Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça e a criação da Academia Militar na Capitania de São Paulo

June 23, 2017 | Autor: Maria Luiza Cardoso | Categoria: História do Brasil, Historia da Educação, Historia Militar Brasileira, História do Ensino Militar
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Universidade Estadual de Maringá 29 de Junho a 02 julho de 2015 ISSN 2236-1855

ANTONIO MANOEL DE MELLO CASTRO E MENDONÇA E A CRIAÇÃO DA ACADEMIA MILITAR NA CAPITANIA DE SÃO PAULO

Maria Luiza Cardoso Universidade da Força Aérea e-mail: [email protected] Palavras-chave: 1. História da Educação. 2. História da Educação Militar. 3. História da Educação em São Paulo.

No final do século XVIII, o nobre militar português, Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça, foi designado pelo iluminista D. Rodrigo de Sousa Coutinho (na época, Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos), para assumir as funções de CapitãoGeneral1 da Capitania de São Paulo. Este trabalho teve como objetivo analisar o papel de Mello Castro e Mendonça, na promoção da educação básica e profissional na Capitania, durante o período em que administrou esse território (1797-1802). Os documentos necessários à realização desta pesquisa foram consultados nos acervos do Instituto de Estudos Brasileiros, localizado na Universidade de São Paulo, e do Conselho Ultramarino, microfilmado e digitalizado pelo Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco. Os objetivos do governo do Capitão-General eram bem claros, de acordo com a “Oração de Posse”: Acrescentar suas povoações, estender aos confins os seus domínios, fertilizar os campos com a agricultura, estabelecer nas terras diferentes fábricas, idear novos caminhos, penetrar incógnitos sertões, descobrir o ouro das suas minas, fortificar as suas praças, armar o seu exército, fazer observar as leis e respeitas as justiças. (Apud BELLOTTO, 1986, p. 279). D. Rodrigo, influenciado pelas doutrinas de livre mercado que circulavam na Europa, atribuía o colapso da monarquia francesa, ocorrido em 1789, ao emprego de uma inadequada política fiscal. Ele acreditava que as mudanças na área econômica eram necessárias para “impedir o

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Atualmente, Governador.

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descontentamento dos ‘povos’ para com o governo e evitar a contestação da soberania do príncipe.” (COSTA, 2007, p. 59). Seu ídolo era o ministro do tesouro inglês, William Pitt, que era influenciado especialmente pelas ideias de Adam Smith e Shelbourne. Como homem das “Luzes”, defendia uma administração financeira eficaz e uma reforma inteligente para que Portugal não ficasse em situação semelhante a da França. Colocar a administração da economia e do exército nas mãos de pessoas ignorantes, era colocar em risco o trono português. Assim, planejava “reformas executadas por homens inteligentes e capazes de formar sistemas bem organizados, e cuja utilidade seja por todos sentida e experimentada”. (MAXWELL; SILVA, 1986, p. 376). Conforme citado por Maxwell e Silva (1986), “D. Rodrigo pretendia basear as suas medidas ‘nos princípios os mais liberais se é lícito adoptar na nossa língua esta palavra no sentido que os ingleses lhe atribuem’”. (p. 376). Não por acaso, entre 1770 e 1840, “a estatística surge como um campo de saber essencial que atendia a demandas distintas”. (COSTA, 2007, p. 66). A necessidade de recolhimento e de controle de informações, principalmente, do mundo econômico, era própria do espírito da época. Com relação aos domínios portugueses ultramarinos, havia-se adotado um novo paradigma de colonização na época da Revolução Industrial: as colônias deveriam se tornar mercados consumidores dos produtos industrializados do reino, mas, por outro lado, fornecedoras das suas matérias-primas e dos seus alimentos. De acordo com Maxwell e Silva (1986), era importante para o reino que se promovesse a agricultura e o comércio com o interior, na América portuguesa. E, consequentemente, o melhoramento das vias de comunicação entre as capitanias. Também, era sensato permitir a industrialização de produtos que “por negligência compramos a estrangeiros – ferro, aço, salitre”. (Apud MAXWELL; SILVA, 1986, p. 377). Também, houve uma maior preocupação com a ocupação e defesa do território, e o estabelecimento de práticas administrativas influenciadas pelo ideário iluminista. Para a realização desse ideário, conhecimentos e técnicas precisavam ser colocados a serviço do Estado e houve um esforço no levantamento minucioso das populações, na investigação de recursos naturais, na medição e marcação de territórios, na organização e preparo das tropas e na educação da população. (FERLINI, 2009).

