ANPUR 2004_aproximacoes entre arquitetura e urbanismo no hipercentro de belo horizonte

July 23, 2017 | Autor: Daniel Freitas | Categoria: Architecture, Urban History, Urban Planning, Urbanism, Urban Design, Belo Horizonte
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Aproximações entre arquitetura e urbanismo a partir do Hipercentro de Belo Horizonte

1. Introdução A intenção do trabalho é verificar como concepções e modelos abstratos de cidade atuam na configuração do espaço urbano e como, neste aspecto, a teoria da arquitetura se aproxima desta discussão. O reconhecimento da transposição da literatura urbanística internacional para a realidade local – mascarada por justificativas técnicas, acumulo de informações e caráter emergencial desarticulado – pode contribuir para a compreensão de como ocorre a estruturação do espaço urbano, sobretudo no caso de áreas planejadas ou em períodos de retomada do planejamento. Para tal, dois períodos do planejamento de Belo Horizonte foram analisados, os desdobramentos do projeto original e as recentes intervenções no Hipercentro. Na primeira parte, o trabalho demonstra a influência da teoria urbanística na concepção do projeto de Aarão Reis para, em seguida, delinear a evolução do planejamento urbano na capital mineira. A segunda parte o trabalho se dedica a aprofundar o conceito de fluxo e de liberdade, bem como sua relação com o planejamento urbano. A última parte elege uma das intervenções do Programa Centro Vivo, a rua Caetés, a fim de demonstrar o risco da assimilação ingênua das novas demandas do planejamento urbano e da relação da arquitetura com a cidade.

2. Do projeto original à retomada do planejamento Françoise Choay utiliza o termo caráter propositor para diferenciar duas posturas críticas em relação à cidade, a postura comentadora, que procura compreender os fatores que atuam na estruturação do espaço urbano, e a postura propositora, que trabalha o espaço como um projeto de sociedade a se concretizar1. O urbanismo pertence, ainda segundo a autora, a esta segunda categoria, uma vez que para se pensar a cidade foi

necessário, desde o primeiro momento, sua idealização, através de modelos e posicionamentos que incorporaram tendências e sistemas de valores. A principal preocupação dos primeiros urbanistas era a ordenação da realidade, considerada caótica quando comparada aos modelos, e sua adequação às novas funções da sociedade, ou de forma mais específica, ao mercado pós-revolução industrial. A nova disciplina, no contexto em que estava inserida, precisava, no entanto, direcionar suas ações em direção à imparcialidade da técnica e do conhecimento científico, associando o rigor à quantidade de informações. Forjou-se para isso uma compreensão da cidade enquanto instrumento destinado a determinadas funções e onde o diagnóstico completo geraria o protótipo ideal. Aarão Reis, engenheiro contratado nos últimos anos do século XIX para o projeto da nova capital mineira e que tinha como referencia esta primeira geração de urbanistas, havia sido incumbido pelo governo do estado de trazer o que havia de mais moderno na ciência urbana, ou seja, as realizações do urbanismo europeu, associadas à teoria positivista, defensora do papel do progresso e da ciência na solução dos problemas sociais. As referências de planejamento do engenheiro incluíam as atuações de Haussmann em Paris e, mais próximo de sua demanda, a construção da cidade de Washington. Em conflito com a imparcialidade científica que se esperava do trabalho de Aarão Reis, havia a demanda dos promotores do projeto por uma construção que simbolizasse a mudança em direção à modernidade e inclusão na cultura positivista das novas elites republicanas do café, novo grupo político que se afirmava na época. A transposição deste conflito para o projeto, associado à incapacidade de rompimento com antigas estruturas políticas, contribuiu para a corrupção dos ideais do projetista – que na época já considerava a política o grande entrave à ciência – e desvios no projeto, o que também viria a acontecer em muitas das realizações da nova ciência. No entanto, mesmo não tendo sido implementada na prática, a imparcialidade científica e a idéia de cidade instrumento, ou funcional, seria a base para o urbanismo pós-guerra. A demanda por habitações e reconstrução de cidades não só contribuiu para

