Anselmo hoje e o retorno do dualismo: um novo parricídio contra Parménides?

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Cícero Cunha Bezerra Marcos Roberto Nunes Costa (Organizadores)

Reflexões sobre Éticas gregas e Filosofia contemporânea

Recife, 2014

Esse livro é fruto dos trabalhos desenvolvidos durante a realização do I Congresso Internacional sobre Éticas Gregas e Filosofia Contemporânea ocorrido na Universidade Federal de Sergipe nos período de 04 a 06 de dezembro de 2013. Gostaríamos de agradecer à CAPES pelo financiamento.

Imagem de capa: Rafael Ferreira Costa Revisão: Os autores Diagramação: Elvira de Paula Catalogação na fonte: Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408

R332

Reflexões sobre ética grega e filosofia contemporânea / Organizadores: Cícero Cunha Bezerra, Marcos Roberto Nunes Costa. – Recife : Ed. UFPE, 2014. 182 p. Trabalhos desenvolvidos durante a realização do I Congresso Internacional sobre Éticas Gregas e Filosofia Contemporânea realizado na Universidade Federal de Sergipe nos período de 04 a 06 de dezembro de 2013. Vários autores. Inclui referências. ISBN 978-85-415-0475-1 (broch.) 1. Filosofia. 2. Filosofia antiga. 3. Filosofia – História – Séc. XX. 4. Ética. I. Bezerra, Cícero Cunha (Org.). II. Costa, Marcos Roberto Nunes (Org.). III. Congresso Internacional sobre Éticas Gregas e Filosofia Contemporânea (1. : 2013 dez. 04-06 : Aracajú, SE). 100 CDD (23.ed.) UFPE (BC2014-074)

SUMÁRIO Servir e esperar: aspectos filosóficos da leitura de Heidegger à 1ª Carta de Paulo aos Tessalonicenses ........... Arthur Grupillo Práxis e phrónesis em Paul Ricoeur ................................................ Constança Marcondes Cesar

9 33

La ética aristotélica en la terapéutica de los derechos humanos de Michel Villey .................................................................... Cícero Cunha Bezerra

49

Les ‘Lumières’ de la Grèce antique et la culture contemporaine ................................................................. Jean-Marc Narbonne

63

Resonancias de las éticas helínsticas en la filosofia ambiental ......................................................................... José Luis Giardina

81

Mito y vida buena en Damascio o de una verdad platónica para los derroteros contemporáneos ......................... José María Nieva

93

A inatualidade da responsabilidade em Levinas ....................... 105 José Tadeu Batista de Souza A cosmológica ético-holística de Santo Agostinho e seus reflexos na ética ecológica-hoslística [ecoteologia] na contemporaneidade ........................................................................... 119 Marcos Roberto Nunes Costa

Anselmo hoje e o retorno do dualismo: mu novo parricídio contra Parménides? ...................................... 141 Maria Leonor L. O. Xavier O Epicuro de Marx: algumas notas .................................................. 165 Romero Venancio

Anselmo hoje e o retorno do dualismo: um novo parricídio contra Parménides? Profa. Dra. Maria Leonor L. O. Xavier1 Visar o alcance prospectivo e retrospectivo do argumento anselmiano é o propósito deste ensaio. Consideramos o alcance prospectivo, seleccionando uma intrigante vertente da recepção do argumento de Anselmo na filosofia contemporânea: aquela que torna explícita a possibilidade de um argumento simétrico do anselmiano, a favor de algum mal insuperavelmente pensável. Esta possibilidade obriga a reequacionar o alcance retrospectivo do argumento de Anselmo, no que concerne, sobretudo, à sua relação de fidelidade com a tradição da filosofia grega, especialmente, de inspiração parmenidiana. Por fim, interrogamo-nos: como foi possível a filosofia contemporânea ter virado Anselmo contra a tradição de pensamento a que ele realmente pertence? 1 Parménides e Anselmo: a metafísica do ser necessário Não é impertinente cruzar os nomes de dois grandes mestres do pensamento ocidental, como Parménides e Anselmo2. Por irresolúveis que sejam as dificuldades e contradições do seu Poema, Parménides ensinou-nos a pensar o ser, e a centrar o 1 2

Universidade de Lisboa Ainda que não seja o mais habitual, já outros o fizeram, como por ex.: Klaus Held, “Zur Vorgeschichte des ontologischen Gottesbeweises. Anselm und Parmenides”, Perspektiven der Philosophie 9 (Amsterdão, 1983), 217-233; Michael P. Slattery, “Parmenides: Anselm eminenter”, Anselm Studies 2 (White Plains/ Nova Iorque, 1988), 229-239; mais recentemente, a comunicação de Thomas Losoncy, “St. Anselm Engages Parmenides about Being. Metaphysics with a twist and some new directions”, apresentada no Congresso Internacional de Filosofia Medieval – Pleasures of Knowledge – SIEPM 2012 Freising (20-25/ 08).

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pensamento no ser, como aquilo que é propriamente inteligível. Só o ser inteligível é imune ao movimento e se firma pela necessidade. Por isso, e não obstante a disparidade das interpretações do ser inteligível, nós reconhecemos em Parménides o criador da metafísica do ser imutável e necessário. Neste âmbito, Anselmo não é senão um continuador, singularmente ilustre, mas um continuador. É certo que, ao invés daquilo que Parménides havia postulado, o mutável e o contingente também é ser pensável e inteligível, para Anselmo. Daí a transferência do ser imutável e necessário para o limite do pensável, como algo ainda pensável mas na fronteira com o supra-pensável. Por inumeráveis que sejam as refutações e as reabilitações do argumento anselmiano, com as respectivas interpretações, Anselmo desafiou-nos a experimentar os limites do pensável para pensar o ser imutável e necessário, no que nos deixou um insofismável testemunho de perseverança na metafísica do ser necessário, fundada por Parménides. No limite do pensável, Anselmo situou “algo maior do que o qual nada possa ser pensado” (aliquid quo nihil maius cogitari possit)3, que nós podemos traduzir conceptualmente como algo insuperavelmente pensável. O argumento anselmiano do Proslogion não é senão a dedução da conformidade do ser necessário ao insuperavelmente pensável. Todavia, essa conformidade não pode dar-se a não ser que o insuperavelmente pensável se defina por dois atributos essenciais, ainda que expressos por negação: não ter princípio nem fim e não ser divisível em partes. Por um lado, se o insuperavelmente pensável tivesse princípio ou fim, então o mesmo seria pensável como não sendo antes do seu 3

«Et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari possit.» Anselmo, Proslogion (Pr.) 2, in F. S. Schmitt (Ed.), S. Anselmi Cantuariensis Archiepiscopi Opera Omnia, Stuttgart – Bad Cannstatt, 1968, I, p 101, 4-5.