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No campo político, o receio de uma nova revolução ou revolta (como as que aconteceram na Colônia, em Minas2 e na Baía3) fez o governo português adotar o sistema federativo na América, “com a maior firmeza nas negociações e a mais intacta e pura boa-fé”. (MAXWELL; SILVA, 1986, p. 379). Inclusive, na época, muitos eruditos brasileiros foram empregados em postos de confiança do reino. Na primeira metade do século XVIII, a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro (ex-Capitania de São Vicente) experimentou um grande crescimento da sua rede mercantil. Graças às descobertas auríferas na região das minas, os antigos bandeirantes passaram a se tornar produtores agrícolas e comerciantes que forneciam mercadorias para o abastecimento da população da área, o que muito estimulou a sua economia. Todavia, a perda de territórios, com a criação da Capitania Real de Minas Gerais, em 1720, e de outras Capitanias, a construção do Caminho Novo, em 1733, que ligava Minas Gerais diretamente ao Rio de Janeiro, a perda da autonomia, em 1748, quando ficou subordinada à Capitania do Rio de Janeiro, e a crescente escassez do minério, fizeram a Capitania de São Paulo retroceder economicamente. Segundo Mattos (2009), esse período é considerado por muitos autores “como um ‘vácuo de meio século’, compreendido entre o ‘franco declínio’ do ouro e a ascensão da lavoura cafeeira a partir da década de 1840, […].” (p. 7). No entanto, considerando os conflitos com os espanhóis e a grande distância que separava o Rio de Janeiro do Sul da Colônia, São Paulo era considerada ponto estratégico para o governo português e não poderia continuar sendo ignorada. Assim, em 1765, a Capitania recuperou a sua independência administrativa, com a missão de “conter a belicosidade do Sul e estender os domínios portugueses a oeste”. (FERLINI, 2009). A Capitania passou, então, a viver em função da provisão de víveres e de homens. Mas, mesmo assim, ainda havia a necessidade de inserir a região nas redes mercantis do Império português. O produto escolhido foi o açúcar e, no final do século XVIII, depois de muito incentivada pelos Capitães-Generais, como, por exemplo, pelo governador Mello Castro e Mendonça, a cultura da cana transformou-se na principalmente atividade econômica de exportação de São Paulo, seguida do comércio realizado com as tropas de muares que conectavam a Capitania com o Sul da Colônia. Assim que chegou à Capitania, o Capitão-General encontrou uma região que possuía condições muito precárias para a implantação da reforma da administração fazendária. D. Rodrigo, seu superior, ordenava a elaboração de mapas sobre a população (número de habitantes, ocupação dos habitantes, casamentos anuais, nascimentos e mortes) e a economia da Capitania (importação e exportação, produção, consumo, preços dos gêneros, números de navios que entram e saem), mas, não                                                                                                                         2

Inconfidência Mineira (1789). Baiana (1798).  

