António ORIOL TRINDADE, “Geometria na Cenografia em Portugal: da herança dos Bibiena a Aquiles Rambois, Giuseppe Cinatti e Luigi Manini ”, in Arte e Teoria, nºs14/15, Janeiro de 2015, Revista da Secção Francisco de Holanda, da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, pp.125-135

August 29, 2017 | Autor: A. Oriol Trindade | Categoria: Geometry, Linear Perspective, Cenografia
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António Oriol Trindade, Phd – Departamento de Desenho da FBAUL GEOMETRIA NA CENOGRAFIA EM PORTUGAL: DA HERANÇA DOS BIBIENA A AQUILES RAMBOIS, GIUSEPPE CINATTI E LUIGI MANINI Resumo Continuando com as influências da escola bolonhesa, já manifestada no tempo do pintor de perspectivas Vincenzo Bacherelli, é no séc. XIX e em continuidade e paralelo com a tradição da pintura de tectos em perspectiva, que surgem em Portugal significativos autores italianos herdeiros, directos e indirectos, da tradição bibienesca de cenários para teatros e óperas, desenhados livremente, mas também a régua e esquadro, como se mostra neste artigo com a análise de desenhos inéditos de Aquille Rambois/Giuseppe Cinatti e de um telão para o teatro de São Carlos em Lisboa de Luigi Manini Abstract Continuing with the influences of the Bolognese School, already manifested in the time of perspective painter Vincenzo Bacherelli, it is in the nineteenth century, continuity with the tradition of painting ceilings in perspective, that arise in Portugal significant italian authors heirs, direct and indirect, of tradition bibienesca of cenografy drawings for theaters and operas, designed freely, but also with the ruler and the square, as shown in this article with the analysis of unpublished drawings of Aquille Rambois / Cinatti Giuseppe and a screen for the theater of São Carlos in Lisbon by Luigi Manini

Pintura e arquitectura cenográfica em Portugal

Ainda no século XVIII, depois das primeiras manifestações do pintor-cenógrafo florentino Vicenzo Bacherelli, por nós já referido noutro lugar1, o estado dos conhecimentos da perspectiva linear em Portugal nos círculos artísticos e particularmente na pintura de cavalete, até ao período final do Barroco, foi, salvo raras excepções, como vimos na análise da perspectiva de algumas pinturas de cavalete do Renascimento ao Barroco e Classicismo, bastante parco e precário. De facto, foram bastante limitadas as especulações e a discussão

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Cf. António TRINDADE, Um Olhar sobre a Perspectiva Linear em Portugal nas Pinturas de Cavalete, Tectos e Abóbadas, Dissertação de Doutoramento em Belas Artes, especialidade em Geometria Descritiva, Orientação do Prof. Ass. Arq. Doutor Manuel Couceiro da Costa, Lisboa, FBAUL, 2008, 2 vols.

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sobre perspectiva linear em textos e ateliers portugueses e os poucos testemunhos que verificamos nos períodos anteriores foram sobretudo dirigidos aos arquitectos2. Na emergência do período Barroco, principalmente no início do século XVIII, com a nova moda e modalidade do gosto pela pintura de tectos em perspectiva, com a chegada a Portugal de cenógrafos e quadraturistas italianos, como os Bibiena e Vincenzo Bacherelli, que também eles transportavam as influências da cultura e dos métodos emilianos e dominantes em Itália, não só de escorçar perspectivas em pintura, como também de montar teatros e aparatos cénicos, onde nas construções geométricas inerentes valorizara-se a composição do lugar e o ponto de vista ou pontos de vista privilegiados, em sistemas monofocais e polifocais, as estruturas geométricas e arquitectónicas da arquitectura chã começam a ser preenchidas de forma abundante com essa viagem das formas e métodos perspécticos vindos do exterior, sobretudo de Itália. Num tempo próspero do ouro do Brasil e em que foi decisiva a chegada a Portugal de Vincenzo Bacherelli, bem acolhido e conhecido na corte e nos meios eclesiásticos, que trouxe consigo, no ano de 1701, como refere Giuseppina Raggi 3, a influência da linha “mais conservadora italiana” proveniente da escola de Jacopo Chiavistelli, como também dos cenógrafos italianos, sobretudo emilianos, da região italiana da Régia Emília, como os Bibiena, que em Portugal constroem três teatros e que traziam consigo as propostas e as técnicas da representação geométrica das perspectivas e de cenários, aliadas também à forte influência e circulação do tratado do jesuíta Andrea Pozzo – polarizando assim uma estética situada entre o mundo sagrado e profano, entre Pozzo e Bibiena – e, também, através da transmigração de outras fontes, da emigração e imigração de artistas portugueses para Itália, como Lourenço da Cunha que regressou de Roma em 1740, tudo isto fez com que se acendesse o debate sobre a ciência da perspectiva linear. O interesse nesse debate gerou-se certamente e pontualmente não só nos meios artísticos, como também nos meios eclesiásticos e aristocráticos. É importante recordar a presença no nosso país de cenógrafos da escola bolonhesa e emiliana, da região da emilia romana, a difusão das lições e do tratado de Ferdinando Galli

