ANOTAÇÕES SOBRE O OFÍCIO DO EPISTEMÓLOGO E A PRODUÇÃO DO SABER CIENTÍFICO

June 1, 2017 | Autor: Eduardo Aydos | Categoria: Epistemology, Epistemología, Filosofia da Ciência, Phylosophy of Science
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ANOTAÇÕES SOBRE O OFÍCIO DO EPISTEMÓLOGO E A PRODUÇÃO DO SABER CIENTÍFICO Por Eduardo Dutra Aydos “Dos três poderes que podem disputar a posição básica da ciência, apenas a religião deve ser considerada seriamente como adversária. A arte quase sempre é inócua e benéfica; não procura ser nada mais do que uma ilusão. Excetuando algumas pessoas que se diz serem ‘possessas’ pela arte, esta não tenta invadir o reino da realidade. A filosofia não se opõem à ciência, comporta-se como uma ciência e, em parte, trabalha com os mesmos métodos; diverge, porém, da ciência, apegando-se à ilusão de ser capaz de apresentar um quadro do universo que seja sem falhas e coerente, embora tal quadro esteja fadado a ruir ante cada novo avanço em nosso conhecimento. Perde o rumo com seu método de superestimar o valor epistemológico de nossas operações lógicas e ao aceitar outras fontes de conhecimento, como a intuição.” [FREUD, Sigmund: Livro 29, “A QUESTÃO DE UMA WELTANSCHAUUNG”. Rio de Janeiro, Imago, 1976, p. 72.] “Minha primeira tese é a de que a época fecunda da não-pertinência dos julgamentos de valor sobre a atividade científica terminou. Disse fecunda porque houve uma fecundidade no fato de a ciência criar, no século 17, uma autonomia diante da religião, do Estado e das consequências morais que o próprio conhecimento provoca. A ciência precisava emancipar seu imperativo ético próprio e único, “conhecer por conhecer”, quaisquer que fossem as consequências. Contudo o que era verdade na ciência nascente, marginal, ameaçada, não é mais verdade na época da ciência dominante e ameaçadora. Não é mais verdade por causa dos grandes desenvolvimentos da própria ciência.” [MORIN, Edgar: CIÊNCIA COM CONSCIÊNCIA, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2008, p.126]

O pensamento de FREUD [1976], à epígrafe, é indicativo de um ‘movimento de dogmatização da ciência’ que, reconhecendo sua autonomia relativamente às três outras divisões estruturais do Saber, concebe-a, no entanto, como uma pretensão ‘adversarial’ e sua disseminação como um processo de ocupação de espaços de conhecimento por dominação de uma ‘weltanschauung’ de corte exclusivista e de impacto depreciativo sobre as demais ‘potências’ do entendimento. Já, a citação de MORIN[2008], no mesmo quadro epigrafado, captura um movimento de desdogmatização da ciência que, reagindo ao reducionismo epistêmico e ao relativismo moral do cientificismo, problematiza a sua pretensão de hegemonia (ainda que, seletivamente ‘tolerante’, como FREUD sugere no que respeita à arte e à filosofia que não o desafiam), oferecendo resistência e sinalizando as brechas da sua ‘weltanschauung’ triunfante.

Com efeito, percebe-se hoje uma secção no campo da fundamentação transcendental do saber, já com impactos catastróficos nos prospectos do desenvolvimento humano, cuja fissura articula, no seu limite, em polos antagônicos: (a) a radicalização absolutista do cientificismo num ‘materialismo eliminacionista’: e, (b) a contra-ofensiva igualmente radical do ‘fundamentalismo religioso’. É nessa ‘contextualidade’ que pretende intervir a (re)construção paradigmática de uma epistemologia de síntese, que tem sido objeto da nossa auto-reflexão comunicativa e que, neste texto, oportuniza uma articulação teórica de alguns dos mais expressivos e influentes pensadores que se dedicaram à reflexão da ciência nesta longa e conturbada transição da modernidade. É inerente à lógica do modelo paradigmático estabelecido pela epistemologia de síntese que, em cada uma das divisões estruturais do Saber, manifestando os seus aspectos parcelares, em correspondência com os diferentes estágios na construção das estruturas sociais do conhecimento - ou seja, em cada um dos nódulos em que se especializa a respectiva rede de autorreflexão comunicativa, enquanto RELIGIÃO, CIÊNCIA, FILOSOFIA e ARTE - se reproduza a totalidade da dialógica triádica do agir e do fazer comunicativos. Assim portanto, para essa manifestação parcelar do saber que é a CIÊNCIA, a análise epistemológica procede pela identificação das categorias triádicas do respectivo NÚCLEO SÍGNICO do agir e do fazer comunicativos; e se especializa ainda além, pela configuração do seu desbordamento nos três CAMPOS ESTRUTURAIS DO SABER, pela determinação dos seus INTERESSES EPISTEMOLÓGICOS e pela derivação das características próprias às PRAXIOLOGIAS correspondentes. 1. LÓGICA DA PESQUISA: A CONFORMAÇÃO DO NÚCLEO SÍGNICO DO SABER CIENTÍFICO. A historiografia da ciência em KUHN [1975] opera a dicotomia dos processos complementares e articulados da sua formulação paradigmática (como revoluções científicas) e do seu desenvolvimento interno (como ciência normal), assim especificados: a) Nos procederes da “ciência normal”, compreendem-se os desdobramentos do procedimento canônico da “matriz disciplinar” ou “paradigma” (KUHN, 1977) de uma ciência feita (madura), correspondendo à disseminação e utilização (pesquisa & desenvolvimento) do conhecimento elaborado na esteira das grandes revoluções científicas, como expressão da ciência estabelecida, na vigência de um paradigma científico aceito;