3  Inconfidência

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havia funcionários suficientes e preparados para exercerem essas tarefas: “a todo momento que lhe era pedido designar um estudioso para algum levantamento e estudo na Capitania não sabia onde o encontrar.” (WEGNER, 2004). A dificuldade de localizar pessoas qualificadas para trabalhar na administração “que escrevam e contem suficientemente”, bem como outros profissionais, necessários ao progresso da Capitania, levou o governador a sugerir ao Príncipe Regente, D. João, a fundação de dois estabelecimentos de “novos estudos”: a Academia Militar e a Academia Fármaco-Cirúrgica. Além disso, o Capitão-General viveu numa época em que várias academias militares estavam sendo criadas, tanto em Portugal, como na sua Colônia, para a formação de engenheiros e artilheiros, tão necessários para a ocupação e a defesa dos territórios: no reino, D. Maria I criou a Academia Real de Marinha, em 1779, e a Academia Real de Fortificação e Desenho, em 1790. Na América portuguesa, foram criadas: uma Academia Militar, em Pernambuco, em 1788, que adotava o currículo do curso matemático da Academia Real de Marinha; e, no Rio de Janeiro, a Real Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho, em 1792, e a Academia de Aritmética, Geometria Prática, Fortificação, Desenho e Língua Francesa para Oficiais de Infantaria, em 1795. (CARDOSO, 2015). Assim, ele apresentou a seguinte proposta para a resolução dos problemas relativos à falta de pessoal especializado: Memória econômico-política da Capitania de São Paulo A “Memória econômico-política da Capitania de São Paulo”, apresentada pelo Governador Antonio de Mello Castro e Mendonça, em 1801, ao Conselho Ultramarino, é um documento que oferece sugestões para problemas de ordem econômica, política, educacional e religiosa que a capitania paulista estava enfrentando na época. A parte que nos interessa está contida no Capítulo VII, “em que se expõem o único meio de poder estabelecer-se a Aula [Curso] de Geometria nesta Capitania e as mais de que devem constar as Academias Militar e Farmaco-Cirúrgica.” (BRASILd). Através de Carta Régia de 19 de agosto de 1799, o Príncipe Regente D. João tinha determinado que fosse criada uma Aula de Geometria na Capitania. Todavia, o governador não tinha recursos para implantá-la. Em algum momento, ele se lembrou que o Príncipe tinha dado poderes às Câmaras “para lançarem as fintas (contribuições ou taxas), que se julgassem necessárias para manterem [os estudos de] alguns Engenheiros, Hidráulicos e Topográficos, Médicos, Cirurgião e Contadores.” (BRASILd). Assim, lhe pareceu que, ao invés de financiar estudos fora da Capitania, melhor seria empregar a contribuição para “criar uma Academia Militar, na qual não só se ensine a

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Geometria, [...], mas também tôdas as mais disciplinas que fazem o objeto das Ciências Matemáticas em geral, em que deve entrar o Curso de Fortificação e Artilharia e Aula de Desenho”. (BRASILd). A seguir, ele relata o método que elaborou “para se economizarem parte das despesas que os estudantes destinados àquelas aplicações deviam fazer fora da Capitania” (BRASILd), e tenta provar ao Príncipe “ser absolutamente necessário o estabelecimento da Academia Militar, [...], assim como a criação das Aulas [Classes] de Cirurgia, Farmácia e História Natural, Botânica e Química.” (BRASILd). Para o governador era importante não distrair para longe os fundos da Capitania, de que tanto necessita na atual conjuntura, e de fornecer a Tropa de Oficiais instruídos e capazes de desempenharem as funções dos seus emprêgos com utilidade do Estado (da Monarquia), o que aliás será sempre impossível enquanto se conservarem a ignorância, que grassa nesta e nas mais Capitanias da América [Portuguêsa]. (BRASILd). Por ocasião de um Aviso datado de 30 de março de 1799, que lhe serviu para escrever a sua Memória (dentre outros documentos), o governador informou ao Príncipe que já se achavam “despachados [nomeados] três Matemáticos [para a Capitania], todos destinados aos postos da Brigada de Artilharia da Legião de Voluntários [do Rei].” (BRASILd). A sua ideia, então, era nomeá-los lentes da futura Academia Militar de São Paulo. O governador Antonio de Mello Castro inclusive se prontificou a elaborar um plano para as “disciplinas que deverão fazer o objeto das suas respectivas lições”. (BRASILa). Assim, segundo ele, se conseguiria “formar uma Tropa instruída.” (BRASILa). Igualmente, pretendia determinar que “ninguém seja[fosse] promovido a outros pôstos se não pelo exame que fizer, deve[ndo] necessariamente concorrer esta deliberação para se formarem muito hábeis Oficiais, que exerçam os emprêgos de Engenheiros, Hidráulicos e Topográficos, [...]”. (BRASILd). Mais tarde, o governador elaborou o plano de curso da Academia Militar, que aqui transcrevemos: A Academia Militar deve constar de cinco Aulas, a saber: três de Matemática, nas quais se ensine o Curso completo desta Faculdade, dividido em três anos letivos, uma de Fortificação e Artilharia e outra de Desenho. As mais... assiduidade e aplicações se fizeram dignos dêle, de cujos prêmios, número dêles em cada Aula e forma de serem adjudicadas se fará menção depois. [Para isso,] no primeiro ano do Curso de Matemática só ensinarão as matérias que para objeto das lições desta Aula se prescrevem nos Estatutos

