ANTERIORIDADE E ANUALIDADE TRIBUTÁRIAS: LIÇÕES DE ALIOMAR BALEEIRO, FLÁVIO BAUER NOVELLI E RICARDO LOBO TORRES

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ANTERIORIDADE E ANUALIDADE TRIBUTÁRIAS: LIÇÕES DE ALIOMAR BALEEIRO, FLÁVIO BAUER NOVELLI E RICARDO LOBO TORRES Carlos Alexandre de Azevedo Campos1

1.

Introdução A segurança é condição das relações humanas. Sem ela, as pessoas não podem planejar

suas ações, confiar uns nos outros. Viver com segurança está entre os maiores desejos da humanidade. John Stuart Mill enfatizou que a segurança é uma utilidade social de vital importância para todo indivíduo: “Todos os outros benefícios podem ser necessários a uma pessoa e não a outra. Muitos deles podem ser facilmente renunciados ou substituídos por algo diferente. Mas nenhum ser humano pode ficar sem segurança; dela depende a nossa imunidade em relação ao mal [...]”2. Ainda que não seja um valor absoluto, muito menos plenamente realizável, a segurança é um ideal regulatório fundante e estruturante: a segurança é garantia da liberdade. O Direito, voltado à regulação da organização social, cumpre importante papel na busca desse ideal – à idoneidade desse instrumental dá-se o nome de segurança jurídica. A própria existência do Direito deve ser vista como fator de segurança. Sem oferecer segurança, faltaria essência ao Direito. Como ensina Garcia Maynez, a ordem jurídica, para assim merecer essa qualificação, deve oferecer aos cidadãos: conhecimento e clareza quanto às normas de conduta impostas – segurança da orientação; certeza, estabilidade e previsibilidade quanto ao status e consequências dos próprios atos – segurança da realização3. Deve haver, em síntese, confiança no papel das instituições e das leis como garantidores da paz social – segurança político-institucional. Daí a noção de segurança jurídica ter se desenvolvido com a de Estado de Direito: mesmo se não prevista expressamente em textos constitucionais, a segurança jurídica deve ser reconhecida sempre como “princípio essencial na Constituição material do Estado de Direito”4. Em matéria tributária, a segurança jurídica revela-se, na Carta de 1988, embora nesses não se esgote, nos princípios da legalidade, irretroatividade e anterioridade. O conjunto de 1 Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ. Professor-Adjunto de Direito Financeiro e Tributário da UERJ. Assessor de Ministro do STF. Advogado. Membro da Associação Brasileira de Direito Financeiro – ABDF, da Sociedade Brasileira de Direito Tributário – SBDT e da International Fiscal Association – IFA. 2 MILL, John Stuart. O Utilitarismo (Utilidade e justiça). In: MAFFETTONE, Sebastiano; VECA, Salvatore (Org.) A ideia de justiça de Platão a Rawls. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 254. 3 MAYNEZ, Eduardo Garcia. Filosofia del Derecho. 1ª ed. México: Editorial Porrua, 1974, p. 477. 4 NOVAIS, Jorge Reis. Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 261.

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princípios que expressam segurança é de relevância prática espetacular para o Direito Tributário brasileiro. O contribuinte convive com um sistema tributário complexo, marcado por volume impressionante de normas jurídicas, de diferentes hierarquias, muitas sobrepostas, outras contraditórias, algumas de difícil assimilação. Não bastasse, a legislação tributária é bem cambiante, assim como são as interpretações administrativas e judiciais acerca dessa mesma legislação. Fazer efetivos esses princípios é medida imprescindível para tornar o sistema mais compreensível e estável a todos os aplicadores, em especial, aos contribuintes. Não poderá haver segurança se permitida a vigência de ordenamento jurídico de difícil cognição, imprevisível e de aplicabilidade mutante. A segurança do contribuinte é peça-chave para a sua liberdade. Este artigo, voltado a homenagear os 80 anos da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, versará a abrangência do terceiro princípio constitucional mencionado – a anterioridade tributária. E mais: dialogando segurança jurídica com democracia (liberdade e consentimento tributário), relacionará esse princípio expresso com o conexo e supostamente extinto princípio da anualidade tributária. A análise será feita pautada nas históricas lições assentadas por três dos mais importantes e paradigmáticos professores de Ciência das Finanças e de Direito Financeiro de nossa gloriosa “casa”: Aliomar Baleeiro, Flávio Bauer Novelli e Ricardo Lobo Torres5. O texto terá a seguinte estrutura: para além desta Introdução (1), discorro, no próximo item (2), sobre as relações entre a segurança jurídica e o Direito Tributário. No tópico seguinte (3), trato das ideias de anterioridade e anualidade tributárias a partir dos aportes teóricos dos aludidos Mestres. Ao final (4), conclusões acerca da extensão do princípio da anterioridade e da possível sobrevivência da anualidade.

2.

Segurança Jurídica e Direito Tributário A segurança jurídica, ao lado e junto à justiça, é valor fundamental do Estado de Direito.

Sua observância implica certeza, objetividade e inteligibilidade do Direito pela exigência de clareza e adequado grau de densidade normativa das regras jurídicas, previsibilidade pela proibição de retroatividade onerosa, confiabilidade pela estabilidade das normas no tempo. De acordo com Jorge Reis Novais:

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A homenagem aos três ilustres professores deve ser estendida a todos os demais, do passado e do presente, sem exceção, que fizeram e fazem da Escola de Direito Financeiro da UERJ uma das mais importantes arenas de reflexão e construção da doutrina financeira e tributária do país. Expresso aqui meu orgulho por fazer parte dessa escola, realização maior de minha vida acadêmica.

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Enquanto elemento essencial a um Estado de Direito [...], [a] segurança jurídica projeta exigências diferenciadas dirigidas ao Estado, que vão desde as mais genéricas de previsibilidade e calculabilidade da actuação estatal, de clareza e densidade normativa das regras jurídicas e de publicidade e transparência dos actos dos poderes públicos, designadamente os susceptíveis de afectarem negativamente os particulares, até às mais específicas de observância dos seus direitos, expectativas e interesses legítimos e dignos de proteção6.

