Antão de Carvalho e os motins do Douro de 1914-1915

June 13, 2017 | Autor: Carla Sequeira | Categoria: Movimentos sociais, Região Demarcada do Douro, Motins
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Atas das 3 CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM 2015 20 de julho as

MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO

ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA

FOTO: Arquivo da Imagem/Lamego

(nos 100 anos do Motim de Lamego)

Geraldo Coelho Dias

ATAS das 3as

CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM - 2015 MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO, ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA (NOS 100 ANOS DO MOTIM DE LAMEGO)

Disponível online em www.museudelamego.pt

ABREVIATURAS CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória DL – Diocese de Lamego DRCN – Direção Regional de Cultura do Norte EMT – Espaço Miguel Torga FLUP – Faculdade de Letras da Universidade do Porto FLUP/GI – Grupo de Investigação: Memória, Património e Construção de Identidades da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

IHC/FCSH/UNL – Instituto História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa ML – Museu de Lamego RAD – Rádio Alto Douro RDP – Rádio Difusão Portuguesa UM – Universidade do Minho ULP/CEAUP – Universidade Lusófona do Porto/Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto

ORGANIZAÇÃO ML-DRCN / CITCEM-FLUP

IMAGEM DE CAPA © Arquivo de Imagem/Lamego

COMISSÃO ORGANIZADORA Alexandra Isabel Falcão (ML-DRCN) Gaspar Martins Pereira (FLUP-CITCEM) Luís Sebastian (ML-DRCN) Paula Montes Leal (FLUP-CITCEM)

EDIÇÃO © Museu de Lamego – Direção Regional de Cultura do Norte

COORDENAÇÃO EDITORIAL Alexandra Isabel Falcão (ML-DRCN) Luís Sebastian (ML-DRCN)

DATA DE EDIÇÃO Dezembro 2015 e-ISBN 978-989-99516-0-0 O conteúdo dos textos, direitos de imagem e opção ortográfica

CONFERENCISTAS António Monteiro Cardoso (IHC/FCSH/UNL) Augusto Macedo (RDP e RAD) Carla Sequeira (CITCEM-FLUP) Célia Taborda da Silva (ULP/CEAUP) Gaspar Martins Pereira (CITCEM) João Luís Sequeira (EMT) José Viriato Capela (UM) Otília Lage (CITCEM-FLUP/GI)

são da responsabilidade dos autores.

REVISÃO Alexandra Isabel Falcão (ML-DRCN) DESIGN E COMUNICAÇÃO Luís Sebastian (ML-DRCN) Patrícia Brás (ML-DRCN) COMUNICAÇÃO Patrícia Brás (ML-DRCN) GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS E FINANCEIROS Paula Duarte (ML-DRCN) SECRETARIADO Patrícia Brás (ML-DRCN) Teresa Sequeira (ML-DRCN) LOGÍSTICA Paula Pinto (ML-DRCN) CONCEÇÃO E COMPOSIÇÃO GRÁFICA Pe. Hermínio Lopes (DL)

APOIOS: Casa de Santo António de Britiande Diocese de Lamego Escola de Hotelaria e Turismo do Douro – Lamego ESTGL - Escola Superior de Tecnologia e Gestão, Lamego Hotel Lamego Liga dos Amigos do Museu de Lamego Município de Lamego Quinta de Mosteirô SoltaGiga

Índice Mesa-redonda MOVIMENTOS POLÍTICOS E SOCIAIS NO DOURO, ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA Otília Lage (CITCEM - FLUP/GI: Memória, Património e Construção de identidades) Gigantes do Douro, memória e património histórico: lutas em defesa da Região Vinhateira (séculos XIX-XX).. ............................................................. 09 Augusto Macedo (jornalista aposentado; ex-Director da Rádio Alto Douro e da RDP-Norte) Douro Vinhateiro - Fragmentos de Abril ................................................................................ 21