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da Academia Real da Marinha, criada pela Carta de Lei [Decreto] de 5 de agôsto de 1779, com a diferença porém, que a Algebra será ensinada, ou simultâneamente com a Aritmética, ou imediatamente depois dela; por ser assim conveniente para a melhor inteligência e mais fácil demonstração de algumas preposições de Geometria, e de quase tôdas as de Trignometria, em que se faz um multiplicado uso da mesma Álgebra, devendo-se contudo guardar no método ou sistema do ensino das referidas disciplinas, o que a respeito de cada uma delas isoladas, e de per si se determina e recomenda nos Estatutos da Universidade de Coimbra. [Concluído o primeiro ano de Matemática,] as disciplinas que devem servir para as lições do segundo ano de Matemática são tôdas as que estão determinadas para o mesmo ano letivo nos ditos Estatutos da Academia Real da Marinha, que vem a ser: tôdas as que na Universidade de Coimbra se ensinam no segundo e terceiro ano, da sobredita Faculdade, à exceção da Álgebra, que como fica dito se deve explicar no próximo ano. Por esta razão será obrigado o professor dêste segundo ano a regular, quanto lhe fôr possível, as suas lições, pelo que a respeito da matéria de cada uma delas determinam os Estatutos da Universidade [de Coimbra]. [Assim,] quanto às lições do terceiro ano de Matemática deverão ter por objeto tôdas as disciplinas que na mesma Universidade [de Coimbra] se ensinam no quarto ano desta Faculdade; disciplinas aliás necessárias para os que se destinam para Engenheiros e para Topográficos [Topógrafos], no que não poderão ser peritos sem um formal conhecimento da Astronomia e exercício prático das suas aplicações aos diferentes objetos, a que tem de dirigir os trabalhos das suas respetivas profissões. [Nesse caso,] na Aula de Fortificação e Artilharia, se ensinarão tôdas as matérias que se acham determinadas para as lições dos quatro anos do Curso de Fortificação e Artilharia, em cuja exposição guardará o professor respectivo o sistema seguinte: principiará as suas lições por uma instrução geral, exata e precisa sôbre os princípios fundamentais de qualquer fortificação; depois do que passará a tratar da Fortificação regular, irregular, efetiva e de campanha demorando-se todo o tempo que fôr possível nesta última espécie de Fortificação por ser a que tem, ou pode ter, mais uso na América [Portuguêsa]. [Nesta altura,] transmitidas tôdas as idéias, que em geral fazem o objeto da Arquitetura Militar, imediatamente dará aos seus alunos uma breve noção de Arquitetura Civil, expondo-lhes o diverso modo de edificar dos antigos e modernos, e a grande diferença que há e deve haver, entre os projetos para os edifícios que se hão de construir de pedra e cal, e os que se hão de fabricar de terra batida, como se pratica nesta Capitania, a cujo respeito deverá o mesmo professor ensinar a misturar as terras heterogêneas em tal proporção, que entre si melhor, e mais intimamente se combinem e por efeito da tendência, que naturalmente solicita a sua recíproca adesão, se formem edifícios bem comparáveis àqueles, não deixando contudo de dizer o que fôr suficiente, sôbre a decoração dos mesmos edifícios, segundo as diferentes ordens de Arquitetura. [Com essa finalidade, completos os referidos estudos,] deverá o professor ensinar a teoria e prática da Artilharia, e o trabalho das minas, e contraminas, sendo mais profuso e extenso na Artilharia de Campanha, por ser mais análoga à defesa do Pais [do Brasil], e concluindo todo o estudo dêste ano com a doutrina do ataque e defesa das Praças [de guerra] e aplicação da Artilharia a êste mesmo objeto.