A certeza e inteligibilidade do Direito estão relacionadas, inicialmente, com a exigência de clareza dos enunciados jurídicos, de modo a permitirem tenham os destinatários acesso ao conteúdo. Há a necessidade de o legislador utilizar-se de linguagem simples e inequívoca, de técnica apurada na elaboração das leis, ainda mais considerado o contemporâneo protagonismo dos contribuintes na gestão e aplicação dos tributos7. O legislador deve evitar produzir incertezas objetivas8 quanto ao alcance e aplicação dos preceitos, a fim de não colocar em risco a confiança dos cidadãos na ordem jurídica. Esses atributos normativos informam a legalidade como expressão da segurança jurídica e elemento essencial do Estado de Direito. Todavia, a exigência de cognoscibilidade desafia não pura e simplesmente o grau de clareza semântica dos dispositivos, mas também o próprio nível de densidade normativa dos conteúdos legais – tocam desde o processo de produção de leis até o de aplicação das normas9. A previsibilidade alcança-se, principalmente, pela proibição de a lei nova produzir efeitos retroativos em face de atos praticados pelos destinatários antes de sua entrada em vigor. Lei nova e mais gravosa deve ser irretroativa. A certeza do Direito deve operar, por obviedade, sobre normas conhecidas ao tempo da prática dos atos regulados, de tal forma que os cidadãos possam orientarse sem correr riscos imprevisíveis. A confiança na ordem jurídica pressupõe, necessariamente, que os sujeitos não sofram “surpresas desagradáveis”, isto é, sejam gravados em razão de fatos ocorridos antes da vigência da lei aplicada. Permitir tal retroatividade implicaria afastar a confiança da sociedade depositada nos poderes públicos, verdadeira fraude ao Estado de Direito. Sem poder ajustar suas condutas às normas conhecidas, vigentes à época dos fatos, os cidadãos não têm incentivos para confiar na ordem jurídica e em sua missão de entregar paz social.

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NOVAIS, Jorge Reis. Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa. Op. cit., p. 261 RODRÍGUEZ BEREIJO, Álvaro. Jurisprudencia Constitucional y Principios de la Imposición. In: KIRCHHOF, Paul et all. Garantías Constitucionales del Contribuinte. 2ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1998, p. 150. 8 Cf. RUSSO, Gianluca. La disapplicazione dele sanzoni per l’obiettiva incerteza dela norma tributaria. In: FANTOZZI, Augusto; FEDELE, Andrea. Statuto dei Diritti del Contribuente. Milão: Giuffrè, 2005, p. 560-582. 9 Aqui, parte-se da premissa da distinção entre texto normativo e norma, sendo o primeiro o objeto da interpretação, enquanto a segunda, o resultado. Cf. GUASTINI, Riccardo. Le Fonti del Diritto e L´Interpretazione. Milano: Giuffrè, 1993; NEVES, Antonio Castanheira. O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica. Vol. I. Coimbra: Coimbra, 2003; MÜLLER, Friedrich. Métodos de Trabajo del Derecho Constitucional. Trad. de Salvador Gómez de Arteche y Catalina. Madrid: Marcial Pons, 2006. 7

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A estabilidade do ordenamento jurídico também concretiza a segurança jurídica. A exigência de “constância da lei no tempo” traduz-se na proibição da prática da “livre revogabilidade e alterabilidade” das leis. Como adverte José Casalta Nabais, “o princípio da segurança jurídica não é afetado apenas através de normas retroactivas, já que também é posto em causa quando a exigência da justiça, traduzida na constancy of the law (Gesetzeskonstanz), é desrespeitada, nomeadamente sempre que uma lei, em cuja manutenção e estabilidade os destinatários tenham confiado, seja revogada ou alterada para o futuro [...]”10. Não se trata de impor a absoluta inalterabilidade das leis e de regimes jurídicos, e sim de reclamar que a eficácia dessas alterações, em nome da segurança jurídica, observe lapso temporal suficiente a reduzir os impactos indesejados contra as expectativas legítimas dos destinatários. Este aspecto da segurança jurídica – estabilidade normativa – diz diretamente com a anterioridade tributária. Como afirmei no introito, a segurança jurídica, como valor fundante e estruturante do Estado de Direito, é de especial importância para o Direito Tributário. A imposição de obrigações tributárias possui impacto direto no planejamento econômico e profissional dos cidadãos. A depender das circunstâncias, o tributo apresenta-se como variável decisiva no cálculo de escolhas essenciais: para o exercício de liberdades fundamentais como são a econômica e a profissional. Em poucas áreas do Direito e das práticas sociais, mostram-se tão indispensáveis a calculabilidade ou previsibilidade das normas jurídicas. Sem segurança jurídica, os contribuintes não podem ajustar seus negócios econômicos, contratos e empreendimentos levando em conta o custo dos tributos. O conhecimento seguro desses ônus, não raramente, se coloca como fronteira entre o sucesso e o fracasso empresarial. Daí a necessidade de uma atenção reforçada à segurança jurídica pelo legislador tributário e a administração fiscal. O constituinte de 1988 teve essa atenção especial. Sem dúvida alguma, a segurança jurídica do contribuinte brasileiro possui na Carta da República uma disciplina reforçada. Além da anterioridade tributária, que será abordada em separado no tópico seguinte, há previsão expressa dos princípios da legalidade e irretroatividade tributárias. O princípio da legalidade tributária foi positivado no artigo 150, inciso I, segundo o qual é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem “lei” que o estabeleça. O comando nada diz quanto ao conteúdo dos deveres tributários, e sim quanto aos instrumentos normativos necessários e obrigatórios para sua normatização. Representa exigência democrática da tributação,

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NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 2004, p. 409.

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assim como expressão da segurança jurídica – condição, ainda que insuficiente, de liberdade na relação entre Administração Pública e contribuintes. O princípio da irretroatividade, assim como o da legalidade e da anterioridade, expressa a liberdade por meio da segurança jurídica. Está previsto no artigo 150, inciso III, alínea “a”, da Constituição, segundo o qual é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos “em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”. A norma constitucional impõe ao legislador que, ao criar ou majorar tributo, alcance apenas fatos futuros, aqueles que ocorrerem após o início da vigência da lei tributária. Lei que venha a alcançar fatos pretéritos à sua vigência, para fins de incidência tributária, será inconstitucional por ferir o princípio da irretroatividade11. Como se vê, a segurança jurídica em matéria tributária, expressa por meio da irretroatividade tributária, ganhou, na Carta de 1988, manifestação textual específica. Trata-se de garantia constitucional inequívoca, diferentemente do que ocorre em outros países de relevância para o estudo do Direito Constitucional Tributário. Na Alemanha e em Portugal, a proibição de retroação de lei gravosa foi construída a partir da cláusula do Estado de Direito, da qual deduzem a segurança jurídica e, consecutivamente, a irretroatividade tributária12; na Itália, a definição sobre se a lei retroativa é ou não constitucional depende do alcance do gravame quanto à atualidade da capacidade contributiva13. O constituinte brasileiro preocupou-se, portanto, em prevenir surpresas quanto à instituição ou majoração de tributos, bem como, por meio da anterioridade, como ver-seá adiante, em evitar mudanças bruscas em relação aos elementos das obrigações tributárias. A generosa disciplina constitucional não impediu, no entanto, fosse observado, entre nós, com apoio nos artigos 5º, inciso XXXVI (proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada) e 37, caput (moralidade administrativa), importante princípio constitucional 11 Sem sombra de dúvida, a controvérsia mais paradigmática enfrentada, hoje, pelo Supremo é quanto à orientação da Súmula nº 584, segundo a qual “ao Imposto de Renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração”. Conferir os debates na última sessão do julgamento (25/9/2014) do RE 183.130/PR, relator ministro Carlos Velloso, acórdão redigido pelo ministro Teori Zavascki. 12 Cf. TIPKE, Klaus. La retroactividad en el derecho tributário. In: AMATUCCI, Andrea (Dir.) Tratado de Derecho Tributario, Tomo I. Bogotá: Editorial Temis, 2001, p. 340-354; BIRK, Dieter. Diritto Tributario Tedesco. Trad. de Enrico de Mitta. Milão: Giuffrè, 2006, p. 44-47: “De regra, portanto, também no direito tributário, vale a proibição da retroatividade, que o direito constitucional faz derivar do princípio do Estado de direito” (p. 46); NABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Op. cit., p. 394-409. 13 TESAURO, Francesco. Istituzioni di Diritto Tributario. Vol. I. 8ª ed. Torino: UTET, p. 72; DE MITA, Enrico. Il principio di capacità contributiva. In: Interesse Fiscale e Tutela del Contribuinte. Milão: Giuffrè, 2000, p. 106-107: “Posto que é retroativa tanto a lei que assuma como pressuposto um fato ou situação passados, quanto a que modifique um regime tributário já existente, a retroatividade como tal não é inconstitucional. Necessário verificar, caso a caso, se a retroatividade não viola um outro princípio constitucional, em particular o da capacidade contributiva [...]”