a consolidação do urbanismo enquanto disciplina e realização de grandes intervenções, como também contribuiu para a aproximação da disciplina com a arquitetura moderna e seus teóricos. Além das preocupações técnicas e das novas funções da cidade industrial, o déficit habitacional pedia soluções possíveis de serem implementadas em grande escala e a custo baixo. Por outro lado, a período vislumbrava novas demandas para a disciplina, dentre elas a possibilidade de, através da arquitetura e do urbanismo, construir um homem novo para uma nova sociedade, caracterizada pela ruptura radical com o passado e a conquista de uma nova liberdade, sem precedentes na história. No campo do planejamento urbano, no entanto, os ideais modernos foram transpostos para a prática prioritariamente através da preocupação com a funcionalidade, o privilégio dado ao tráfego, o zoneamento de atividades e o desenho urbano monumental, ou seja, uma tentativa de transpor para cidade a organização e abstração do mercado. Por outro lado, a ruptura com o passado foi convertida em justificativa para a implementação de medidas a serviço de interesses privados e garantia de investimentos. Em Belo Horizonte, o planejamento modernista se dedicou sobretudo ao suporte ao desenvolvimento e industrialização, através de grandes obras de infra estrutura, zoneamento de atividades. (falar de transposição parcial) – (falar também torre JK) Os resultados e o discurso do progresso já era questionado na década de 60, influenciado pela crítica internacional, embora ainda de forma desarticulada. Estas primeiras críticas ao urbanismo modernista se dividiram em inúmeras vertentes e atacavam desde a inflexibilidade dos princípios e desprezo às realidades existentes até à própria ineficácia das medidas, incapazes de cumprir a revolução prometida ou mesmo a plena adequação entre cidade e industria. Na literatura urbanística, pelo menos três vertentes poderiam ser identificadas 2. Uma primeira, que buscava resgatar a função da cidade de possibilitar a continuidade da sociedade através do enraizamento, defendendo a idéia de que o projeto ou a intervenção na forma urbana não admite modelos. Os críticos deste vertente desenvolviam um conceito de cidade evolutiva, cuja forma dependia muito mais do desenvolvimento

gradual da sociedade, do que da satisfação a necessidades do mercado. Uma segunda vertente estudava a relação do espaço urbano com o comportamento humano. Neste sentido, identificavam a importância de espaços heterogêneos e ativos na chamada “higiene mental” das populações, o contrário, portanto, do pensamento funcionalista e universalizante. A terceira vertente inverte o modelo diagnóstico x produto, trabalhando com a percepção de quem usa o espaço e o papel do espaço em comunicar e transmitir valores. O planejador deveria antes de propor identificar a relação da população com o espaço. Choay identifica como representante da primeira vertente Patrick Geddes e, mais tarde Munford; da segunda vertente, Jane Jacobs; e da terceira o trabalho de Kevin Lynch. A observação da prática do planejamento poderia sugerir uma quarta escola, formada pelo desvio ou conversão dos ideais modernos em uma forma de atuação elaborada por especialistas, desarticulada e produtora de linguagem imperativa e limitadora. Pode-se dizer que este embate entre a técnica, mais ligada à distorção dos ideais modernos, e o culturalismo, ligado a suas críticas, bem como as tentativas de conciliação entre estes pólos, permanece no planejamento urbano contemporâneo. Falar Sagmacs Estas críticas atravessariam de forma silenciosa o período de ditadura militar, onde o questionamento ao planejamento era tido como crítica ao regime, se articula em Belo Horizonte na década de 80 e no período de democratização, mas ainda com grande dificuldade de combater a especulação do mercado e as graves crises oriundas do planejamento anterior. De modo específico, o planejamento urbano no centro, agora um pequeno núcleo dentro da metrópole, com graves problemas de tráfego e transferência de serviços para outras áreas, só será retomado na década de 90, a partir de novo referencial teórico. (Tem um salto aqui) Dentre as tentativas de conciliação entre o culturalismo e o funcionalismo a que conseguiu mais adeptos em Belo Horizonte e também atraiu o maior número de críticas foi o planejamento estratégico. Com discurso voltado para a capacidade de atrair