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[Para isso,] o professor de Desenho regulará as horas da sua Aula de maneira que possa ser frequentada por todos os discipulos dos anos de Matemática e Aula de Fortificação e Artilharia, guardando nas suas lições a ordem prescrita nos Estatutos da Academia Real da Fortificação, parágrafos 3 e 9, e nos da Universidade de Coimbra, T. 3, P. 2, V. 4, Cap. 5, à exceção dos parágrafos 4 e 5 do mesmo Capítulo. [...] [Nestas condições,] estabelecidas as mencionadas Academias com o número de Aulas [Classes] que acabo de indicar, é evidente que nesta mesma Capitania se podem instruir completamente tôdas as pessoas que hão de servir depois os emprêgos de Contadores, de Engenheiros Hidráulicos e Topográficos, e de Cirurgiões; e com tanto maior vantagem, quanto é a que resulta a esta Capitania de ter Mestres, que prossigam na instrução de tão interessantes estudos, sem com êles se aumentar as despesas da contribuição adjudicada para o mesmo fim. Por êste modo se consegue ter mais de dois Engenheiros Hidráulicos e Topográficos e haver, em quase tôdas as Vilas, um Cirurgião e um Contador, pago por êste rendimento, o qual deverá ser o Mestre de primeiras letras [Mestre-Escola], e para cujo fim, além dos conhecimentos necessários para êste emprêgo, e referido em o parágrafo 22 do Capitulo 6, deverá ter freqüentado, com aproveitamento, a Aula do primeiro ano do Curso de Matemática e depois de aprovado pelo exame que fizer, passará a servir de praticante na Contadoria, a fim de se instruir no sistema de escrituração e poder, com êstes princípios, exercer o emprêgo de Mestre nas Vilas onde forem mandados. (BRASILd). Chamamos a atenção do leitor para essa última parte do plano que está grifada. A ideia do governador Antonio de Mello Castro e Mendonça era formar, na Capitania, os mestres de primeiras letras que, no caso, seriam os contadores. Segundo Ferreira (1966) essa é a razão pela qual, até o início do século XX, “os alunos da Escola Normal da Praça, hoje Instituto de Educação ‘Caetano de Campos’, tinham uma cadeira de Escrituração Mercantil.” (p. 248). No seu plano, o governador ainda prescreve que [...] todos os mais alunos da Academia Militar deverão saber ao menos a Gramática da Língua Portuguêsa, e terão aprendido a Filosofia Racional e Moral pelos compêndios que para êsse fim se acham traduzidos, e por isso o Mestre da referida Aula fará as suas prelações em vulgar [em Português] para poder ser entendido de todos os que a freqüentarem, quer saibam Latim, quer não. Com êstes preparatórios passarão a matricular-se e a freqüentar tôdas as Aulas da Academia Militar, pelo método e ordem prescrita no parágrafo 25 antecedente; tendo sempre em vista que só aquêles que mais se avantajarem nos conhecimentos serão admitidos nos pôstos que vagarem, dando-se preferência ao que puder reunir maior nome dêles. (BRASILd). Cabe ressaltar que é a primeira vez que observo a introdução dos estudos de Língua Portuguesa numa academia militar!

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Quanto à criação de uma Academia de Cirurgia em São Paulo, o governador informa ao Príncipe: Tem esta Cidade absoluta e indispensável precisão de dois professôres hábeis, tanto para o partido dela, como para o curativo do Hospital Militar e da Cidade. A escolha, que se fizer pode ser tal, que em lugar de uns meros praticantes venham dois hábeis Mestres, que se destinem a ensinar um Curso completo de Cirurgia, pelo método que adiante se exporá. Além disto Sua Alteza Real tem uma Botica [Farmácia do Real Hospital Militar], e paga por conseqüência a um Boticário [Farmacêutico], o qual pode ser escolhido com os necessários conhecimentos para ensinar tôda a Farmácia, tanto teórica, como prática, e o Naturalista que fôr Diretor do Jardim Botânico pode, da mesma sorte, ensinar História Natural, insistindo principalmente no ensino da Botânica e Química, princípios indispensáveis para formarem bons Cirurgiões e ótimos Farmacêuticos. Ficando por conseqüência todo o produto das fintas [contribuições] das Câmaras [de Vereadores], e todo o proveito de sua aplicação, não sendo necessário vir de fora senão os Médicos, para o que basta estabelecerem-se os componentes partidos, que êles os virão ganhar sem se fazerem despesas antecipadas, no tempo em que se aprenderem, o que vem a ser mais oneroso para tôda a Capitania. (BRASILd). Finalmente, quanto à criação de uma biblioteca pública na cidade de São Paulo, o governador assim se manifesta: Eu creio, Exmo. Sr. que por êste modo, com o rendimento daquela mencionada imposição literária se estabeleçam as referidas Academias, as quais hão de ser por extremo proveitosas à Capitania, e se procuram, de mais a mais, todos os meios de a policiar [civilizar] e encher de luzes. Para êste fim, haverá uma Livraria [Biblioteca] Pública na qual se conservem todos os livros magistrais [de mestres] para serem consultados pelos Catedráticos, tanto das referidas Aulas, como das que já se acham estabelecidas, e sustentadas pelo subsídio [contribuição] literário; e além disso tôdas as mais de qualquer das Faculdades, Teológica ou Jurídica que se julgarem convinientes. Na mesma Livraria se conservarão todos os livros elementares que por conta daquela renda se hão de mandar imprimir para serem distribuídos gratuitamente pelos estudantes que freqüentarem as mencionadas Aulas. (BRASILd). Dos projetos citados anteriormente, elaborados pelo Capitão-General, o único que saiu do papel foi a criação do Hospital Real Militar, em 1802, onde passaram a ser ministradas as “Aulas de Cirurgia”, que foram interrompidas no ano de 1806, “permanecendo apenas a instituição hospital, ainda assim em condições bastante precárias.” (SANTOS FILHO, 1977, p. 295-296). Aliás, o hospital teve que ser criado, uma vez que duas epidemias de varíola eclodiram na Capitania entre 1796 e 1798. O fato era que, numa região dominada pelo ambiente rural e, às vezes, inóspito do sertão, os

