Antígona e a coragem de dizer a verdade

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Antígona e a coragem de dizer a verdade Entrevistado por Moriaki Watanabe, em 1974, Foucault enfatizava o desinteresse reservado ao teatro pela filosofia ocidental, desde que se deu como função principal a de destrinchar o real do ilusório, o verdadeiro do falso, enquanto o teatro ignora, em absoluto, tais distinções. Aliás, afirmava Foucault: “a não-diferença entre verdade e mentira é condição de funcionamento do teatro” porque o teatro é uma explícita construção de determinada representação de mundo ou de um conflito entre representações do mundo. Sendo assim, interessava a Foucault arguir o modelo essencialista da investigação metafísica sobre a verdade e partir para outra investigação, sobre quais são tais modelos e como eles se constituem, quais forças, rituais, máscaras e práticas compõem o teatro da verdade. Interessa-lhe o teatro como prática discursiva e produção de jogos de visibilização de um ou outro espetáculo do mundo; e de que modo tais encenações interferem na “cena da filosofia”.1 Para tal interesse, há um pressuposto na segunda jornada do curso dado por Foucault no Departamento de Direito da PUC-Rio, em 1973, quando Foucault apresenta a tragédia de Sófocles, Édipo rei, como uma investigação jurídica em busca de um culpado de assassinato, da qual o rei-juiz (tyranos) se encarrega. Já que ninguém diz a verdade, ou porque não sabe, ou porque não quer, são acionadas por vontade do tirano uma série de práticas para que a verdade apareça, o que acaba pondo em crise e derrubando a própria tirania. Foucault identifica “procedimentos de pesquisa da verdade que obedecem às práticas judiciarias gregas da época”2 e parte para uma genealogia de tais práticas, na qual inclui outras peças de Sófocles (Antígona, Electra) como “formas de dramatização da história do direito”, através das qual “o povo se apoderou do direito de dizer a verdade e de julgar aqueles que o governam”.3 Não lhe interessa mostrar a eficácia da revelação epistêmica da verdade, mas nossa ambígua relação com ela: o jogo da verdade, para jogar o qual a sociedade grega inventa e usa o teatro como prática ritualizada e institucional. Foucault retorna ao tema dez anos mais tarde, em seu penúltimo curso no Collège de France, publicado com título O governo de si e dos outros,4 quando desenvolve o conceito de paresia para além do conceito retórico de “fala franca” [licentia na versão

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La scène de la philosophie, in Dits et ecrits, tomo III. Paris : Gallimard, 1978, p. 589 A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2002, p.31 3 Ibidem, p.54 4 São Paulo: Martins Fontes, 2010. Ver especialmente aula de 26.1.1983, pp.123 e sgg. 2

latina do Sêneca] em uma ideia mais intrigante que é o “dizer verdadeiro” [le dire vrai]: uma maneira de dizer a verdade e não necessariamente o seu conteúdo. Faz paresia alguém que diz: “eis a verdade, toda a verdade”, podendo ser o rei, um filósofo, um cidadão, um palhaço, uma criança, qualquer um, pois não é o seu status que importa, mas o ato ético do “dizer verdadeiro”. É uma fala de testemunha: um ato público e livre que irrompe no real provocando efeitos desconhecidos e não codificados, de modo que põe todos em risco. É preciso coragem, avança Foucault, seja para quem diz a verdade e seja para quem a escuta – ao exemplo de Sócrates e dos cínicos, que fazem de seu corpo o teatro da verdade e enfrentam as consequências. Mesmo assim, é necessário dize-la, pois a crise que ela desencadeia ultrapassa a simples controvérsia: trata-se, antes, da luta entre revelação e ocultação da verdade que é fundamentação do princípio de isonomia na polis. Foucault define a paresia como um modelo de ato ético: a possibilidade (e logo obrigação) por parte dos cidadãos oprimidos de se fazer valer e reclamar da injustiça, diante dos poderosos, mesmo que seja a última coisa a ser feita. Perfeitamente repertoriado na sociedade grega e, como tal, performado por diversos heróis trágicos, tal ato é dotado de uma específica tensão dialética que Foucault chama de “dramática do discurso”, ou seja, a força de fazer com que nenhuma verdade permaneça absoluta após a sua enunciação / encenação. A paresia interfere, irrompe, interrompe e derruba a cena do poder; ao mesmo tempo, funda e desfunda a polis. Não aparece Antígona entre os personagens que Foucault analisa em sua genealogia de paresiastas. Talvez porque a morte como castigo é ameaçada desde a primeira cena da tragédia (diz Ismênia que Creonte “proibiu aos cidadãos que tumulem o corpo” [de Polinice] e ameaça quem desobedecer de “ser apedrejado pelo povo”, v. 25) e, segundo Foucault, não há paresia quando uma ameaça de morte pesa sobre a enunciação da verdade (idem, p.166). Ou talvez porque, por afirmar-se responsável e disposta ao castigo, Antígona não é submetida a investigação; mesmo assim, seu ato de fala põe em questão o que é verdadeiro e desencadeia um teatro da verdade dos mais destrutivos. Trata-se, afinal, da personagem à qual filósofos de todos os tempos (como Hegel, Holderlin, Schelling, Kierkegaard, Heidegger, Derrida, Lacan e depois Maria Zambrano, Luce Irigaray, Judith Butler) se dedicaram com mais interesse; um interesse especial mesmo, superior a todos os outros personagens ficcionais, não só da cena como das letras, o que faz dela uma exceção na afirmação foucaultiana do desinteresse da filosofia para com o teatro. Então, porque Antígone é esquecida? Pois vejamos.

