Anotações para uma conversa com o Centro de Estudos Victor Meyer em 9 de julho de 2013

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Anotações para uma conversa com o Centro de Estudos Victor Meyer em 9 de julho de 2013 Manoel Nascimento∗ 2013-07-09 Resumo Notas rápidas escritas para uma conversa com o Centro de Estudos Victor Meyer em 9 de julho de 2013 sobre as manifestações que, naquele momento, ainda estavam em curso. A conversa aconteceu, na verdade, na semana seguinte, já com outras informações e outra conjuntura. Mas as anotações serviram para levantar primeiras hipóteses sobre as manifestações de junho, que depois foram desdobradas.

Companheiros, tendo em vista a conversa que marcamos para o dia 9 de julho, tomei a liberdade de ler o material publicado no site do CVM sobre a atual conjuntura. Afinal, para melhor dialogarmos, é preciso conhecermos o que já existe de análise da atual conjuntura, em especial quando produzido por quem participará do diálogo. Por isto, resolvi compartilhar algumas notas da leitura que fiz, esperando que nossa conversa seja algo bastante frutífero para todos. Tratarei primeiramente do texto de Marilena Chauí (“As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo”) por me parecer bastante equivocado, quase um “fogo amigo” (ela é apoiadora do MPL São Paulo); como muitas das questões nele abordadas são transversais aos demais textos, uma análise pormenorizada de seu conteúdo servirá também para sanar alguns equívocos de leitura de outros textos republicados pelo CVM (de Roberto Leher, de Lincoln Secco/Antônio David, da Intersindical e do próprio CVM). Depois desta primeira análise, tratarei “no atacado” de questões presentes nos demais textos. Peço que este texto tenha circulação restrita entre aqueles que participarão de nosso debate do dia 9. Estou começando a redigir uma análise de fôlego sobre estas semanas de mobilização, na qual incluirei diversas passagens destas notas de leitura; assim que esta análise estiver pronta ela será publicada no Passa Palavra, e encaminharei o texto final para o CVM. Como este texto é um apanhado de notas de leitura, nem a forma está das melhores, nem o conteúdo está referendado em dados consolidados; muitas vezes tive de recorrer a citações de memória e a anotações apressadas, sem contar que há várias passagens muito extensas que terminarão sendo reduzidas etc.

1. Texto de Marilena Chauí Se se parte do princípio de que a política é o único fator a se levar em conta e de que a conjuntura em São Paulo é determinante para o resto do país, a análise ∗ [email protected]

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é boa. Se abstrairmos estes dois pressupostos, a análise passa a mostrar suas falhas. Tentaremos adicionar outros elementos para suprir estas falhas.

1.1. O “inferno urbano” Em primeiro lugar, o “inferno urbano” a que Marilena Chauí se refere é, de fato, funcional não apenas para as atividades de reprodução da força de trabalho da dita “classe média” (mais adiante voltarei a falar desta “classe”), mas para a reprodução do próprio capital. Vejamos. 1.1.1. A “explosão do uso dos carros” e a queda do transporte coletivo Se a mobilidade urbana se torna impossível, se há uma “explosão do uso do automóvel individual”, é preciso seguir o rastilho queimado para ver quem o acendeu – e isto Marilena Chauí não faz. Como se trata de um texto curto para uma revista de teoria política, é compreensível que ela não tenha investigado esta origem; mas não podemos cair no mesmo equívoco. A economia industrial brasileira tem participação fundamental da indústria automobilística; na pressa não consegui achar fonte mais segura, mas Guido Mantega, ao anunciar outra redução de IPI, disse que a indústria automobilística representa 25% do PIB brasileiro. Para mais ou para menos (segundo a mesma fonte, estimativas mais conservadoras apontam participação de 18,2%), ela é central para a produção capitalista nesta região. Sendo assim, não é de espantar que a taxa de uso do transporte público esteja caindo não mais apenas em função da incapacidade de se pagar a tarifa, como entre 1994 e 2004 (ver uma análise aqui), mas também em função da migração de passageiros dos ônibus para os carros. Se é assim, a crise na mobilidade urbana é causada pelo incremento à produção automobilística, que vão desde as isenções fiscais à facilitação do crédito, resultando na facilitação da compra de carros. No que diz respeito ao transporte coletivo, mesmo se não existissem as máfias do setor, o próprio funcionamento do sistema seria, por si só, excludente. Uma análise mais aprofundada dos mecanismos da luta de classe neste setor foijá extensamente desenvolvidaem outro texto, mas o principal mecanismo excludente do seu funcionamento normal é de compreensão relativamente simples.Um aumento em qualquer dos custos de produção dos transportes faz com que, a médio prazo, a tarifa não garanta a margem de lucro dos empresários e, a longo prazo, nem mesmo cubra os custos de produção. Assim, os empresários exigirão um aumento de tarifas à prefeitura, que se vê diante de um dilema: ou aumenta as tarifas, em prejuízo de sua popularidade, e assim garante a margem de lucro dos empresários, a reposição de seus custos operacionais e –supõe-se –a qualidade do serviço; ou mantém o mesmo valor das tarifas por mais tempo, garantindo sua popularidade enquanto os empresários usam diversas táticas para pressionar a prefeitura a aumentar as tarifas: reduzem gastos com manutenção dos veículos (o que aumenta a ocorrência de quebras de veículos); reduzem a frota em circulação (o que aumenta o tempo de espera do passageiro nos pontos e também o Índice de Passageiros por Kilômetro – IPK, principal indicador de qualidade/sustentabilidade econômica do setor); não compram ônibus novos (o que aumenta a idade da frota, com os evidentes problemas de se usar veículos envelhecidos); impedem a recomposição da renda dos rodoviários contra a