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Cf., também, Magno MELO e Henrique LEITÃO, “A Pintura Barroca e a Cultura Matemática dos Jesuítas: O Tractado de Prospectiva de Inácio Vieira, S.J. (1715)”, in Revista de História da Arte, I, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Univeridade Nova, Lisboa, 2005, pp.106-116. 3 Cf. Giuseppina RAGGI, “Il viaggio delle forme: la diffusione della quadratura nel mondo portoghese del Settecento”, in L’Architettura dell’Inganno. Quadraturismo e Grande Decorazione nella Pittura di età Barroca, catálogo relativo às actas do Congresso Internacional de Estudos, realizado em Rimini, Palazzina Roma, Parque Federico Fellini, Novembro de 2002, a cura di Fauzia FARNETI, Deanna LENZI, L’Architettura dell’Inganno. Quadraturismo e Grande Decorazione nella Pittura di età Barocca, Firenze, Alinea Editrice, 2004, p.180.

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Bibiena e a forte propaganda do tratado de Andrea Pozzo4, que oferecem aos portugueses uma variedade de fontes e de opções técnicas e decorativas, não esquecendo, claro está, os ensinamentos e a forte tratadística francesa e outra italiana que também circulavam, directa e indirectamente. Com as naturais variantes que caracterizam a nossa arte da pintura de tectos, Raggi na sua tese doutoral denotou esquemas-base codificados dos modelos italianos e sobretudo da região da Régia Emília 5: como a tripartição das abóbadas, características, segundo a autora, dos artistas de Bolonha, para evitar distorções de óptica e cujos exemplos se podem observar nos frescos de Mitelli e Colona no Salone delle Guardie do palácio ducal de Sassuolo, e que em Portugal têm o seu reflexo, por exemplo, na pequena abóbada do presbitério da igreja do Forte de São Filipe em Setúbal, onde outro artista importante, Policarpo Oliveira Bernardes, ensaia uma semelhante representação em azulejos na pequena abóbada; ou noutro esquema-base, que mostra duas cúpulas e grandes arcos axialmente e ortogonalmente dispostos, como é o caso do trompe l’oeil da nave do Santuário do Cabo Espichel por Lourenço da Cunha.

A presença e o legado em Lisboa de Giovanni Carlo Sicinio Galli Bibiena

É precisamente neste tempo da introdução daqueles esquemas de influência emiliana, que operam em Portugal pelo século XVIII bastantes artistas italianos, não apenas Bacherelli, como também Nasoni, Annibale Pio Fabri, Roberto Clerici, que fora aluno de Francesco Bibiena. Mas o que não deixa de ser significativo é a chegada a Portugal de Giovanni Carlo Sicinio Galli Bibiena que constrói três teatros6 e executa vários cenários conjuntamente com Paolo Dardani, Marco Reverditi, Francesco Zinani e Giacomo Azzolini. Também Pascoal Parente, um artista português de origem italiana, realiza no nosso país alguns trompe l’oeils.