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assuntos que se relacionavam com a educação não eram vistos como prioritários. O “subsídio literário”, elevado imposto para custear as despesas com a instrução pública, e que seria utilizado para financiar esses projetos, era diminuto. Quando não recebia destino diverso da educação, era foco de resistência das câmaras municipais. Quando Mello Castro e Mendonça resolveu lançar a taxa sobre os produtos exportados, recebeu inúmeras reclamações. A confusão foi tanta, que o Conselho Ultramarino acabou autorizando o Capitão-General a acabar com a contribuição literária “por ela obstar o desenvolvimento do comércio de açúcar paulista.” (PETRONE, 1968, p. 26). CONSIDERAÇÕES FINAIS Modernizar a América portuguesa de acordo com os ideários iluministas não foi nada fácil, principalmente na Capitania de São Paulo, que sofreu um grande baque econômico entre meados do século XVIII e início do XIX. Além da falta de recursos financeiros e materiais, faltavam principalmente recursos humanos qualificados para promover o desenvolvimento da Capitania, segundo seus administradores. O Capitão-General Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça, homem ilustrado, sentiu muita dificuldade de colocar em prática, na Colônia, o conhecimento puramente racional produzido nas academias europeias. Todavia, acreditamos que seria de grande valia para a Capitania se tivesse tido a oportunidade de inaugurar a Academia Militar que projetara, com a finalidade de formar não somente profissionais, como engenheiros, mas, principalmente, contadores-professores que iriam promover a instrução básica da população paulista, numa época em que professores eram tão raros. Numa época em que faltavam homens para trabalhar na Capitania, uma vez que a maioria era recrutada para atuar nos conflitos com os espanhóis, a educação formal era considerada uma perda de tempo ou um luxo para poucos. As câmaras municipais, se recusando a pagar o subsídio literário, impediram que o projeto da Academia saísse do papel. Entretanto, considerando que, no início do século XX, ainda havia uma disciplina de Escrituração Mercantil no currículo da Escola Normal da Praça (hoje, Instituto de Educação ‘Caetano de Campos’), podemos dizer que o projeto de Castro e Mendonça, apesar de não realizado, deixou a sua marca.