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princípio ou depois do seu fim4. Mas àquilo que é pensável como não sendo não cabe o ser necessário, cuja negação é impensável, e que, portanto, não é pensável como não sendo. Por outro lado, se o insuperavelmente pensável fosse divisível em partes, então umas partes seriam pensáveis como não sendo onde e quando são as outras, e, à semelhança das partes, o próprio composto seria pensável como nenhures e nunca sendo5. Mas aquilo que é pensável como não sendo não pode ser de modo necessário. Logo, o insuperavelmente pensável não pode ser necessariamente senão na condição de não ter princípio nem fim e de ser indivisível. Entretanto, estes dois atributos já determinavam o ser concebido por Parménides, que o qualificava como ingénito e indestrutível, isto é, sem princípio nem fim6, e também como indivisível, por ser homogéneo, contínuo e pleno7. Por conseguinte, aquilo “que é”, segundo Parménides, não difere, nos seus atributos essenciais, daquilo “maior do que o qual nada possa ser pensado”, segundo Anselmo. «Quidquid autem potest cogitari esse et non est, per initium potest cogitari esse. Non ergo quo maius cogitari nequit cogitari potest esse et non est. Si ergo cogitari potest esse, ex necessitate est.» Id., Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli (Resp.) [1.] (Schmitt: I, p.131, 3-5); «Procul dubio quidquid alicubi aut aliquando non est: etiam si est alicubi aut aliquando, potest tamen cogitari numquam et nusquam esse, sicut non est alicubi aut aliquando. Nam quod heri non fuit et hodie est: sicut heri non fuisse intelligitur, ita numquam esse subintelligi potest. Et quod hic non est et alibi est: sicut non est hic, ita potest cogitari nusquam esse.» Id., Resp. [1.] (Schmitt: I, p.131, 18-23). 5 «Similiter cuius partes singulae non sunt, ubi aut quando sunt aliae partes, eius omnes partes et ideo ipsum totum possunt cogitari numquam et nusquam esse. […]. Quare quidquid alicubi aut aliquando totum non est: etiam si est, potest cogitari non esse. At ‘quo maius nequit cogitari’: si est, non potest cogitari non esse. Alioquin si est, non est quo maius cogitari non possit; quod non convenit.» Id., Resp. [1.] (Schmitt: I, p.131, 23-25; 31-33; p.132, 1). 6 Cf. Parménides B 8, 3-4, 27 (Diels/ Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker. Bd.1, 7ª ed., Berlim, 1954). 4

7 Cf. Parménides B 8, 22-24. Reflexões sobre Éticas gregas e Filosofia contemporânea

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Todavia, tais atributos não só não coincidem como até se opõem àqueles que caracterizam aquilo que pensamos de nós próprios e do mundo que nos rodeia. Com efeito, quando nós nos pensamos, pensamo-nos com princípio e fim, porque um dia nascemos e assim começámos a ser, e um dia morreremos e assim deixaremos de ser. Além disso, pensamo-nos como complexos, longe da pura simplicidade. E quando pensamos o mundo circundante, pensamo-lo não só em mutação constante como distribuído por muitas partes. Segundo Parménides e Anselmo, tudo isto que nos é próprio ou próximo fica fora do ser necessário. Quer isso dizer que a metafísica do ser necessário, que Parménides inventou e Anselmo corroborou, separa o nosso pensamento da realidade que conhecemos em nós e à nossa volta? Será que o ensinamento de ambos foi afinal uma alienação do real pelo pensar? Esta é uma suspeição que se inscreve na linhagem filosófica que encadeia todos os adversários intelectuais de Parménides e Anselmo. Mas, por imperscrutáveis que sejam para nós, hoje, os desígnios de ambos os mestres, é difícil admitir que eles nos quisessem apenas deixar uma ilusão, a ilusão do pensamento. Será que Parménides e Anselmo trilharam a via do pensamento puro, sem preocupações cosmológicas e até à revelia do conhecimento do mundo? É certo que Parménides opôs inexoravelmente entre si, sem instruções ou sequer sugestões de compromisso, o caminho da verdade, que é a via do pensamento puro, e o caminho da aparência, que é a via das opiniões humanas, que concebem o mundo pelo prisma dos contrários e do movimento8. É também certo que Anselmo, antes de expor o seu argumento único, exortou o leitor a despojar a mente de todas as motivações e ocupações mundanas, 8

Cf. Parménides B 2, 1-8; B 6, 1-9; B 8, 50-59.