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Sobre a obra teórica destes autores, das respectivas lições e obra artística, que foram de grande importância para a pintura da perspectiva de tectos em Portugal, vide Elena FILIPPI, L’Arte della Prospettiva. L’Opera e L’insegnamento di Andrea Pozzo e Ferdinando Galli Bibiena in Piemonte, Firenze, Leo S. Olschki Editore, 2002. 5 Giuseppina RAGGI, Arquitecturas do Engano: A Longa Conjuntura da Ilusão. A influência emiliana na pintura de quadratura luso-brasileira do século XVIII, Doutoramento em História de Arte, 2 Vols., orientação de SERRÃO, Vitor, e MATTEUCCI, Anna Maria, Lisboa, Faculdade de Letras, 2004, Vol.I, 568-569. 6

Vide a propósito da construção dos teatros de Bibiena em Portugal, a recente investigação no âmbito das provas de Doutoramento sobre o assunto, da autoria de Pedro JANUÁRIO, docente na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, que se foca na figura de Giovanni Carlo Sicinio Galli Bibiena e na sua obra realizada em Portugal.

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Assim, para além das influências da tratadística e da pintura jesuíticas, patentes, directa ou indirectamente, na nossa pintura de trompe l’oeil de tectos e abóbadas, a cultura e a influência emiliana, como denotou Raggi, também tiveram uma grande influência nas opções estéticas adoptadas7. Giovani Carlo Sicinio Galli Bibiena e outros artistas italianos deixam as suas influências em Portugal, certamente não apenas no que toca aos estilos empregues, mas também no que toca às técnicas de projectar e desenhar perspectivas em cenários efémeros e abóbadas. O testemunho de Cyrillo e de Inácio Vieira referem, por exemplo, que Bacherelli era um entendido em matéria de pintura e perspectiva e que por cá deixou imensos alunos e discípulos. No tratado por nós já referido e atribuído ao jesuíta Inácio Vieira, que também fora um compositor de cenários, o autor relata também o envolvimento de Bacherelli em trabalhos de cenografia, o qual tinha legado a Inácio Vieira algumas notas e princípios quanto à técnica de execução no que toca ao aparato efectuado aquando da chegada de Filipe Rei de Castela, onde Bacherelli sugeria que “a mudança destas senas se poderia fazer por pezos, e contrapezos (...), mas que o próprio Pe. Inácio Vieira, por questões ligadas à própria execução de tais preparações cenográficas e devido a uma melhor facilidade usaria outro sistema”8. Em Outobro de 1705, sabe-se que Bacherelli trabalha com os jesuítas “na preparação dos cenários da peça Tergemina Austriacae Aquilae Corona, uma obra barroca em três actos da autoria de Manuel Ferreira representado na igreja do Colégio de Santo Antão”9. No mesmo manuscrito, revelado por Magno Melo, Cyrilo Wolkmar Machado refere que Bacherelli “pintou admiravelmente as perspectivas em tectos, e entre os quais fez em Lisboa se admiravão os da casa de Tavora no Campo Pequeno a fresco, pela sciencia com q’ as superficies eram desmanchadas10. Inácio Vieira conhecedor das regras da perspectiva, como vimos no manuscrito a ele atribuído, também testemunhou as qualidades do pintor italiano de perspectivas, quando se refere mais especificamente ao tecto e à abóbada da 7

Giuseppina RAGGI, Op.cit., Vol. I, pp.568-569. Cirilo VOLKMAR MACHADO, mss., Arquivo Robert Smith, fundo Reis Santos, mss., Fundação Calouste Gulbenkian, fundo Reis Santos, Caixas nºs 173: a, b e c; revelado e citado por Magno MELO, Perspectiva Pictorum. As Arquitecturas Ilusórias nos Tectos Pintados emPortugal no Século XVIII, Dissertação de Doutoramento em História de Arte, orientada pelo Professor Rafael MOREIRA, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2002, pp.94-97, p.100. 8

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Cf. Magno MELO, Perspectiva Pictorum. As Arquitecturas Ilusórias nos Tectos Pintados emPortugal no Século XVIII…, pp.94-97. 10 Cirilo VOLKMAR MACHADO, mss., Arquivo Robert Smith, fundo Reis Santos, mss., Fundação Calouste Gulbenkian, fundo Reis Santos, Caixas nºs 173: a, b e c; revelado e citado por Magno MELO, Perspectiva Pictorum..., p.100.