investimentos, trazer o desenvolvimento sustentável e, no caso de Belo Horizonte, promover a justiça social, o poder público passa da figura de interventor ou regulador dos interesses privados, para parceiro ou mesmo empreendedor das intervenções. A primeira crítica a esta postura foi sintetizada no termo city marketing, onde a cidade seria freqüentemente comparada a um produto de consumo, manipulado de forma a garantir identidades forjadas e construção de consensos ilegítimos. (Ex de planejamento estratégico) A principal crítica ao planejamento estratégico advém, no entanto, de um enfoque menos cultural e mais econômico, o paradigma das cidades globais, que desmistifica a idéia de que cidades internacionais e com capacidade de atrair investimento não possuem problemas urbanos. O argumento relaciona as mudanças na estrutura produtiva aos processos de segregação, detectando intensificação das desigualdades sociais com concentração de riqueza e capacidade de decisão nas mãos de uma minoria. No início da década de 90, as críticas ao planejamento estratégico contribuíram para a formulação de novas estratégias de intervenção baseadas em discurso fragmentado e consensos em torno da diversidade cultural, diferencial e vocação dos espaços, parcerias, participação popular e sustentabilidade das propostas. A tendência busca principalmente articular o paradigma das cidades globais com a descentralização política e autonomia social. O papel do planejador seria a conciliação de conflitos, uma aparente crise propositiva que parece, na verdade, mascarar uma crise maior, a incapacidade do planejamento compreender as novas demandas da disciplina e sua relação com o caráter propositor. A busca de locais produzidos de forma ativa e não através de agentes externos desconhecidos, presente nas recentes críticas ao urbanismo, geralmente retomam um aspecto fundamental da modernidade, a relação entre o fluxo, espacial e temporal, e o desejo de construção de referencias na cidade.

3. Movimento e liberdade No urbanismo, se a primazia do trajeto em detrimento ao destino foi incorporada desde o urbanismo barroco, parece ser somente nos modelos abstratos do pré-urbanismo que ela passa a ser diretamente associada à função libertadora do homem nas primeiras metrópoles. Enquanto no urbanismo barroco a idéia de grandes avenidas possuía ligação com o controle e ordenação do espaço, além da conformação de perspectivas e edificações padronizadas, no pré-urbanismo e, mais tarde, na Carta de Atenas, a noção de movimento já está consolidada como o caminho ideal para a libertação do homem das velhas estruturas de dominação. O inverso, portanto. Para melhor compreender esta inversão, recorrerei a Otília Arantes3 e sua citação de Camillo Sitte e Georg Simmel. A autora identifica como estrutura do argumento de Sitte a figura da praça e seu oposto, o termo patológico Agorafobia. A praça enquanto espaço circunscrito para vida pública, tal qual concebida por Sitte, perde seu sentido social no momento em que a vida moderna abandona o espaço coletivo e migra para o interior das residências. Identificando sintomas semelhantes, Georg Simmel toma, no entanto, um rumo adverso do que propõe o arquiteto vienense. No lugar de buscar elementos capazes de recriar a sociabilidade perdida no espaço exterior, Simmel identifica a liberdade proporcionada pela vida moderna através da noção de movimento. O argumento de Simmel combina a indiferença recíproca da multidão urbana ao papel protetor do intelecto no habitante citadino. O primeiro fator, ligado à objetivação e despersonalização das relações sociais, baseadas na lógica do mercado, seria responsável pelo estímulo à abstração e desenvolvimento do indivíduo, sem restrições ou entraves. O segundo fator, o papel protetor do intelecto, foi identificado de forma semelhante por outro autor, também citado por Arantes, Walter Benjamin, através da gradual transformação do choque em hábito-repetitivo nas grandes cidades. Embora os autores também possuam divergências quanto aos desdobramentos dos conceitos4, o importante é destacar o processo de apagamento do aparelho perceptivo. Este apagamento estaria diretamente associado à

incapacidade do espaço urbano

vincular a memória e experiência coletiva, fato comparado por Benjamin ao apagamento