inflação, mantendo seus salários nos mesmos níveis por períodos cada vez maiores ou concedendo-lhes aumentos irrisórios; e, como último recurso, demitem funcionários. Seu objetivo: reduzindo a qualidade da prestação do serviço para manter seu lucro, em primeiro lugar, e atacar a popularidade da prefeitura até que ela aumente as tarifas, em segundo lugar, visto que podem piorar ininterruptamente a qualidade dos serviços e jogar a responsabilidade na prefeitura, que não concede aumentos de tarifa. De uma forma ou de outra, a prefeitura teráque aumentar as tarifas, sem qualquer outra alternativa a curto prazo. Se a tarifa aumenta, um número considerável de pessoas se verá obrigada, para que os gastos com tarifas caibam em seu orçamento, a reduzir suas viagens de ônibus até um mínimo de 50 viagens/mês, tendo em vista a frequência ao trabalho, ou a simplesmente deixar de andar de ônibus por não ter mais condições de arcar com estas despesas. Se um número considerável de pessoas deixa de andar de ônibus, isso significa que o número de pessoas que dividirá os custos do sistema através do pagamento de tarifas se reduz. Se este número de pessoas se reduz, isto significa que menos pessoas arcam com os mesmos custos, ou, em boa matemática, que a “fatia do bolo” para cada um é maior; ora, esse “aumento na fatia do bolo” se chama, na prática, aumento nas tarifas, porque a “fatia do bolo” se chama, na prática, tarifa. E assim inaugura-se um círculo vicioso, no qual o aumento nas tarifas desencadeia uma espiral de exclusão de usuários seguida automaticamente de novos aumentos decorrentes da própria dinâmica do sistema; estes novos aumentos excluem outros usuários, e assim sucessivamente, até que o transporte coletivo torne-se progressivamente mais elitista. Esta tendência foi verificada empiricamente com dados do sistema de transporte coletivo urbano de Salvador referentes ao período entre 1994 e 2004. Os dados do período entre 2001 e 2011 estão para ser conseguidos; com ele se verificará a continuidade desta tendência, ou qualquer alteração no cenário. 1.1.2. A explosão dos empreendimentos de luxo e a formação de bairros de trabalhadores Se hoje é ponto pacífico que a separação entre o trabalhador e os meios de produção é uma das condições para a existência de uma economia capitalista, tal conceito abstrato só foi possível de se formular a partir da análise concreta da luta de classes. Aprofundando o mesmo método, fica claro que a luta de classes não se dá apenas no ramo da produção econômica propriamente dita. Os trabalhadores, considerados enquanto conjunto da força de trabalho, precisam reproduzir esta mesma força de trabalho; apesar de o debate sobre a natureza, a extensão e os métodos desta reprodução ainda estar em aberto, é ponto pacífico que a casa é lugar privilegiado das atividades que a materializam. Dormir, comer, lavar roupa, fazer filhos e criá-los, ter um pouco de lazer, etc., tudo isto que são atividades da reprodução da força de trabalho se dá, preferencialmente quando não exclusivamente, na casa dos trabalhadores e nos espaços que lhes são próximos (praças, quadras de esportes, bares, mercados, etc.). Ocorre que a reprodução desta força de trabalho não se dá fora de relações capitalistas. Neste regime, a terra é uma mercadoria como qualquer outra, e sua valorização se dá mediante vantagens locacionais bem conhecidas: salubridade, facilidade de construção (inclinação, natureza do solo, etc.), proximidade de locais centrais para a produção (centros comerciais, indústrias, etc.), acesso

a vias públicas, etc. O acesso à terra para construir se dá mediante a disputa pela terra mais bem localizada, e não é à-toa que os bairros de trabalhadores terminam se localizando em locais distantes dos centros urbanos, lá onde a terra é mais barata (e, portanto, acessível para trabalhadores com baixos salários), onde é menos valorizada (e, portanto, suscetível de ser ocupada por trabalhadores sem qualquer reação mais violenta por parte dos latifundiários urbanos) ou onde a construção é mais difícil (e, portanto, menos rentável para produção de moradias pelas empresas da cadeia imobiliária). Em linhas muito esquemáticas, vê-se assim um processo em que a separação entre o trabalhador e os meios de produção amplia-se do local de trabalho para o espaço urbano. Com outros condicionantes, com outros processos históricos, mas reproduzindo e ampliando o mesmo processo. E por mais que se diga que as novas condições criadas a partir de 2003 com a criação do Ministério das Cidades, com o programa Minha Casa Minha Vida, etc., mudaram o panorama, nada vemos de novo. Em outro texto, apontamos como estas novas condições, além de reduzirem o déficit habitacional (número de famílias vivendo em casas insalubres, morando de favor, etc.), contribuíram enormemente para aumentar a especulação imobiliária, que deixa de existir na forma anterior dos chamados “terrenos de engorda” e passa a existir numa forma nova, de acumulação de imóveis já construídos. Segundo cálculo do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) publicado pelo jornal A Tarde em 2 de agosto de 2011, o déficit habitacional diminuiu de 81.400 imóveis em 2000 para 52.500 em 2010, e o número de imóveis vazios caiu de 89.405 imóveis em 2000 para 77.900 em 2010. Se pegarmos os vazios e, num passe de mágica, usarmo-los integralmente para o combate ao déficit habitacional, sempre fica um saldo, a que chamamos de retenção especulativa. Como se vê, diminuíram, em números absolutos, tanto o número de imóveis vazios (11.505 a menos, redução de 12,86%) quanto o número de famílias incluídas no déficit habitacional (28.900 a menos, redução de 35,5%); a retenção especulativa, todavia, pulou de 8.005 em 2000 para 25.400 em 2010 – ou seja, 17.395 imóveis vazios sobrantes a mais, representando incríveis 207% de aumento frente aos valores de 2000. Como se vê, em números absolutos, o déficit foi reduzido e o número de imóveis vazios caiu; mas a retenção especulativa aumentou violentamente. E isto quer dizer, na prática, que a especulação imobiliária urbana em Salvador aumentou violentamente em dez anos, por maior que seja o sucesso dos programas habitacionais – e talvez mesmo por causa disso. Ou seja: o problema não está apenas em opor, de forma mecânica, “grandes condomínios” e “shopping centers” ao “aumento das periferias carentes”. Está em entender estes dois fenômenos como resultados da própria luta de classes, materializada na disputa pelo espaço urbano e pela terra urbana. Pode ser que por questões de espaço Marilena Chauí tenha sido obrigada a ser esquemática, mas nós, que não temos as mesmas restrições, precisamos apontar para onde os problemas realmente se encontram.