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Portaria de São Vicente Fora: “[...] porem depois que uy aquelle arreial do sol na pintura da portaria de S. Vicente de fora por entre a baranda fingida, não me parece tão impossiuel a quem tiuer tão boa arte”11. Giovani Carlo Sicinio Bibiena é uma figura chave e fulcral no desenvolvimento da arte da cenografia e é oriundo de uma prestigiada família de geração de artistas que marcaram o panorama na Itália bolonhesa do século XVIII. É chamado a Portugal no ano de 1752, a pedido do rei D.José que queria a implantação no nosso país da Opera à italiana. Este autor, arquitecto, cenógrafo e desenhador de quadraturas, nascera em Bolonha no ano de 1717, filho de Francesco Galli Bibiena e de Ana Mittè. Formou-se em arquitectura civil, tendo tido a sua formação na Accademia Clementina de Roma, onde também leccionaram seu pai e tio, Ferdinando Galli Bibiena, autor de escritos e publicações de arquitectura e perspectiva integrada. Chegado a Portugal, Giovanni Carlo projecta vários teatros régios de corte, ao mesmo tempo em que trabalha na cenografia teatral, desenhando os teatros do Forte ou Salão dos Embaixadores, em 1752, o teatro Real de Salvaterra de Magos, em1753, e o teatro real da Ópera do Tejo, de 1755, destruído pelo terramoto nesse ano. Neste tempo em que esteve em Portugal, produziu igualmente cerca de oitenta e uma cenografias para teatros12. Uma das marcas e características desta família de artistas, sobretudo através de Ferdinando Galli Bibiena (Bolonha, 1657-1743), tio de Giovanni Carlo, que trabalha em Portugal, não foi tanto a preocupação de representar o infinito do espaço caracteristicamente barroco, mas sobretudo de representar com coerência e verosimilhança a continuidade espacial entre o espaço físico real e o espaço ilusoriamente representado, temas que se discutiam na área da cenografia em Bolonha pelo ano de 1698. Estas preocupações cenográficas não se reportavam apenas ao mundo da representação da quadratura mas também ao mundo da representação de cenários pictóricos teatrais e mesmo de cenários de arquitecturas efémeras. Os Bibiena centraram muito a sua atenção no estudo e ensaio da distribuição eficaz e funcional do espaço, no uso racional das ordens clássicas, centrando-se também no estudo da distribuição das sombras e das luzes na questão cenográfica e da máquina teatral relacionada com as óperas, o que podemos verificar nas proposições e

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Inácio VIEIRA (atrib.), Tractado de Prospectiva, mss, Lisboa, 1715. Biblioteca Nacional de Lisboa, Códice 5170, folha. 295. Referido mais detalhadamente por Magno MELO, Perspectiva Pictorum..., pp.144-145. 12 Cf. Pedro GOMES JANUÁRIO, “Giovanni Carlo Sicinio Galli Bibiena: Teatro Real da Ajuda”, in Art Textos05, Lisboa, Dezembro de 2007, pp.37-38.

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descrições nos seus tratados (Fig.1)13. Escrevendo sobre a perspectiva das representações cenográficas, refere e cita o Livro V de Vitrúvio. Enquanto que um dos seus mestres, Giulio Troili, na sua obra Paradossi, referia que a cenografia é toda a elevação dos alçados dos objectos com todas as diminuições e sombras, tanto de frente como de lado, cuja composição ou cena se possa observar de uma só vez 14, os Bibiena vão, por outro lado, na prática teatral conjugar a arquitectura e a pintura em perspectiva 15, numa preocupação algo idêntica à que já anteriormente Pellegrino Tibaldi ensaiara no palácio Poggi e Tommaso Laureti no palácio Vizzani16.

La “vedota per el angolo” e a questão do “olho príncipe”

Ferdinando Galli Bibiena recomenda no seu tratado, na parte que respeita à perspectiva de cenas ou palcos teatrais, algumas regras e condicionantes muito específicas. Diz o autor que a “perspectiva de Theatros, sendo por si mesma diversa da outra, por causa da declividade do palco inclinado ao horizonte; obriga porém a unir-se no riscar tanto nos Bastidores, que ficarem paralelos à frente do palco, como os que forem postos diagonalmente; porque em todas as linhas, que vão assim em uns, como em outros, isto é, concorrentes ao ponto degradado [entenda-se ponto de fuga, ou ponto principal], é necessário mostrar uma regra, a qual nasce da dita declividade, que serve de principio à operação, que até agora não foi demonstrada, nem ensinada por alguém”17.