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b) Na emergência e consolidação das “revoluções científicas” (KUHN, 1977), compreendem-se os interesses de uma ciência que se renova, avançando sobre as fronteiras do conhecimento já-dado para (re)instituir a sua configuração paradigmática; ou seja para engendrar, nos percalços de uma ciência madura, a substituição das teorias aceitas (que se revelam entretanto falhas na sua capacidade de inteligir a realidade vivida) por explicações alternativas de caráter mais abrangente e preciso. A obra de KUHN refuta, factualmente, os pressupostos epistêmicos do desenvolvimento linear e do avanço territorial do conhecimento científico sobre os territórios, que estariam antes ocupados por outras apercepções da realidade, as quais rotula como ‘preconceitos’ e ‘superstições’ de uma pré-história da ciência. Não obstante, a observação factual de KUHN, que reconhece e diferencia esses momentos constitutivos da historicidade da ciência – a menos que se adote o ponto de vista acrítico da pura, simples e ‘natural’ transmutação dialética, da água em vinho ou da quantidade em qualidade – incorre no risco de oferecer-nos uma visualização da história, como sucessão de estruturas estanques, de um paradigma vigente por um paradigma emergente, cuja engrenagem, entretanto não é suficientemente esclarecida. Restam lacunas explicativas na sua trajetória; déficits de explicação, é importante realçar, que não se resolvem no mero – ainda que significativo – apontamento das tensões decorrentes da emergência e cumulação de “anomalias” nos procederes de uma ‘ciência normal’. Encarada, entretanto, sob um enfoque epistemológico1, a historiografia de KUHN é extremamente rica e feliz na sugestão de uma pauta de uma reflexão que nos permita examinar a incidência da dupla tríade do agir e do fazer do comunicativos no modo de produção da ciência, e cujos desdobramentos conceituais nos permitam compreender, fundamentar e reconstruir o núcleo sígnico do Saber científico no paradigma de síntese.

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Realça aqui a diferença entre os enfoques do historiador da ciência e do epistemólogo, como foram compreendidos na visão de BACHELARD: “O epistemólogo deve, portanto, fazer uma escolha nos documentos coligidos pelo historiador. Deve julgá-los da perspectiva da razão, e até da perspectiva da razão evoluída, porque é só com as luzes atuais que podemos julgar com plenitude os erros do passado espiritual. Aliás, mesmo nas ciências experimentais é sempre a interpretação racional que põe os fatos em seu devido lugar. É no eixo experiência-razão e no sentido da racionalização que se encontram ao mesmo tempo o risco e o êxito. Só a razão dinamiza a pesquisa, porque é a única que sugere, para além da experiência comum (imediata e sedutora), a experiência científica (indireta e fecunda). Portanto, é o esforço de racionalidade e de construção que deve reter a atenção do epistemólogo. Percebe-se assim a diferença entre o ofício de epistemólogo e o de historiador da ciência. O historiador da ciência deve tomar as idéias como se fossem fatos. O epistemólogo deve tomar os fatos como se fossem idéias, inserindo-as num sistema de pensamento. Um fato mal interpretado por uma época permanece, para o historiador, um fato. Para o epistemólogo, é um obstáculo, um contra-pensamento” (BACHELARD, ......) 3

Para os fins dessa análise, os movimentos da ciência normal e da revolução científica – sem que disso decorra, como se verá na sequência da nossa argumentação2, uma identidade de conceitos – sugerem e oportunizam o reconhecimento dos contextos diferenciados e dialogicamente imbricados, da descoberta e da validação do saber científico. A filosofia tradicional da ciência já tem trabalhado as categorias que performam essa dupla tríade, restando-nos, neste caso, o apontamento dos respectivos ‘locus’ e nexos no modelo topológico da epistemologia de síntese. Axioma e conjectura, hipótese e previsão, constituem pares de conceitos, que os compêndios de metodologia científica têm utilizado com larga margem de imprecisão e, até mesmo, redundância. O viés mais comum do cientificismo vulgar – especialmente nas ditas ciências humanas - é aquele que subsume o conceito de previsão no conteúdo de uma dada explicação científica; e que, afinal, reduz o conteúdo dos projetos de investigação científica, ao escopo da respectiva axiomatização. Numa outra e contraditória linha de conseqüência, troca-se, por um intuitivo sentimento de evidência, a démarche necessária da sustentação dos conteúdos cognitivos do Saber científico pelos procederes abstratos da inferência ou concretos da experiência. No paradigma da epistemologia de síntese, esses três pares de conceitos, ganham expressão e dignidade próprias, tornando-se irredutíveis no conteúdo performativo das operações cognitivas que designam. Axioma e conjectura (enquanto primeiridades ou originalidades), hipótese e previsão (enquanto secundidades ou obsistências), correspondem às representações da totalidade, a sua vez, refletida (axioma e hipótese) e vivida (previsão e conjectura) na autorreflexão comunicativa da ciência. Inferência e experiência, por outro lado, designam as representações pelas quais essa mesma autorreflexão da ciência acessa as particularidades fenomênicas, que balizam empiricamente o seu esforço cognitivo, seja como expressões abstratas (inferência) ou seja como subsunções concretas (experiência) do seu agir e fazer comunicativos. (Esse enquadramento paradigmático, e está figurado na Tabela 1, a seguir.)

Trataremos os conceitos khunianos de “ciência normal” e “revolução científica” como interesses epistemológicos, reservando, para os processos do agir e do fazer comunicativos da ciência, designação mais consoante com a figuração da dupla tríade que integra o seu núcleo sígnico: respectivamente: contexto da descoberta e contexto da validação. 2

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Tabela 1 – FIGURAÇÃO DO NÚCLEO SÍGNICO DO SABER CIENTÍFICO INTERESSES PRINCÍPIOS EPISTEMOE ARQUÉTILÓGICOS POS