1.2. A tradição das lutas e o “pensamento mágico” Há aí uma questão prévia a analisar. Na virada da década de 1970 para a década de 1980, Marilena Chauí, junto com vários intelectuais (Marco Aurélio Garcia, Herbert Daniel, Amnéris Maroni, Eder Sader, etc.), fez parte do corpo

editorial da revista Desvios, um dos principais polos de debate e difusão do pensamento autonomista de então. Precedida pela publicação das 11 Teses sobre a Autonomia, esta revista foi responsável por algumas das mais lúcidas e frutíferas análises da época sobre “novos” movimentos sociais (LGBT, juventude, punk, oposições operárias, etc.), sobre a relação “partido vs. massas”, sobre a democracia de base, sobre a burocratização dos sindicatos, etc. A linha teórica da revista, tal como se deu, era embasada principalmente nas leituras de Cornelius Castoriadis, Claude Lefort, Felix Guattari (inclusive entrevistado pela revista) e da autonomia operaia italiana (representada pela entrevista ao grupo Lotta Continua, opositor, dentro da “área da autonomia” italiana, do grupo hoje mais conhecido, Potere Operaio, a que pertenceu o hoje famoso filósofo Antonio Negri). Quando Marilena Chauí fala que “as manifestações guardaram da tradição dos movimentos sociais e populares a organização horizontal, sem distinção hierárquica entre dirigentes e dirigidos”, ela não parece remeter a uma análise concreta da situação dos movimentos sociais e populares da época, mas à tradição deste arcabouço teórico. Quando se analisa concretamente os movimentos da época, mesmo em publicações de intelectuais ligados ao grupo da Desvios (p. ex., Eder Sader e seu Quando novos personagens entraram em cena) é praticamente impossível encontrar um só onde a distinção entre dirigentes e dirigidos haja sido superada de modo eficaz e contínuo. Muito pelo contrário: a tendência à burocratização nos movimentos urbanos das décadas de 1970 e 1980 é tão grande quanto sua tendência à pulverização e ao localismo. Marilena Chauí, neste caso, impõe sobre a história dos movimentos sociais e populares no Brasil um imperativo filosófico construído por Cornelius Castoriadis a partir – agora sim! – da análise concreta das lutas operárias na Europa e nos EUA entre as décadas de 1950 e 1960. Com estas observações não quero dizer que discordo da matriz teórica usada por Marilena Chauí. Pelo contrário: estou, eu próprio, muito mais próximo do autonomismo e do anarquismo (onde comecei minha formação política) que do marxismo ortodoxo tal como transmitido pelo PCB, pelo PCdoB e por certas tendências do próprio PT (Convergência Socialista – hoje PSTU, Causa Operária – hoje PCO, Força Socialista – hoje APS/PSOL, OSI – hoje Esquerda Marxista/PT, etc.). Quero dizer que, neste caso, Marilena Chauí abusa da Filosofia ao querer fazer dela automaticamente História sem compreender como os sujeitos diretamente envolvidos na produção desta História a produziram, impondo-lhes uma teoria sem ver como sua própria prática fornece elementos para, a partir daí, construir teorias. Mas a que tradição se filiam as manifestações? Para entendê-lo, é preciso diferenciar o Movimento Passe Livre (MPL) enquanto movimentos social e as manifestações que usam o nome “Movimento Passe Livre”. O texto de Roberto Leher faz um histórico razoável do MPL, mas tem, também, suas falhas, naturais quando vindas de um observador externo. O MPL é um movimento social fundado em 2005 na plenária de movimentos sociais acontecida no Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Seus fundadores foram vários coletivos locais responsáveis pelas campanhas pelo passe livre estudantil em suas cidades, nomeadamente Florianópolis, Goiânia, São Paulo, Brasília, Joinville e Curitiba. (Eis aqui uma impressão da época: As inspirações diretas para a nacionalização destas campanhas e sua organização enquanto movimento social foram a Revolta do Buzu, acontecida em Salvador em 2003