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Cf. Marinella PIGOZZI, “Da Giulio Troili a Ferdinando Galli Bibiena. Teoria e prassi”, in L’Architettura dell’Inganno, in L’Architettura dell’Inganno. Quadraturismo e Grande Decorazione nella Pittura di età Barocca”, catálogo relativo às actas do Congresso Internacional de Estudos, realizado em Rimini, Palazzina Roma, Parque Federico Fellini, Novembro de 2002, a cura di Fauzia FARNETI, Deanna LENZI, L’Architettura dell’Inganno. Quadraturismo e Grande Decorazione nella Pittura di età Barocca, Firenze, Alinea Editrice, 2004, pp.128-129. 14 Giulio TROILI, Paradossi, Bolonha, 1683, p.14, tábua 15, fig.13. 15

Vide o tratado de Ferdinando GALLI BIBIENA, Direzione della Prospettiva Teorica, Bolonha, Lelio dalla Volpe, 1732. 16

Cf. Marinella PIGOZZI, “Da Giulio Troili a Ferdinando Galli Bibiena...”, pp.128-129.

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Regra das Cinco Ordens de Arquitectura de Jacomo Barozzi da Vignolla, traduzidas em o seu Original em Nosso Idioma com Hum Acrescentamento de Geometria Pratica e Regras de Prospectiva de Ferdinando Galli Bibiena, tradução em português por José Carlos Binhetl, Lisboa, impresso na Oficina de José de Aquino de Bulhões, 1787, pp.76-77.

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Na concepção dos palcos para os cenários, na primeira regra, Bibiena descreve com gravuras o primeiro método por ele exposto, considerando metade do palco do cenário, dada a simetria do mesmo. O autor calcula a distância dos bastidores, começando por considerar a linha de simetria que passa no centro do palco, prolongando-a dum lado até ao final da plateia e da outra parte até à parte final do palco. Considera depois a largura da boca do cenário, dividindo-a num determinado número de partes. No exemplo descrito, Bibiena desenha apenas metade do cenário onde considera a divisão na linha da boca da entrada em dez partes, o que seriam vinte no total. Depois desenha o ângulo ou o declive do palco a partir do ponto situado o mais à esquerda da linha da boca do palco situada no primeiro plano, ou de menor afastamento. Para tal, marca uma linha com o ângulo que assinala esse declive, cujo valor é cerca de 5º, tal como ainda se utiliza hoje na cenografia. O extremo dessa linha angular intersecta a parede de fundo do palco num ponto onde, a partir dele, marca igualmente e proporcionalmente a divisão da parede de fundo, igualmente em dez partes, na realidade vinte, se considerarmos a medida total da parede de fundo, tal como na linha da boca de entrada. Assim, Bibiena estabelece uma relação de proporções na divisão das partes entre a entrada e o final do palco, relação essa que é estabelecida precisamente pelo declive considerado à priori. É assim que Bibiena garante que as linhas determinadas pela união dos pontos proporcionalmente do primeiro ao último plano do palco façam a convergência para o ponto de vista, entretanto situado fora da ilustração mas que corresponde ao lugar do olho príncipe, situado ao centro do balcão real por detrás da plateia e colocado axialmente em relação ao observador principal (Figs. 2a e 2b). Bibiena diz que “o ponto se deve pôr defronte daquelas pessoas de maior authoridade, que devem ocupar os melhores lugares, e se costumam pôr sempre em a primeira ordem de Camarotes no meio defronte do ponto [principal], que poderá ser de seis passetes de altura do chão pouco mais ou menos; assim aos que estiverem na plateia, não lhes ficará muito alto...”18.

Giuseppe Cinatti/ Aquiles Rambois e a herança de Alessandro Sanquirico e dos Bibiena

É ainda na herança mais longínqua da marca dos Bibiena por toda a Europa e em Portugal, como vimos, que surgem em Portugal no séc. XIX os artistas italianos Giuseppe 18

Cf. Idem, Ib., p.81.