da aura da arte pela indústria. É dentro deste contexto, que o próprio Benjamin traz a discussão para o campo da arquitetura, a qual considera a primeira arte de massa pela peculiaridade de ser, além de uma arte antiaurática, assimilada primeiramente por dispersão, fato decorrente de ser algo utilitário antes de objeto para contemplação. O autor vai além, diferenciando a contemplação, ou contato ótico, da percepção sem esforço, difusa e descontínua, a que denomina contato tátil. A consciência da inclusão da arquitetura como parte de uma cultura material maior e sua identificação como arte antiaurática e percebida por dispersão, associado à valorização do movimento, levou ao questionamento de seus fundamentos, dentre eles, e de forma mais incisiva, sua associação com a permanência e caráter monumental atemporal5. Por outro lado, a crítica de outro fundamento da arquitetura, a categoria do ornamento, leva a um caminho semelhante. Adolph Loos, tal como citado por Frampton6, para nos atermos a um dos fundadores do movimento moderno, acusa o ornamento de comunicar uma sensibilidade nostálgica, cuja função seria controlar o desenvolvimento cultural e construir consenso apolítico, e procura desfazer o equívoco de que o ornamento seria à presença da arte na arquitetura. Diferenciando a essência das disciplinas, o arquiteto afirma que, enquanto a arte pertence ao domínio do sagrado e atemporal, a arquitetura é material e utilitária, pertencendo, portanto, ao domínio da necessidade da época. A diferenciação, longe de ser uma visão materialista-naturalista da arquitetura, procura

denunciar a incapacidade da arquitetura, a partir daquele

momento, em comunicar valores atemporais, responsáveis por distanciá-la do que Loos considera sua célula original, o lar. A relação entre a habitação e a cultura material nos leva de volta ao texto de Arantes e sua citação de Camillo Sitte, onde a noção de habitar na cidade moderna adquire a função de garantir singularidade em oposição ao exterior, a vontade do indivíduo construir autonomia e originalidade contra a objetividade da cultura do mercado. Cabe ressaltar, no entanto, que Camilo Sitte emprega, sem ingenuidade, o termo “deixar rastros” para descrever o papel da moradia, o que não abandona, portanto, a noção de movimento perpétuo.

O banimento na arquitetura da percepção ótica e do caráter aurático, em Benjamin, e do caráter atemporal e sagrado, em Loos, procura atribuir novas funções para a disciplina a fim de reconciliá-la a um novo contexto, delineado pela idéia de fluxo permanente e sem entraves em direção à liberdade, possibilitando, e sendo possibilitado, por uma percepção desatenta, indiferente e protegida de choques. Otília Arantes observa, no entanto, que esta “teoria da distração” tomou um rumo diferente do imaginado por seus idealizadores. As causas desta divergência são demasiadamente complexas para serem desenvolvidas neste trabalho, sendo suficiente observar que a idéia de movimento e sua associação com a liberdade passam a ser revistas diante dos primeiros sinais de crise, e que esta revisão gera um novo posicionamento da arquitetura em relação ao movimento, sua negação ou assimilação radical. O primeiro caminho, ou a negação do movimento, levaria às tentativas de resgatar características do lugar que haviam sido apagadas pela ruptura temporal e espacial. Este caminho, acredito, se divide em duas tendências. A primeira baseada no conceito de um lugar pré-existente através da atenção ao espaço e sua compreensão como “fato único, dotado de sentido”, nas palavras de Aldo Rossi. O papel da arquitetura seria reforçar esta característica “anterior ao estilo” e se diluir no contexto, reforçando suas características. A segunda tendência se baseia na capacidade de modificação exercida pela arquitetura no espaço, porém com a intenção de demarcar e fundar lugares, oferecer referências fixas capazes de definir limites e fronteiras ao espaço. Pode-se identificar nas posturas duas maneiras distintas de lidar com o fator tempo, a primeira visando assimilar o tempo através de uma espacialidade pré-conformada por ele e a segunda propondo o controle do espaço sobre o tempo, através do congelamento deste último. É possível identificar na construção do espaço urbano atual tanto o predomínio das intervenções contextualistas, quanto a fundação estratégica de lugares através de edifícios notáveis. É possível identificar, também, a aliança destes com uma visão tecnicista e funcionalista, convertida em eficiência e precisão, criando vínculos fortes entre a arquitetura, o urbanismo e a dominação e reprodução das estruturas de poder.