Painel 1 REVOLTAS E REVOLUÇÕES NO DOURO OITOCENTISTA José Viriato Capela (Univ. Minho) As Invasões Francesas e a Restauração Nacional de 1808 - o Juiz do Povo e Junta dos Prudentes de Viseu..... 31 António Monteiro Cardoso (IHC/FCSH/UNL) A Revolução Liberal no Douro............................................................................................. 39 Célia Taborda da Silva (Universidade Lusófona do Porto/CEAUP) Ação coletiva no Douro: a propósito das movimentações da “Maria da Fonte”..................................... 47 Painel 2 O MOTIM DE LAMEGO DE 1915 Carla Sequeira (CITCEM/FLUP; Bolseira Pós-Doc. da FCT) Antão de Carvalho e os motins do Douro de 1914-1915............................................................... 59 João Luís Sequeira (DRCN; Espaço Miguel Torga) O motim de Lamego e a causa do Douro na vida e obra de Pina de Morais........................................... 67 Gaspar Martins Pereira (CITCEM/FLUP) O motim de Lamego, um momento histórico de consagração da denominação de origem «Porto» para os vinhos generosos da Região Demarcada do Douro.............................................................................. 75

6

59

Antão de Carvalho e os motins do Douro de 1914-1915 texto: Carla Sequeira Investigadora do CITCEM. Bolseira de Pós-Doutoramento da FCT [email protected]

Investigação desenvolvida no âmbito do projecto de pós-doutoramento «Antão Fernandes de Carvalho e a República no Douro», inserido no projecto do CITCEM «O Douro Vinhateiro na Primeira República: Defesa da Denominação de Origem e Construção de uma Identidade Regional». Trabalho financiado por Fundos Nacionais através da FCT (Bolsa de Pós-Doutoramento, co-financiada pelo Fundo Social Europeu através do Programa Operacional Potencial Humano – POPH/ QREN). Texto escrito segundo a ortografia anterior ao AO90.

Resumo: Em 1914-1915, a Região Demarcada do Douro confrontou-se com um clima de forte efervescência social em consequência da crise comercial e de super-produção então vivida. A par das iniciativas institucionais, empreendidas pelas municipalidades, pela Comissão de Viticultura Duriense e pelo representante do poder central, suceder-se-iam movimentações populares em diversos concelhos, atingindo, por vezes, características de verdadeiros motins. No presente trabalho, deter-nos-emos na acção de Antão de Carvalho enquanto líder do movimento regional, caracterizado pela convergência entre acções populares e das elites locais, em defesa da denominação de origem «Porto».

Abastract: In 1914-1915, the Douro Demarcated Region was confronted with strong social unrest as a result of the commercial crisis. Abreast of the institutional initiatives undertaken by municipalities, the Douro Viticulture Commission and the representative of the central government, popular movements occurred in several localities, forming sometimes true riots. In this paper, we analyze the action of Antão de Carvalho as leader of the regional movement, characterized by the convergence of popular actions and local elites, in defense of «Porto» appellation of origin.

Palavras-chave: Alto Douro; Denominação de origem; Movimentações sociais; Elites

Keywords: Alto Douro; «Porto» appellation of origin; social movements; Elites

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Nota biográfica: Carla Sequeira é doutorada em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (2010). É investigadora do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória»), onde desenvolve a sua actividade no grupo «Memória, Património e Construção de Identidades». É Bolseira de Pós-Doutoramento da FCT, com o projecto «Antão Fernandes de Carvalho e a República no Douro», integrado no projecto do CITCEM «O Douro Vinhateiro e a Primeira República». A sua área de especialização situa-se no âmbito da história social, institucional e política do Alto Douro.

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OS MOTINS DO DOURO EM 1914-1915

