamento da Andaluzia; sobre este trovador veja-se Henrique DAVID – “Os portugueses e a reconquista castelhana e aragonesa do século XIII”..., pp. 1031-1036; António Resende de OLIVEIRA – Depois do Espectáculo..., pp. 353-354; a proximidade da linhagem deste indivíduo à linhagem dos Correias e à Ordem de Santiago durante as décadas de ‘30 e ‘40 do século XIII pode ser acompanhada em Manuel LÓPEZ FERNÁNDEZ – “Medina de las Torres y Martín Anes do Vinhal. Un poblador portugués en Tierras de Extremadura” in Revista de estudios extremeños, vol. 58, n.º 2, Badajoz, Centro de Estúdios Extremeños, 2002, pp. 522-527.

Anón imo s e Dom é sti cos

243

cena a relação de uma mulher com uma casa não identificada da milícia sanjoanina: «Ũa dona foi de pran demandar casas e pan da órdin de San Joan, con mínguas que avia; e digo-vos que lhas dan quaes ela queria.» (CEMD 171)

Mais uma vez o jogo de equívocos tem a sua aplicação numa sátira que joga não só com a materialidade da assistência fornecida à mulher em questão, mas também com a insinuação sexual52. A composição prosegue descrevendo a forma caprichosa como esta mulher foi pedindo progressivamente favores aos freires, que a satisfizeram plenamente em cada um dos seus pedidos, pondo ao seu serviço as casas da Ordem. É um retrato bem-humorado da relação que as casas das milícias estabeleciam com as populações das cidades e vilas onde se instalavam. Por detrás do episódio narrado estão as realidades das comendas – e é sintomático que sejam os Hospitalários que são postos em cena, dada a primitiva natureza assistencial da Ordem – das milícias que acolhiam e prestavam assistência quer aos peregrinos e viandantes, quer às populações que residiam nas suas imediações. Instalados na malha urbana, os freires integravam a vida económica das populações, adoptando as soluções de gestão – nomeadamente o investimento na economia monetária53 – que melhor se adaptavam à canalização dos rendimentos para os conventos centrais54. Era, no fundo, esta instalação que também atraía os seus professos dentro das camadas de população urbana habilitados a ingressar na vida religioso-militar. A dinâmica urbana das milícias criava assim o entrosamento entre os freires e as elites urbanas. Por outro lado, assinale-se também o lado doméstico destes freires que surgem atendendo aos pedidos da mulher nesta composição. Não é aqui dada a 52 53

54

Sobre esta cantiga, veja-se Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 37-38. Michel BALARD – “Commerce” in Nicole BERIOU; Philippe JOSSERAND (dirs.) – Prier et Combattre..., pp. 247-250; sobre a questão da evolução dos rendimentos das Ordens Militares e as estratégias por elas desenvolvidas para fazer face às transformações do século XIII veja-se Philippe JOSSERAND – Église et Pouvoir..., pp. 299-372. A necessidade de canalizar os rendimentos das comendas para os conventos centrais radicava na necessidade de defender a Terra Santa; veja-se Judith BRONSTEIN – “Responsions” in Nicole BERIOU; Philippe JOSSERAND (dirs.) – Prier et Combattre..., pp. 785-786.

244

Com en das Urb an as das Or d ens Mi lit are s

representação dos ferozes freires do campo de batalha, capazes do maior sacrifício em honra do martírio de Cristo. São antes estes sujeitos passivos, que se confundem até com a casa que administram, vulneráveis aos caprichos de uma mulher, entregues à administração dos seus bens. Talvez fosse esta a impressão que os homens das Ordens causassem numa aristocracia que apresentava muitas dificuldades em se adaptar à economia urbana55 e que, talvez por isso, olhasse com suspeição a facilidade com que os freires se moviam nos meios citadinos, entrando nos circuitos mercantis e, para isso, manipulando espécies monetárias. Talvez fosse isto que lhes suscitava a imagem dos comendadores ávidos de bens, desejosos da acumulação de património às custas de homens menos adaptados às novas realidades das centúrias de Duzentos e Trezentos. Esta adaptação e investimento na cidade não escapava ao olhar atento dos trovadores. É da lavra do Conde de Barcelos uma composição que põe em cena as relações de um mestre de ordem de cavalaria com uma tendeira na cidade de Lisboa56. A compreensão do tema da cantiga é auxiliada, mais uma vez, por uma rubrica, que coloca em cena um mestre de uma ordem militar que havia seus negócios com uma tendeira lisboeta57. Não só a mulher era amante deste mestre, como também fazia bom proveito das somas de dinheiro que ele investia nesse negócio, a tal ponto que acabou por levar a tenda à falência, não significando isso que o mestre a tivesse abandonado. É uma cantiga que se desenrola em torno do equívoco suscitado pelo duplo sentido assumido pelo esteio da tenda, equívoco que metaforiza os abusos que este negócio terá sofrido às mãos da senhora em questão. Como seria de prever, esta tenda acaba desfeita mercê do comportamento desregrado do mestre e da mestra. A forma como o trovador utiliza a dimensão comercial e física da tenda, com o seu duplo sentido materializado pela alusão ao esteio, é particularmente bem conseguida, permitindo uma série de leituras relacionadas quer com a fogosidade da mulher em causa, quer com a sua avidez relativa aos lucros do negócio. Trata-se de uma caricatura, de facto, mas que revela um ambiente doméstico, ligado à promiscuida-