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a fim de se tornar disponível para pensar algo insuperavelmente pensável9. Todavia, não obrigam estas considerações a admitir que os dois mestres do pensamento viraram costas ao mundo. Parménides combate intelectualmente as opiniões humanas sobre o mundo, porventura porque não são os contrários e o movimento que dão inteligibilidade ao mundo, mas antes o ser imutável e necessário. Aquilo “que é”, para Parménides, é, porventura, o mundo ao nível da sua inteligibilidade ou pensabilidade. Deste modo, nós inscrevemo-nos na linha de interpretações que entendem a metafísica do ser necessário, em Parménides, sem total rompimento com as preocupações cosmológicas, que são manifestas na via das opiniões humanas10. Algumas descrições quase físicas do ser necessário, no próprio Poema, fundamentam esta nossa opção interpretativa: o ser é contínuo, de modo que não se deixa dispersar pela ordem do mundo, nem, depois de disperso, voltar a reunir11; o ser é completo de todos os lados, semelhante à massa de uma esfera e igualmente presente em toda a parte, sem variação alguma12. O ser inteligível ou propriamente pensável é, assim, concebido como um mundo Cf. Anselmo, Pr 1(Schmitt: I, p.97, 3-7). Em sintonia com Jean-Paul Dumont, Les Présocratiques, Dijon, Éditions Gallimard, 1988, pp.1264-1266. Ao admitirmos que o ser necessário de Parménides obedece ainda à busca de inteligibilidade do mundo, afastamos, todavia, a hipótese de qualquer conotação especial do ser parmenidiano com qualquer das acepções de ser que a tradição filosófica veio a posteriormente distinguir, como o ser de essência, o ser de existência e a cópula lógica. Por consequência, à versão de G. S. Kirk e J. E. Raven, Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. port. Beatriz Rodrigues Barbosa, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,1979, pp.272-292, que conota por vezes o ser parmenidiano com o ser de existência, nós preferimos a tradução de José Gabriel Trindade Santos, Da Natureza, Parménides, Queluz, Alda Editores, 1997, que nunca toma o ser por existir, por admitir 4 sentidos possíveis para o verbo einai (pp.85-87), embora não subscrevamos a sua interpretação estritamente lógico-epistemológica do Poema de Parménides (pp.78-87). 11 Cf. Parménides B 4. 12 Cf. Parménides B 8, 40-49. 9

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perfeito, sem contrastes nem falhas, como aqueles que abundam no mundo que se reflecte nas opiniões humanas. Estes atributos de continuidade e completude do ser parmenidiano encontram-se também condensados no atributo de omnipresença daquilo que é insuperavelmente pensável, segundo Anselmo. Só que o insuperavelmente pensável não é conotável com o mundo, embora o mundo e o tempo sejam os conceitos mais próximos daquele. De facto, é com o mundo e o tempo que Anselmo compara o insuperavelmente pensável: o mundo e o tempo são totalidades compostas, de modo que estão presentes, respectivamente, em todas as suas partes, mas não totalmente presentes em todas as suas partes; ao invés, algo insuperavelmente pensável é totalmente omnipresente, e só nessa condição é tão necessariamente que é impensável que não seja algures ou alguma vez13. Deste modo, se o pensável no limite do pensável não coincide com o mundo, Anselmo não consegue pensá-lo senão em comparação com o mundo. A ideia mais determinada, que Anselmo nos legou, acerca daquilo que é insuperavelmente pensável, é, na verdade, o conceito de um todo totalmente omnipresente. Como este conceito não se concebe sem comparação com o mundo, é difícil reconhecê-lo como um conceito puramente a priori, ao contrário do que é habitual supor acerca da ideia de Deus no argumento anselmiano. 13

«Nam et si dicatur tempus semper esse et mundus ubique, non tamen illud totum semper aut iste totus est ubique. Et sicut singulae partes temporis non sunt quando aliae sunt, ita possunt numquam esse cogitari. Et singulae mundi partes, sicut non sunt, ubi aliae sunt, ita subintelligi possunt nusquam esse. Sed et quod partibus coniunctum est, cogitatione dissolvi et non esse potest. Quare quidquid alicubi aut aliquando totum non est: etiam si est, potest cogitari non esse. At quo maius nequit cogitari: si est, non potest cogitari non esse. Alioquin si est, non est quo maius cogitari non possit; quod non convenit. Nullatenus ergo alicubi aut aliquando totum non est, sed semper et ubique totum est.» Anselmo, Resp. [4.] (Schmitt: I, p.131, 25-33, p.132, 1-2).

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Apesar de separados por cerca de quinze séculos, Anselmo continua no trilho de Parménides, e nenhum parricídio se vislumbra. A fidelidade de Anselmo não se explica, porém, por uma influência directa do antigo eleata. Ainda que assuma claramente princípios de origem parmenidiana – como do não-ser nada pode provir14 – Anselmo não dá conta de ter lido o Poema de Parménides. Aliás, das suas fontes, o filósofo préescolástico não acusa explicitamente senão a influência de Agostinho. E terá sido provavelmente em fidelidade a Agostinho que Anselmo elabora e desenvolve o atributo da omnipresença divina15. Com efeito, de acordo com o testemunho das Confissões, o autor manifesta perplexidade com a insistência e penosidade da sua própria busca de Deus, quando Deus está por toda a parte16. Não obstante a cristianização progressiva do pensamento de Agostinho, a sua base filosófica é de matriz neoplatónica. E já Plotino havia afirmado a omnipresença do Uno17, donde tudo emana em primeira instância. Mas uno era já também o ser de Parménides18. A influência deste antigo mestre da filosofia grega chegou a Anselmo, não directamente, mas através de uma larga faixa da tradição filosófica, que costumamos hoje designar de “neoplatónica”, e que inclui o neoplatonismo cristão de Agostinho. Todavia, entre os filósofos clássicos gregos, o mais fiel a Parménides, Platão, cometeu o conhecido parricídio contra o mestre eleata, ao admitir o movimento no mundo inteligível19. Será que algum outro parricídio poderá ainda advir contra Parménides por via de Anselmo? Cf. Parménides B 8, 9-13; Anselmo, Monologion (Mon) 3 (Schmitt: I, p.15, 30, p.16, 1). Cf. Anselmo, Mon 20-24 (Schmitt: I, pp.35-42). 16 Cf. Agostinho, Confessionum X, 26, 37. 17 Cf. Plotino, Enéada VI, 5. 18 Cf. Parménides B 8, 6. 19 Cf. Platão, Sofista 241 c – 259 e. 14 15