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implícito: o da proteção da confiança legítima. Este princípio é reconhecido em diferentes países e mesmo no direito comunitário14. O marco histórico de sua formulação foi em meados da década de 50, com a decisão do Tribunal Administrativo Federal da Alemanha mediante a qual validou pensão de viúva concedida de modo contrário à lei, “com fundamento no princípio da confiança”15. Segundo a construção jurisprudencial e doutrinária16 que se seguiu, o princípio surge presente tensão interna do sobreprincípio do Estado de direito: entre a segurança jurídica, sob a perspectiva individual17, e a legalidade. Os atos estatais geram diretrizes para os indivíduos que, acreditando na validade e correção desses, pautam condutas no sentido indicado. Vigente um Estado de Direito, essas condutas devem ser tuteladas em face de atos contraditórios do Poder Público, que “traiam” as expectativas criadas. Essa tarefa imunizante é cumprida pelo princípio da proteção da confiança legítima. Segundo Almiro do Couto e Silva, o princípio “(a) impõe ao Estado limitações na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais, ou (b) atribuir-lhe consequências patrimoniais por essas alterações, sempre em virtude da crença gerada nos beneficiários, nos administrados ou na sociedade em geral de que aqueles atos eram legítimos, tudo fazendo razoavelmente supor que seriam mantidos”18. Não obstante o potencial para figurar em grande número de conflitos, o uso expresso do princípio pelo Supremo ainda é incipiente: (i) em litígios previdenciários, envolvidas hipóteses em que o Tribunal de Contas da União cancelou pagamento de pensão especial, concedida há período de tempo elevado, sob o fundamento de a mesma ter sido deferida sem respaldo legal19; (ii) em controvérsias envolvendo contratações e admissões pela Administração Pública, nas quais o

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Cf. TAKIS, Tridimas. The General Principles of EU Law. 2ª ed. New York: Oxford University Press, 2008, p. 251297. 15 Sobre as premissas fáticas e jurídicas do caso, cf. MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Porto Alegre: Safe, 2000, p. 70-71; ARAÚJO, Valter Shuenquener. O Princípio da Proteção da Confiança. Uma Nova Forma de Tutela do Cidadão Diante do Estado. Niterói: Impetus, 2009, p. 136-142. 16 Cf., por todos, SILVA, Almiro do Couto. Conceitos Fundamentais do Direito no Estado Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 19-90. Em matéria tributária, cf. DELLA VALLE, Eugenio. Affidamento e Certezza del Diritto Tributario. Milão: Giuffrè Editore, 2001; RIBEIRO, Ricardo Lodi. A Segurança Jurídica do Contribuinte (Legalidade, Não Surpresa E Proteção À Confiança Legítima). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica. Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011; TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica. São Paulo: RT, 2011. 17 NABAIS, José Casalta Nabais. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Op. cit., p. 395: “a idéia de protecção da confiança não é senão o princípio da segurança jurídica na perspectiva do indivíduo”. 18 SILVA, Almiro do Couto. Conceitos Fundamentais do Direito no Estado Constitucional. Op. cit., p. 47. 19 STF – Pleno, MS 24.268/MG, Rel.ª Min.ª Ellen Gracie, acórdão redigido pelo Min. Gilmar Mendes, j. 5/2/2004, DJ 17/9/2004; STF – Pleno, MS 25.116/DF, relator ministro Ayres Britto, j. 8/9/2010, DJ 10/2/2011; STF – Pleno, MS 25.403/DF, relator ministro Ayres Britto, j. 15/9/2010, DJ 10/2/2011; STF – Pleno, MS 26.053/DF, relator ministro Ricardo Lewandowski, j. 18/11/2010, DJ 23/2/2011.

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Tribunal manteve válidas contratações de empregados por empresa pública, sem concurso público, em decorrência do transcurso do tempo20; (iii) no campo eleitoral, o princípio foi aplicado como fundamento para modular os efeitos da mudança de jurisprudência em favor da perda do mandato parlamentar na hipótese de “infidelidade partidária”21. Concernente aos litígios tributários, o princípio tem sido evocado em torno das alterações da jurisprudência dos Tribunais Superiores e a possibilidade de prospectar os efeitos dessas decisões (prospective overruling)22. Trata-se da busca pela modulação mesmo para as hipóteses de pura e simples alteração de interpretação sem declaração de inconstitucionalidade, exatamente como ocorreu no caso da “infidelidade partidária”. Nos dois casos relevantes em que o tema foi abordado no Supremo, o resultado foi decepcionante para os contribuintes. Refiro-me às decisões envolvendo a possibilidade de os contribuintes de IPI apropriarem-se de créditos na aquisição de matérias-primas, insumos e produtos intermediários não tributados, sujeitos à isenção ou alíquota zero do imposto23, e a revogação da isenção da COFINS no tocante às sociedades de profissão regulamentada24. Em ambos os casos, mesmo diante de viradas de jurisprudência, o Supremo concluiu que não estava configurado um “estado de confiança” a ponto de justificar a modulação. Além dos princípios constitucionais explícitos e implícitos, a segurança jurídica em matéria tributária também possui importante expressão normativa por meio de dispositivos do Código Tributário Nacional: a proibição do uso da analogia para cobrar tributo não previsto em lei (artigo 108, § 1º); a regra da aplicação da lei vigente à época do fato gerador quando da confecção do lançamento (artigo 144, caput); irreversibilidade do ato de lançamento por modificação dos critérios de interpretação (artigo 146) e por erro de direito ou de valoração dos fatos (artigo 149, inciso VIII); a regra do caráter vinculante das informações das autoridades financeiras feitas aos obrigados tributários (artigo 100, parágrafo único)25; a proibição de revogação de isenções onerosas (artigo 178, do CTN)26.