CRISE VITÍCOLA E SOCIAL NA REGIÃO DURIENSE

N

o início do século XX, a maior parte das regiões vitícolas europeias atravessou uma fase de crise comercial e vitícola, propícia ao agravamento da conflitualidade social e à eclosão de movimentos de revolta. Neste contexto, as movimentações dos viticultores assumiram um carácter marcadamente sectorial, corporativo e regionalista, apesar de nelas convergirem, quase sempre, vários movimentos sociais com diferentes interesses, motivações e formas de intervenção. A liderança destas movimentações sociais foi assumida pelas elites locais, canalizando os descontentamentos populares para a reivindicação política da intervenção do Estado, através de medidas de repressão às fraudes e de regulação da produção e do comércio de vinhos. Na região do Alto Douro, em crise desde o último terço do século XIX, assistiu-se igualmente a um agravamento da conflitualidade social, manifestada, em particular, contra os «inimigos externos» (exportadores de Gaia menos escrupulosos, acusados de praticarem fraudes e falsificações através da utilização de vinhos do Centro e do Sul do país nas lotações de vinhos do Porto). Em consequência, multiplicaram-se os movimentos de influências e as reivindicações de medidas protectoras da viticultura regional, defendendo-se o regresso aos princípios da política pombalina. Exacerbou-se um forte espírito regionalista, formaram-se Comissões de Defesa do Douro e prenunciava-se um ambiente de «revolta latente».

A

agitada conjuntura social que se vivia no Douro desde finais do século XIX agravou-se particularmente em 1914. A legislação reguladora não era cumprida com rigor e os vinhos do Porto e de mesa «Douro» continuavam a sofrer a concorrência desleal dos vinhos do Sul, com a consequente dificuldade de escoamento dos vinhos durienses e abaixamento dos preços. Gerar-se-ia, então, um clima de forte efervescência social, exigindo-se, do Governo, o cumprimento rigoroso da legislação vinícola, maior fiscalização sobre a entrada de vinho do Sul no Douro e em Gaia, a par da garantia das marcas «vinho do Porto» e «virgens do Douro», quer em Portugal quer no estrangeiro. O movimento regional em defesa da denominação de origem «Porto» ficaria caracterizado por dois tipos de actuação. A par das iniciativas institucionais, empreendidas pelos notáveis e organismos regionais, suceder-se-iam acções populares, atingindo, por vezes, características de verdadeiros motins. Perante a conjuntura de crise vivida e a demora do Governo na tomada de medidas, a agitação popular ia crescendo, assim como o receio de graves desordens. Em vários concelhos do Alto Douro os sinos tocavam a rebate e a população dirigia-se em massa à Câmara Municipal a solicitar auxílio. Foi o que aconteceu na Régua, em Junho de 1914. Inúmeros lavradores do concelho dirigiram-se à Câmara, pedindo a sua intervenção junto do Governo no sentido de serem decretadas providências que minorassem os efeitos destruidores decorrentes das intempéries que se haviam registado. Dias mais tarde, em resposta ao repto lançado por Bernardino Zagalo durante um comício de lavradores, a população do concelho voltaria a manifestar-se junto à Câmara, que se encontrava reunida, empunhando bandeiras negras e exigindo medidas por parte do poder central. Acontecimentos idênticos ocorreram no concelho de Alijó. Em várias freguesias, os sinos das igrejas tocaram a rebate e a população reuniu-se junto à Câmara, no momento em que esta se encontrava reunida, mostrando-se disposta a não pagar contribuições ao Estado até que o Governo atendesse as reclamações regionais; ao mesmo tempo, exigia-se que a Câmara encerrasse em sinal de protesto, atitude que deveria ser imitada pelos restantes municípios do Douro. No mês seguinte, movimentações