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2 O simétrico do argumento anselmiano A posteridade crítica do argumento anselmiano, no séc. XX, concebeu, de facto, um argumento estruturalmente idêntico a favor da existência real e necessária de algum mal insuperavelmente pensável, designado “argumento demonológico”, segundo um dos seus principais proponentes, Michael Tooley20. Este crítico, de pensamento assumidamente ateísta, inscreve-se na corrente da filosofia analítica, que se interessou, de facto, pelo argumento anselmiano, mas que se caracteriza, nas suas descrições deste argumento, pela preferência da forma em detrimento do conteúdo. Abundam, por isso, no âmbito de tal orientação, as descrições lógicas do argumento anselmiano. O próprio “argumento demonológico” não visa senão mostrar que a mesma estrutura lógica se pode aplicar à demonstração da existência necessária de qualquer outra coisa, mesmo que seja o oposto do conceito anselmiano de Deus. Não é, porém, este, o nosso parecer, 20

Cf. Michael Tooley: “Plantinga’s Defense of Ontological Argument”, Mind, Vol. XC (Julho 1981) nº 359, p.425. Mais recentemente, mas ainda no âmbito do debate com o teísmo de Alvin Plantinga, Tooley retoma o “argumento demonológico” em posição simétrica ao argumento anselmiano, a fim de defender a racionalidade do ateísmo, com base na ínfima probabilidade de qualquer dos dois possíveis extremos, um ser perfeitamente bom e um ser perfeitamente mau, posto que entre os dois há um infinito número de possibilidades com igual grau de probabilidade: «A serious downward spiral is now on the horizon, since it might be argued that there are an infinite number of possibilities between the extreme of being perfectly good and that of being perfectly evil. If all of those possibilities are on a par with the three originally cited, then the probability of there being an omnipotent and omniscient being that realizes any particular possibility will be infinitesimal, and so the a priori probability that God exists will be infinitesimal.» Michael Tooley, “Does God Exist?”, in Alvin Plantinga e Michael Tooley, Knowledge of God, Malden/ Oxford/ Victoria, Blackwell, 2008, p.92. O tema do “argumento demonológico” tem continuado a ser glosado por vários outros autores: cf. Stephen Read, “Reflections on Anselm and Gaunilo”, International Philosophical Quarterly, Vol. XXI (Dezembro 1981) nº 4, p.437; Peter Millican, “The Devil’s Advocate”, Cogito 3-3 (Outono 1989), pp.193-207; Yujin Nagasawa, “The Ontological Argument and the Devil”, The Philosophical Quarterly 60 (Janeiro 2010), pp.72-91.

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após demorada reflexão sobre a concepção do “argumento demonológico”. Tal como o argumento anselmiano não é um argumento sobretudo formal, assim também o seu simétrico o não é. Não sendo irracionais os conteúdos implicados em ambos os argumentos, o argumento simétrico, em vez de reduzir ao ridículo o argumento anselmiano, junta-se a este, constituindo ambos um duplo argumento a favor do dualismo metafísico do bem e do mal. E aquilo que julgávamos estar morto e enterrado do ponto de vista filosófico, o maniqueísmo, renasce das cinzas com surpreendente vigor especulativo. Vejamos como. Antes de mais, é pensável um conceito simétrico do conceito anselmiano de Deus: tal como no domínio dos bens, é pensável algo maior do que o qual nada possa ser pensado, isto é, algum bem insuperavelmente pensável, assim também no domínio dos males, não podendo nós percorrer um caminho infinito na busca de males maiores, é pensável algum mal insuperavelmente pensável, de modo que não seja menor do que algum outro e seja maior do que todos os outros males pensáveis. Mas um mal insuperavelmente pensável não pode ser uma ficção da mente. Se fosse uma ficção mental, só existiria no pensamento. Mas se só existisse no pensamento, seria pensável que existisse também na realidade, o que é maior21. Com efeito, aquilo que existe no pensamento e na realidade é maior do que isso mesmo existindo só no pensamento, ou, de forma abreviada, algo pensado e real é maior do que isso mesmo apenas pensado. Por exemplo, um mal em intenção e na acção é maior ou mais grave do que o mesmo só em intenção. Por conseguinte, se um mal insuperavelmente pensável existisse só no pensamento, não seria 21

Raciocínio simétrico ao de Anselmo: «Et certe id quo maius cogitari nequit, non potest esse in solo intellectu. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re, quod maius est.» Id., Pr. 2 (Schmitt: I, p.101, 15-17).

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um mal insuperavelmente pensável, o que é uma contradição. Um mal insuperavelmente pensável existe, pois, não só no pensamento mas também realmente. Além disso, um mal insuperavelmente pensável existe tão necessariamente que nem sequer é possível duvidar da sua existência. Na verdade, é pensável que algo exista de modo que é impensável que não exista, o que é maior do que algo que exista de modo que a sua inexistência é pensável22. Assim também um mal cuja inexistência é impensável é um mal maior ou mais grave do que outro, cuja inexistência é pensável. Como a inexistência de algo é pensável através de um início ou de um fim, um mal cuja inexistência é pensável é um mal que começa ou que acaba. Ao contrário, um mal, cuja inexistência é impensável, não pode começar nem acabar. Um mal que não começa nem acaba é decerto maior do que um mal que ou começa ou acaba. Por conseguinte, se um mal insuperavelmente pensável existisse de modo que pudesse não existir, não seria um mal insuperavelmente pensável, o que é uma contradição. Um mal insuperavelmente pensável existe, pois, tão necessariamente que não é sequer dubitável. No entanto, um mal insuperavelmente pensável não é algo insuperavelmente pensável no âmbito de determinado género ou espécie, como é o caso da ilha perdida de Gaunilo. Este e qualquer outro exemplo análogo permitem caricaturar o argumento anselmiano, mas não conseguem satisfazer a condição da existência necessária. Qualquer coisa insuperavelmente perfeita no seu género não pode existir senão contingentemente, de modo que a sua inexistência seja pensável, através da sua divisibilidade e dos seus limites espácio-temporais. Já um mal insuperavelmente pensável não só não cabe num género determinado como se 22

«Nam potest cogitari esse aliquid, quod non possit cogitari non esse; quod maius est quam quod non esse cogitari potest.» Id., Pr. 3 (Schmitt: I, p.102, 6-8).