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STF – Pleno, MS 22.357/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 27/5/2004, DJ 5/11/2004. STF – Pleno, MS 26.602/DF, Rel. Min. Eros Grau, j. 4/10/2006, DJ 17/10/2008. 22 Para uma abordagem teórica da prática no direito tributário, cf. GARVIA NOVOA, César. El Principio de Seguridad Jurídica en Materia Tributaria. Madrid: Marcial Pons, p. 204-215. Sobre a gênese da prospective overruling e seus altos e baixos no direito norte-americano, cf. TRIBE, Laurence H. American Constitutional Law. 13ª ed. New York: New York Foundation Press, 2000, p. 218-227. 23 STF – Pleno, RE 353.657/PR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 06/03/2008. 24 STF – Pleno, RE 377.457/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 19/12/2008. 25 Cf. STF – 2ª T., RE 131.741, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 09/04/1996, DJ 24/05/1996. 26 STF – 2ª Turma, RE 186.264-5, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 17/04/1998; STF – 1ª Turma, RE 218.160-3, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 06/03/1998. 21

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A segurança jurídica possui, portanto, seja na Constituição, seja no Código Tributário Naiconal, explícita ou implicitamente, formulações normativas específicas para a matéria tributária. As soluções de conflitos envolvendo a segurança dos contribuintes são levadas a efeito por referência a esses princípios e regras, sem necessidade, incialmente, de “ginásticas interpretativas” a partir de ideias abstratas como a do Estado de Direito, como em Portugal e na Alemanha, ou de conexões intrassistêmicas ou estruturais, nem sempre claras ou possíveis, como se dá na Itália onde entende-se inconstitucional a lei tributária retroativa se e quando violada a capacidade contributiva atual. No Brasil, em que pese haver controvérsias hermenêuticas, o trabalho é facilitado pela positivação sortida da segurança jurídica em matéria tributária. Isso não significa, no entanto, que construções normativas27 não sejam bem vindos se resultarem em maiores garantias dos direitos fundamentais dos contribuintes – maior segurança e liberdade. Na sequência, examino o alcance da anterioridade tributária sob a óptica de três dos grandes professores de Direito Financeiro da UERJ: Aliomar Baleeiro, Flávio Bauer Novelli e Ricardo Lobo Torres. Em meio aos aportes dos professores, surge a polêmica em torno da possibilidade de afirmar-se vigente, como princípio implícito, a anualidade tributária. Além de segurança jurídica, assumir essa vigência implicaria reforço democrático ao conjunto de “limitações constitucionais ao poder de tributar”. Seria, então por isso, legítima tal construção?

3.

A anterioridade e anualidade tributárias entre Baleeiro, Novelli e Lobo Torres Os objetos deste ensaio vão do gênero – segurança jurídica e liberdade dos contribuintes –

à espécie – anterioridade tributária. O princípio, assim como o da irretroatividade, consagra a liberdade por meio da segurança jurídica. Ao estabelecê-lo expressamente, o constituinte revelou preocupação maior em prevenir os contribuintes de surpresas quanto à instituição ou majoração de tributos. Há a pretensão de confiabilidade no Direito a ser alcançada pelo dever de estabilidade das normas no tempo, concedendo aos destinatários o mínimo de previsibilidade quanto aos ônus tributários que suportarão. O propósito da anterioridade tributária, como limitação ao poder de tributar, é permitir aos contribuintes, com a segurança necessária, calcularem suas decisões quanto aos seus atos e negócios jurídicos tendo em conta custos tributários conhecidos de antemão, afastada a possibilidade de surgirem novos, inesperadamente. 27

Sobre a interpretação constitucional, em particular, como “construção constitucional”, cf. WHITTINGTON, Keith E. Constitutional Construction. Divided Powers and Constitutional Meaning. Cambridge: Harvard University Press, 2001; BALKIN, Jack M. Living Originalism. Cambridge: Harvard University Press, 2011.

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O princípio da anterioridade, reconhecido pelo Supremo como cláusula pétrea – núcleo essencial da segurança jurídica28 – possui três dimensões em nossa Carta da República, assim discriminados em ordens topológica e cronológica combinadas: (1)

anterioridade geral – prevista no artigo 150, inciso III, alínea “b”, segundo

o qual a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão cobrar tributos “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”; (2)

anterioridade nonagesimal aplicável às contribuições de Seguridade Social

– prevista no artigo 195, § 6º, segundo o qual a União não poderá exigir as contribuições sociais de seguridade social antes de “decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado”, afastada a aplicação da anterioridade geral acima apontada; (3)

anterioridade nonagesimal ou noventena – prevista na alínea “c” do inciso

III do artigo 150, introduzida pela Emenda Constitucional nº 42, de 2003, segundo a qual a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão cobrar tributos “antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou”, devendo ser observada em conjunto e em concerto com a anterioridade geral acima apontada. As mais importantes controvérsias surgem em razão da definição do âmbito de proteção do princípio. Mais precisamente, em identificar quais alterações legislativas se encaixam no conceito de instituição ou majoração de tributo: podem ser equiparados à majoração de tributos, a ponto de atrair a proteção da anterioridade, a alteração de prazo de pagamento, exclusão de descontos por pagamento antecipado, revogação de isenções, restrições a créditos em impostos indiretos ou contribuições não cumulativas, prorrogação de tributos provisórios, alteração do regime de apuração? A interpretação mais literal dos dispositivos constitucionais favorece a resposta negativa, ao passo que a leitura finalística do princípio conduz à resposta positiva. A questão mais problemática diz respeito à revogação de benefícios fiscais, máxime, das isenções gratuitas e concedidas por prazo indeterminado.

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STF – Pleno, ADI 939/DF, relator ministro Sydney Sanches, j. 15/12/1993, DJ 18/3/1994.

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No campo das isenções outorgadas livremente, sem exigência de contrapartidas dos contribuintes, e sem prazo pré-definido de vigência, a observância da anterioridade tem sido, no mínimo, problemática. Aplicando conservadoramente os artigos 104, inciso III, e 178 do Código Tributário

Nacional,

e

interpretando

restritivamente

os

dispositivos

constitucionais

correspondentes, o Supremo, ainda sob a égide da Carta pretérita, editou a Súmula 615, segundo a qual “o princípio constitucional da anualidade (§ 29 do art. 153 da CF) não se aplica à revogação de isenção do ICM”29. Essa orientação tem sido majoritariamente adotada, embora recusada em caso importante30. Mas na maior parte das vezes, o Tribunal não tem reconhecido equivalência entre instituição ou majoração de tributos, de um lado, e revogação pura e simples de isenção, de outro, afastando, quanto ao último caso, a limitação pela anterioridade como aplicação direta da Constituição. Daí o Tribunal sempre ressaltar a necessidade de disciplina infraconstitucional, no caso, do Código Tributário Nacional31. A necessidade de observar a segurança jurídica dos contribuintes contra a livre revogabilidade de leis concessivas de isenções une os pontos de vista dos três professores de Direito Financeiro da UERJ, homenageados neste texto. Não obstante, há desenvolvimentos do princípio que os dividem. Particularmente, o confronto entre a anterioridade e a vetusta figura da anualidade tributária, no tocante a saber se a previsão da primeira implicou a superação da segunda ou se essas se complementam, foi tema que colocou em lados opostos os mencionados Mestres: de um lado, Aliomar Baleeiro e Flávio Novelli a defenderem a manutenção da anualidade, que ofereceria maiores garantias aos contribuintes – além de segurança jurídica, um pedigree democrático reforçado à cobrança dos tributos; de outro, Ricardo Lobo Torres enfatizando a substituição vantajosa da anualidade pela anterioridade tributária. Mesmo com essa oposição de ideias e conclusões, pode-se extrair a preocupação maior e linear dos três com a garantia dos direitos fundamentais dos contribuintes – com a segurança e a liberdade. Inicialmente, é importante destacar a diferença entre a anualidade orçamentária e a tributária, de modo a precisar o alcance exato da segunda. A primeira implica a necessidade de aprovação anual pelo Parlamento do plano de governo do Executivo expresso no orçamento – artigo 165, inciso III, § 5º, da Constituição. A anualidade tributária, por sua vez, significa a renovação anual, expressa na lei orçamentária, da autorização para a cobrança dos tributos