PRIMEIRIDADE/ TOTALIDADE

FAZER COPRINCÍPIO MUNICATIVO AXIOMA – CONTEXTO DA VALIDAÇÃO

NÚCLEO SÍGNICO DA AUTOREFLEXÃO COMUNICATI AGIR COMUVA DA NICATIVO – CIÊNCIA CONTEXTO DA DESCOBERTA

REPRESEN-TAÇÃO CONJECTURA

TERCEIRIDADE/ PARTICULARIDADE

SECUNDIDADE/TOTALIDADE

DIVISÃO FUNCIONAL DO CONHECIMENTO

APLICAORGANIZAÇÃO- EXPE- ÇÃO – RIMENTA(HIPÓ)TESE LÓGICA DA PESQUISA ÇÃO CIÊNTÍFICA EXPRESSÃO – INFERÊNCIA

ARQUÉTIPO – (PRE)-VISÃO

Fica bem claro, desde as premissas estabelecidas no modelo paradigmático de síntese, que é justamente na atualização dessa dialética triádica que se conformam os processos cognitivos, cujo entendimento performa as seis categorias do núcleo sígnico do agir e do fazer comunicativos do Saber científico (Quadro 1, a seguir.) QUADRO 1: NÚCLEO SÍGNICO DO PROCESSO DE AUTORREFLEXÃO COMUNICATIVA NA MANIFESTAÇÃO PARCELAR DO SABER CIENTÍFICO INFERÊNCIA Particularidade abstrata [Proferimento Expressão]

Tríade do fazer comunicativo (triângulo vazado) - SEMIÓTICA

Tríade do agir comunicativo (triângulo cheio) SEMIÓSIS

AXIOMA Totalidade refletida [Fundamento - Princípio]

CONTEXTO DA VALIDAÇÃO

(HIPÓ)TESE Totalidade refletida [Objeto -Organização]

CONTEXTO DA DESCOBERTA CONJECTURA Totalidade vivida [Falante -Representação]

EXPERIÊNCIA Particularidade concreta [Interpretante Aplicação]

PRE(VISÃO) Totalidade vivida [Ouvinte - Arquétipo]

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Realça, nessa configuração conceitual, o tratamento dado às categorias graficamente decompostas de (hipó)tese e (pre)visão, que explicita a sua semântica no modelo topológico de síntese. Com efeito uma ‘hipo+tese’, é uma tese insuficiente, que se postula num condição obsistente. De um lado, não esgota a totalidade que se implica na sua própria postulação; de outro lado, está sujeita à objeção da experiência que haverá de testar sua condição de verdade. No mesmo sentido, uma ‘pré+visão’, é uma noção antecipada (no auditório de um agir comunicativo) daquilo que se há de prospectar como conjectura. Isso que, de um lado, é pertinente à sua referência arquetípica do seu locus no modelo topológico; e que, de outro lado, denota o nexo teórico segundo o qual todo ato de fala remete à pré-existência de uma memória fundante, sujeito passivo da comunicação no mundo da vida. 2. SOLUÇÃO DE PROBLEMAS, REFUNDIÇÃO DO SABER CIENTÍFICO E RUPTURA EPISTEMOLÓGICA: INTERESSES EPISTEMOLÓGICOS NO PROCESSO DE PRODUÇÃO DA CIÊNCIA Os aportes teóricos sobre a mudança paradigmática na história da ciência (KUHN, 1974), de par com as investigações recentes sobre o processo da criação científica (MOLES, 1975), deixam entrever uma via de acesso à articulação teórica de interesse e conhecimento, que encontra na epistemologia de síntese a sua totalidade de sentido. Com efeito, a historiográfica de KUHN constitui-se numa abordagem diacrônica de momentos diferenciados no desenvolvimento da ciência – sejam estes o divisor de águas entre um ‘ciência pré-paradigmática’ e uma “ciência madura’, ou os períodos que se sucedem da ‘ciência normal’, no interior de um marco paradigmático, e da ‘revolução científica’ que o substitui. Para além disso, o que se trata de explicitar são os nexos sincrônicos que engendram aquela diacronia e suas implicações na autorreflexão comunicativa da ciência. Essa pretensão, na filosofia da ciência, encontra uma linha de convergência e esclarecimento, na ‘filosofia do não’ bachelardiano; nas implicações de uma ‘não-ciência’, que se resgata à condição própria de um saber no processo do desenvolvimento científico. Um saber, entretanto, que, ao invés de constituir-se numa ilusão, marginal e marginalizada pelo saber científico, é inerente ao desvelamento do seu próprio conteúdo de verdade; e que, não sendo factual, é teoricamente relevante, na conformação de um “obstáculo epistemológico” que se trata sempre de contornar ou superar. Isso que, no contexto de uma emergente epistemologia de síntese, agrega o entendimento da função sígnica da “refundição do saber”, esclarece, na história do pensamento científico, a operacionalidade sistêmica da desconformidade teórica. Nesse contexto, a noção kuhniana de uma ‘anomalia’ factual e episódica no desenvolvimento do saber científico, ganha o status de uma categoria sistêmica, que se postula 6

como fator de obsistência – pela crítica e reconstrução interna de um paradigma aceito – antes mesmo que se consolidem as condições contextuais de uma “revolução científica”. Esclarece-se, destarte, a partir e mais além das postulações de KUHN, a lógica epistêmica da substituição de um paradigma aceito por um paradigma emergente, desvelando-se o caminho crítico da necessidade de explicação e aplicação que lhe dá origem. É neste sentido, também, que se integra neste escorço teórico a lição de BACHELARD: “É sobretudo ao aprofundar a noção de obstáculo epistemológico que se confere pleno valor espiritual à história do pensamento científico. Muitas vezes a preocupação com objetividade, que leva o historiador da ciência a arrolar todos os textos, não chega até o ponto de medir as variações psicológicas na interpretação de um determinado texto. Numa mesma época, sob uma mesma palavra, coexistem conceitos tão diferentes! O que engana é que a mesma palavra tanto designa quanto explica. A designação é a mesma; a explicação é diferente. Por exemplo, a telefone correspondem conceitos que são totalmente diferentes para o assinante, a telefonista, o engenheiro, o matemático preocupado com equações diferenciais da corrente telefônica. O epistemólogo deve, pois, captar os conceitos científicos em sínteses psicológicas efetivas, isto é, em sínteses psicológicas progressivas, estabelecendo, a respeito de cada noção, uma escala de conceitos, mostrando como um conceito deu origem a outro, como está relacionado a outro. Terá, então, alguma probabilidade de avaliar a eficácia epistemológica. O pensamento científico vai logo aparecer como dificuldade vencida, como obstáculo superado”. [BACHELARD, op.cit., 1978, p. ]