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opõe diametralmente a um bem insuperavelmente pensável, que coincide com o conceito anselmiano de Deus, como algo insuperavelmente pensável. Tal como o conceito anselmiano de Deus é pensável num processo que parte de bens menores em busca de bens maiores, assim também o conceito de um mal insuperavelmente pensável se forma num processo que parte de males menores em direcção a males maiores. E tal como o conceito anselmiano de Deus não é consistente senão com a existência real e necessária, à luz dos juízos de maior, que intervêm no argumento do Proslogion, assim também o conceito de um mal insuperavelmente pensável não é consistente senão com a existência real e necessária, em razão de juízos simétricos. E, ainda, tal como o conceito anselmiano de Deus tem de ser referido a algo supra-espácio-temporal, para ser concebido com a existência necessária que lhe compete, assim também o conceito oposto de um mal insuperavelmente pensável terá de ser algo supra-espácio-temporal, para existir necessariamente, de modo que a sua inexistência seja impensável. Mas algo supra-espáciotemporal, que existe necessariamente, é mais omnipresente do que o mundo e o tempo, porque nenhum destes está todo indivisivelmente presente em qualquer das suas partes, de modo que é pensável a inexistência do mundo todo em qualquer das suas partes ou a inexistência da totalidade do tempo também em qualquer das suas partes23. Só o atributo de uma indefectível omnipresença é verdadeiramente consistente com a modalidade necessária da existência, aquela cuja negação é impensável. Por conseguinte, o argumento anselmiano não só deduz a existência necessária de um omnipresente bem insuperavelmente pensável como não impede a simétrica dedução da existência necessária 23

Cf. Id., Resp. [4.] (Schmitt: I, p.131, 25-32); vd. nota 12.

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de um omnipresente mal insuperavelmente pensável. Assim se conclui racionalmente a existência necessária de dois absolutos omnipresentes, mas opostos entre si. 3 Como foi possível? A nossa questão agora é compreender como foi possível ocorrer ao pensamento filosófico, de forma declarada, pelo menos, a partir do último quartel do séc. XX, um argumento simétrico do argumento anselmiano. Como foi possível reerguer o espectro do dualismo metafísico do bem e do mal, através deste par de argumentos simétricos entre si? Não é verdade que tal espectro tinha já sido neutralizado por uma persistente e dominante tradição de relativização do mal? Não é verdade que a filosofia há muito se já tinha prevenido contra tal dualismo, ao selar uma forte e duradoura aliança entre o ser e o bem? Como foi, então, possível? 3.1 A tradição de menorização do mal Em busca de resposta à nossa questão, a reflexão ganha profundidade em recuar à antiga filosofia grega, que configura toda a tradição filosófica ocidental, e que pode ser abordada do ponto de vista da filosofia dos contrários. Com efeito, qualquer filosofia grega da antiguidade comporta uma filosofia dos contrários, que procura apreender e esquematizar racionalmente a realidade, na sua multiplicidade, através da distinção e oposição de contrários. Mesmo com o risco de perda de informação sobre a diversidade porventura inesgotável do real, as antigas filosofias dos contrários constituem um empreendimento especulativo de largo alcance, do qual continuamos hoje a poder extrair lições. Uma das lições mais relevantes, que podemos aprender com aquelas filosofias,

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não obstante as finas variações entre elas, é nelas uma constante: a ordenação dos contrários numa relação de maior e menor. Se os contrários exprimem algo de incontornável e imprescindível na compreensão do real, a anulação de um contrário pelo outro não daria senão uma perspectiva unilateral da realidade. A ordenação dos contrários provê a uma visão racional integradora. Ordenar os contrários significa dar prioridade a um e tornar o outro secundário, maiorizar um e menorizar o outro, subordinando o segundo ao primeiro. Entre os contrários maiores, que a antiga filosofia grega elegeu como tais, encontram-se a razão e o ser. A aliança entre estes dois termos maiores é, como sabemos, uma aquisição inequívoca da filosofia de Parménides. Do lado contrário à razão e ao ser, está o mal, nas suas várias formas. A oposição do mal ao ser e à razão torna-se muito clara em Plotino, ao conotar o mal com o não ser da matéria24. Entretanto, a filosofia grega clássica distingue entre o mal que se comete e o mal que se padece: segundo o Sócrates de Platão, é preferível padecer uma injustiça a cometê-la25. Donde provém, então, o mal que se comete? Da ignorância, contrário da sabedoria, que é a perfeição da razão (Platão); ou do excesso do vício, contrário do equilíbrio racional da virtude (Aristóteles); ou do domínio da paixão sobre a razão (estoicismo). Mas seja como erro de ignorância, seja como vício, seja como predomínio da paixão, o mal que se comete, isto é, o mal moral, é falta ou carência do seu contrário, e, por isso, é forçosamente menor do que o seu contrário. Em qualquer caso, o mal é o contrário menor da razão, que esta tem capacidade de dominar. Quanto ao mal que se padece, ou decorre do mal que se comete ou procede de princípios pouco amigáveis para a razão, como a fortuna ou o acaso. Consequentemente, o mal que se 24 25

Cf. Plotino, Enéada I, 8, 4-5. Cf., Platão, Górgias 469 b-c.