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Súmula 615, Sessão Plenária de 17/10/1984, DJ de 29/10/1984. STF – Pleno, ADI – MC 2.325/DF, relator ministro Marco Aurélio, j. 23/9/2004, DJ 6/10/2006. O mérito da ação encontra-se pendente de apreciação. 31 STF – 2ª T., RE 204.062/ES, relator ministro Carlos Velloso, j. 27/9/1996, DJ 19/12/1996. 30

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existentes. Ausente renovação da permissão para a cobrança dos tributos nos orçamentos, as leis tributárias vigentes, por meio das quais esses tributos foram instituídos ou majorados, têm a eficácia suspensa para o exercício financeiro correspondente. Esta é vinculada ao Estado Patrimonial e à noção de orçamento como lei material; aquela, ao Estado de Direito e à ideia de orçamento como peça de planejamento da atividade financeira32. Portanto, a anualidade tributária é distinta da mera anualidade orçamentária. Não se trata de pura e simplesmente ter-se renovado anualmente o plano de gastos públicos – anualidade orçamentária –, e sim de, nos orçamentos anuais, o Parlamento aprovar a continuidade da cobrança, para o exercício seguinte, dos tributos já instituídos. Com esse conteúdo, a anualidade tributária extrema-se, nitidamente, também da anterioridade tributária geral. Como se viu, a anterioridade requer apenas que a lei, mediante a qual o tributo foi instituído ou majorado, tenha sido publicada no ano anterior ao da efetiva incidência tributária. A anualidade tributária é mais abrangente: não basta a precedência da lei de regência ao exercício de cobrança, é necessário que a imposição fiscal esteja previamente autorizada também na lei orçamentária. O tributo só poderia ser cobrado se previsto em lei e autorizado no orçamento. A anualidade tributária foi prevista, expressamente, em primeira oportunidade em um texto constitucional na Constituição de 1946, no Capítulo intitulado “Dos Direitos e das Garantias Individuais”, § 34 do artigo 141, segundo o qual “nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra”33. Vê-se que a primeira parte do dispositivo versa o princípio da legalidade tributária, enquanto a segunda, a anualidade tributária. Mesmo se atendido o primeiro princípio, o tributo só poderá ser cobrado se prévia e anualmente autorizado no orçamento considerado cada exercício financeiro particular. Depois de perder eficácia por pouco mais de 1 ano e três meses ao ser expressamente revogado pelo artigo 25 da Emenda Constitucional nº 18/65, o princípio foi restabelecido no artigo 150, § 29, da Constituição de 196734, também no capítulo sobre direitos e garantias individuais.

32

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 554-555. 33 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Op. cit., 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 194-195: “Expresso em termos imperativos, pela primeira vez, na Constituição de 1946, embora já representasse costume constitucional e regra de lei ordinária, o princípio da anualidade do tributo [...]”. 34 Artigo 150. [...] § 29. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvados a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra.

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3.1.

A construção inaugural em Aliomar Baleeiro Aliomar Baleeiro, professor de Ciência das Finanças da UERJ nas décadas de 40, 50 e 60,

e ministro do Supremo entre 1965 e 1975, foi um dos principais teóricos das “limitações constitucionais ao poder de tributar”, expressão associada ao seu nome. Dedicou atenção particular à garantia da anualidade tributária. Comentando o aludido § 34 do artigo 141, da Constituição de 1946, vinculou o princípio à garantia dos cidadãos contra o fato histórico da “hipertrofia do Poder Executivo”, na medida em que era reservado ao Congresso autorizar a cobrança dos tributos apenas se verificasse equivalência do montante de receita previsto com os planos de governo detalhados no orçamento, ou mesmo se concordasse com esses planos. Segundo Aliomar Baleeiro: O princípio da anualidade, expresso na Constituição Federal de 1946, restitui ao Congresso a velha arma da representação parlamentar na batalha de séculos idos contra a desenvoltura dos monarcas absolutos [...]. Destarte, o sentido político do orçamento ficou restaurado e preservado. Plano de governo, proposto pelo Executivo, ele traz em seu ventre a exposição das vantagens que ao povo advirão dos serviços e realizações públicas programadas. É em face das necessidades e medidas planejadas para satisfazê-las que os representantes concedem, ou não, autorização para cobrança dos impostos regulados pelas várias leis anteriormente existentes35.

Para Baleeiro, o princípio impede tanto surpresas desagradáveis, quanto que o tributo seja fruto da soberania do Estado. O resultado seria a imposição tributária decorrer duplamente do consentimento do povo manifestado pelos representantes eleitos – no momento da instituição ou majoração pela lei tributária, e na autorização renovada da cobrança em lei orçamentária, se e quando verificada a adequação do plano de gatos públicos. A anualidade, além de “salvaguardar o contribuinte contra surpresas fiscais e abusos verificados”, teria um “primacial fundamento” de viés democrático: “os representantes do povo concedem x de receitas porque aprovam x de despesas para fins específicos e só estes”36. Para Aliomar, tratar-se-ia de “um dos mais democráticos princípios da Constituição”37. O princípio, ao limitar, sob essas justificativas, o arbítrio estatal, adquire dupla fundamentalidade: está à serviço da segurança jurídica e da democracia – em ambos casos, da liberdade como autonomia e consentimento. Aliomar Baleeiro, inequivocamente, defende a alta relevância constitucional do princípio. Daí ter criticado severamente a jurisprudência restritiva do Supremo quanto ao alcance da anualidade. Depois de algumas decisões no mesmo sentido, o Tribunal editou, em 13/12/1963, a Súmula nº 66, segundo a qual “é legítima a cobrança do tributo que houver sido aumentado após 35

BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Op. cit., p. 85. BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Op. cit., p. 86. 37 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Op. cit., p. 203. 36