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Cinatti (1808-1879) e Aquiles Rambois (1810-1882). O primeiro chega ao nosso país no ano de 1831 e o segundo chega mais ou menos pela mesma altura, quando é contratado para trabalhar no teatro de São Carlos, no ano de 1834, na reabertura do mesmo após a guerra civil. Ambos os autores trabalharam sempre em conjunto a partir do ano de 183619. Cinatti nascera em Siena mas tivera uma formação em Milão, onde o seu pai fora o seu principal mestre. Por motivos políticos abandonou Itália e trabalhou posteriormente na cidade francesa de Lyon, onde depois foi contratado para o Teatro de São Carlos, no ano de 1837, através do empresário Conde de Farrobo. Aquiles Rambois era natural de Milão, onde estudou na Academia Cenográfica sob a direcção de Alessandro Sanquirico, importante artista cenógrafo italiano e que fora seu mestre. Rambois destacou-se ainda em Itália antes de vir para Portugal, particularmente no teatro della Scala, onde em 1834, através do empresário António Lodi, chega a Portugal para trabalhar no teatro de São Carlos com o objectivo de ajudar o cenógrafo Boucher que aí tinha actividade. Substituíndo este último na realização das cenografias do São Carlos, Rambois teve como colaboradores Alessandro Merli em 1835, Cantoni, em 1836 e 1837, e finalmente Giuseppe Cinatti apartir de 1836 até 1879, ano em que faleceu o último. Em Lisboa Rambois produziu com Cinatti cerca de 600 cenários teatrais e era um profundo conhecedor das regras da perspectiva geométrica, para além da actividade de arquitecto e desenhador. Ambos os autores, trabalhando em conjunto, produziram imensos panos para peças teatrais no teatro de São Carlos que assim rivalizavam com outros grandes teatros europeus, cujo testemunho ainda se guarda na dezena de panos ou telões que ainda existem nas dependências daquele teatro. Para além destes dados, ambos os artistas trabalharam no teatro de D. Maria II e no teatro das Laranjeiras, este pertencente ao Conde do Farrobo, e tiveram uma enorme influência no panorama artístico nacional, também nos numerosos projectos para palacetes e na decoração mural do interior dos edifícios. Interviram ambos também no restauro de monumentos, tais como no Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa e no templo de Diana em Évora, aqui na questão da valorização estética da beleza dos jardins. Triste com o desinteresse dos nossos poderes públicos da altura sobre o seu trabalho e com a rejeição de uma escola de pintura cenográfica que ele tentou oficialmente implantar, Rambois, que conseguiu em 19

Para mais informações históricas vide a o trabalho de Joana da CUNHA LEAL, Giuseppe Cinatti (18081879). Percurso e Obra, Dissertação de Mestrado em História da Arte Contemporânea, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade de Lisboa, 2 vols, 1996.

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Portugal uma avultada fortuna, lega os seus bens ao Município de Milão para instituição de escolas. Nos desenhos de Rambois/ Cinatti encontramos grandes afinidades mais longinquamente com o legado cenográfico dos Bibiena (Figs.3a-3g). Os registos inéditos que aqui apresentamos, de uma colecção particular em Lisboa, desenhados à mão livre mas também a régua e esquadro, mostram preocupações cenográficas semelhantes às do tempo dos Bibiena, que foram transmitidas também a estes autores por via de um dos seus mestres mais directos, o cenógrafo e pintor Alessandro Sanquirico. Como podemos observar, quer nos desenhos de Bibiena, tanto os realizados à mão levantada, como os realizados a régua e esquadro, neste caso, os que se verificam no seu tratado, a colocação da linha do horizonte encontra-se sempre à mesma cota de um observador situado ao nível da tribuna real de um teatro. Todos os autores elaboraram assim atentamente os respectivos desenhos, sobretudo a cenografia ou a perspectiva dos mesmos, em função da arquitectura dos teatros, e na respectiva relação geométrica com o observador, aos quais estavam destinados e eram integrados os desenhos dos cenários e posteriormente as pinturas dos mesmos. Ora esta preocupação cenográfica da pintura em perspectiva integrada, ou do prolongamento virtual da arquitectura real através dos cenários pictóricos é, sem dúvida, uma das fortes marcas que anos antes nos legaram a geração dos Bibiena. É de assinalar que quer nas gravuras de Ferdinando, quer nos desenhos de Giovani, quer mesmo nos desenhos de Rambois/ Cinatti, tal como nas pinturas de Sanquirico, existe uma idêntica colocação da linha do horizonte na composição, que está sempre ao nível do observador principal, ocupando o nível do olho príncipe, ou seja, no mesmo nível do balcão real dos teatros que se situavam por detrás das plateias, onde o espectador principal observa a obra. A linha do horizonte é assim assinalada inferiormente situada ao nível do balcão principal, ou camarote real, fazendo com que as perspectivas dos cenários se enfatizem de baixo para cima, funcionando como um poderoso elemento expressivo e tornando visíveis as partes inferiores dos elementos arquitectónicos simulados nos respectivos trompe l’oeils. Por outro lado, nos casos em que o ponto de fuga das ortogonais, situado no lugar e ao nível do balcão real, alinhado axialmente com o observador principal centrado naquele, se encontra quase ao centro das composições, as arquitecturas escorçadas e levantadas muitas vezes parecem e simulam uma grande continuidade espacial com as arquitecturas reais do 9