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padece poderá resistir mais ao domínio da compreensão racional. De qualquer modo, a tradição de menorização do mal vem já da antiga filosofia grega, antes de ser re-incentivada pelo combate do maniqueísmo. No entanto, para além da herança da filosofia grega, um outro legado vem a ter decisiva influência no pensamento ocidental sobre o mal: o judeo-cristianismo. Na mundividência judaico-cristã, as vontades de Deus e do homem ganham claro protagonismo: o mundo procede da vontade de Deus e o mal começa na vontade do homem por um acto de desobediência. Do acto de desobediência da vontade humana à vontade divina resulta, como punição, a experiência do mal que se padece, como o sentimento de vergonha ou de culpa, bem como o esforço e a dor, que caracterizam a existência humana, segundo a narrativa bíblica do pecado original. Com tais ingredientes se tece também a antiga reflexão sobre o tema do mal, que se encontra no livro de Job: homem correcto no passado, Job é acometido pelos maiores e mais temíveis padecimentos. Como entender a desgraça de Job? Não pode ser punição pelos seus próprios pecados, porque não há proporção entre o mal que cometeu e mal que padece, de modo que este não tem naquele causa suficiente. Os padecimentos de Job explicam-se, em última análise, como tudo o que escapa ao domínio humano mas não escapa ao poder divino, seja a disposição dos elementos no mundo sensível ou a insubmissão dos animais selvagens, pela omnipotência criadora e providente de Deus. Nada acontece, portanto, sem o consentimento da vontade divina. Daí a grande questão da responsabilidade de Deus nos males do mundo, que atravessa toda a história do pensamento ocidental. Santo Agostinho, referência paradigmática da teologia cristã nesta questão, nega a autoria divina do mal que se comete no mundo, mas admite que Deus não só o consente como intervém 154

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na ordenação das suas repercussões, e é este compromisso de Deus com o mundo, que se diz pelo atributo divino da providência. O mal é uma ocorrência no mundo, que Deus permite mas submete ao seu domínio. Agostinho dá-nos uma imagem do mal no mundo: é como um mosaico danificado num pavimento bem ordenado de mosaicos; se focarmos a nossa atenção, sobretudo, naquele mosaico, perdemos a visão da bondade do todo26. Esta imagem comporta a ideia filosófica de uma ordem inteligível do todo, concordante com a vontade de Deus, uma vez que é segundo a ordem que Deus ame o bem e deteste o mal27. O mal que acontece no mundo é, assim, contido pela ordem do todo e pela vontade divina, de modo que nunca excede nem uma nem outra. Unindo o conceito de ordem do todo com o de vontade divina, obtémse o conceito de providência divina, segundo a qual se crê Deus provê à conservação do mundo criado e à contenção dos males no mundo. Esta concepção da providência divina tornou-se a perspectiva tradicional da teologia do cristianismo, que reforça, de facto, a tradição de menorização do mal. Importa, no entanto, tomar consciência de uma mudança decisiva na nossa civilização contemporânea (sécs. XX e XXI), que não pôde deixar de afectar a nossa percepção da realidade: referimo-nos ao desenvolvimento de uma tecnologia avançada da informação, a qual, procedendo do progresso do conhecimento científico, amplia o nosso conhecimento da realidade à escala planetária, e também o prolonga retrospectiva e prospectivamente. Hoje em dia, a nossa percepção do real é global, e a globalização da informação não pode deixar de ter consequências na nossa apreensão de e perante os males do mundo. No séc. XX, a humanidade conheceu dois conflitos mundiais, que alimentaram 26 27

Cf. Agostinho, De Ordine I, 1, 2. Cf. Agostinho, De Ordine I, 7, 18.

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e se alimentaram de progressos científicos e técnicos, pois a ciência é um saber instrumentalizável por interesses opostos, seja o bemestar humano seja a guerra. A II grande guerra é porventura a mais documentada guerra da história, dado que um abundante registo de horrores permitiu que a sua memória perdurasse nas gerações sequentes. O programa nazi de extermínio do povo judeu, e de outros grupos sociais, gizado e executado com grande eficácia e sofisticação técnica, a que nos referimos habitualmente como o Holocausto, é por vezes julgado como o crime mais grave da história. Depois dele, já não é porventura possível manter o atributo divino da omnipotência, como, entre os filósofos judeus do pós-guerra, veio a reconhecer Hans Jonas28. Se Deus é providente, então, a impotência divina é um atributo mais consentâneo com a realidade do que a omnipotência. O mal que hoje conhecemos no mundo já não cabe nos limites em que fora tradicionalmente contido pelo pensamento, uma vez que se tornou obsceno submetê-lo ao domínio seja da vontade de Deus seja de uma ordem inteligível do todo29. Já não é possível adoptar a imagem augustiniana da nossa percepção do mal como um mosaico danificado num pavimento bem ordenado. O mal sai fora dos limites em que havia sido contido, seja o limite divino seja o limite humano. A própria responsabilidade humana pelo mal fica debelada, quando a ciência investiga causas genéticas para os assassinos em série, ou quando se concede, do ponto de vista sociológico, que o homem é o produto da sua circunstância, e que, Para quem a própria criação divina, em vez de exprimir omnipotência, significa uma contracção de Deus, e um dom de poder e responsabilidade ao homem: cf. Filipa Afonso, “Deus depois de Auschwitz. Uma reflexão a partir de Hans Jonas”, in Maria Leonor Xavier (coord.), A Questão de Deus na História da Filosofia, Vol.II, Sintra, FCT/ CFUL/ Zéfiro, 2008, pp.933-942. 29 Especialmente o sofrimento das crianças, como sublinhava já, com veemência, Basílio Teles: cf. “O Livro de Job (Estudo)”, in O Livro de Job. Tradução em verso por Basílio Teles, Porto, Livraria Chardron, de Lello & Irmão, 1912, p.181-182. 28