A categoria da anomalia trabalhada por KUHN (1975), e qualificada por BACHELARD (1978) na sua função epistêmica, corresponde à expressão de uma função sígnica, que projeta e desvela o caminho crítico de um dado sistema de explicação - ou paradigma do Saber científico. Sua operacionalidade no processo de produção da ciência, é a sinalização dos caminhos que a investigação deverá percorrer, para oferecer resposta à opacidade do objeto aos fundamentos do seu ‘representámen’. Acumuladas as tensões anômalas, no âmbito de um paradigma científico estabelecido – mas já deficitário na sua capacidade de resposta à solução de problemas que emergem no curso do seu próprio desenvolvimento, seja pela sua cumulativa inefetividade utilitárioinstrumental, seja pela relevância das questões teóricas emergentes e irrespondidas na sua esteira – a comunidade científica afronta a necessidade da formulação e postulação de uma ‘matriz disciplinar’ corretiva ou alternativa. Uma vez desencadeado o questionamento do paradigma deficitário, ganha importância o trabalho de aprofundamento e rearticulação teórica da respectiva visão de mundo. Trata-se aqui, de uma refundição do saber, enquanto promoção de ajustes contextuais na abrangência da explicação e na capacidade da sua interação teórica, numa rede de significados onde persistem conteúdos simbólicos e práticas operativas do paradigma deficitário. Nessa funcionalidade, amplifica-se a capacidade explicativa do paradigma aceito, para atender a desafios emergentes de consistência e compreensividade. 7

A ‘anomalia’, portanto, sinaliza um déficit de entendimento, cuja mediação pela reflexão hermenêutica3, impacta, genericamente, no ‘ofício do epistemólogo’, sinalizando as ‘démarches’ do INTERESSE DA RECONSTRUÇÃO TEÓRICA DO SABER e, mais especificamente, no modo de produção da ciência, como INTERESSE DA REFUNDIÇÃO DO SABER no processo da autorreflexão comunicativa do ‘não-esquecimento’ – que designa o nosso acesso provisório mas significativo e suficiente para os seus próprios fins, à categoria da VERDADE – que a sabedoria ancestral designou por ALÉTHEIA. Os axiomas da ‘ciência normal’, articulados como INTERESSE DA SUA ‘MATRIZ DISCIPLINAR’; a mediação sistemática das suas desconformidades ou ‘anomalias’, projetadas como INTERESSE DA REFUNDIÇÃO DO SABER; e o esgotamento da capacidade de compreensão de uma dada ‘weltanschauung’ científica, que se postula como INTERESSE DA RUPTURA EPISTEMOLÓGICA; constituem-se, destarte, nos vetores funcionais, que respondem pela conexão própria de entendimento e interesse, e de interesse e conhecimento, no processo de produção do Saber científico. A formalização, dos espaços de propriedade significativos dessa performance, constitui-se num esclarecimento relevante sobre o estado da arte no resgate do paradigma de síntese (Tabela 2, a seguir).

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Referência à divisão funcional do saber na epistemologia de síntese, onde a hermenêutica corresponde à disciplina que corresponde ‘intentione recta’, ao potencial de interpretação de que a heurística performa ‘intentione obliqua’, no Interesse da Reconstrução Teórica do Significado (AYDOS, Eduardo Dutra: ALÉM DO ANTAGONISMO COM DOMINÂNCIA, ENTRE COMUNICAÇÃO E COGNIÇÃO: O PARADIGMA DE SÍNTESE NA TEORIA DO CONHECIMENTO, publicado e disponível no seguinte link: https://www.academia.edu/26349708/AL%C3%89M_DO_ANTAGONISMO_COM_DOMIN%C3%82NCIA_ENTRE_COMUNICA%C3%87%C3%83O_E_COGNI%C3%87%C3%83O_O_PARADIGMA_DE_S%C3%8DNTESE_NA_TEORIA_DO_CONHECIMENTO.)

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TABELA 2. FUNÇÕES SÍGNICAS NO MODO DE PRODUÇÃO DA CIÊNCIA INTERESSES EPISTEMOLÓGICOS

PRINCÍPIOS E ARQUÉTIPOS

PRIMEIRITERCEIRIDADE/ TOTA- DADE/ PARTILIDADE CULARIDADE

SECUNDIDADE/TOTALIDADE

NÚCLEO SÍGNICO DO EMTENDIMENTO/ CONHECIMENTO - NÚCLEO DA AUTO-REFLEXÃO COMUNICATIVA DA CIÊNCIA

FAZER COMUNICATIVO – CONTEXTO DA VALIDAÇÃO

PRINCÍPIO: AXIOMA

ORGANIZAÇÃO: (HIPÓ)TESE

AGIR COMUNICATIVO: CONTEXTO DA DESCOBERTA

REPRESENTAÇÃO: CONJECTURA

EXPRESSÃO: INFERÊNCIA

ARQUÉTIPO: (PRE)-VISÃO

INTERESSE TRANSCENDENTAL DO ENTENDIMENTO – INTERESSE TRANSCENDENTAL DA MATRIZ DISCIPLINAR

PRINCÍPIO – RAZÃO: ACURÁCIA DA INVESTIGAÇÃO ARQUÉTIPO – PARADIGMA: APTIDÃO DO MARCO TEÓRICO

PARCIALIZAÇÃO: IMPLICAÇÃO

JUSTIFICAÇÃO: ANÁLISE

ADJUDICAÇÃO: VALORAÇÃO

CONSENSUALIZAÇÃO: (VERI)FICAÇÃO ou VEROSIMILHANÇA

FORMALIZAÇÃO: OPERACIONALIZAÇÃO

ZAÇÃO: REPLICAÇÃO

INTERESSE DA RECONSTRUÇÃO TEÓRICA DO SIGNIFICADO – INTERESSE DA REFUNDIÇÃO DO SABER

PRINCÍPIO CRÍTICA: DIAPORÉTICA COGNITIVA

SUSPEIÇÃO (ASTÚCIA DA FÉ): ARTIFÍCIO DA NÃOCIÊNCIA ouFALSIFICAÇÃO

RESTAURAÇÃO: TESTE EMPÍRICO

ARQUÉTIPO MÉTODO: DECIDIBILIDADE DE ARGUMENTO

CORROBORA- DEMONSTRAÇÃO: ÇÃO: PREFERÊNEXPLICAÇÃO CIA

OBSERVAÇÃO: COMPARAÇÃO

INTERESSE DA COMPREENSÃO PARTICIPATIVA DO SABER– INTERESSE DA RUPTURA EPISTEMOLÓGICA

PRINCÍPIO SABEDORIA PRÁTICA: RETIDÃO PROCEDIMENTAL

TOTALIZAÇÃO:

REFLEXÃO:

APLICAÇÃO: EXPERIMENTAÇÃO

INTERNALIZAÇÃO:

APERCEPÇÃO (RE)SOLUÇÃO ou IMAGINADE PROBLEÇÃO MAS

ARQUÉTIPO POSTULACONSCIÊNCIA: ÇÃO: SATISFAÇÃO RELEVÂNCIA INTELECTUAL DO SABER (EUDAIMONIA)

FUNCIONALIDADES SÍGNICAS

DIALÓGICA DA CIÊNCIA

FUNCIONALIDADE DA ‘CIÊNCIA INSTITUCIONALI- NORMAL’

RECOLHIMENTO DO SENTIDO: CRUCIALIZAÇÃO DA DESCONFORFUNCIONAMIDADE

LIDADE DAPESQUISA EXPLORATÓRIA

PROBLEMATIZAÇÃO FUNCIONA-

PERSUASÃO:

EMPATIA:

PONDERAÇÃO

PERTINÊNCIA

LIDADE DA ‘REVOLUÇÃO CIENTÍFICA’

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Neste texto, nos limitaremos a sinalizar os conceitos que integram os espaços de propriedade configurados pela Tabela 2, deixando para outro momento discursivo a sua formulação definicional. A démarche (re)construtiva do paradigma de síntese aqui empreendida, realça a diversidade de nexos e a univocidade possível dos seus pontos de articulação; esboço de um modelo, cujo vazio empírico, se remete duplamente: ao esforço aberto e plural do próprio labor científico e à reflexão pertinente do círculo hermenêutico e da epistemologia aplicada que, nesses pressupostos se descortinam.4 Inobstante, o caminho até aqui percorrido, permite-nos fixar a pertinência dos seguintes pressupostos: (1) Que é sincrônica e ínsita a todo processo de desenvolvimento científico a tensão entre: de um lado, uma ciência-que-se-faz (na epistemologia de síntese, o agir comunicativo da ciência), cujo foco é o processo da ‘descoberta científica’; e, de outro, uma ciência-já-dada (na epistemologia de síntese, o fazer comunicativo da ciência), cujo foco é a extensão e validação dos seus postulados; expressando, 4

Já nos ocupamos com a validação do método, que aqui se exercita no texto publicado: DIGRESSÃO METODOLÓGICA: SOBRE O MODELO TOPOLÓGICO DA EPISTEMOLOGIA DE SÍNTESE – www.ufrgs.academia.edu/EduardoAydos. Por oportuno, sinalizamos a linha de convergência e fundamentação que nos oferece o pensamento de Gaston Bachelard: “Com efeito, estudando o princípio das investigações que nasceram da organização das substâncias elementares de Mendeleiev, verifica-se que apouco e pouco a lei antecede o fato, que a ordem das substâncias se impõe como uma racionalidade. Que melhor prova se pode dar do caráter racional de uma ciência das substâncias que consegue prever, antes da descoberta efetiva, as propriedades de uma substância ainda desconhecida? O poder organizante do quadro de Mendeleiev é tal que o químico concebe a substância no seu aspecto formal antes de a captar nos seus aspectos materiais. O gênero impõe-se à espécie. Responder-nos-âo, mais uma vez em vão, que se trata de uma tendência muito particular e que a maioria dos químicos, no seu labor cotidiano, se ocupam de substâncias atuais e reais. Não é menos verdade que, com o quadro de Mendeleiev, nasceu uma metaquímica e que a tendência ordenadora e racionalizante conduziu a sucessos cada vez mais numerosos e cada vez mais profundos. Uma característica nova deve ser assinalada: a preocupação de completude que recentemente se manifesta na doutrina das substâncias químicas. Colocando naturalmente o objeto antes do conhecimento, o realismo entrega-se à ocasião, ao dado sempre gratuito, sempre possível, nunca acabado. Pelo contrário, uma doutrina que se apoia numa sistematização interna provoca a ocasião, constrói aquilo que não lhe é dado, completa e acaba heroicamente uma experiência desarticulada. A partir de então, o desconhecido é formulado. Foi sob esta inspiração que a química orgânica trabalhou: também ela conheceu a cadeia antes dos elos, a série antes dos corpos, a ordem antes dos objetos. As substâncias foram então como que depositadas pelo impulso do método. São concreções de circunstâncias escolhidas na aplicação de uma lei geral. Um forte a priori guia a experiência. O real não é mais do que realização. Parece até que um real só é instrutivo e seguro se tiver sido realizado, e sobretudo se tiver sido recolocado na sua correta vizinhança, na sua ordem de criação progressiva. (...) O princípio da investigação das substâncias está sob a dependência absoluta de uma ciência dos princípios, de uma doutrina das normas metódicas, de um plano coordenado em que o desconhecido deixa um vazio tão claro que a forma do conhecimento já está nele prefigurada.” [Bachelard, 1978 p. 34/35]

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essa sincronia, o movimento de pesquisa no interior da matriz disciplinar de um paradigma estabelecido; (2) Que o processo do desenvolvimento e mudança paradigmática da ciência é mais complexo e imbricado que uma mera sucessão histórica de ‘revoluções científicas’, cujo motor seria o acúmulo quantitativo de ‘anomalias’ no escopo de matrizes disciplinares estanques e incomunicáveis; (3) Que os interesses do saber científico performam: (a) a fundamentação e validação da produção científica no âmbito de uma ‘matriz disciplinar’; (b) a provisoriedade das soluções científicas, reconhecendo-se a existência e os impactos da não-ciência, para a refundição dos seus desenvolvimentos teóricos relevantes; e, (c) a ocorrência de revoluções científicas que, pela crucialidade das suas objeções ao paradigma vigente, implicam a falsificação e a substituição das suas próprias ‘matrizes disciplinares’ com força de persuasão no âmbito da comunidade científica; (4) QUE, não obstante a eventual e episódica dominância histórica de um ou outro interesse da autorreflexão científica permita uma periodização diacrônica na historiografia da ciência, a produção do saber científico integra uma funcionalidade triádica necessária e sempre-presente na dinâmica do seu desenvolvimento (Quadro 2, a seguir).