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populares ocorridas no Pinhão assumiriam características de maior violência quando o povo, amotinado, invadiu a quinta da Barca, arrombando tonéis e lançando fogo a um armazém de vinhos1. Era o prenúncio das movimentações populares a que se assistiria, motivadas pelo tratado de comércio entre Portugal e a Grã-Bretanha. O tratado entre Portugal e a Inglaterra, celebrado a 12 de Agosto de 1914, propunha-se acabar com a enorme concorrência que o vinho do Porto enfrentava no mercado britânico, face a falsificações e imitações estrangeiras, mas, o seu artigo 6º estabelecia como vinho do Porto qualquer vinho produzido em Portugal e não na sua legítima região de origem, abrindo caminho às falsificações nacionais. De imediato se desencadeou um forte movimento de contestação junto do Governo. Na Região Duriense as acções institucionais empreendidas acabariam por denunciar, numa primeira fase, a confrontação entre o Baixo Corgo e o Cima Corgo quando, ao pedido de reunião apresentado pela Câmara de Alijó no sentido de se preparar um forte movimento de contestação regional, Antão de Carvalho (presidente da Câmara da Régua e da Comissão de Viticultura da Região Duriense) respondeu com o silêncio2. Não se tratava, contudo, de um silêncio inoperante. Antão de Carvalho tinha uma estratégia política. Acabaria, assim, por se assistir a várias frentes de acção institucional, que se complementariam: às acções iniciadas pela Câmara de Alijó na Região Demarcada do Douro3, Antão de Carvalho contraporia iniciativas junto do poder central. A estratégia posta em prática na Região, com o envio de telegramas e representações, era apoiada na participação parlamentar, com destaque para Antão de Carvalho, que procurava usar o seu cargo de Senador no sentido de estabelecer uma forte rede de influências parlamentar sobre o poder instituído, de modo a possibilitar a concretização da defesa da marca regional «Porto». Os primeiros sinais de cedência ao movimento duriense por parte do Governo surgiram em inícios de Janeiro de 1915. Nessa data, Antão de Carvalho foi convocado, juntamente com outros parlamentares afectos à causa do Douro, para uma reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros, que se mostrava disposto a elaborar a aclaração reivindicada, definin1  Segundo a imprensa da época, a população tencionava repetir tais actos em outras quintas, tendo sido travada pelas forças policiais. 2 

Cf. A missão de Alijó. «Cinco de Outubro», 16 Dezembro 1914, p. 1.

3 

Cf. SEQUEIRA, 2011: 291-293.

do como «vinho do Porto» o vinho produzido na Região Duriense. Em poucos dias, o referido aditamento (conseguido por acordo entre Antão de Carvalho, Carlos Richter, os exportadores ingleses, a Associação Comercial do Porto, Sousa Júnior, Bernardo Lucas, Serafim de Barros, Torcato de Magalhães e Afonso Costa) seria elaborado e aprovado pela Câmara dos Deputados, conjuntamente com a aprovação da ratificação do Tratado. Apesar destes desenvolvimentos, os ânimos não acalmaram. Como noticiava a imprensa da época, anunciavam-se graves perturbações, fruto da ansiedade gerada pela demora em serem atendidas as reclamações regionais. Desde Março de 1915, sucediam-se, no Alto Douro, manifestações, comícios e tumultos, por vezes com acções violentas, de contornos semelhantes às que haviam ocorrido, com as mesmas motivações de defesa da denominação de origem, em 1911, na região de Champagne, e que eram conhecidas no Alto Douro, através da imprensa. Por exemplo, em Peso da Régua propagou-se o rumor de que algumas pipas de vinho do Bombarral, depositadas na estação de caminho-de-ferro com destino a Tarouca, seriam depois reintroduzidas na Região Duriense para serem exportadas como vinho do Porto. Tal bastou para que os sinos tocassem a rebate em diversas freguesias e centenas de populares, invadindo a estação de caminho-de-ferro, destruíssem as referidas pipas. Em reunião extraordinária da Comissão de Viticultura da Região Duriense, em Abril, considerou-se que os factos ocorridos eram altamente prejudiciais à causa regional e, após inquirição aos vogais concelhios, decidiu-se publicar uma moção em que se declarava não existir na região vinho estranho a ela, de modo a acalmar os ânimos. Tratava-se de uma posição institucional da qual partilhava Antão de Carvalho, tal como demonstrara em situação análoga, em 19064. Antão privilegiava a acção institucional, pondo ao serviço do Douro e da questão duriense a sua rede de sociabilidades políticas. Nesse âmbito se insere a recepção ao seu amigo pessoal e correligionário político, Afonso Costa, na Régua, em Maio de 1915. Em campanha eleitoral para as eleições legislativas de Junho de 1915, Afonso Costa proferiu um discurso com diversas referências à situação do Douro e à incapacidade do Governo em salvaguardar os interesses do sector vitícola junto da diplomacia britânica. Desta forma, parecia colocar-se ao lado das 4 

Cf. SEQUEIRA, 2011: 233.