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o orçamento, mas antes do início do respectivo exercício financeiro”. Para a maioria da Corte à época, o artigo 141, § 34, da Carta de 1946, não impedia a instituição de novo tributo ou majoração de existente por lei publicada depois de aprovado o orçamento, desde que antes do início do exercício financeiro seguinte – via de regra, entre 30 de novembro e 31 de dezembro do exercício anterior ao de cobrança. Para Baleeiro, essa interpretação, que dizia ser “violenta e extrajurídica”38, não podia ser conciliada com a “letra e o espírito” do § 34 do artigo 141, restando menoscabados os fundamentos políticos e jurídicos do dispositivo constitucional. O professor fez uso de voto vencido do ministro Armando Prado para afirmar que, a fim de evitar surpresas tributárias, é indispensável a conjugação das duas espécies legislativas, devendo ser observada, no entanto, a “precedência da lei tributárias sobre a orçamentária”, o que, ademais, decorreria da “meridiana clareza” do texto constitucional39. No mais, segundo Baleeiro, mesmo os fins e a razão de ser do preceito constitucional não autorizam a interpretação assentada pelo Tribunal: “A Constituição Federal, 1946, art. 141, § 34, não dizia, miudamente, que a lei precede o Orçamento, porque isso está evidente: só a lei estabelece, ou majora, mas só o Orçamento autoriza a cobrança que essa lei manda fazer. O Orçamento não pode ser um cheque em branco, que uma lei posterior enche com quanto quiser de tributos novos ou majorados”40. A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, alterando toda a estrutura da Constituição de 1967 – não por menos, fala-se na Carta pretérita de 67/69 –, modificou substancialmente o princípio. Na verdade, procedeu-se à remoção textual do princípio. Em seu lugar, adveio positivação da anterioridade tributária no artigo 153, § 29, segundo o qual “nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça, nem cobrado, em cada exercício, sem que a lei o houver instituído ou aumentado esteja em vigor antes do início do exercício financeiro, ressalvados a tarifa alfandegária e a de transporte, o impôsto sôbre produtos industrializados e o imposto lançado por motivo de guerra e demais casos previstos nesta Constituição”. Não havia mais exigência expressa de autorização prévia em lei orçamentária, apenas que a lei tributária respectiva fosse publicada antes do início do ano exercício em que iniciada a cobrança do tributo. Aliomar Baleeiro reconheceu o “recuo” da disciplina constitucional, mas afirmou que a manutenção do princípio poderia ser assentada por meio de uma interpretação sistemática: o novo artigo 153, § 29, deveria ser aplicado conjuntamente com o artigo 62, o qual prescrevia que “o

38

BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Op. cit., p. 203. BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Op. cit., p. 196. 40 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Op. cit., p. 206. 39

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orçamento anual compreenderá obrigatoriamente as despesas e receitas relativas a todos os Podêres, órgãos e fundos, tanto da administração direta quanto da indireta, excluídas apenas as entidades que não recebam subvenções ou transferências à conta do orçamento”. Como a inserção de todos os tributos (receitas) no orçamento continuou a ser constitucionalmente obrigatório, a teor do aludido artigo 62, Baleeiro afirmou que a boa interpretação do § 29 do artigo 153 deveria levar à conclusão lógica da manutenção do dever de a lei que decreta ou majora tributo ser anterior ao orçamento e neste constar a autorização para a cobrança41: A Constituição não estabelecia uma formula vazia, mas a pôs ao serviço de objetivo conhecido e definido. Quis que o orçamento condicionasse os tributos a certo volume de despesas, ficando, portanto, evidente que o Executivo deve propor as despesas conjuntamente com as receitas destinadas a suportá-las, e que nelas buscam a justificativa política. É o que se infere dos parágrafos do art. 62 da Constituição de 1969. Certo é que o tributo decretado em lei posterior à aprovação do orçamento racionalmente não estava por este autorizado. Era desconhecido e inexistente à época daquela aprovação. Não se presume aprovado o que não existia ao tempo da redação final do orçamento42.

Em síntese, Baleeiro sempre revelou preocupação maior com os direitos fundamentais dos contribuintes, buscando efetivar o princípio da anualidade tributária como diálogo da segurança com a liberdade de consentimento dos contribuintes por meio de seus representantes políticos; como diálogo entre Direito Financeiro e Tributário. Para além da segurança dos direitos contra a imprevisibilidade – papel, hoje, cumprido pela anterioridade –, o autor defendia a anualidade como garantia democrática. Com relação à abrangência, ainda que considerando a disciplina relativa à anualidade tributária, Baleeiro sempre se manifestou pela legitimidade de ressalvar a revogação das isenções em razão desse princípio: “em obséquio ao princípio da anualidade dos tributos, a revogação total ou parcial da isenção não tem eficácia imediata”. Ele aplaudia a velha jurisprudência do Supremo no sentido da impossibilidade de livre supressão das isenções onerosas e concedidas por prazo certo. Afirmava que conclusão diversa premiaria o “ludibrio à boa fé dos que confiaram nos incentivos acenados pelo Estado”43. Por razões óbvias de seu tempo, Baleeiro não chegou a enfrentar toda a sorte de problematizações que o tema da revogação das isenções oferece à segurança jurídica. Todavia, sua disposição sempre manifesta de emprestar a maior efetividade possível à anualidade tributária nos permite presumir que ele tomaria o caminho da maior segurança e liberdade dos contribuintes.

41

BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. Op. cit., p. 237. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 78. 43 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Op. cit., p. 592-595. 42

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3.2.

A sofisticação do argumento por Flávio Bauer Novelli O professor Flávio Bauer Novelli é discípulo direto de Aliomar Baleeiro e sofisticou os

argumentos quanto à vigência da anualidade tributária. Tornou-se professor da UERJ em 1963, vindo a ocupar, ainda como substituto, a cadeira de Ciência das Finanças no lugar de Baleeiro e a convite deste em 1966, haja vista a função parlamentar do último. Com a morte do jovem amigo e igualmente paradigmático professor titular da UERJ, Amílcar de Araújo Falcão, Novelli, então recentemente aprovado em concurso de titularidade para professor de Economia Financeira, assumiu a cadeira de Direito Financeiro. Lecionou, por último, nos cursos de mestrado e doutorado, vindo a retirar-se da UERJ em 2005. Sua defesa da vigência da anualidade tributária, ao lado da anterioridade, é, como disse, certa feita, Geraldo Ataliba, “absolutamente original e singular”44. É também intelectualmente sofisticada e coerente. Flávio Bauer Novelli tem a segurança jurídica como valor jurídico fundamental, “insuprimível da própria idéia de direito”. Segurança seria, em sentido objetivo, “segurança do direito” – certeza enquanto situação objetiva. Para Novelli, a segurança que a Constituição protege é a “segurança do direito enquanto pressuposto e fundamento” da segurança individual. O autor defende estarem incluídos na expressão ampla do princípio da legalidade tributária “os princípios da irretroatividade, da anualidade e da anterioridade tributárias”. A partir, portanto, da dimensão objetiva da segurança – entendida “segurança do direito” –, Novelli legitima e potencializa a defesa individual dos contribuintes contra as investidas arbitrárias e imprevistas do Erário, “quer no momento da edição da lei tributária, quer no momento da interpretação”45. Esta premissa é relevante para entender a tese do autor no sentido de princípios como a anualidade tributária prescindirem de previsão constitucional expressa para serem tidos como normas constitucionais. O professor adota a mesma posição de Baleeiro quanto a não ter ocorrido a revogação da anualidade tributária pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969. Na verdade, Novelli diz ter sido ele quem advertiu Baleeiro sobre a manutenção do princípio. Segundo descreveu, Aliomar Baleeiro, na primeira edição de seu Direito Tributário Brasileiro, afirmou o desaparecimento da anualidade em razão da redação do artigo 153, § 29, da Constituição de 1967 com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969. Novelli diz ter escrito ao seu mestre “opondo restrições” que considerava “bem fundadas”, e que Baleeiro as acatou, ao menos parcialmente, já que, na segunda 44