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portanto, todos os seus actos, criminosos inclusive, são derivados de condicionalismos externos, económicos e sociais. Parece, então, que o mal anda por aí à solta, espalhado pelo mundo, sem causa imputável nem posto de controlo. Temos hoje esta percepção de que o mal realmente se evade de todas as tutelas de compreensão e contenção. A tradição de menorização do mal já não consegue dar resposta apaziguadora. Não haverá, por isso, hoje, na nossa abrangente percepção do mal no mundo, mesmo cingindo-nos ao mal que se comete e às suas repercussões, um terreno propício para o ressurgimento do maniqueísmo? Não será o mal tão omnipresente quanto o bem, podendo aquele atingir picos de extrema gravidade tal com este pode alcançar picos de excelsitude? Esta hipótese já não parece tão absurda, tendo em conta o actual conhecimento acessível do mundo humanamente habitado. Utilizando uma terminologia clássica da filosofia, podemos entender esse conhecimento tecnologicamente mediado e ampliado do nosso mundo, como uma razão material para o retorno do dualismo antigo. E haverá alguma razão formal para tal retorno? É o que procuramos indagar a seguir. 3.2 A aliança do ser com o bem Uma razão formal para o retorno do dualismo maniqueu pode ter sido alguma quebra ou ruptura da relação entre o ser e o bem na história do pensamento ocidental. Com efeito, no argumento anselmiano, como em todos os argumentos congéneres, o ser que se afirma de Deus é uma perfeição e, portanto, um bem. No entanto, um dos lugares comuns da crítica do argumento anselmiano, e, em geral, do argumento ontológico, no séc. XX, é a questão de saber se a existência é uma perfeição.

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Com esta questão, é explícita a dúvida sobre a bondade do ser de existência. Mas com o argumento simétrico do argumento anselmiano, é explícita, não já a dúvida, mas a ruptura entre o bem e a existência, uma vez que a existência também se afirma do mal, e também o aperfeiçoa no sentido em que o agrava. A existência real agrava um mal apenas pensado, assim como a existência necessária agrava um mal real, pois um mal real mas contingente é sempre um mal menor relativamente àquele que for real e necessário. A dedução do argumento simétrico, a favor de um mal tão insuperavelmente grave que não pode existir senão necessariamente, supõe, de facto, uma separação entre o bem e a existência, que a ontologia do argumento anselmiano estava longe de vislumbrar. Considere-se o conceito de verdade, que Anselmo define como rectitude inteligível: esta, pode dizer-se que é uma adequação, não cognitiva, mas das coisas com elas próprias, isto é, com a respectiva finalidade, tal como a verdade ou rectitude da vontade é a adequação com a sua finalidade, que é a justiça. Toda a verdade, de que a justiça é uma acepção especial, é, portanto, a conformidade das coisas com a finalidade para a qual foram feitas. Não será isto uma maneira de afirmar a bondade com que as coisas são concebidas? Ou poder-se-á dizer que uma maldade é verdadeira, isto é, um verdadeiro mal, quando se adequa à sua finalidade maléfica? Anselmo pode ter feito esta pergunta, subjacentemente, à sua abordagem do tema da Paixão de Cristo. Que os pregos rasguem a carne de Cristo na sua crucifixão é um facto passível de rectitude ou verdade física, tendo em conta a natureza das matérias envolvidas, a vulnerabilidade da carne e a dureza dos pregos30. Mas tal verdade física da crucifixão não 30

Cf. Anselmo, De Veritate 8 (Schmitt: I, p.186-188).

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é a verdade moral, que coincide com a justiça. Haverá alguma rectitude que justifique a Paixão de Cristo? Tal é o que Anselmo veio a indagar numa obra nem sempre benquista na tradição teológica, como Cur Deus Homo: aí o autor considera uma ordem de razões para a necessidade da vinda de Cristo, entre as quais a impotência do homem para a sua redenção e salvação, mas a razão maior e decisiva é a vontade de Deus não deixar por concluir a sua obra da criação31. A rectitude da Paixão de Cristo é, em última instância, a bondade da obra da criação. Assim, um mal que se padece, como a Paixão de Cristo, é reconduzido à vontade de Deus, como no Livro de Job, mas não tanto a uma vontade omnipotente quanto à vontade inconformada de um Deus-artista com o inacabamento da sua obra. Não há, pois, mal que não se conforme com a bondade do todo, segundo Anselmo, ainda de acordo com a tradição dominante de menorização do mal. Nada pode ser, ou acontecer, sem alguma rectitude inteligível, ou verdade, mesmo que seja, ou aconteça, sem a rectitude moral, que é a justiça, por esta ser uma rectitude separável daquilo que é por ela determinável, a vontade. O conceito anselmiano de verdade é, portanto, um conceito tão universal quanto uma propriedade comum do ser. Com o seu conceito de verdade, Anselmo antecipa a filosofia das noções comuns convertíveis com o ente, que viria a constituir a filosofia dos transcendentais, ou a ontologia própria dos escolásticos medievais, formalmente inaugurada com a Summa de Bono, de Filipe o Chanceler. Essa ontologia tematizava o ente, o conceito mais primitivo do intelecto, que enquadrava o conhecimento de todas as coisas, e as suas propriedades mais universais, entre as quais figuravam, 31

Conforme defendemos no nosso estudo: “Necessidade e Historicidade: razões de conveniência na teologia de Santo Anselmo”, Itinerarium, 38 (Braga, 1991), nº141, pp.353-367.

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consensualmente, a verdade, a bondade e a unidade. A bondade era, assim, uma propriedade universalíssima do ente, que afectava a sua essência e existência. A ontologia medieval selava, no seu fulcro, a aliança do ser com o bem. Deste modo, a ontologia medieval dos transcendentais constituiu, a nosso ver, o esforço especulativo mais eficaz contra o dualismo maniqueu. O próprio Filipe o Chanceler manifesta a motivação anti-maniqueísta da sua ontologia do bem32. Embora os estudos de história da filosofia medieval tenham vindo a realçar progressivamente o valor filosófico da ontologia dos transcendentais33, a filosofia nossa contemporânea parece continuar a não querer reconhecer o seu alcance, porventura, devido às suas implicações ontoteológicas34. A filosofia dos nossos tempos continua sob o paradigma dominante do sujeito centralizador, que caracteriza o pensamento moderno, não obstante o debate recente em torno do pósmoderno. Ora as filosofias do sujeito, nas suas múltiplas figuras, tendem a tudo relativizar a alguma forma de sujeito. Ser, bem e verdade não se articulam entre si senão mediante a relação a um sujeito, ao qual se tornam relativos, tão relativos como os seus contrários. Na sua relatividade, o bem passa a rivalizar com o mal em pé de igualdade, tal como o verdadeiro com o falso. Também os conceitos tradicionais, que analisavam o ser, se desagregaram Cf. Filipe o Chanceler, Summa de bono, prol. (ed. Nikilaus Wicki, Berna, Francke, 1985, p. 4). 33 Destaque-se, a propósito, a obra magna de Jan A. Aertsen, Medieval Philosophy as Transcendental Thought. From Philip the Chancellor (ca.1225) to Francisco Suárez (Brill, 2012), e o interesse suscitado pelo Unum-Verum-Bonum. International Colloquium on Medieval Philosophy for MA, PhD and Post-doctoral students (ULisboa, 4-6 Abril, 2013), que contou com a participação de mais de 40 jovens investigadores. 34 Malquistas para filósofos tão relevantes, como: Kant, na sua crítica a toda a teologia transcendental; Heidegger, na sua crítica à metafísica tradicional do ente; e Lévinas, na sua crítica a toda a ontologia. 32