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QUADRO 2: CONFORMAÇÃO DOS INTERESSES EPISTEMOLÓGICOS NA MANIFESTAÇÃO PARCELAR DO SABER DESIGNADA COMO CIÊNCIA

Interesse transcendental do entendimento. (théoria) INTE(Comunidade linguística) Fundamento do representámen AXIOMA

Proferimento INFERÊNCIA

RESSE DA MATRIZ DISCIPLINAR (PARADIGMA)

Objeto HIPÓTESE

CONTEXTO DA CONTEXTO DA VALIDAÇÃO – SEMIÓTICA Interesse da Compreensão Participativa do Discurso (práxis) – INTERESSE

DA RUPTURA EPISTEMOLÓGICA

CONTEXTO DA DESCOBERTA – SEMIÓSIS

Falante CONJECTURA

Interpretante EXPERIÊNCIA

Ouvinte (PRE)VISÃO

(Mundo da Vida) Interesse da Reconstrução Teórica do Significado (poiésis) –

INTERESSE DA REFUNDIÇÃO DO SABER Nessa complexidade sistêmica, testes cruciais de uma teoria nova podem abortar seu desenvolvimento, antes mesmo que uma anomalia decorra no desenvolvimento da respectiva matriz disciplinar; refundições teóricas no âmbito de uma dada matriz disciplinar, com efeitos qualitativos sobre a configuração do seu paradigma teórico, podem representar avanços mais significativos do entendimento/conhecimento do que uma ‘revolução científica’ 12

no sentido kuhniano; paradigmas antagônicos podem conviver e influenciar-se mutuamente na esfera da autorreflexão científica, disso resultando uma eventual convergência nos seus pressupostos e fundamentos. 3. A NOÇÃO DE PARADIGMA NA HISTÓRIA DA CIÊNCIA Thomas KUHN (1975), na sua obra clássica - “A Estrutura das Revoluções Científicas” - utiliza a noção de paradigma para designar um conteúdo de Saber – uma totalidade de conhecimento – que se afirma ou se refuta, que se constrói (por ruptura com o passado pré-científico) e descontrói (por ruptura com uma teoria científica pre-existente) no processo diacrônico do desenvolvimento da CIÊNCIA. Nossa análise já avançou sobre essa formulação, para postular que esse conteúdo de saber se estabelece ao influxo de uma lógica triádica, sendo impactado e movimentado pelos interesses epistemológicos da afirmação, refundição ou revolução paradigmáticas. Trataremos agora de examinar, sincronicamente, os componentes estruturais que integram essa totalidade de sentido que, em-si, se designa por paradigma. Nosso objetivo é esclarecer, como esses elementos estruturais se distribuem, quais as suas funções, e como se performam ou se desconformam no processo de construção do saber científico. Fica bem claro, no próprio conceito kuhniano de paradigma, que este não se reduz ao conteúdo explanatório em-si da teoria científica que pretende estabelecer. É mais do que isso. No posfácio de sua obra, KUHN (1975) emprega o termo “matriz disciplinar” para dar conta de uma totalidade de sentido, em que se integram as várias dimensões - ou aspectos parcelares do Saber - constitutivos dessa estrutura-além-teoria que se expressa no conceito do paradigma, a saber: a) o compartilhamento objetivo dos valores (p.229) que forem inerentes ao respectivo conteúdo de Saber (ou signo-objeto) - um sentimento de pertencerem a uma comunidade global (p.229) cuja importância particular aparece quando os membros de uma comunidade determinada precisam identificar uma crise ou, mais tarde, escolher entre maneiras incompatíveis de praticar a sua disciplina (p.229); b) a produção de exemplares - as soluções concretas de problemas que os estudantes encontram desde o início de sua educação científica (...) e as soluções técnicas de problemas que os cientistas encontram durante suas carreiras como investigadores; c) a postulação dos seus fundamentos, em contraste com a visão de mundo que sustentava a teoria velha - nisso que faz diferença a capacidade de argumentação e persuasão dos seus prosélitos; fulcrando compromissos coletivos com crenças (p.228) - as partes metafísicas dos paradigmas (p.228) - ao longo de um espectro que abrange desde modelos heurísticos até ontológicos (p.229);

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d) a formulação de generalizações simbólicas (p.227) - que funcionam em parte como leis e em partes como definições dos símbolos que elas empregam (p.228). Consoante o modelo topológico da epistemologia de síntese, essa quaternidade das funções estruturais do saber, integra, de forma explícita ou latente, mas de qualquer forma necessária, o processo de autorreflexão comunicativa que produz qualquer saber. E o integra, podemos agora postular, numa totalidade de sentido em que se imbricam, se tencionam e completam fato e valor, criação e validação do saber científico. Nessa perspectiva, a outra face do conteúdo paradigmático, que KUHN (1975) explicitou, realçando o conceito de ciência como um saber normativo, MOLES (1974), estudando o processo da ‘criação científica’, esclareceu na perspectiva da sua factualidade, enquanto etapas na construção da estrutura cognitiva da ciência, quais sejam: preparação, incubação, iluminação e demonstração. Emerge, destarte, no conceito de um saber paradigmático, o conceito de uma ciência que é, além de empírica, precipuamente normativa. A Tabela 3, a seguir, formaliza esse paralelismo:

TABELA 3 - DIVISÃO ESTRUTURAL DO SABER E RESPECTIVOS ESTÁDIOS NO PROCESSO DE PRODUÇÃO DA CIÊNCIA. DIVISÃO ESTRUTURAL DO SABER NA EPISTEMOLOGIA DE SÍNTESE