Por outro lado, o caminho que propõe a assimilação plena do movimento procura compreender instabilidade espacial e temporal dos lugares fundados, para construir, a partir daí, a subversão e viabilidade da liberdade. A diferença deste com o caminho anterior é que, enquanto o primeiro parece atribuir ao fluxo a responsabilidade pelo desvio dos objetivos originais, este segundo denuncia a corrupção do fluxo pelos antigos entraves à liberdade do indivíduo, esta última possível somente através da completa subversão das estruturas construídas. Neste momento e sob este aspecto, a crítica dos fundamentos da arquitetura se aproxima da revisão por que passam as artes plásticas7. Dentre as vertentes críticas geradas por esta revisão, a que mais nos interessa para a discussão é a que investiga o espaço urbano através de suas experiências e não tentativas de permanência. Esta tendência foi desenvolvida de forma mais próxima ao nosso tema pelo grupo dos situacionistas, que pretendia a criação de uma arte ligada à realidade de forma integral a qual, segundo Debord, principal teórico do grupo, só poderia se realizar através do urbanismo. Se, num primeiro momento, as investigações situacionistas se referissem apenas a espaços existentes, mais tarde passariam por propostas de formas ideais para, finalmente, chegar à crítica radical do urbanismo e do planejamento em geral, porém sempre favoráveis à cidade. A favor de uma construção coletiva das cidades, os situacionistas perceberam que a forma dependia da participação ativa dos cidadãos, o que só seria possível por meio de uma verdadeira revolução da vida cotidiana. Neste sentido, se dedicaram a induzir a participação como oposição à alienação e passividade da sociedade, acreditando que os habitantes poderiam passar de simples espectadores a construtores e transformadores de seus próprios espaços. O meio utilizado para tal seria o que chamariam de deriva 8, ou a apropriação do espaço pelo pedestre através do percurso sem rumo, opondo-se ao planejamento tradicional, concebido como uma forma de gerenciar o fluxo a partir de estruturas pré-concebidas, estáticas e elaboradas por especialistas. Neste momento, os situacionistas propõem uma ruptura decisiva na relação do fluxo com o espaço urbano. Enquanto que a liberdade em Simmel e Benjamin seria possibilitada pela anulação dos entraves através da arquitetura e do urbanismo, um

corpo, portanto, passivo, aqui ela reaparece relacionada à ação e à capacidade do corpo ativo em movimento modificar o espaço construído. Porém, o conceito de lugar relacionado ao desejo de liberdade e conseqüente diluição no fluxo, sofre uma nova crítica baseada na compreensão de como o poder consegue se associar à capacidade da mobilidade para reproduzir a segregação nos grandes centros urbanos. Sharon Zukin9, estudando os processos de segregação e reprodução da geometria de poder no espaço construído, identifica uma inversão no processo de exclusão tradicional. Segundo a autora, o conceito de lugar é atualmente baseado no conflito e conformação de fronteiras, através de relações possibilitadas pela mobilidade. Anulada a idéia de um centro urbano estático e bem definido, a exclusão deixa de ser em direção à periferia e passa a ser uma exclusão do espaço definido pela mobilidade, uma exclusão da interação entre diferentes escalas. Neil Smith10 identifica, de forma semelhante, a construção de escalas geográficas como produto da luta política na produção social do espaço urbano, onde a escala seria o resultado geográfico dos conflitos sociais que visam o estabelecimento de fronteiras. Ainda na mesma linha, Doreen Massey11 abandona o conceito de lugar como comunidade homogênea e estática, com fronteiras bem definidas. Segundo a autora, o lugar é produzido a partir da articulação das redes de relação social, o que explica tanto sua natureza não estática e indefinição de suas fronteiras, como a inexistência de identidades únicas e singulares em seu interior. A especificidade do lugar advém, portanto, da relação com outros lugares. Neste sentido, a mobilidade amplia as possibilidades de experiência e construção de lugares no espaço urbano, porém, quando concentrada fora da mão do excluído, também reforça a geometria do poder.

4. Novas demandas do planejamento na área central de BH Na época de elaboração deste trabalho, o centro de Belo Horizonte passava por uma série de intervenções urbanas articuladas sob a denominação Programa Centro Vivo. Optarei, no entanto, por um recorte suficiente para ilustrar os aspectos que pretendo abordar, a intervenções na Caetés.