(ver mais detalhes neste artigo), e as duas Guerras da Tarifa, acontecidas em Florianópolis em 2004 e 2005. O MPL, então incipiente, criou para si uma carta de princípios, revisada no 3º Encontro Nacional, realizado na Escola Florestan Fernandes entre 27 a 30 de julho de 2007, onde se lê, entre outras coisas: O Movimento Passe Livre é um movimento horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário. A independência do MPL se faz não somente em relação a partidos, mas também a ONGs, instituições religiosas, financeiras etc. (. . . ) A via parlamentar não deve ser o sustentáculo do MPL, ao contrário, a força deve vir das ruas. (. . . ) O MPL não tem fim em si mesmo, deve ser um meio para a construção de uma outra sociedade. Da mesma forma, a luta pelo passe-livre estudantil não tem um fim em si mesma. Ela é o instrumento inicial de debate sobre a transformação da atual concepção de transporte coletivo urbano, rechaçando a concepção mercadológica de transporte e abrindo a luta por um transporte público, gratuito e de qualidade, como direito para o conjunto da sociedade; por um transporte coletivo fora da iniciativa privada, sob controle público (dos trabalhadores e usuários). O MPL deve ter como perspectiva a mobilização dos jovens e trabalhadores pela expropriação do transporte coletivo, retirando-o da iniciativa privada, sem indenização, colocando-o sob o controle dos trabalhadores e da população. Assim, deve-se construir o MPL com reivindicações que ultrapassem os limites do capitalismo, vindo a se somar a movimentos revolucionários que contestam a ordem vigente. Portanto, deve-se participar de espaços que possibilitem a articulação com outros movimentos, sempre analisando o que é possível fazer de acordo com a conjuntura local. Os projetos reivindicados para a implementação do passe livre para uma categoria não devem implicar em aumento das tarifas para os demais usuários. O MPL deve fomentar a discussão sobre aspectos urbanos como crescimento desordenado das metrópoles, relação cidade e meio ambiente, especulação imobiliária e a relação entre drogas, violência e desigualdade social. O MPL deve lutar pela defesa da liberdade de manifestação, contra a repressão e criminalização dos movimentos sociais. Nesse sentido, lutar contra a própria repressão e criminalização de que tem sido alvo. (. . . ) O MPL se constitui através de um pacto federativo, isto é, uma aliança em que as partes obrigam-se recíproca e igualmente e na qual os movimentos nas cidades mantêm a sua autonomia diante do movimento em nível federal, ou seja, um pacto no qual é respeitada a autonomia local de organização. (. . . ) O MPL deve utilizar mídias alternativas para a divulgação de ações e fomentar a criação e expansão destes meios. Já o contato com a mídia corporativa deve ser cauteloso, entendendo que estes meios estão diretamente atrelados às oligarquias do transporte e do Poder Público. Estas características organizativas e tático-estratégicas não eram apenas suas; refletiam uma tradição de organização e mobilização que não era a dos movimentos sociais e populares das décadas de 1970/1980, mas sim aquela derivada diretamente dos movimentos envolvidos ou resultantes das lutas que culminaram na Batalha de Seattle, em 1999, cujo objetivo imediato foi a paralisação da Rodada do Milênio da Organização Mundial do Comércio (OMC). É a esta tradição que pertence o MPL. O movimento não nega a história de luta dos movimentos sociais e populares urbanos que pautaram melhorias no transporte

público antes dele, mas não reivindica filiação direta às suas formas organizacionais ou às suas perspectivas tático-estratégicas. O MPL já começa inserido numa perspectiva internacionalista, anticapitalista e ideologicamente plural, como era comum entre movimentos de juventude quando de sua fundação. Não se trata, aqui, de indicar a filiação ideológica do MPL ao pensamento do autor X ou do pensador Y, como tentou fazer Roberto Leher com a obra do controverso John Holloway; trata-se de reconhecer o pertencimento do MPL a uma tradição de militância muito bem enraizada nas lutas sociais desde a década de 1990, ela própria caudatária das práticas militantes das décadas de 1960 e 1970, tais como, entre outras, as seguintes: a) Autonomia operaia italiana (Quaderni Rossi de Panzieri, Tronti, Negri, etc.; Potere Operaio; Il Manifesto; Autonomia diffusa; etc.); b) Organizações envolvidas com o Maio de 1968 e as greves gerais de junho de 1968 na França, nomeadamente o Movimento 22 de Março; c) O situacionismo (Guy Debord, Asger Jorn, Raoul Vaneigem, etc.); d) O maoísmo europeu; e) Panteras Negras; f) Guerrilhas latino-americanas (ALN, Tupamaros, Montoneros, Sendero Luminoso, etc., subsumidos na figura de Ernesto “Che” Guevara); g) Students for a Democratic Society estadunidenses, assim como as organizações dele derivadas (Weathermen, Novo Movimento Comunista, etc.); h) Provos holandeses; i) Nova esquerda japonesa (Zengakuren, Exército Vermelho Unido, Exército Vermelho Japonês, etc.); j) Sozialistische Deutsche Studentenbund (SDS), a união estudantil dos estudantes socialistas alemães, expulsos do Partido Social-Democrata em 1961 e responsáveis pela agitação extra-parlamentar no país até sua dissolução em 1970. Esta linha de pensamento e ação, por sua vez, não surge como um raio em céu azul, e enraíza-se simultaneamente em tradições militantes como: a) o “marxismo heterodoxo” de grupos como Socialisme ou Barbarie, grupo Johnson-Forest etc.,; b) o trotskismo (em especial a fração lambertista); c) o marxismo conselhista (Anton Pannekoek, Herman Gorter, Otto Rühle, etc.); d) os “bolcheviques de esquerda” (grupo Oposição Operária de Shlyapnikov, Kollontai, Vladimirov, Medvedev, Tolokonvsev, Chelyshev, Kutuzov, Orlov, Kiselyov, etc.; grupo Verdade Operária de Shutskever, Shul’man, Khaikevich, Budnitsky, Lass-Koslova, Vikman-Beleev, Krym);