NOVELLI, Flávio Bauer. Segurança dos Direitos Individuais e Tributação. Revista de Direito Tributário nº 25/26, São Paulo: RT, 1983, p. 168. 45 NOVELLI, Flávio Bauer. Segurança dos Direitos Individuais e Tributação. Revista de Direito Tributário nº 25/26, São Paulo: RT, 1983, p. 161-165.

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edição da obra, trocou a afirmação do desparecimento do princípio pelo silêncio do constituinte derivado de 69, mas que isso não impediria a vigência do princípio ante o comando do artigo 62, tal como expus no tópico anterior, dedicado ao pensamento de Baleeiro sobre o tema46. Para Novelli, a positivação do princípio na Carta de 1946 representou a “explícita elevação da regra financeira da anualidade ao nível de garantia de direitos fundamentais”47, voltado a “manter sempre atual, pela exigência de uma periódica renovação da autorização da cobrança dos tributos, o vínculo do Governo em face da representação política em matéria financeira”48. Apesar de reconhecer que a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, teve o condão de delimitar a distinção formal e material dos princípios conexos da anualidade e anterioridade tributárias, não admite ter havido a substituição do primeiro pelo último. Segundo o autor, o já aludido artigo 62, constituindo “garantia individual do contribuinte”, implicou a coexistência dos princípios da anterioridade e da anualidade tributárias: o primeiro incidindo em relação ao originário exercício financeiro de vida do tributo; o segundo, a cada exercício subsequente. De forma bastante original, Flávio Bauer Novelli defende a permanência do princípio também sob a égide da Constituição de 1988. Porém, como inexiste dispositivo similar aos artigos 141, § 34, da Carta de 1946, e 150, § 29, da Constituição de 1967, nem mesmo ao artigo 62 da Constituição de 67/69, o professor precisou realizar uma construção muito mais complexa de sentidos. Primeiramente, Novelli alude à possibilidade histórica da afirmação do princípio da anualidade como “princípio implícito” da ordem constitucional. Diz que tem sido assim na França a partir de 1875, e que foi assim no Brasil entre as ordens constitucionais de 1891 e 1946. Defende que isso em nada pode enfraquecer a “força normativa” do princípio49. Baseado nas lições do jurista alemão Josef Esser, o professor assinalou à anualidade, sob a ordem constitucional de 1988, a qualidade de “princípio de eficácia institucional”. Para justificar a normatividade constitucional da anualidade como princípio implícito, Novelli faz duas construções sofisticadas: a) “a anualidade dos tributos liga-se portanto, necessariamente, à anualidade do orçamento” como elemento constitutivo desse último – o

46

Cf. NOVELLI, Flávio Bauer. O Princípio da Anualidade Tributária. Revista de Direito Administrativo nº 137, Rio de Janeiro: FGV, 1979, p. 3. 47 NOVELLI, Flávio Bauer. O Princípio da Anualidade Tributária. Revista de Direito Administrativo nº 137, Rio de Janeiro: FGV, 1979, p. 18. 48 NOVELLI, Flávio Bauer. O Princípio da Anualidade Tributária. Revista de Direito Administrativo nº 137, Rio de Janeiro: FGV, 1979, p. 20. 49 NOVELLI, Flávio Bauer. Anualidade e Anterioridade na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo nº 179, Rio de Janeiro: FGV, 1990, p. 24.

17

orçamento é a peça anual da atividade financeira do estado, e esta não é independente, ao contrário, é composta por tributos (receitas), além das despesas50; b) nos termos do artigo 5º, §2º, da Constituição, a anualidade tributária seria direito fundamental não expresso, decorrente do próprio regime democrático – como sempre defendeu Baleeiro –, da cláusula do Estado de Direito e do princípio da legalidade tributária em sentido amplo51. O princípio se materializaria institucionalmente, portanto, por meio da democracia – a ideia de consentimento político renovado dos tributos –, do Estado de Direito – segurança jurídica –, e de princípios específicos como a legalidade tributária e a anualidade orçamentária. Concluiu Novelli que, “embora não explicitamente inscrito na Constituição, permanece [o princípio da anualidade tributária] válido e eficaz no sistema tributário nacional, enquanto limitação constitucional ao poder de tributar”, garantia fundamental do contribuinte de “aplicação imediata como direito positivo”52. A atenção de Novelli à anualidade não implicou que ele deixasse de reconhecer a fundamentalidade da anterioridade tributária53. Forte na premissa de a revogação de isenção ser situação prática e substancialmente idêntica à instituição de um tributo, Novelli defendeu que a interpretação extensiva do artigo 150, inciso III, alínea “b”, da Carta de 1988, à revogação de isenção não ultrapassa o “âmbito de sentido possível da expressão” semântica do texto constitucional. Ao contrário, representa, sob o contexto teleológico-sistemático, a prática interpretativa que “mais fielmente corresponde ao fim primordial daquela limitação constitucional: a tutela da segurança jurídica, ali especialmente configurada na justa expectativa do contribuinte quanto à certeza e à previsibilidade da sua situação fiscal”54.

3.3.

A oposição categórica de Ricardo Lobo Torres

50 NOVELLI, Flávio Bauer. Anualidade e Anterioridade na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo nº 179, Rio de Janeiro: FGV, 1990, p. 25. 51 NOVELLI, Flávio Bauer. Anualidade e Anterioridade na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo nº 179, Rio de Janeiro: FGV, 1990, p. 26. 52 NOVELLI, Flávio Bauer. Anualidade e Anterioridade na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo nº 179, Rio de Janeiro: FGV, 1990, p. 26-27. 53 NOVELLI, Flávio Bauer. Norma Constitucional Inconstitucional? A propósito do art. 2º, §2º, da Emenda Constitucional nº 3/93. Revista de Direito Administrativo nº 199, Rio de Janeiro: FGV, 1995, p. 26-33. 54 NOVELLI, Flávio Bauer. Anualidade e Anterioridade na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo nº 179, Rio de Janeiro: FGV, 1990, p. 43-44.