Dentre as modificações físicas da rua estão o alargamento de calçadas, padronização do mobiliário urbano, a implementação de iluminação pública em dois níveis, nova rede de drenagem, paisagismo, piso para deficientes visuais, aterramento da rede elétrica, normas de padronização de placas publicitárias e retirada de obstáculos na calçada. Do ponto de vista do patrimônio histórico, foi feito o tombamento do conjunto e restauração de edificações. Os camelôs, vendedores ambulantes que ocupavam os passeios foram transferidos para o que vem se chamando shopping popular, localizado em galpão próximo, revitalizado através de verba adquirida pela transferência do direito de construir. As intenções da prefeitura, presentes na excessiva propaganda das propostas, são a “construção de espaços de lazer e convivência na região”, privilegiando o “conforto e segurança dos pedestres” ao mesmo tempo em que “resgata a verdadeira vocação da região: comércio e eixo de ligação”, promovendo a “revitalização comercial” numa “parceria com os lojistas locais”12. Em resumo, o tipo de padronização de discurso que geralmente acompanha o planejamento urbano contemporâneo, ressaltando a resolução completa e bem sucedida de conflitos e equalização de interesses econômicos. Ganha o lojista com o aumento do movimento e retirada de camelôs, ganham os camelôs com espaço mais adequado, ganham os proprietários de imóveis com a valorização do bem, ganha o patrimônio com a revitalização custeada pela parceria privada, ganha a nova clientela com a opção de comércio. Ganham todos com a segurança, limpeza, beleza e funcionalidade da proposta. Poderíamos identificar nas intervenções a substituição de uso provocada pela valorização dos edifícios, a mudança de público, o discurso técnico e econômico próprio do marketing, a preocupação com a imagem turística e a criação de consensos através de propaganda maciça, já amplamente debatidos por críticos ao planejamento estratégico. Considero, no entanto, mais rico para a discussão, construir observações dentro do que foi exposto, ou seja, relacionar as intervenções descritas ao conceito de fluxo e novas demandas para a arquitetura e o urbanismo. Tentando reconstruir a antiga ambiência a partir do novo espaço, a primeira impressão é a de que houve uma conversão do mercado ambulante, da desordem, do

acúmulo de funções, da percepção do “estrangeiro” ao lugar, dos pequenos territórios, ou mesmo da atenção ao furto, em um espaço onde se pode deslocar sem obstáculos e de forma passiva. A clara institucionalização de regras e condutas de utilização da rua, seguida da desobstrução e eleição de “novos” símbolos e referências, converte a antiga e indesejada confusão e imprevisibilidade em algo muito próximo ao espaço semipúblico do shopping. Uma segregação baseada, portanto, no distanciamento do usuário com o espaço construído e sua modificação, agora legitimada por uma limpeza e uma ordenação estranhas ao espaço anterior. A crítica à intervenção remete, por outro lado, a um tipo de conciliação entre o desejo de modernização e a preservação de referências. Observando a rua Caetés atual percebe-se que, no lugar de referências reais, cotidianas, foi forjada uma imagem que evoca uma estabilidade idealizada, que não existiu no espaço construído. O que passa a ser mais problemático na medida em que ocorre uma inversão sobre a origem dos símbolos, ou da atividade sobre o espaço, passando da população para o poder público. Esta inversão, na maior parte das vezes, vem associada a uma espécie de tranqüilidade cívica, tal como identificada por Arantes, oriunda da confiança na intervenção do poder e sua capacidade, tanto de preservar imagens referenciais fixas quanto de garantir o bom funcionamento do espaço. A predominância do discurso preservacionista ou contextualista, aliado à valoração econômica do espaço urbano e de seus atrativos culturais e turísticos demonstra que a tentativa de fundação de lugares no espaço urbano ou a busca de construção ou preservação de referências atemporais é uma proposta incapaz de subverter estruturas de poder, como pode ser observado na rua Caetés. Outro aspecto a ser observado é que o discurso preservacionista, amparado pela discussão de ampliação do conceito de patrimônio e preservação do meio ambiente, começa a revelar o risco de atribuições de valores e expectativas no passado, conformando uma cultura da memória (Huyssen13) ou a disseminação de memórias protéticas (Choay14). Por outro lado, a aceitação do fluxo, ao mesmo tempo em que pode contribuir para a criação de corpos cívicos ativos capazes de construir símbolos no espaço urbano, pode abrigar a prorrogação de mecanismos de segregação e reprodução de estruturas de poder,

como bem demonstram as primeiras ressalvas ao paradigma das cidades globais. Neste sentido, o caráter propositor e a figura da utopia, conceitos apenas tangencidados no início desta discussão, têm papel fundamental na idealização do espaço urbano e das novas demandas das disciplinas envolvidas em sua produção.15 O negligenciamento do aparente divórcio entre a arquitetura e a cidade e o silêncio em torno do caráter arbitrário do urbanismo é um dos fatores responsáveis pelo agravamento dos problemas que o planejamento urbano procura resolver ou, para usar um termo resgatado por Otília Arantes, a ironia objetiva das propostas. Considerando o caráter propositor, ou a construção arbitrária de espaços, a principal ligação entre a arquitetura e o urbanismo, poderiam ser construídas aproximações entre as disciplinas a fim de criar um diálogo menos ingênuo sobre a relação entre o projeto de edifícios e o espaço urbano. (aprofundar)