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reivindicações durienses na questão do tratado mas, na verdade, não passava de uma estratégia com vista às eleições legislativas agendadas para Junho, como demonstrariam os acontecimentos posteriores. Os protestos em torno do tratado ganhariam novo fôlego a partir de inícios de Junho. O boato de que o tratado ia ser ratificado sem a aclaração aprovada no Parlamento conduziu a uma nova vaga de agitação popular. Sucediam-se manifestações em várias localidades. No concelho de Alijó, o povo organizou uma manifestação de protesto. Em Sabrosa, os sinos tocaram a rebate; uma grande multidão reuniu-se junto à Câmara, onde foi hasteada uma bandeira negra, para ouvir António Augusto Regueiro afirmar que era preciso que o Douro acordasse da sua inércia e reagisse até onde «as circunstâncias o exigissem»5; receava-se, por isso, que a ordem viesse a ser alterada. Em Mesão Frio, havia também grande alvoroço e descontentamento mas a Comissão de Defesa do Douro conseguiu orientar os acontecimentos no sentido de um protesto ordeiro Em simultâneo, os notáveis aproveitavam o período de campanha para as eleições legislativas de 13 desse mês, no sentido de comprometer as diversas forças partidárias. Ao mesmo tempo que a «missão de Alijó» percorria o Douro apelando ao boicote eleitoral, Antão de Carvalho, na qualidade de presidente da Câmara Municipal da Régua e da Comissão de Viticultura Duriense, procurava pressionar os poderes públicos. Em 8 e 9 de Junho teve lugar novo comício de viticultores. Assumindo-se como líder do movimento, Antão de Carvalho enviou um telegrama com as exigências regionais ao Governo. De seguida, fez distribuir uma circular por todas as câmaras, sindicatos e vogais da Comissão de Viticultura, estabelecendo um prazo para as reivindicações serem atendidas, findo o qual todas as autoridades administrativas, entretanto encerradas, se demitiriam. A força do movimento duriense e a ameaça de abstenção eleitoral, levariam Afonso Costa a prometer que patrocinaria a causa duriense no Parlamento desde que pudesse contar com o apoio ao Partido Democrático. Tratava-se, pois, de um jogo político ambivalente: influenciar os resultados eleitorais em função dos benefícios para a causa duriense. O protesto seria suspenso nas vésperas das eleições e o Partido Democrático obteria as maiorias em todos os círculos eleitorais do Douro, à excepção de Sabrosa e Tabuaço.

Pelo círculo de Vila Real foram eleitos Jerónimo Matos, como senador, e João Carlos de Melo Barreto, como deputado. Jerónimo de Matos pertencia à elite política próxima de Antão de Carvalho e representava a sua continuidade a nível parlamentar. A candidatura de João Carlos de Melo Barreto (antigo regenerador e próximo de Teixeira de Sousa) fora patrocinada pelo Directório do Partido Republicano Português e apoiada por Antão de Carvalho, como estratégia em benefício da causa regional. Melo Barreto propunha-se, de facto, pugnar «pela justíssima causa da infeliz região» duriense6. Antão de Carvalho pedia-lhe, expressamente, que estabelecesse, com os deputados eleitos pelos concelhos que formavam a Região, uma estratégia capaz de fazer vingar as reclamações regionais, prometendo apoio regional à acção parlamentar:

5  A questão do Douro. O tratado com a Inglaterra. «O Comércio do Porto», 8 Junho 1915, p. 2.

7  ACD – Fundo da Comissão de Viticultura Duriense, carta de Antão de Carvalho para João Carlos Melo Barreto, 20 de Junho de 1915.

ao primeiro rebate levantará um protesto que há-de ficar memorável na história das lutas económicas e políticas do país7. Esse protesto regional ocorreria em breves semanas, quando o compromisso assumido pelo Partido Democrático em período eleitoral não foi respeitado. Cedendo maioritariamente aos interesses da viticultura do Sul, o Parlamento acabaria por votar contra a aclaração ao artigo 6.º do tratado, contrariando a resolução parlamentar de Janeiro de 1915. O Alto Douro, através dos seus órgãos representativos, estava decidido a não aceitar aquela decisão. Multiplicaram-se, de novo, as acções de pressão e de protesto institucionais. Antão de Carvalho procurava alargar a base de apoio parlamentar, tendo conseguido que os deputados pelo Porto passassem a constituir uma frente comum na defesa dos interesses regionais. Ao mesmo tempo, acompanhado de Vítor Macedo Pinto e na qualidade de representantes da Comissão de Viticultura Duriense, promovia sucessivas reuniões com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, com o presidente da Associação Comercial do Porto e da Câmara Municipal do Porto. Todos reconheciam a necessidade de medidas que garantissem a genuinidade dos vinhos durienses e da respectiva marca. Nos inícios de Julho realizou-se, na Câmara Muni6  Melo Barreto viria a ter uma acção importante no debate sobre o Tratado, ocorrido entre 6 e 8 de Julho, na Câmara dos Deputados. Cf. SEQUEIRA, 2014: 142-143.