Segundo as crenças gregas, todo corpo devia receber as libações necessárias, cabendo aos consanguíneos a obrigação de sepultar os cadáveres; entretanto, durante a guerra contra Argos, um edito tebano manda deixar insepultos os inimigos do Estado. A jovem filha de Édipo, prometida ao filho do rei Creonte, que também é seu tio, sepulta o corpo do irmão Polinice, inimigo do Estado; assim fazendo, Antígona viola o edito real e ainda proclama que o fez em respeito às leis divinas, que ela define superiores às disposições humanas. Seu ato de fala – não tanto seu gesto – desencadeia a tragédia. Creonte se mantém resoluto e ameaça castigar a culpada com a morte; porém, querendo preservar oportunidade de se mostrar piedoso, a deixa presa em uma caverna. Antígona recusa a sobrevivência que o rei lhe destina e se enforca; vendo isso, o filho de Creonte se mata aos pés da noiva; a esposa de Creonte faz o mesmo, ao saber da morte do filho. Resta apenas o rei, causa e testemunha da ruina de sua casa. É conhecida a leitura de Hegel, que considera a tragédia emblemática do mundo grego no embate entre duas ordens de valores: a ordem mítico-religiosa, defendida por Antígona, e a ordem política, cujo representante é Creonte. O embate constitui o primeiro momento do devir real do Espirito que Hegel denomina de eticidade e que contempla o irromper de “forças universais que regem a vontade humana e se justificam por si mesmas”,5 provocando a ação antagonista dos dois personagens. Ambos são heróis trágicos, pois ambos incorrem em paixão desmedida (hybris) e erro de julgamento (hamartia); ambos sacrificam seus bens em nome de valores que consideram justos e insultam os valores do outro. O conflito trágico se instala, segundo Hegel, em função de ambos terem igualmente razão e serem igualmente culpados, portanto na oposição entre forças de igual potência e diametralmente opostas: de um lado, a razão do Estado passando por cima do cadáver insepulto e do outro, a lei do Parentesco passando por cima das leis de autopreservação do poder no Estado. Todavia, Hegel considera que a família não pode se sobrepor à cidade-estado, sem que isso signifique uma regressão. Mesmo heroico, o desafio de Antígona é ação intolerável por ser uma resistência especifica (enquanto mulher) ao regime patriarcal, que Creonte representa (enquanto tio, pai e rei). Como poderia haver hostilidade entre família e estado, entre domínio doméstico (feminino) e domínio público (masculino)? De modo que Hegel, para garantir a passagem para a próxima etapa do devir real do Espírito, que ele denomina de direito absoluto, considera que o elemento masculino deva prevalecer sobre o feminino – âmbito que deve

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Fenomenologia do espírito, cap.VI. Petrópolis: Vozes, 1988, parte II.