ETAPAS NA CONSTRUÇÃO DA ESTRUTURA COGNITIVA DO DO SABER CIENTÍFICO PARADIGMA - KUHN

CRIAÇÃO CIENTÍFICA - MOLES

RELIGIÃO

COMPARTILHAMENTO OBJETIVO DOS VALORES

PREPARAÇÃO

CIÊNCIA

PRODUÇÃO DE EXEMPLARES

INCUBAÇÃO

POSTULAÇÃO DOS FUNDAMENTOS

ILUMINAÇÃO

FORMULAÇÃO DE GENERALIZAÇÕES SIMBÓLICAS

DEMONSTRAÇÃO

FILOSOFIA ARTE

Dessa estreita correspondência, entre as múltiplas facetas da estrutura-além-teoria que se designa por paradigma e as diferentes etapas ou estádios no desenvolvimento cognitivo que resulta na criação científica; e do seu paralelismo na divisão estrutural dos Saberes parcelares proposta pela epistemologia de síntese, emerge uma conclusão importante: o campo disciplinar que se tem designado pelo conceito vulgar da ciência-propriamente14

dita - que se enquadra na visão de KUHN (1975) como um conjunto de soluções exemplares para problemas fatuais - pode ser agora compreendido, como um aspecto parcelar da mesma atividade, que se desdobra em três outras dimensões necessárias e complementares, as quais dão conta: (i) dos seus valores compartilhados; (ii) dos seus fundamentos metafísicos; e (iii) das suas generalizações simbólicas (ou axiomas). É, também, nesse exato sentido que toda atividade científica, de alguma forma, responde e se integra a um campo dos Saberes religioso, filosófico e artístico. O mesmo sendo verdade para cada uma dessas divisões parcelares do Saber.5 QUADRO 3. QUATERNIDADE DAS FUNÇÕES ESTRUTURAIS E ESTÁDIOS COGNITIVOS NA PRODUÇÃO DO SABER CIENTÍFICO

Tríade do fazer comunicativo (triângulo vazado) - SEMIÓTICA

Formulação de generalizações simbólicas DEMONSTRAÇÃO INFERÊNCIA Particularidade abstrata [Proferimento - Expressão] AXIOMA Totalidade refletida [Fundamento - Princípio]

Tríade do agir comunicativo (triângulo cheio) CONTEXTO DA DESCOBERTA

Postulação dos fundamentos ILUMINAÇÃO CONJECTURA Totalidade vivida [Falante -Representação]

CONTEXTO DA VALIDAÇÃO - SEMIÓTICA

e CONTEXTO DA DESCOBERTA – SEMIÓSIS EXPERIÊNCIA Particularidade concreta [Interpretante - Aplicação]

(HIPÓ)TESE Totalidade refletida [Objeto -Organização] Compartilhamento de valores - PREPARAÇÃO (PRE)VISÃO Totalidade vivida [Ouvinte - Arquétipo]

Produção de exemplares -INCUBAÇÃO

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Como um corolário dessa constatação, na perspectiva da formação científica que professei na academia, compreende-se em profundidade a tensão e a complementariedade que se estabelecem entre a teoria democrática como paradigma, no enquadramento normativo da investigação sobre o fenômeno político, e a ciência política que o atualiza, como um recorte da experiência empírica da vida em sociedade. 15

4. OS TRÊS MUNDOS DE POPPER COMO CAMPOS DE ATUALIZAÇÃO DO SABER CIENTÍFICO. Em KUHN (1975), a historiografia diacrônica do desenvolvimento científico confunde uma das três funções sígnicas da ciência – qual seja, o interesse da sua matriz disciplinar ou paradigma – que ele designa por ciência normal, com o conceito daquilo que a epistemologia de síntese esclarece e designa como o núcleo sígnico do saber científico. Com efeito, no enfoque epistêmico não visualizamos a existência de duas ciências, uma normal e outra revolucionária, que se sucedem no tempo; concebemos um núcleo sígnico que integra a dialética triádica do agir e do fazer comunicativo da ciência, e que é comum a todos e qualquer um dos seus momentos de historicização, variando no entanto a ênfase – ou a dominância – que, historicamente se atribui a cada um dos interesses epistemológicos que movimentam a produção deste saber. E, assim, também, ao sabor desses interesses diferenciam-se, também, os campos de realidade em que eles – aos pares – imprimem seu conteúdo de ‘verdade’. Corresponde essa tríade a três problemáticas – ou estruturas de atualização de saber, que KUHN vislumbrou e, assim, designou: “Essas três classes de problemas - determinação do fato significativo, harmonização dos fatos com a teoria e articulação da teoria - esgotam, creio, a literatura da ciência normal, tanto teórica como empírica.” (KUHN, 1975, p.55 )

Essas três operações, no processo de auto-reflexão comunicativa da Ciência, identificam os campos da atualização desse Saber parcelar. Trata-se de uma configuração do modo de produção do Saber, que resgata, à teoria contemporânea do conhecimento, a compreensão platônica dos Três Mundos, como foi postulado na epistemologia de POPPER: “O Mundo das Formas ou Idéias de Platão era, a muitos respeitos, um mundo religioso, um mundo de realidades superiores. Contudo, não era um mundo de deuses pessoais nem um mundo de consciência, e não consistia dos conteúdos de alguma consciência. Era um terceiro mundo objetivo, autônomo, que existia em adição ao mundo material e ao mundo da mente. Acompanho os intérpretes de Platão que sustentam serem as Formas ou Idéias platônicas diferentes, não só dos corpos e das mente, mas também das “Idéias na mente”, isto é das experiências conscientes ou inconscientes: as Formas ou Idéias de Platão constituem um terceiro mundo sui generis. Admitidamente, são objetos de pensamento virtuais ou possíveis - intelligibilia. Mas, para Platão, essas intelligibilia são tão objetivas como as visibilia, que são corpos materiais: objetovs virtuais ou possíveis da visão. Assim , o platonismo vai além da dualidade de corpo e mente. Introduz um mundo tripartite, ou, como prefiro dizer, um terceiro mundo. (...) Nesta filosofia pluralista, o mundo consiste de, pelo menos, três submundos ontologicamente distintos; ou, como eu diria, há três submundos ontologicamente distintos: o primeiro, é o mundo material, ou o mundo dos estados materiais; o segundo é o mundo mental, ou o mundo dos estados mentais; e o terceiro é o mundo dos inteligíveis, ou das idéias no sentido objetivo; é o mundo de objetos de pensamento possíveis: o mundo das teorias em si mesmas e de suas relações lógicas, dos argumentos em si mesmos, e das situações de problema em si mesmas.” (1975, p. 151/2) 16