e) o anarquismo (especialmente Proudhon, Bakunin, Kropotkin e Malatesta). Encerrada a discussão sobre as origens do MPL e retomando o fio da meada, com o passar dos anos – e com algumas crises internas – o MPL percebeu que o passe livre estudantil era uma reivindicação importante, mas meramente setorial. Avançou-se, assim, rumo ao que hoje recebe o “nome de fantasia” de tarifa zero, que propõe a transformação do modelo de custeio do transporte público em algo semelhante ao atualmente existente nos demais serviços públicos. Na prática, esta mudança de modelo implica em substituir o custeio baseado no pagamento imediato pelo passageiro a cada uso (também conhecido como “modelo paga-quem-usa”) para um custeio baseado na arrecadação tributária e na cobertura dos custos pelo recurso vindo de tributos (também conhecido como “modelo paga-quem-se-beneficia”). A implementação do modelo tarifa zero tem sido pautada pelo MPL a partir de pequenas reformas tributárias para majorar o IPTU de grandes latifundiários urbanos, de sedes de bancos, de fábricas, etc.; estes recursos extra seriam empregues exclusivamente no custeio do transporte público. Há coletivos que falam inclusive em apoiar a implementação do imposto sobre grandes fortunas (IGF) para destinar para o transporte público os recursos assim obtidos. E aqui entra o “pensamento mágico”, identificado com precisão por Marilena Chauí. Para os militantes do MPL, as mobilizações são instrumento para conseguir a redução tarifária ou a tarifa zero, não um fim em si mesmas. Há total consciência de que o transporte público é um serviço público, e como tal impossível de ser modificado, nas atuais circunstâncias, sem que haja um mínimo de diálogo com o Estado – nem que seja para dizer “não sairemos das ruas enquanto a tarifa não abaixar”. As redes sociais são, igualmente, instrumentos, tal como um panfleto ou um cartaz. Ninguém dentro do MPL crê, em sã consciência, que alcançará seus objetivos num só clique. E muito da história de suas lutas está bem resumida no texto de Roberto Leher republicado pelo CVM As mobilizações iniciadas pelo MPL até hoje têm sido massivas, girando em torno de alguns milhares de pessoas a cada vez, quando não dezenas de milhares. Para muitos entre os que estiveram nas ruas nas últimas semanas, assim como em vezes anteriores (a de agora não é a primeira mobilização do MPL, mas sim, e inquestionavelmente, a maior delas), trata-se da primeira mobilização de que participam. Nas ruas, a militância do MPL dedica-se a um trabalho de convencimento, divulgando panfletos e jornais com informações, análises, etc., voltados para a politização da questão dos transportes – em especial destes que iniciam agora na participação política. Ocorre que na medida em que a repressão às manifestações em São Paulo ganhou notoriedade midiática, em especial após a repressão pesada que atingiu profissionais da comunicação, a situação transbordou os limites do MPL. Assim como nas duas Guerras da Tarifa, as pessoas passaram a ir às ruas não apenas reivindicar a derrubada do aumento tarifário, mas também o respeito ao seu direito de se reunir nas ruas e de se manifestar em público. Lá, como agora, viu-se também muita gente enrolada em bandeiras, muita gente cantando o hino nacional, etc.. A diferença fundamental está no fato de setores da burguesia nacional encastelados nos meios de comunicação de maior circulação terem visto nas mobilizações, em especial por serem compostas majoritariamente por pessoas com pouca ou nenhuma atividade política anterior, a oportunidade ideal para pau-

tarem, a partir de fora das ruas, o conteúdo político das passeatas. O fato de tantos e quantos haverem “compartilhado” ou “repassado” por meses a fio nas redes sociais (Facebook, Twitter, Instagram, etc.) imagens e textos relativos às pautas levantadas por esta mesma mídia corporativa – redução da maioridade penal, rejeição à PEC 37, etc. – ou de setores cujas lutas foram enormemente visibilizadas pela mídia – retirada de Marco Feliciano da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, etc. – facilitou enormemente a manobra. Uma vez já agitadas as massas, era só direcioná-las. É só quanto a isto que vale o “pensamento mágico” apontado por Marilena Chauí. Abarcar ação do MPL neste mesmo conceito é apagar, sumariamente, pelo menos oito anos de mobilização, agitação e trabalho de base levado a cabo intensivamente em diversas cidades do país onde há coletivos organizados do movimento.

1.3. A “recusa” e a classe média Aqui não apenas Marilena Chauí mostra seus limites, mas também, aparentemente, renega suas origens políticas. A autora aponta, com razão, bases conjunturais, estruturais e de crítica ao PT como pano de fundo para o que chama de “recusa”, de “crítica às instituições políticas”. É de estranhar que uma ex-integrante do corpo editorial de uma revista como a Desvios, que esforçava-se muito honestamente para tentar interpretar a crítica prática às instituições políticas vindas de diversos setores então “marginalizados” no pensamento de esquerda (pichadores, gays, operários envolvidos em “greves selvagens” e práticas de recusa à cadeia de comando da empresa, estudantes, etc.), agora venha dizer que “a maioria deles [manifestantes] não exprime em suas falas uma análise das causas desse modo de funcionamento dos partidos políticos, qual seja, a estrutura autoritária da sociedade brasileira, de um lado, e, de outro, o sistema político-partidário montado pelos casuísmos da ditadura”. Mais estranho ainda é que afirme, a seco, que “em lugar de lugar por uma reforma política, boa parte dos manifestantes recusa a legitimidade do partido político como instituição republicana e democrática”. Ao mesmo tempo em que contradiz seu próprio passado, Marilena Chauí apresenta uma contradição entre a “ética na política” pautada pelos manifestantes, que qualifica como “transposição de valores do espaço privado para o espaço público”, e a “ética da política” (ou seja, “valores propriamente públicos” de uma “ética que não depende das virtudes morais das pessoas privadas dos políticos e sim da qualidade das instituições públicas enquanto instituições republicanas”). Finaliza o texto acenando para a importância desta “recusa” apenas de um “ponto de vista simbólico”, sem qualquer esforço para apreender seu significado imediatamente político – tal como fizeram, décadas atrás, ela e o grupo da Desvios. Na prática, estas duas posturas materializam-se na canalização desta “recusa”, pela própria Marilena Chauí, para a reforma política pautada infrutiferamente há anos pelo PT. Pode-se argumentar, com certa dose de razão, que a mudança de abordagem da “recusa” justifica-se, pois o conteúdo de classe desta recusa mudou. Que estes manifestantes de agora não são “trabalhadores”, mas sim a “classe média”, esta recorrente esfinge para o marxismo. Se falo em “esfinge”, é por conceber como antitético comprovar estatisticamente a subsunção real do trabalho ao capital, a “proletarização” de profissões