próprio teatro, ou os seus respectivos alinhamentos perspécticos, entre o que é real e o que é pintado. Esta, aliás, fora uma grande preocupação da geração anterior dos Bibiena e vai ser ainda mais explorada por um dos seguidores de Rambois e Cinatti no teatro de São Carlos, Luigi Manini, igualmente italiano e de cuja obra perspéctica e cenográfica faremos referência mais adiante. Para além destas idênticas características ao nível da perspectiva geométrica, a perspectiva realizada também pelos seus gradientes gráficos, quer pelos seus gradientes orgânicos, é muito bem conseguida. De facto podemos assinalar em todos os autores a correcta convergência das linhas paralelas para os mesmos pontos de fuga assinalados no horizonte e também uma coerente modelação das volumes representados através do claroescuro. Nos desenhos perspécticos que apresentamos (Figs.3a-3g), quanto a nós sobretudo realizados por Aquiles Rambois, conseguimos em muitos deles descobrir que por detrás das manchas de carvão, grafite e aguadas, se traçam linhas à régua, o que mostra a grande preocupação dos autores em realizar cenários com grande coerência. Mesmo nos exemplos realizados à mão levantada notamos uma grande coerência no desenho perspéctico que também é assinalado pela perspectiva de sobreposição dos elementos do primeiro ao último plano. Denota-se nestes desenhos uma grande influência de Alessandro Sanquirico (Figs. 4a e 4b), mestre de Aquiles Rambois, e mais longinquamente também dos Bibiena.

Luigi Manini cenógrafo em Lisboa

Luigi Manini nasceu em Crema a 8 de Março de 1848, num meio social de parcos recursos e sob o signo da onda revolucionária que se alastrava em toda a Europa e que estivera ligada aos movimentos nacionalistas. No começo da década dos 70 Manini dedica-se a viajar fora de Itália, viajando por Nice, Toulouse e Marselha. O seu regresso a Itália estreouse no Teatro Sociale di Crema com a realização do cenário de Ruy Blas de Filippo Marchety, depois de passar pela Academia di Brera e depois dos anos de experiências profissionais em Crema. Na sua formação académica frequentou um curso de ornamentação na Real Academia di Belli Arti di Milano em 1861. A academia nesta época estava passando por grandes alterações ideológicas, com o definitivo abandono dos modelos e métodos clássicos de ensino. Conjugou o desenho de régua e esquadro com o desenho à mão livre, fazendo apologia da copia dal vero. O mais significativo no seu aperfeiçoamento técnico foi o papel das oficinas 10