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e foram abandonados a sortes distintas: o ente tornou-se uma figura redutora e pouco respeitável do ser; a essência cedeu o passo à ideia, à representação e à perspectiva, relegando-se a uma inacessibilidade numenal ou até dissolvendo-se por completo; a existência, por sua vez, ou é a do sujeito ou é exterior ao sujeito, caso em que, mesmo que seja acessível aos sentidos, torna-se resistente à inteligibilidade. Por isso se tornou anómalo o argumento dito “ontológico”, que deduz a existência de algo a partir da ideia da sua perfeição. O lugar comum da crítica do argumento ontológico, como constituindo um salto ilegítimo da ideia num sujeito para a existência de um objecto, contrasta veementemente com a consideração da existência como um derivado da perfeição. Esta acepção da existência terá sido outrora a de Plotino, para quem as coisas mais perfeitas são aquelas que têm em si mesmas a sua razão de ser35. A veia neoplatónica do pensamento ocidental terá sido a matriz filosófica da tradição do argumento ontológico36, mas não é hoje uma herança cobiçada. Também a aliança do ser com o bem se inscreve na linhagem da filosofia neoplatónica. Com efeito, o bem, tal como o uno, coincide com o primeiro princípio, segundo Plotino. O bem é o primeiro princípio, do qual emana o intelecto, ou o pensamento, e, com ele, o ser. O bem é o princípio donde emana o ser e não há ser fora do âmbito de expansão do bem e de compreensão do intelecto. O ser é bom e inteligível, desde a origem e em todas as formas que assume, sem excluir aquilo que é para nós o ser de existência. Aquilo que, no entanto, é próprio da aliança do ser com 35 36

Cf. Plotino, Enéada VI, 7, 2. Como salienta um estudo clássico sobre Santo Anselmo: «Le fondement de la démonstration est le principe de perfection que nous avons déjà analysé plus haut. Nous avons dit que ce principe permet de poser, a priori, une existence réelle, et de passer de la perfection à l’être.» Alexandre Koyré, L’idée de Dieu dans la Philosophie de St. Anselme, Paris, Éditions Ernest Leroux, 1923. Reprise: Paris, Vrin, 1984 p.196.

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o bem, em Plotino, é a afirmação do primado do bem sobre o ser. Nisto, Plotino continua Platão, especialmente a teoria das formas na República, segundo a qual, o bem é o princípio unificador de todo o ser, enquanto forma das formas, ou forma da qual todas as outras participam. Portanto, a filosofia platónica e neoplatónica estabelece a aliança do ser com o bem sob o primado do bem. Ora a tradição da filosofia platónica e neoplatónica constitui a família de pensamento que mais fielmente se acolhe na paternidade intelectual de Parménides, não obstante o famoso parricídio cometido por Platão. Será, então, que Parménides já estabelece a aliança do ser com o bem? O que significa que o caminho do ser seja o da justiça37? E o que significa a própria autoridade da deusa ao indicar o caminho do ser? Tudo isso significa, a nosso ver, que o caminho do ser é o bom caminho. É como se o ser, que é e não pode não ser, isto é, que é necessário, se justificasse fundamentalmente pela bondade da justiça e da deusa tutelar. Julgamos, assim, que, além de postular a necessidade do ser, Parménides funda duas alianças de longa duração na história da filosofia: a aliança do ser com o uno38 e a aliança do ser com o bem. A primeira elege o monismo contra todo o dualismo: na dualidade dos contrários, não há paridade entre eles, mas um sobreleva sempre o outro. A segunda aliança previne especialmente contra o dualismo do bem e do mal. Deste modo, a fonte parmenidiana do pensamento ocidental legava recursos de prevenção contra o dualismo maniqueu. Por conseguinte, se a história da filosofia até aos nossos dias conduziu ao esgotamento desses recursos, à quebra de antigas alianças e à desarticulação de conceitos, em prol de novos centros de interesse, então não é de estranhar que tenhamos de recuar 37 38

Cf. Parménides, B 1, 28. Cf. Parménides B 8, 6.

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à estaca zero da paridade dos contrários, que provê a todos os dualismos. Aí encontramos uma razão formal, ou de pensamento, para o retorno do dualismo maniqueu, em formulações tão sofisticadas como a construção do argumento simétrico do argumento anselmiano. A conjunção dos dois argumentos dá cabal caução racional ao dualismo maniqueu. Por isso, a admissão dos dois argumentos comete novo parricídio contra Parménides, um dos mais antigos inimigos de todos os dualismos na história do pensamento ocidental. Tal é o alcance do argumento anselmiano, ao tornar possível o seu simétrico. Mas talvez não seja ainda o último alcance de tal argumento. Sempre que temos escrito sobre o argumento anselmiano, temos dito interiormente: este é o último desenvolvimento sobre o assunto, que já nada mais nos fará pensar. Todavia, atendendo à resiliência do assunto e à nossa reincidência, isto mesmo é aquilo que não nos atrevemos a voltar a dizer.

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