permanecer doméstico e não pode de modo algum fazer-se porta-voz de uma reivindicação de tipo político. É justamente da reivindicação de Antigona que Judith Butler se arma para derrubar a leitura hegeliana. Ela argumenta que mesmo que fosse inconveniente, na sociedade grega, uma mulher tomar iniciativas envolvendo decisão ética, mais ainda se contra as leis, todavia Antígona o faz e para fazê-lo apropria-se da retórica do opressor. Pelo fato dela “falar verdadeiro”, especialmente condenado pelo coro e pela irmã Isménia, Creonte a teme e se queixa: “o homem já não sou eu, mas ela” (v. 528). Antígona, então, infringe muito mais que um decreto: ela transgrede as regras do gênero e do parentesco (como poderia, afinal, a filha de um incesto representar a santidade da família?). Não só. Quando diz “sim fui eu mesma e não nego” (v. 483), reivindicando sua ação criminosa em nome de “leis dos deuses, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem desde ontem, ou hoje, pois são perenes” (v.497), Antígona multiplica exponencialmente a gravidade do seu ato, pois as leis às quais se apela não se garantem no contexto jurídico da polis e neste contexto, a anarquia é o pior dos males. Segundo Butler, o antagonismo de Antígona é uma disputa pela soberania, sua ambígua rebeldia é um “clamor” pelo dizer verdadeiro, fundamento da cidadania que ela reivindica como um direito isonômico para todos os gêneros. Contrariando as expectativas repressoras da sociedade grega, perturbando a ordem patriarcal da cidade-estado, seu gesto rebelde se realiza plenamente no ato de fala, como modelo público (paradoxal) de ação exemplar: uma paresia que interrompe e devasta toda a cena do poder. Seu gesto é capaz de provocar aquilo que Foucault definiria uma “ruptura epistemológica” – um desvio irremediável no curso racional dos eventos, rumo à catástrofe trágica. Não é tanto a opinião divergente de Antígona que é capaz de tanto estrago, mas, sim, a forma radical com que a defende, questionando a lei (qualquer lei) como objeto de um saber seguro e confiável. Ela, segundo Butler, “aponta o dedo em outra direção, não à política enquanto questão de representação, mas a outras possibilidades políticas que se abrem quando pavesam-se os limites da representatividade”.6 Entre várias outras possíveis leituras da Antígone, escolhi analisar uma sequência (uma tradução, sua adaptação e uma das encenações que se seguiram) que valoriza esta força de interrupção ou crise na representação do “verdadeiro” e desvio para possíveis outros regimes de visibilidade. A tradução de Holderlin, datada Tubinga, 1804 (três anos

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O clamor de Antígona. Florianópolis: Editora UFSC, 2014, p.32

antes da publicação da Fenomenologia do espírito e, portanto, em diálogo com Hegel, com quem o poeta compartilhava a cidade e a paixão pela heroína) apresenta ousadias sintonizadas com sua sensibilidade romântica. O mensageiro que faz relato da primeira sepultura de Polinice, amedrontado pela pergunta “quem se atreveu”, ao invés de responder “eu não sei” como no original, responde “impensável” (v.255); da segunda vez, diz que o crime aconteceu quando “o vento levantava a terra em redemoinhos” (v. 421), em um ambiente suspenso entre céu e terra, prodigioso e irrepresentável, de modo que o coro comenta: “talvez um ato de deus”. As lacunas de percepção provocam uma geral turvação dos sentidos, uma crise estética da qual Antígona se aproveita, opondo ao conhecimento de Creonte, um não conhecimento, uma dimensão outra que ultrapassa e destitui a dimensão dos vivos. Imperturbável, Antígona não parece agir uma oposição, mas uma deposição. O conflito trágico não depende do antagonismo entre dois etos, como para Hegel, mas de um ato consciente e gravíssimo de interrupção da lógica da polis. Um ato anárquico de desfundação, pois não afirma uma outra política, mas um outro da política; como sugere Butler, Antígona de Holderlin “aponta o dedo em outra direção”. É lendo a correspondência entre Goethe e Schiller que Bertolt Brecht é tomado pela ideia de adaptar Antígona, na tradução holderliniana. Estamos em dezembro de 1947, em Zurique onde Brecht aguarda com a família, que também é sua companhia teatral, a permissão iminente para regressar a Berlim, de onde foi exilado pelos nazistas quinze anos antes. Ele entende apresentar lá a Mãe coragem que escreveu para celebrar o retorno aos palcos alemães da companheira, a atriz Helene Wiegel; então Brecht cogita a Antígona de Sofocles como uma espécie de preparação para a Mãe coragem. O visto demora a chegar, de modo que, em janeiro de 1948, enquanto lê as notícias sobre o processo aos nazistas em Nuremberg, Brecht começa a ensaiar a peça para estreia em Zurique um mês mais tarde. Considerando que a família Brecht pegou o trem para Berlim só em 18 de outubro daquele ano, sobrou ao poeta muito tempo para refletir sobre seu trabalho, amadurecendo ideias que vinha elaborando desde o período americano e definindo-as sob a forma de dispositivos precisos de atuação e encenação – inclusive, aplicados à Antígona, em um documento chamado de Antigonmodell.7As ideias diziam respeito à elaboração de um regime estético alternativo ao regime representativo que Brecht, em seu diário de trabalho, chama de “sistema trágico coercitivo”; no qual, através da manutenção da empatia, o espectador é anestesiado e vacinado, isto é, convencido de “Dispositivo para Antígona de Sófocles”, in Estudos sobre teatro, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 205-215 7