de pintura e de um adestramento tradicional baseado na relação entre mestre e discípulo. As experiências no atelier de Giovanni Zaffeva, onde entrou como aprendiz aos nove anos de idade, o périplo pelas cidades de Nice, Toulouse e Marselha e a parceria com Eugenio Malfassi, com quem decorou o interior de vilas, palácios e igrejas nos arredores da região cremasca, traduziram-se no impulso que o aproximou da pintura cenográfica. No ano de 1878-1879 Manini ascende na condição de cenógrafo substituto do teatro scaligero. Em 1879 é convidado para o Real Teatro de São Carlos em Lisboa, continuando o legado de Aquiles Rambois e Giuseppe Cinatti. Depois de firmado o contrato com o empresário português, vê-se obrigado a declinar o honorífico convite para titular do palco milanês, em substituição de Carlo Ferrario. Em Lisboa trabalha cerca de dezasseis anos consecutivos e pontualmente no Porto e na Madeira, como arquitecto, projectando o palácio da Regaleira em Sintra, por exemplo, e como cenógrafo em diversos teatros. A essência do universo teatral dominou a vida intelectual e social do século, mas ele podia bem considerarse um misantropo, embora se mantivesse sempre perto dos ambientes de tertúlia cultural. Representar com coerência e verosimilhança a continuidade espacial entre o espaço físico real e o espaço ilusoriamente representado, era um tema que já se discutia na área da cenografia em Bolonha pelo ano de 1698, como sabemos. Estas preocupações cenográficas não se reportavam apenas ao mundo da representação da quadratura mas também ao mundo da representação de cenários pictóricos teatrais e mesmo de cenários de arquitecturas efémeras. Os Bibiena centraram muito a sua atenção sobre a distribuição eficaz e funcional do espaço e no uso racional das ordens clássicas, centrando-se também no estudo da distribuição das sombras e das luzes na questão cenográfica e da máquina teatral relacionada com as óperas, o que podemos verificar nas proposições e descrições nos seus tratados. Manini conhecia bem o legado e o trabalho dos Galli Bibiena e mesmo dos seus antecessores em Lisboa, Aquiles Rambois e Giuseppe Cinatti, que tal como ele trabalharam no teatro de São Carlos e no teatro de D. Maria. O autor deixou-nos o testemunho de enormes telões que ainda se conservam nas caves desses teatros de Lisboa, onde o rigor da perspectiva geométrica na construção de cenários fora sempre uma preocupação do autor, como se pode aliás ver bem num telão por ele concebido para uma ópera no teatro de São Carlos (Figs.: 5a, 5b e 5c)20.

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Agradecemos a Marina Arnal Ferrandiz as imagens inéditas por ela divulgadas ao autor de um dos telões realizados por Luigi Manini para o Teatro de São Carlos em Lisboa.

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Fig.1 – Giovanni Carlo Sicinio Galli Bibiena, desenho, séc.XVIII, M.N.A.A., Lx, Gabinete de Estampas, Inv. DES 303.

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Fig.2a – Estampa de Ferdinando Galli Bibiena que ilustra o desenho para a concepção de um palco de teatro, incluída na obra Regra das Cinco Ordens de Arquitectura de Jacomo Barozzi da Vignolla, traduzidas em o seu Original em Nosso Idioma com Hum Acrescentamento de Geometria Pratica e Regras de Prospectiva de Ferdinando Galli Bibiena, tradução em português por José Carlos Binhetl, Lisboa, impresso na Oficina de José de Aquino de Bulhões, 1787, pp.76-77.

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Fig.2b – Estampa de Ferdinando Galli Bibiena que ilustra o desenho para a concepção de um palco de teatro, incluída na obra Regra das Cinco Ordens de Arquitectura de Jacomo Barozzi da Vignolla, traduzidas em o seu Original em Nosso Idioma com Hum Acrescentamento de Geometria Pratica e Regras de Prospectiva de Ferdinando Galli Bibiena, tradução em português por José Carlos Binhetl, Lisboa, impresso na Oficina de José de Aquino de Bulhões, 1787, pp.76-77.

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3a)

3.b)

15

3.c)

3.d)

16

3.e)

3.f)

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3.g) Figs. 3a – 3g – Desenhos da autoria de Giuseppe Cinnati ou Aquiles Rambois, de uma colecção particular em Lisboa.

Fig.4a – Pintura de cenário da autoria de Alessandro Sanquirico, séc.XIX.

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Fig.4b – Pintura de cenário da autoria de Alessandro Sanquirico, séc.XIX, Análise perspéctica do autor com desenho assistido por computador.

Fig.5a – Luigi Manini, telão para uma peça teatral ou ópera. Fotografia revelada por Marina Arnal Ferrandiz e comunicada ao autor.

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Fig.5b - Luigi Manini, telão para uma peça teatral ou ópera. Análise perspéctica do autor com desenho assistido por computador.

Fig.5c - Luigi Manini, telão para uma peça teatral ou ópera. Análise perspéctica do autor com desenho assistido por computador.

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