55 56 57

Cf. José MATTOSO – “Mutações” in História de Portugal, dir. José Mattoso, vol. 2, A Monarquia Feudal (1096-1480), Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 252-255. (CEMD 326); para uma análise desta composição: Cláudio NETO – As Ordens Militares..., pp. 108-113. «Esta cantiga de cima foi feita a un Meestre d’ordin de cavalaria, por que avia sa barragãa e fazia seus [seus] filhos en ela ante que fosse Meestre; e depois avia ũa tenda en Lisboa, en que tragia mui grande aver a guaanho; e aquela sa barragãa, quando lhi alguns dinheiros viinhan da terra da Ordem e que o Meestre i non era, enviava-os aaquela tenda, pera gaanharen com eles pera seus filhos; e depois tiraron ende os dinheiros da tenda e deron-nos en outras praças pera gaanharen con eles, e ficou a tenda desfeita; e non leixou poren o Meestre depois a barragãa».

Anón imo s e Dom é sti cos

245

de da casa e ao envolvimento dos freires com as gentes da cidade e com os seus negócios. Pela sua cronologia e ligação aos meios lisboetas, é possível que a cantiga se possa dirigir a um dos irmãos Escacho que ocuparam o mestrado de Santiago a partir de 131958; mesmo sendo impossível comprová-lo com segurança, mais importante é a imagem que nos é dada de um mestre, mais uma vez anónimo, que fazia os seus negócios na principal cidade do reino recorrendo aos bens da milícia que administrava e o retrato do grau de intimidade que as relações deste cavaleiro com a cidade assumiam. Apesar de não fornecer dados palpáveis para uma identificação mais precisa das circunstâncias a que se dirigia, o grau de verosimilhança desta cantiga com as realidades que se propunha a representar deveria ser bastante elevado, dadas as conhecidas ligações dos mestres de Avis e de Santiago do segundo quartel do século XIV aos meios urbanos do Sul59. Mais uma vez recolhe-se uma imagem das milícias associada à domesticidade, que põe em cena um mestre mais preocupado em disfrutar dos prazeres e dos proventos da casa que tinha montada em Lisboa, ao invés de fazer bom proveito dos rendimentos da sua Ordem para a prossecussão da missão a que esta se destinava. Através da pena dos trovadores o rosto dos freires surge insólito, urbano, doméstico. Retirando-lhes o protagonismo bélico, os compositores destas sátiras dissociavam os homens das Ordens do universo dos guerreiros, traçando-lhes a imagem de homens apegados às suas casas e aos seus negócios, pouco dados à partilha da sua riqueza e mais preocupados com a acumulação de bens e de poder do que com as virtudes cavaleirescas. Os cenários caricatos em que os trovadores inserem os freires, são muitas vezes o espelho jocoso das realidades que envolviam a inserção das comendas no espaço urbano. No entanto, é curioso reparar que os trovadores muitas vezes demonstravam estar atentos aos valores que a profissão religioso-militar englobava através dos seus votos. Só assim poderiam fazer o exame a negativo das virtudes dos freires, confrontando os votos de pobreza e humildade com a acumulação de riquezas e de poder, denunciando a promiscuidade dos homens das Ordens com as gentes da cidade por oposição ao encerramento típicamente monástico das suas comunidades, ou ainda pondo a nu a sua falta de disciplina em situações pouco recomendáveis a um professo de uma comunidade religiosa. No fundo, as sátiras trovadorescas sugerem o lado mundano das milícias, que cedo necessitaram de desenvolver prácticas de gestão associadas à ne-

58 59

Cláudio NETO – As Ordens Militares…, pp. 111-113. Cf. Luís Filipe OLIVEIRA – A Coroa, os Mestres e os Comendadores..., pp. 217-226, 254-258.

246

Com en das Urb an as das Or d ens Mi lit are s

cessidade de manter guarnições tanto no Oriente como na Península Ibérica. As necessidades logísticas das Ordens obtinham resposta na canalização de homens, armas, e outros bens necessários à condução da guerra. No fim de contas era o lado mais prosaico do retrato dos freires, associados à comenda, à gestão dos bens e das suas casas, à manipulação de dinheiro, de bens transportáveis e transacionáveis que tornava possível a operacionalidade das Ordens Militares em tempos de crise militar e política. Se não é o lado heróico das milícias que sobressai nos cantares dos trovadores, mas sim a caricatura anónima e doméstica dos freires, é preciso sublinhar que o aspecto bélico e religioso das milícias está profundamente dependente destas outras realidades materiais e terrenas, pois era sobre elas que assentavam as estruturas do quotidiano dos freires.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.