18

O professor Ricardo Lobo Torres é, sem dúvida, um dos melhores estudiosos do Direito Tributário ainda em atividade. Foi professor da UERJ entre 1985 e 2010, Livre-docente em 1988, titular da cadeira de Direito Financeiro a partir de 1995, da qual aposentou-se em 2005, e um dos principais responsáveis pelo sucesso dos programas de mestrado e doutorado da instituição. Lobo Torres adotou posição contrária à dos colegas Aliomar Baleeiro e Flávio Bauer Novelli. O professor destaca que, com o advento do Estado de Direito, deu-se a “bifurcação entre a anualidade tributária e a orçamentária, desfazendo-se a conexão entre o direito de consentir os impostos e o direito do orçamento”. Dessa forma, a segurança jurídica do cidadão passou a dar-se na lei de imposição dos tributos, “e não mais pela renovação anual da autorização para a cobrança”. Tratase, segundo afirma, de mudança constitucional própria das constituições democráticas pós-II Guerra Mundial, verificada a modificação do perfil do orçamento de autorizador de receitas para instrumento de planejamento governamental55. Lobo Torres é categórico quanto ao desparecimento da anualidade tributária com a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, e à vantagem de sua substituição pelo princípio contemporâneo da anterioridade tributária. No tocante à Constituição de 1988, o professor destaca a absoluta ausência de “qualquer menção à anualidade tributária”. Contestando diretamente a formulação de Novelli, Ricardo Lobo Torres descarta a manutenção da anualidade: Parece-nos, contudo, que é uma demasia a manutenção da anualidade tributária, eis que se torna insustentável a teoria da eficácia modificativa do orçamento com relação às leis dos tributos e que tal garantia não se inscreve no quadro dos princípios sensíveis do constitucionalismo hodierno, que o pudesse tornar indene ao discurso do constituinte. Com o desmantelamento das finanças brasileiras e com o fato inusitado de não haver sido aprovado a tempo o orçamento para 1994 a tese da permanência da anualidade tributária teria levado à impossibilidade de cobrança dos tributos federais naquele exercício!56

O professor Ricardo encontra dificuldade textual em admitir a manutenção do princípio. Segundo afirma, trata-se de opção que depende “dos dispositivos constitucionais de cada País, pouco influindo a questão da natureza formal ou material do orçamento”57. Ele não admite possa cogitar-se de construção hermenêutica a ponto de assentar a anualidade tributária como princípio implícito do sistema constitucional de 1988, assim como não concorda com a interpretação sistemática proposta por Baleeiro e Novelli em relação à Carta de 67/69. Em definitivo, para Ricardo Lobo Torres, a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, foi a certidão de óbito do princípio.

55

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Op. cit., p. 555-556. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Op. cit., p. 559; TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. V. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 271-272. 57 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 19ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 117. 56

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A abordagem textualista não significa que Lobo Torres não reconheça a fundamentalidade de princípios dessa natureza, como o faz com a anterioridade. O autor está de pleno acordo com o amplo alcance desse princípio à hipótese de revogação de isenções. Concordando, neste ponto, com Novelli, e a ele fazendo referência elogiosa, Lobo Torres também defende que a revogação das isenções “terá efeito restaurador, voltando a ter eficácia a norma de incidência que se encontrava suspensa, independentemente da edição de qualquer nova lei impositiva”, devendo ser respeitado o princípio da anterioridade58. Apoiado em Novelli, diz estar-se diante de “caso de concorrência de normas e de reaquisição da eficácia qualificatória da norma impositiva”59, não havendo diferença substancial em comparação à instituição de tributo novo ou majoração de existente. Desde a Carta de 1967, Lobo Torres afirma ter o alcance da anterioridade sido alargado, devendo lhe ser dada a maior extensão possível60.

4.

Conclusões Há uma linha comum entre as ideias desenvolvidas pelos três históricos professores da

UERJ: a defesa da anterioridade como direito fundamental dos contribuintes e expressão objetiva da segurança jurídica e da liberdade. São abordagens que reivindicam o efetivo cumprimento pela anterioridade tributária, como limitação ao poder de tributar, de sua função político-jurídica de permitir aos contribuintes calcularem suas decisões quanto aos atos e negócios jurídicos tendo em conta custos tributários conhecidos de antemão, afastada a possibilidade de surgirem novos, inesperadamente. É a anterioridade como efetiva garantia de segurança e liberdade. Trata-se de orientações que legitimam o possível avanço do Supremo na definição do alcance da anterioridade em casos de “majoração indireta”, como é o da revogação de isenção. A adequada leitura teleológica do princípio, como bem defendeu Flávio Bauer Novelli, impõe identificar quaisquer alterações legislativas que agravem a situação do contribuinte, considerado o ônus tributário, como equivalentes à instituição ou majoração de tributo: não só a revogação de isenções, mas restrições de créditos, prorrogação de tributos provisórios e alteração de regimes de apuração. O Supremo, no julgamento da Medida Cautelar na ADI nº 2.325/DF, deu um passo nesse sentido ao considerar que deveria ser observada a anterioridade em relação ao ICMS no caso da

58

TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 474. 59 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Op. cit., p. 317. 60 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. II. Op. cit., p. 561.

20

suspensão de utilização de créditos do imposto operada pela Lei Complementar nº 102, de 2000, que modificou os artigos 20 e 33, da Lei Complementar nº 87, de 1996. Quanto à anualidade tributária, a justificativa democrática é sedutora. Além de segurança jurídica, garantiria a liberdade revelada pela renovação anual do consentimento popular, exercido por meio da representação política, para a cobrança de tributos. No mais, imporia pensar a receita pública considerado o patamar e a qualidade das despesas, e vice-versa, fomentando a formulação de uma teoria tributária vis a vis uma teoria do gasto público61, e reaproximando Direito Tributário do Financeiro. Não impressionam as objeções textuais e consequencialistas62 formulados por Ricardo Lobo Torres. Princípios constitucionais implícitos não são novidade e as consequências fazem parte da mesa de negociações políticas no Congresso. Mais problemáticos se apresentam, segundo penso, os riscos de inocuidade do princípio ante a operação contemporânea do presidencialismo de coalizão e os tempos difíceis de “orçamentos impositivos” em favor de emendas parlamentares, colocando em dúvida a legitimidade do controle pelo Congresso da pertinência da previsão de receitas face às despesas públicas. O presente texto, homenageando Aliomar Baleeiro, Flávio Bauer Novelli e Ricardo Lobo Torres, procurou homenagear a Escola de Direito Financeiro da UERJ e festejar os 80 anos da instituição. Os aportes teóricos dos professores revelam o quanto essa “escola” já ofereceu ao ensino jurídico do país. Cabem aos professores contemporâneos aproveitar o legado como inspiração e avançar sempre mais o nome da UERJ no cenário do ensino superior nacional.

61

Sobre a justificação da tributação e os gatos públicos, cf. VOGEL, Klaus. The Justification for Taxation: a forgotten question. The American Journal of Jurisprudence. Vol. 33, 1988, p. 19-59. 62 Sobre o consequencialismo para o Direito Tributário, cf. TORRES, Ricardo Lobo. O Consequencionalismo e a Modulação dos Efeitos das Decisões do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Tributário Atual nº 24, São Paulo: Dialética, 2010, p. 439-463.

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