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cipal do Porto, uma reunião decisiva em que participaram várias câmaras do Douro, associações comerciais do Norte, vereadores da Câmara do Porto e lavradores durienses. Foi nomeada uma comissão, liderada por Antão de Carvalho, para se deslocar a Lisboa a fim de negociar com o Governo. À semelhança do movimento de Junho, os serviços administrativos, agrícolas e industriais seriam suspensos em diversos concelhos8 e tal situação comunicada por telegrama ao Governo, pressionando-o a atender as reclamações durienses. Estas acções institucionais foram acompanhadas por nova uma vaga de agitação popular. Em Santa Marta de Penaguião e Peso da Régua, os tumultos adquiriram características de autêntico motim, com o incendiar das Conservatórias e Repartições de Finanças. Em Carrazeda de Ansiães, a população de diversas aldeias invadiu a estação de caminho-de-ferro do Tua, destruindo, a golpes de machado, cascos com aguardente do Sul. Foi neste contexto de grande exaltação que se desencadeou o «motim de Lamego». A 20 de Julho de 1915, a população de várias aldeias e freguesias do concelho dirigiu-se à cidade de Lamego, manifestando-se em frente ao edifício da Câmara; no momento em que a comissão de representantes se encontrava reunida com a Comissão Executiva da Câmara, a multidão foi atacada, inesperadamente, pelas forças policiais, daí resultando doze mortos e vinte feridos9. No dia seguinte, registavam-se acções amotinadas em Armamar, onde uma multidão, reunida a toque de sinos, invadiu a repartição da Fazenda, atirando livros e papéis para a rua e incendiando-os de seguida. Confirmava-se, assim, a preocupação do correspondente da Régua junto do jornal O Comércio do Porto: «Se ao Douro não for feita justiça, não sei o que sucederá»10. Face aos acontecimentos, Antão de Carvalho, assumiu uma postura de comprometimento institucional. Em reunião da Câmara da Régua, afirmou ser necessário não deixar «no esquecimento os trágicos sucessos de Lamego, as suas vítimas e mártires gloriosos da nossa causa»11 e, por isso, propunha que fossem identifica8  Como veio a acontecer em Murça, Moncorvo, Pinhão, Freixo de Espada à Cinta, Mesão Frio, Alijó, S. João da Pesqueira; Meda, Régua e Sabrosa. 9 

Cf., a este respeito, PEREIRA & SEQUEIRA, 2004: 5977; SEQUEIRA, 2011: 290-300.

10  Interior. Régua, 21. «O Comércio do Porto», 25 Agosto 1915, p. 1-2. 11  AMPR – Livro de Actas das Sessões da Comissão Executiva da Câmara Municipal do concelho de Peso da Régua, 1914-1916, fl. 68v-69.