que o destino do herói é inevitável e que, portanto, é melhor não reivindicar os desejos inconvenientes que produziram tanto sofrimento. A Brecht interessa, ao contrário, interromper a identificação emotiva de modo que o espectador entenda que o destino do homem, mesmo em situações extremas como a guerra, está nas mãos dos homens e que, portanto, é necessário testemunhar, até mesmo o horror. Entende a sua Antígona como um dispositivo de interrupção e de questionamento do que seria um ato ético em estado de exceção, quando toda moral está suspensa. “E’ preciso ter a coragem para dizer a verdade”, escrevia Brecht de Paris, em 1934, entendendo, bem como Foucault, o “dizer a verdade” não de modo essencialista, mas no sentido de “expressar seu ponto de vista sobre o verdadeiro estado das coisas”.8 Fica logo claro o motivo pelo qual adapta a história a abril de 1945 e introduz um prólogo. Duas irmãs, ao voltar de um abrigo antiaéreo, encontram em casa vestígios do retorno do irmão que serve no exército; se alegram, mas em seguida, chamadas por gritos no pátio, percebem que o irmão está prestes a ser enforcado por deserção. Diante do dilema ético (devem elas, arriscando a vida, tentar salvar o irmão ou devem negar conhecê-lo?), a ação é interrompida; o dilema ecoa na plateia, provocada a tomar uma posição ou diversas. Segundo intui Brecht, a interrupção provoca fragmentação e multiplicação dos pontos de vista, de modo que o espectador percebe que nenhum deles tem uma absoluta validade e é incluído no jogo como alguém capaz de decidir. Schiller, na correspondência com Goethe (datada 26/12/1797 e citada por Brecht em seu diário de 9.1.1948) sugeria: “A ação dramática movimenta-se perante mim, enquanto sou eu que me movo entorno da ação épica, que fica imóvel. Se o evento se move, eu fico rigidamente vinculado ao objeto, minha percepção sensível fica em contínua agitação, minha fantasia perde toda a sua liberdade. Quando eu me movo em volta do evento, posso proceder e parar, conforme as demandas de minha subjetividade, posso voltar, antecipar”.9 Se o “sistema trágico coercitivo” prova ao espectador a impossibilidade de mudar o destino, o “sistema épico” lhe demonstra que é possível agir nele e transforma-lo. Trata-se de mudar a relação entre testemunha e realidade, ou seja, mudar o regime de visibilidade: “experimentar sobre o texto antigo não uma nova dramaturgia, mas uma nova forma de interpretação e recepção”, anota Brecht no início do Antigonenmodell e, no final, satisfeito: “o dispositivo funciona igual ao Cravo Bem Temperado”. Funciona como peça de aprendizagem (em alemão lehrstück) posta à disposição do debate entre espectadores, 8 9

“Cinque difficoltà per chi scrive la verità”, in Scritti sulla letteratura e sull’arte. Torino: Einaudi, 1973 Diario di lavoro 1942-55. Torino: Einaudi, 1976, vol. II, p. 895