1

CHOAY, Françoise. A regra e o modelo. Sobre a teoria da arquitetura e do urbanismo. Trad. Geraldo

Gerson de Souza. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1985. 2

A sistematização foi baseada em CHOAY, Françoise. O urbanismo. Utopias e Realidades. Um antologia.

Trad. Dafne Nascimento Rodrigues. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979. 3

ARANTES, Otília. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo: EDUSP, 1995. 2 ed.

4

Otília Arantes segue com a comparação entre Simmel e Benjamin proposta por Cacciari cuja aceitação da

“espiritualização” do homem moderno se torna para o primeiro o momento determinante da vida moderna, culminando no indivíduo blazé, e, no segundo, a expressão acabada e a contradição básica do domínio do capital e respectivo conflito de classe. A discussão como foi apresentada e a indicação do trabalho de Cacciari estão em ARANTES, Otília. Opus cit. 5

Victor Hugo, citado por Choay (1979, pág. 326), já condenava a disciplina à morte em 1832, devido à invenção

da imprensa e fim do “monopólio” exercido pela arquitetura no registro da história da humanidade, o “grande livro de pedra” perdera sua função. Esta substituição de mídia reaparece no desenvolvimento da fotografia, particularmente na forma de cartões postais, e na possibilidade da imagem arquitetônica se deslocar no tempo e no espaço, rompendo, ou intensificando a ruptura da arquitetura com sua imagem. Observações desta natureza,

embora relacionadas mais à crítica aos monumentos do que à arquitetura, procuram a revisão dos conceitos na medida em que desmistificam papéis impensados atribuídos ao objeto arquitetônico. 6

FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:

Martins Fontes, 1997. 7

A discussão está presente de forma mais elaborada no minimalismo. Com o objetivo de se concentrar a

informação menos na obra do que na relação que ela instaura no espaço, os artistas deste período buscavam a anulação da subjetividade na obra e a busca de informação sensorial mínima. A intenção era possibilitar, através da obra, pistas para a compreensão da relação crítica do diálogo do dispositivo com o espaço. Espaço entendido como uma realidade complexa e não hierarquizada que, por estar em expansão eterna, possuía relação direta com o contexto histórico na mesma medida em que se apresentava como uma justaposição não gerenciável de fatos. 8

Pode-se dizer que a deriva descende de conceitos relacionados às apologias ao fluxo, anteriormente

apresentadas, que conformam uma vertente histórica de oposição aos entraves à liberdade dentro do espaço urbano, tal qual vem sendo trabalhado neste texto. Sem esperança de sistematizar a história do conceito, pode-se dizer que pertencem a ela as oposições do flaneur de Baudelaire à Paris de Haussmann e as deambulações organizadas pelos dadaístas, críticas às soluções dos primeiros CIAM´s. 9

ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In: ARANTES, Antônio A.

(org.). O espaço da Diferença. Campinas,SP: Papirus, 2000. 10

SMITH, Neil. Contornos de uma política espacializada: veículos dos sem-teto e produção de escala

geográfica. In: ARANTES, Antônio A. (org.). O espaço da Diferença. Campinas,SP: Papirus, 2000. 11

MASSEY, Doreen. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, Antônio A. (org.). O espaço da Diferença.

Campinas,SP: Papirus, 2000. 12

Trechos retirados do site da prefeitura de Belo Horizonte na sessão notícias vinculadas nos dias 23/09/2003; 22/04/2004 e 21/09/2004. O endereço do site é www.pbh.gov.br. 13

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Trad. Sergio Alcides. Rio

de Janeiro: Aeroplano, 2000. 14

CHOAY, Françoise. A alegoria do Patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESPE, 2001.

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