dos os órfãos e viúvas decorrentes dos acontecimentos, a quem deveria ser atribuído um subsídio mensal para o seu sustento, pago pelas câmaras municipais. Além disso, faria aprovar por aclamação, na reunião entre a Comissão de Viticultura e representantes de sindicatos agrícolas e câmaras municipais, ocorrida a 21 de Agosto de 1915, a moção apresentada por Torcato de Magalhães em que se considerava a brutalidade do ataque das forças policiais no «motim de Lamego» como um «atentado contra as legítimas reclamações que então e agora o Douro vem fazendo colectivamente»12. Esta atitude era consentânea com a posição assumida perante o chefe do Governo. Os tumultos da Régua e Santa Marta haviam ocorrido no momento em que a Comissão de delegados do Douro, nomeada na reunião ocorrida na Câmara Municipal do Porto, se encontrava reunida com os membros do Governo. Ao tomar conhecimento do que se passara, o Presidente do Ministério declarou que não podia conferenciar com os «representantes dos incendiários». Antão de Carvalho protestou, declarando-se solidário com todas as manifestações do Douro e afirmando que o Governo pode suspender a conferência, mas há-de ir concluí-la à Régua com ele e com os seus representados13. Tais declarações levaram a que o Governo desistisse da sua pretensão, assegurando mesmo a melhor vontade em atender as reclamações durienses. No final, a Comissão de representantes conseguiria a elaboração de uma proposta de lei em que ficaram garantidos os interesses da região do Douro. Continuaram, por isso, as iniciativas institucionais com vista à sua aprovação. No momento em que o Parlamento se preparava para votar o projecto apresentado pelo Governo14, Antão de Carvalho exortava as Câmaras Municipais, Juntas de Paróquia e demais organismos da Região a manterem-se «muito prevenidos e atentos, velando as armas dia

12  ACD – Fundo da Comissão de Viticultura Duriense, Livro de Actas da Comissão de Viticultura da Região Duriense, 1915-1917, fl. 73. 13 

Idem, fl. 78.

14  O projecto proibia a exportação para Inglaterra de todos os vinhos licorosos excepto os de Porto, Carcavelos, Moscatel e Setúbal; segundo a imprensa portuense, teria por base um esboço apresentado por Antão de Carvalho no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na sequência da reunião de organismos durienses, ocorrida em inícios de Julho, em que se decidira avançar com um projecto deste teor como forma de contornar a possibilidade da aclaração não vir a ser incluída no texto do Tratado.

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e noite»15, pressionando, por telegrama, a Câmara dos Deputados a aprovar o referido projecto. O apelo de Antão de Carvalho tinha fundamento. O ministro dos Negócios Estrangeiros apoiava a causa do Douro mas o Governo não dispunha de força suficiente para se impor. Em carta de 27 de Julho de 1915, Alfredo de Sousa informava que havia sido enviado para a Mesa da Câmara dos Deputados o projecto governamental, mas que tinha também sido apresentado um contra-projecto, elaborado por deputados do Sul, estabelecendo, entre outras coisas, a autorização de produção de vinhos licorosos no Centro e Sul de Portugal, com designação de origem, desde que não utilizando a palavra «Porto». Previa-se, pois, um debate difícil. Por isso, Antão de Carvalho encetou uma série de iniciativas tendentes a pressionar os poderes públicos. Por um lado, conseguiu mobilizar a imprensa portuense no apoio ao movimento regional, através da publicação de artigos nos jornais O Primeiro de Janeiro e A Montanha. Por outro lado, procurando colher uma base de apoio alargada, solicitou solidariedade institucional aos administradores de todos os concelhos estranhos às regiões directamente interessadas no tratado, através do envio de telegramas ao Parlamento, bem como do apoio dos deputados e senadores pelo respectivo círculo. Antão de Carvalho enviaria, ainda, na qualidade de presidente da Comissão de Viticultura Duriense, da Câmara da Régua e de antigo Senador da República, um telegrama ao presidente da Câmara dos Deputados, pedindo que fosse feita justiça ao Douro através da aprovação do projecto do Governo. Insistia em que a Região apenas reclamava o que lhe pertencia legitimamente e pedia ao Parlamento que tornasse eficaz a lei votada em Janeiro, que aprovara o tratado de comércio com a Inglaterra. Porém, o projecto não passaria na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, formada maioritariamente por representantes do Sul. A questão seria encerrada apenas em Maio de 1916, ao ser anexada uma adenda ao tratado, nos termos reivindicados pelo Alto Douro.

15  AMPR – Livro de Actas das Sessões da Comissão Executiva da Câmara Municipal do concelho de Peso da Régua, 1914-1916, fl. 68v-69.