REFERÊNCIAS

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BELLOTTO, Heloísa Liberalli. O Estado português no Brasil: sistema administrativo e fiscal. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira. Nova História da Expansão Portuguesa: O Império Luso-Brasileiro (1750-1822). Lisboa: Editoral Estampa, 1986. (p. 261-300). BRASIL. OFÍCIO de Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Conde de Linhares, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, informando que está fazendo uma memória econômico-político da capitania de São Paulo (Ofício n.º 81). São Paulo, 19 de Dezembro 1800, São Paulo AHU-São Paulo, cx. 14, doc. 9. AHU_CU_023, Cx. 16, D. 789. (a). BRASIL. OFÍCIO do governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho, enviando uma relação dos eclesiásticos da cidade de São Paulo, vilas e freguesias, com suas respectivas idades e empregos. Envia a situação dos empregos dos ofícios de Justiça e Fazenda desta capitania; propõe a criação de novos estudos na área de: contadores, engenheiros, hidráulicos, topográfos e cirurgiões para o pleno desenvolvimento da cidade de São Paulo. São Paulo, 26 de Janeiro de 1801. Anexo: relação de clérigos de ordem sacra (cópia). Ofício n.º 21 da relação do ano de 1801, Dezembro, 23. AHU-São Paulo, cx. 15, doc. 8. AHU_CU_023, Cx. 16, D. 821. (b). BRASIL. OFÍCIO do governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho, comunicando a permanência, nesta capitania, do bacharel Francisco Vieira Goulart, para que possa concluir a memória econômico-política desta capitania. São Paulo, 27 de Fevereiro de 1801 (Ofício n.º 25 da relação do ano de 1801, Dezembro, 23). AHU-São Paulo, cx. 15, doc. 8. AHU_CU_023, Cx. 16, D. 832. (c). BRASIL. OFÍCIO do [governador e capitão general da capitania de São Paulo], Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho, informando que todos os assuntos referentes aos subsídios literários, aos exames e aos professores aprovados desta capitania, estão na memória econômico-política. São Paulo, 14 de Dezembro de 1801. Anexo: sexto e sétimo capítulo da memória econômico-política de São Paulo (cópias). (Ofício n.º 42 da relação do ano de 1801, Dezembro, 23). AHU-São Paulo, cx. 15, doc. 8. AHU_CU_023, Cx. 18, D. 895. (d). BRASIL. OFÍCIO do [governador e capitão general da capitania de São Paulo], Antonio Manoel de Mello Castro e Mendonça, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], D. Rodrigo de Sousa Coutinho, informando que o Físico-mor da capitania de São Paulo, Mariano José do Amaral, tem o dever de atender o Hospital Militar e o Hospital Público, assim como e dar aulas aos ajudantes de cirurgiões. São Paulo, 15 de Dezembro de 1801. (Ofício n.º 44 da relação do ano de 1801, Dezembro, 23). AHU-São Paulo, cx. 15, doc. 8. AHU_CU_023, Cx. 18, D. 897. (e). BRASIL. REPRESENTAÇÃO dos comerciantes da vila de Santos ao príncipe regente [D. João], solicitando que fossem isentos da contribuição denominada “literária”, que havia sido estabelecida por, governador e capitão general da capitania de São Paulo, Antonio Manoel de

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Melo Castro Mendonça para fazer frente ao pagamento de novos funcionários tais como cirurgiões, contadores, hidráulicos etc. A vila de Santos já era sobrecarregada por muitos impostos, como se demonstrava em anexo, e, portanto, seus habitantes poderiam ser isentos deste novo imposto. Vila de Santos, 13 de Janeiro de 1803. (Anexo: certidão, 2 requerimentos). AHU-São Paulo, cx. 18, doc.1. AHU_CU_023, Cx. 19, D. 937. (f). CARDOSO, Maria Luiza. A formação de Artilheiros e Engenheiros em Portugal e na sua colônia americana – um estudo comparativo (1777-1808). In: RODRIGUES, Fernando da Silva; FERRAZ, Francisco; PINTO, Surama Conde Sá (Orgs.). História Militar: Novos caminhos e novas abordagens. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2015. COSTA, Bruno Aidar. A tessitura do fisco: A política ilustrada de D. Rodrigo de Souza Coutinho e a administração fiscal da Capitania de São Paulo (1797-1803). Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Economia da UNICAMP para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Econômico. Campinas, SP: [s.n.], 2007. FERLINI, Vera Lucia Amaral. Uma capitania dos novos tempos: economia, sociedade e política na São Paulo restaurada (1765-1822). Anais do Museu Paulista, vol. 17, n. 2, São Paulo, July/Dec., 2009. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-47142009000200012 . Acesso em: 06/04/2015. FERREIRA, Tito Livio. História da educação lusobrasileira. São Paulo: Saraiva, 1966. MATTOS, Renato de. Política, administração e negócios: a Capitania de São Paulo e sua inserção nas relações mercantis do Império Português (1788-1808). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em História. São Paulo, 2009. MAXWELL, Kenneth; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Política. In: SERRÃO, Joel; MARQUES, A. H. de Oliveira. Nova História da Expansão Portuguesa: O Império LusoBrasileiro (1750-1822). Lisboa: Editoral Estampa, 1986. (p. 333-441). PETRONE, Maria Thereza Schorer. Considerações sobre a tributaçãoo do açúcar e da aguardente paulistas (1765-1851). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 5, 1968, p. 23-30. SANTOS FILHO, L. de C. História geral da medicina brasileira. São Paulo: Hucitec; EdUSP, 1977. Vol. 1. WEGNER, Robert. Livros do Arco do Cego no Brasil colonial. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol.11, supl.1, Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702004000400007 . Acesso em: 06/04/2015.

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