Nessa consequência, o Mundo dos Estados Materiais, o Mundo dos Estados Mentais e o Mundo das Idéias Objetivas, correspondem, à configuração dos espaços de realidade – mais precisamente, no enfoque de síntese, dos CAMPOS DE ATUALIZAÇÃO DO SABER - em que atuam os interesses epistemológicos no processo de produção da Ciência. (Quadro 3). QUADRO 3: CONFORMAÇÃO DOS CAMPOS DE ATUALIZAÇÃO DO SABER NO MODO DE PRODUÇÃO DO SABER CIENTÍFICO CAMPO DA FUNDAMENTAÇÃO TRANSCENDENTAL DO SABER – MUNDO DOS ESTADOS MENTAIS – O SEGUNDO MUNDO DE KARL POPPER

Sistema de personalidade Natureza interna AXIOMA

CAMPO DA ESTRUTURAÇÃO TEÓRICA DO SABER: - INTELLIGIBILIA, O MUNDO DAS IDÉIAS OBJETIVAS DE KARL POPPER Formulação de generalizações simbólicas - DEMONSTRAÇÃO Proferimento INFERÊNCIA

INTERESSE DA MATRIZ DISCIPLINAR - PARADIGMA Sistema Cultural Sociedade HIPÓTESE

CONTEXTO DA CONTEXTO DA VALIDAÇÃO – SEMIÓTICA Compartilhamento de valores - PREPARAÇÃO

Postulação dos fundamentos - ILUMINAÇÃO

INTERESSE DA RUPTURA EPISTEMOLÓGICA Falante CONJECTURA CAMPO DA REALIZAÇÃO PRÁTICA DO SABER – MUNDO DOS ESTADOS MATERIAIS – O PRIMEIRO MUNDO DE KARL POPPER

CONTEXTO DA DESCOBERTA – SEMIÓSIS Natureza Externa Base orgânica e física EXPERIÊNCIA Produção de exemplares INCUBAÇÃO

Ouvinte (PRE)VISÃO

INTERESSE DA REFUNDIÇÃO DO SABER

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4. ‘FORMAÇÃO-AÇÃO’, ‘PESQUISA-AÇÃO’ E ‘DISSEMINAÇÃO & UTILIZAÇÃO’, COMO PRAXIOLOGIAS DO SABER CIENTÍFICO. O paradigma da epistemologia de síntese introduz, no modelo topológico da produção do saber, a dimensão das praxiologias, genericamente designadas pelos os conceitos da pedagogia, terapia e tecnologia. Na conformação parcelar da Ciência, esses três conceitos podem ser traduzidos como as praxiologias da formação-ação, pesquisa-ação e disseminação & utilização do Saber científico. A noção de FORMAÇÃO-AÇÃO (correspondendo ao conceito paradigmático da pedagogia), traz implícita uma crítica à suficiência do conceito burocrático da atividade propriamente acadêmica (escola, curso, disciplina, diploma e, por extensão, treinamento e reciclagem), na capacitação das condições subjetivas da auto-reflexão comunicativa da Ciência. Reconhecida, no âmbito do paradigma epistemológico, a provisoriedade do Saber e da própria realidade como é vivenciada no processo do conhecimento, o processo educativo deve abrir-se às condições e exigências de um mundo em processo de mudança permanente e acelerada. A pedagogia da Ciência constitui-se, dessarte, como um processo de formação continuada e orientada ao desenvolvimento (construção) de consciência. A noção de PESQUISA-AÇÃO (correspondendo ao conceito paradigmático da terapia), por sua vez, traz implícita uma crítica às concepções segregacionistas da teoria e da praxis, postula-se que a investigação científica deve apreender o sentido da realidade modificando-a, ou seja, perfazendo as intervenções necessárias à realização da sua própria finalidade, desvelando um conteúdo teleológico que lhe é, propriamente, terapêutico. A pesquisa constrói-se aqui, na sua dimensão poiética, como Saber reconstrutivo do seu próprio significado no mundo. Completando essa tríade, a identificação de uma praxiologia do Saber científico, cunhada na expressão DISSEMINAÇÃO & UTILIZAÇÃO, confronta uma atitude neutralista da Ciência, que tende a concebê-la descomprometida com os enunciados de valor que subjazem ao caráter normativo inerente a qualquer formulação simbólico-dicursiva do real. O que se postula nessa concepção paradigmática é que conhecimento e valor se imbricam no processo de autorreflexão comunicativa. E assim o fazem, enquanto desenvolvimento de aptidões e virtudes próprias, objetivando a para a ampla e conseqüente aplicação deste Saber. Disso decorre a irredutível responsabilidade do cientista e da comunidade científica em face dos seus próprios artefatos e do que vierem a agregar, na escala civilizatória de liberdade e vida, ao processo da sociedade tecnológica. (O Quadro 4, ao final, sintetiza a nossa postulação sintética do modo de produção do saber científico.)

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BIBLIOGRAFIA REFERIDA BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico ; A poética do espaço / Gaston Bachelard; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha ; traduções de Joaquim José Moura Ramos. . . (et al.). — São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores). FREUD, Sigmund. Livro 29 - Novas Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise - II - Por Que a Gerra? E outros Trabalhos. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976. KUHN, Thomas, S.: A Estrutura das Revoluções Científicas, São Paulo, Perspectiva, 1975. MOLES, Abraham: A Criação Científica. São Paulo: Perspectiva. MORIN, Edgar: Ciência com Consciência. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 11ª Ed. 2008. POPPER, Karl R.: Conhecimento Objetivo, Belo Horizonte, Itatiaia, 1975. 19

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