sem uma mensagem específica a não ser a apresentação da trágica e selvagem decadência da guerra em ausência de qualquer deus a favor ou contra. O tom cinzento da encenação aclarava a barbárie. Havia um semicírculo de biombos, circundado por estacas com caveiras de cavalo e um jugo para bois apoiado nas costas de Antígona, de modo que a partitura física da atriz ilustrava a perpétua escravidão do povo diante do tirano. Com máscara de Baco, Creonte dançava no cumulo da destruição e sua dança brutal e grotesca citava literalmente a “giga” dançada por Hitler à notícia da derrota da França (e anotada em detalhes por Brecht em seu diário de trabalho). Ficaria claro ao espectador estar assistindo a algo obsceno, desumano e irrepresentável do que, entretanto, havia sido testemunha na realidade; ficaria claro que o comportamento ético de um único indivíduo pode fazer a diferença. Pois, anota Brecht no diário de 18.1.1948, “toda vez que um Creonte entra em cena, uma Antígona também surge”.10 É na prisão de Passiac Count, onde ficou detida por 30 dias, em 1964, que Judith Malina, atriz do grupo americano Living Theatre nascida e alfabetizada na Alemanha, sentiu vontade de reler Antígona, na versão de Brecht dos versos de Holderlin, começando então a verter o texto para o inglês. Foi quando também lhe surgiu a ideia de transformar em espetáculo o julgamento do qual eram objeto, fazendo tudo que pudessem “para afrontar a corte” (comenta em seu diário Judith, a qual, assim como Brecht, anotava tudo, ideias, reflexões, instruções de cena). Na primavera de 1967, soltos, apresentaram a peça em teatros da Alemanha, Itália e Espanha franquista. Judith, grávida, fez a virgem Antígona barriguda até uma semana antes de parir. A aparente incoerência não impedia sua identificação com a substância ética da personagem – na esteira dos leitores (Brecht e Holderlin) que a precediam na linhagem romântica, que ela combinava ao legado anarquista (Paul Goodman). Para Judith, a rebeldia de Antígona é um ato necessário de desobediência quando um indivíduo não pode mais tolerar a opressão do poder sobre seu corpo – ainda mais em se tratando de um corpo grávido. “Antígona representa a vontade da mulher de mostrar sua força e decisão contra o mundo, o governo, a corte”.11 A encenação aplicava algumas das instruções de Brecht. Considerando que “a simples devolução do texto induz a imagens convencionais enquanto é preciso escavar em outra direção: na alegria, no medo, na raiva, na resistência, na força psíquica, na derrota, no horror... tudo isso está presente, sob as palavras das testemunhas, em seus

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Idem, p. 897 Entrevista com Cristina Valenti, in Storia del Living Theatre. Milano: Eleuthera, 1995, p.170

corpos”,12 Judith procurava formar imagens impactantes (chamadas “constelações”) com o corpo dos atores. O trono de Creonte, assim como a caverna em que este manda prender Antígona, é formado por corpos entrelaçados: hora um monstro do qual o rei é somente uma das cabeças falantes, hora uma cela humana com mãos que, toda vez que Antígona tenta falar, tampam os ouvidos. Único corpo que representa a si mesmo é o cadáver de Polinice, assassinado no prólogo e deixado nu e insepulto no proscênio ao longo da peça, testemunha da impiedade do rei, até acumular-se sobre ele, no final, os outros mortos. É um cadáver que pesa sobre o destino da cidade: não se pode matar e esquecer, pois se um poder usa a violência contra os seus inimigos, a usará contra seus próprios cidadãos também. A encenação transferia as alusões religiosas ao plano político, mirando despertar nos espectadores a consciência de se sentir parte de uma cidade ou comunidade, não somente como vítimas, mas como agentes da transformação. O teatro agenciaria a “maravilhosa revolução não violenta” por meios de pequenas e graduadas mudanças interiores. Para tanto, ao invés do prólogo brechtiano, o Living mostrava logo no início a cena irrepresentável que nem Sófocles, nem Brecht ousaram: a guerra. Os atores, representando a si mesmos em suas roupas cotidianas, sob a luz de serviço, avançavam no palco vazio, hostilizando os espectadores, que compreenderiam então serem os inimigos. Havia guerra, com a morte dos dois irmãos, cujos cadáveres despidos eram depostos no chão do proscênio, antes dos primeiros versos falados. No final da peça, após a derrota dos tebanos e os últimos versos em se anuncia que os inimigos, cidadãos de Argos, vão exterminá-los, os atores deixando cair qualquer máscara e imagem voltavam a encarar aos espectadores, em fila frontal, na ribalta. Esperavam até o público bater palmas. Ao som das palmas, os atores reagiam como se fossem fuzilados por um pelotão de execução. Declarando a falência da representação no sentido ilusionista, o Living obrigava a tragédia a se refundar como performance política – sem moral e sem catarse, mas em busca da possível transformação dos modos da realidade. O espectador, testemunha da violência que paralisa e aniquila a vida, perceberia dentro de si que deve haver outras possibilidades (“outra saída”, como escreve Julian Beck em 1968)13 para que a violência não gerasse, necessariamente, outra violência. A evidente gravidez de Antígona constituía mais do que uma bandeira feminista: um gestus ambíguo e poderoso, pois ilustrava a fala:

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Idem, p. 173 “Messaggio agli attori” in Quadri, Franco. Beck e Malina. Il lavoro del Living. Milano: UBULIBRI, 1982, p. 340 13

“Não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor” (v. 541). Sua desobediência é um ato de resistência pacifista que lhe custa a vida, mas faz a diferença – não pela santidade do sacrifício, pois sua morte não corresponde à redenção alheia, mas pela sacralidade da vida nua, inteiramente amorosa que se opõe à opressão, à injustiça, ao horror da guerra.

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