liberais (aspeio por não achar o termo adequado, apesar de vê-lo recorrentemente no debate sobre estratificação social), a ampliação do assalariamento como regime geral de trabalho e, ao mesmo tempo, perceber que se persiste a falar de “classe média” nos debates políticos como se se tratasse dos velhos profissionais liberais, pequenos comerciantes e funcionários públicos de baixo escalão dos tempos de Marx. Há algo estranho nisso, embora poucos se apercebam desta contradição. Para ficarmos apenas em São Paulo, o texto de Lincoln Secco/Antônio David apresenta uma pesquisa do DataFolha sobre a composição da passeata do dia 17 de junho. Esta pesquisa não é inocente; é sobre ela que a Folha de São Paulo pôde construir parte de sua estratégia de influenciar as manifestações a partir de fora. Ela aponta que 22% dos manifestantes eram estudantes, e 77% tinham nível superior. Do total de manifestantes, 53% tinha menos de 25 anos. Desta sondagem inicial pode-se inferir que em São Paulo pessoas jovens com nível superior eram a absoluta maioria dos manifestantes. Pode-se deduzir daí que a classe média era a maioria na passeata? Dificilmente. Em primeiro lugar, porque depois de sucessivas reformas universitárias, que terminaram por expandir enormemente o setor privado do ensino universitário e, posteriormente, por incluir nas universidades públicas incontáveis estudantes do ensino público e estudantes negros pela via das cotas, o perfil do estudante universitário mudou. Se até a década de 1990 e meados da década de 2000 era possível dizer que a maioria dos estudantes universitários era de classe média, hoje, “a olho”, pode-se dizer que o perfil de classe da maioria dos universitários varia entre a classe média baixa (4 a 6 salários mínimos) e os estratos da classe trabalhadora com renda média e baixa (vindos de famílias com renda mensal entre 2 a 4 salários mínimos). (Isto pode ser checado posteriormente nos censos do INEP). Aquela classe média “clássica”, com renda mensal familiar maior que R$ 5.000,00, é cada vez mais minoritária nas universidades. A depender do curso em questão, o perfil de classe muda, mas os cursos tradicionalmente elitistas (medicina, direito, engenharias, etc.), à exceção do curso de direito, não foram massificados – o que se verifica facilmente pelos clamores do mercado imobiliário pela formação de mais engenheiros, ou pela recente proposta de vinda de médicos cubanos para o interior do país. Os cursos universitários mais massificados são os de administração e direito. Em especial quando se fala do curso de administração, o perfil de classe de seus estudantes é o de trabalhadores que buscam formação para ascender dos postos semi-qualificados de trabalho para postos qualificados; no caso de direito, trata-se da tentativa de ampliar o leque de concursos a que se pode concorrer. Nos cursos onde a elitização é tradicionalmente menor (ciências sociais, economia, fisioterapia, enfermagem, artes plásticas, pedagogia, etc.), os estratos de melhor renda da classe trabalhadora dominam; com a melhoria das condições econômicas da classe trabalhadora nos últimos dez anos, sua entrada nestes cursos aumentou enormemente. Daí dizer: é possível, como fez Marilena Chauí, associar imediatamente as manifestações à classe média? Dificilmente. Quem esteve nas ruas foram, majoritariamente, trabalhadores qualificados. São jornalistas a quem se impõe o “frila” como regime normal de trabalho. São estudantes universitários que optaram por enfrentar a precariedade do trabalho prolongando sua vida acadêmica nas pós-graduações para viver das bolsas. São trabalhadores do terceiro setor a pular de assessoria em assessoria para complementar renda. São engenheiros

e arquitetos contratados por empreitada, pingando de obra em obra e vivendo como dá entre uma coisa e outra. São professores trabalhando três turnos para manter condições dignas de vida. . . e por aí vai. É isto “classe média”? Dificilmente. Lincoln Secco/Antonio David foram precisos ao creditar a esta fração da classe trabalhadora os méritos e deméritos das mobilizações recentes. Foram estes que vi nas ruas em Salvador, foi dests que recebi diversos relatos vindos de outras cidades. E Marilena Chauí, mais uma vez, perdeu a chance de acertar o alvo. Ao invés de tentar interpretar a “recusa” destes trabalhadores qualificados às formas tradicionais de representação política, jogou-os na vala comum da classe média tradicional – esta sim, ainda ativa e bastante atuante, mas avessa às ruas. Outros, como a Rede (de Marina Silva), o PSOL, o Partido Pirata (ainda em formação, mas já disputando hegemonia nas mobilizações de Salvador) têm capitalizado esta “recusa” pela esquerda. E pela direita, o que há?

1.4. O perigo fascista A extrema-direita deu as caras nas ruas pela primeira vez em décadas. Apesar de dar a impressão de morta, suas organizações têm crescido enormemente. Por “extrema-direita” entendo as organizações ligadas a quatro eixos fundamentais: o militarismo, a religião organizada, o sindicalismo patronal ou corporativo e as organizações de extrema-direita propriamente ditas, que subdivido em fascistas, neonazistas, certos tipos de skinheads (nem todo skinhead é neonazista), xenófobos, ultranacionalistas e organizações conservadoras ao estilo TFP. No campo militar, não é novidade alguma que o orçamento brasileiro para a área é insuficiente, e houve momentos em que as forças armadas precisaram dispensar novos candidatos ao serviço militar por falta de recursos para pagamento. Ainda há, também, as tensões a respeito da Comissão da Verdade. E o movimento das associações de soldados e praças tem tendido, com raras exceções (como a APRASC de Santa Catarina), para a direita. De tudo isto, é factível dizer que a direita está aprontando um golpe militar às escondidas? Faltam-me elementos outros além da sensação de que os incontáveis pronunciamentos do Clube Militar não passam de vozes isoladas dentro da tropa. Não se pode esquecer, entretanto, que a maioria da tropa vem de famílias da classe trabalhadora, que tem sido diretamente beneficiada pelas políticas econômicas e sociais responsáveis pela melhoria da renda. No campo da religião organizada, prefiro, ao invés de estender o assunto, remeter a um artigo do Passa Palavra. Nele se expressa a mais sintética compreensão do fenômeno das neopentecostais a partir de um ponto de vista anticapitalista enraizado na classe trabalhadora. E os debates nos comentários são bastante interessantes. No campo do sindicalismo patronal ou corporativo, o próprio CVM tem mais elementos para análise que eu próprio. No campo das organizações de extrema-direita propriamente ditas, elas vivem hoje um verdadeiro ostracismo político. Para boa parte da juventude de classe média tradicional e para pequenos setores da juventude da classe trabalhadora, a ideologia do “empreendedorismo” e da “meritocracia” conduz diretamente ao novo fenômeno da expansão das juventudes partidárias de direita