CONCLUSÕES

C

omo refere Otília Lage, a Região Duriense tem sido, «desde a época moderna (…) um espaço de forte tensão social e palco de recorrentes manifestações populares»16. No caso particular em apreço, as movimentações sociais do Douro em 1914-1915, inscrevem-se no ambiente geral de crise e revolta que, desde finais do século XIX, se vivia nas principais regiões vitícolas europeias. Por outro lado, tendo uma raiz e motivação comuns, as acções populares ocorridas ao longo daqueles dois anos teriam contribuído para o processo de «construção identitária» do Douro Vinhateiro17. Um marcado carácter regionalista sobrepôs-se a diferentes motivações sociais, contribuindo para reforçar o espírito de uma difícil unidade regional, baseada nos interesses vinhateiros, sobre as divisões naturais e administrativas do território. Nos protestos durienses de 1914-1915 convergiram uma empenhada intervenção das elites regionais – assegurando uma direcção ao movimento e representando-o nas negociações com outro sectores e com o poder central – e uma forte mobilização popular, caracterizada pela emergência de diversos tumultos ou motins localizados. Porém, nem sempre foi pacífica a relação entre as elites e o povo, que comparecia em massa aos comícios promovidos por notáveis locais, mas desencadeava, de forma aparentemente espontânea, tumultos e motins que suscitavam uma atitude reservada ou, mesmo, condenatória das elites, que aconselhavam a não praticar violências que em nada serviam a causa do Douro. No caso concreto de Antão de Carvalho, a sua actuação enquanto líder do movimento de defesa regional em 1914-1915 revelou a existência de uma estratégia política de capitalização da rede de influências que criara, a favor da causa duriense. Sendo essencialmente um regionalista, as suas fortes ligações políticas foram postas ao serviço do movimento de defesa regional, dos vinhos do Douro e da sua região produtora. Contudo, embora mantendo uma atitude de reserva relativamente às movimentações populares, viria a partilhar da percepção regional quanto ao «motim de Lamego», visto como gesto heróico em defesa dos 16 

LAGE, 2013: 222.

17 

LAGE, 2013: 228.

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interesses da região. Em artigo de homenagem, publicado no jornal da Régua, A Defesa do Douro, em 1925, afirmava: A causa triunfou e foram eles os vencedores. Que o Douro nunca os esqueça, pagando a dívida sagrada, ainda em aberto, da merecida consagração aos mortos obscuros, que, em verdade, são os seus mais excelsos e nobre paladinos. Glória aos Mártires!18

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: GUY, Kolleen M. (2003) – When Champagne became French: wine and the making of a national identity. Baltimore: The John Hopkins University Press. LAGE, Maria Otilia Pereira (2013) – Revoltas populares no Douro Vinhateiro (Carrazeda de Ansiães e Lamego), no final da Monarquia e início da República: representações sociais e identidades a partir da imprensa da época, In Actas das 1ª Conferências Museu de Lamego/ CITCEM. História e Património no/ do Douro: investigação e desenvolvimento. Lamego: Museu de Lamego – Direcção Regional de Cultura do Norte, p. 221-229. MARQUES, A. H. Oliveira (1975) – Afonso Costa. Lisboa: Editora Arcádia. MARQUES, A. H. Oliveira (1978) – História da Primeira República Portuguesa. As estruturas de base. Lisboa: Iniciativas Editoriais. SEQUEIRA, Carla (2003) – O vinho do Porto e as movimentações sociais nos anos de 1914-15. «Douro – Estudos & Documentos», vol. VIII (15), 1º tomo. Porto: GEHVID, p. 77-86. PEREIRA, Gaspar; SEQUEIRA, Carla (2004) – Da Missão de Alijo ao Motim de Lamego: crise e revolta no Douro Vinhateiro em inícios do século XX. «Revista da Faculdade de Letras – História», III Série, vol. 5. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p. 5977. SEQUEIRA, Carla (2011) – O Alto Douro entre o livre-cambismo e o proteccionismo: a «questão duriense» na economia nacional. Porto: CITCEM/Edições Afrontamento. SEQUEIRA, Carla (2014) – Antão Fernandes de Carvalho e a República no Douro. Porto: CITCEM. Siglas AMPR – Arquivo Municipal de Peso da Régua ACD – Arquivo da Casa do Douro

18  CARVALHO, Antão de – Glória aos mártires! «A Defesa do Douro». 26 Julho 1925, p. 2. Também publicado em SEQUEIRA, 2014: 263.

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