(PSDB, DEM, etc.), impensável dez anos atrás. Isto, entretanto, é um fenômeno compreensível; para o senso comum, se o governo é de esquerda, só se pode fazer oposição a ele indo para a direita. Ir mais à esquerda, como diz a expressão que virou piada nas redes sociais, “já é vandalismo”. Entre estes que vão para a direita, setores mais radicais buscam diretamente pequenos grupos de skinheads, a Frente Integralista Brasileira, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, o Instituto Plínio Correia de Oliveira, Guardian Angels e outras. Um raio-X mais completo das organizações de extrema-direita propriamente ditas pode ser encontrado neste artigo, neste outro, neste, também neste, ainda neste ou neste último. Embora estas organizações de extrema-direita hajam sido responsáveis pelo espancamento de militantes de esquerda em manifestações, e com isto hajam ganhado notoriedade, seu número é reduzido. As juventudes de partidos de centro-direita aglutinam muito mais que as organizações de extrema-direita. O anacronismo destas últimas não encontra eco entre a juventude, que dirá entre aqueles acima dos trinta, que viveram sob regimes de direita e de centro-direita, quando não sob a ditadura militar. O problema não está em cada um destes quatro eixos visto isoladamente, mas sim nas articulações entre eles. Há vários indícios de influência recíproca entre organizações de extrema-direita e tropas de elite, como a COE baiana ou o BOPE carioca; policiais comuns baianos identificam tropas como a Caatinga, a Cerrado, as CIPE e a COE como “as tropas que mandaram para acabar com nossa greve”. A religião organizada, em especial as neopentecostais, tem grande influência sobre os militares de baixa patente, mas a recíproca não é verdadeira. O sindicalismo patronal/corporativo, embora não se deixe influenciar pelos militares ou pelas organizações de extrema-direita, não raro usa quadros destas organizações para suprimir manifestações indesejadas de trabalhadores; parte considerável de seus militantes é adepta de alguma religião organizada, em especial das neopentecostais, mas a recíproca não é verdadeira. Sendo assim, se há algum risco de fascistização da sociedade e da política no Brasil, ele se dá a partir da matriz religiosa cristã e conservadora difundida pelas neopentecostais. É o mais influente dos quatro eixos, pois penetra os outros três e não se deixa arrastar por eles. Resta ver, numa análise mais detida que não cabe aqui, se a influência ideológica se traduz em articulação política. Mas, ainda a partir de uma leitura meramente ideológica, é pouco provável, embora não impossível, tal articulação. Por isto, o receio do fascismo apontado por Marilena Chauí é infundado. Não há fascismo na próxima esquina; há, sim, preparação ideológica das condições necessárias para o fascismo – e nisto Marilena Chauí acerta, pois estas condições estão bem difundidas na sociedade brasileira. A saber: a) Rejeição generalizada a partidos ou organizações políticas, abrindo o campo para líderes carismáticos como Joaquim Barbosa ou qualquer outro a ser construído pela mídia corporativa; b) Insatisfação generalizada com as atuais condições de vida (“caos urbano”, precariedade de serviços públicos, etc.); c) Percepção equivocada sobre o grau de corrupção nas instituições políticas brasileiras (sobre o assunto, ver este artigo;

d) Insuficiência das instituições da democracia participativa ampliadas durante as gestões federais capitaneadas pelo PT para suprir a lacuna entre representados e representantes na política e na gestão pública (para maiores detalhes, ver este estudo do IPEA); e) Incapacidade destas mesmas instituições para abarcar eficazmente toda contestação social, conseguindo apenas mobilizar os que já estão mobilizados e, dentre eles, aqueles com maior acesso aos gabinetes (há análise inicial sobre isto neste artigo);

2. Os demais textos O texto “Mobilização de Junho”, da Intersindical, é importante por mostrar a posição de uma organização que tem tido papel importante na articulação de movimentos sociais e populares que “correm por fora” do PT, mas fica por aí. E nem poderia avançar mais no espaço de um simples comunicado. O texto de Roberto Leher (“Manifestações massivas no Brasil têm origem na esquerda”) cumpre o papel a que se presta: enraizar na percepção do público a noção de que as manifestações puxadas pelo MPL, e que depois o transbordaram, vêm da esquerda. Limpa o campo para uma análise mais densa, embora não a faça. Nem o poderia, dado o caráter imediato dos eventos analisados e o fato de se tratar de um observador externo sem muitos contatos com o próprio MPL. O texto de Raul Estrada (“As jornadas de junho”) faz boa inserção das mobilizações numa conjuntura, mas peca ao tentar propor pautas que se contradizem entre si (as três pautas relativas ao transporte) e ao inserir uma pauta que foi muito marginal durante as mobilizações (regulamentação das concessões públicas dos meios de comunicação). O texto de Lincoln Secco/Antonio David (“Saberá o PT identificar e aproveitar a janela histórica?”) é estranho. Historiador do PT (nos dois sentidos da expressão), Lincoln Secco tem sido um parceiro de primeira hora do MPL, assim como Marilena Chauí. Mais cuidadoso que ela, não tenta fazer análises gerais sobre as manifestações, mas sim várias análises parciais, espalhadas em vários textos já publicados, como este e este, dos quais o escolhido pelo CVM parece ser o mais recente e o mais abrangente. Não obstante a prosa sempre fluida e agradável, Lincoln Secco e Antonio David jogam sobre a mesa, também eles, a mesma carta lançada por Ricardo Gebrim em seu tristemente célebre “O cavalo passa selado pelas forças de esquerda”: ou bem as mobilizações são aproveitadas para a reforma política (ponto comum entre os dois textos) ou pelo próprio PT como forma de reoxigenar suas práticas (caso do texto de Secco/David), ou a direita levará a melhor. Já o “Boletim de Conjuntura nº 1” do CVM infelizmente escorrega onde não poderia escorregar: na análise concreta de situações concretas. Duas das três páginas e meia do boletim são usadas para apresentar dados do DIEESE sobre as greves de 2012, tendências da e a terceirização. Como o tema do boletim é “O pacto de colaboração de classes em questão”, o tema, evidentemente, não é o das mobilizações recentes, mas sim de investigar se estas mobilizações, somadas às movimentações conjunturais da economia, poderão ou não criar as condições para superar este pacto.

Há, entretanto, algumas questões a serem observadas que guardam ligação direta com os protestos de rua e infelizmente não foram tocadas por este boletim conjuntural: a) Se a maior parte dos manifestantes em São Paulo é formada por jovens com ensino universitário completo ou incompleto, como mostrou a pesquisa DataFolha usada por Lincoln Secco, isto se reproduz nas demais 76 cidades brasileiras, incluindo entre seis a oito cidades baianas, onde houve protestos? Há meios para sabê-lo? Se sim, quais? b) O boletim do CVM aponta para mudanças na ação política dos trabalhadores tendo como base o aumento de greves, mas o Balanço das Greves em 2012 do DIEESE é claro ao falar que o número de greves é maior nos serviços públicos estadual e municipal (onde se concentra a massa de professores a que se refere o “Boletim de Conjuntura nº 1”) e na indústria. Se estes dois setores são enormemente beneficiados pela expansão das redes de ensino universitária (professores) e técnica (industriários), é possível falar que os grevistas também estiveram nas ruas, como no caso dos professores estaduais de São Paulo e Bahia, ou não? Em caso positivo, como isto se reflete na consciência dos trabalhadores em questão? c) Se é possível falar com tranquilidade na participação majoritária de pessoas entre 15 a 25 anos na maioria das mobilizações nas 76 cidades onde houve protestos, que análise o CVM faz da situação econômica e social da juventude trabalhadora participante destes protestos? Que condições econômicas, para além das condições políticas, estariam levando-os para as ruas? d) Se trabalhadores qualificados estiveram nos protestos (está em aberto, evidentemente, o debate sobre “o que é um trabalhador qualificado”), foram os jovens trabalhadores precarizados das periferias urbanas quem foi para a linha de frente do enfrentamento com a polícia, independentemente de qualquer filiação ideológica. São estes os massacrados cotidianamente por esta mesma polícia, que viram ali a oportunidade, mesmo passageira, de “dar o troco” (ver uma entrevista feita em Porto Alegre). Como o CVM vê a situação destes trabalhadores? Avançou ou não no sentido de compreender as condicionantes econômicas de sua situação de vida e de seu comportamento de classe? e) Considerando, como o Balanço das Greves em 2012 do DIEESE, que 72% das greves ocorreu no Sudeste e 74% delas se deu no setor metalúrgico, é possível falar de um avanço da mobilização da classe trabalhadora brasileira como um todo, ou apenas de uma retomada da mobilização entre metalúrgicos, que optaram, também segundo o DIEESE, pela estratégia das greves por empresa, fazendo assim aumentar a estatística de greves? Ou, em outras palavras: foi o aumento de greves um antecessor legítimo das mobilizações, ou é apenas uma ilusão estatística? f) Dada a situação atual do movimento sindical, onde dirigentes pelegos praticamente inamovíveis controlam a maioria dos sindicatos (quando não os mais expressivos ou economicamente mais importantes), somada à tradição das “greves de pijama” associada ao estilo de mobilização política

destes dirigentes, o saldo político dos ganhos econômicos vai para a classe trabalhadora ou para estes dirigentes? Qual o grau de participação dos trabalhadores nas greves analisadas pelo DIEESE? É uma participação ativa, ou é uma participação passiva, controlada à distância pela pelegagem? g) É possível falar, nas mesmas condições do item anterior, que toda greve, nas atuais circunstâncias, resulta automaticamente em ganhos políticos ou saldo organizativo para os trabalhadores? Em especial quando 89% das greves resultam, também segundo o DIEESE, em negociação direta e/ou mediada, e que esta negociação está a cargo do mesmo tipo de sindicalista analisado anteriormente? h) Adicionalmente, é possível falar em saldo organizativo para a classe trabalhadora como um todo quando o mesmo estudo do DIEESE aponta que em nenhum dos setores analisados se registrou qualquer greve de solidariedade? Que elementos permitem falar em frente comum de lutas nesta situação? i) Dado que o “Boletim de Conjuntura nº 1” do CVM se baseia em dados do Balanço das Greves 2012 do DIEESE, ele está automaticamente restrito à mesma categoria de trabalhadores analisada pelo DIEESE: trabalhadores formais, carteira assinada, etc. Uma vez que os movimentos sociais urbanos, em especial os movimentos de luta por moradia, têm sido vistos hoje como a expressão organizada dos trabalhadores mais precarizados e mais instáveis – coisa comprovada por várias pesquisas empíricas recentes – como o CVM tem integrado a análise das lutas destes movimentos com a luta econômica a partir dos sindicatos?

3. Concluindo Poderemos, evidentemente, aprofundar o debate sobre estes e outros temas durante nossa conversa. Mas acho que o fundamental já está bem resumido nestas doze páginas, que já são muito longas. Aguardo ansiosamente pelo dia 9, quando poderemos “afinar as violas”.

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