Antônio Vieira: Uma trajetória de fé, religião e política

July 24, 2017 | Autor: Cristiano Tavares | Categoria: History, Brazilian Studies, Politics
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CRISTIANO DE SOUZA TAVARES

Antônio Vieira: Uma trajetória de fé, religião e política

Disciplina História da Teologia na América Latina, do Programa de Pósgraduação em Teologia, da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Porto Alegre 2013

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Introdução O século XVII deu à humanidade um destacado pensador: Antônio Vieira. Devido sua multifacetada capacidade foi alvo de estudos nos últimos anos. Sua importância é calcada na sua inteligência, atividades políticas e missionárias. Padre Antônio Vieira é filho de seu tempo e marcado pela disciplina militar, tão comum à mentalidade da Companhia de Jesus. O presente trabalho procura analisar o Jesuíta a partir das linhas mestras de sua vida, é dividido em 5 partes: 1. Vida e obras; 2. Brasil Colônia e a educação jesuítica; 3. Vieira, catequeta e missionário; 4. Defensor dos índios e condescendência à escravidão africana; 5. O legado de Antônio Vieira. Dessa forma, pretende-se passar pelos momentos decisivos daquele que é considerado um dos personagens mais destacados da história luso-brasileira dos últimos 400 anos. Com essa maneira de compreender é que damos início a esse despretensioso trabalho.

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Antônio Vieira: Uma trajetória de fé, religião e política 1 Vida e obras Um homem nascido em dois continentes, um coração entre dois mundos. Antônio Vieira nasceu em Lisboa, Portugal, em 06 de fevereiro de 1608. O século XVI dista culturamente, religiosamente e filosoficamente dos nossos dias. Portugal entrara na rota da decadência e já ficava para trás quanto aos grandes feitos cantados em verso e prosa a exemplo de Luís Vaz de Camões. Nascer em Portugal naquela época, se não fosse oriundo da nobreza, não tinha nada a comemorar. Vida marcada pela escassez de produtos básicos ao bem estar, ausência quase completa de educação formal às crianças e jovens, em suma, um pobre dos nossos dias, é muito mais “afortunado” em muitos aspectos que um contemporâneo abastado dos inícios do século XVII. A origem de Antônio Vieira é humilde, nada tem a ver com as classes privilegiadas. Portugal por essa época passava por uma forte crise econômica, social e até mesmo de identidade. Isto influenciaria de modo decisivo a vida e missão de Vieira. Os nomes de seus pais eram Cristóvão Vieira Ravasco e Maria de Azevedo. O pai era funcionário da Justiça Régia. Em 1609 Cristóvão Ravasco fez uma viagem por motivo de trabalho à Colônia (Brasil), viagem que mudaria todo o rumo histórico da família Vieira. Depois de certo tempo foi buscar o restante da família e assim começa a vida de Antônio Vieira no Brasil. O pequeno Viera tinha 6 anos de idade quanto aportou em terras coloniais. Grosso modo, pode-se dividir em três fases a vida de Vieira no Brasil: juventude na Bahia, maturidade no Maranhão e a velhice na Bahia.1 Se a vida na capital portuguesa não era nada fácil para a maioria das pessoas, a vida na Colônia era um verdadeiro martírio para a maioria. O Brasil era terra da barbárie e da não civilização para a maioria esmagadora dos europeus. Dirigiam-se a essas paragens os aventureiros, os degredados, os missionários e os sob o jugo da oficialidade a exemplo de Cristóvão Ravasco com sua família no ano de 1614. Os missionários jesuítas na Colônia tinham uma dupla missão: catequizar os índios e instruir os filhos dos colonos. Foi nesse cenário que desabrochou a vocação inaciana de Vieira. Por ser filho de funcionário da Colônia portuguesa foi caminho natural que seguisse de perto a instrução jesuítica. Algo chama a atenção quanto ao fato de Vieira saber ler num tempo que isso era incomum entre crianças de sua idade, fato é que sua 1

Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p.12.

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mãe já ministrara as primeiras letras ao pequeno aprendiz. Isso pode levar a crer que sua mãe tivesse uma raiz cristã-nova já que esse grupo de antigos judeus forçados à conversão conservou o hábito da “instrução” em seio familiar. Antônio Vieira demorou a se adaptar às cartilhas pedagógicas usadas no colégio tendo sido considerado, a princípio, medíocre intelectualmente. A verdade é que depois de certo tempo destacouse de maneira gloriosa a tal ponto de surgir a história, beirando a lenda, do “estalo de Vieira”. Digno de nota que seu desenvolvimento espiritual e intelectual se deu no principal centro de ensino da Colônia, o Colégio Inaciano da Bahia. 2 Com o ingresso nas hordas da Companhia de Jesus, Vieira inicia sua trajetória de fé, religião e política. “A excepcionalidade de Vieira residia muito mais na sua inteligência acima da média, na sua enorme capacidade literária em língua portuguesa e no seu extraordinário talento oratório”.3 Entre os anos 1580 a 1640, o país Luso passou por um período de reinado dual, ou seja, a coroa castelhana detinha o poder sobre Portugal através de Felipe II, do ramo espanhol dos Habsburgo. Com o fim da União Ibérica Pe. Vieira singrou rumo à metrópole para prestar obediência ao rei da casa de Bragança João IV. O jesuíta e o rei recém-empossado se afeiçoaram de imediato sendo Pe. Vieira convidado a ser pregador real em 1641. Por defender os judeus, assim como também sustentar certas “profecias” tal como o ressurgimento do Rei Sebastião, morto em 1578 em Alcácer Quibir, no atual Marrocos, foi perseguido, julgado, mas absolvido. Uma das maiores graças que Vieira conseguiu foi frear o ímpeto inquisitorial dominicano através de relatórios a Roma. Com a manobra de verdadeiro mestre conseguiu do papa Clemente X em 1675 um salvo conduto que o isentava do poder da Inquisição, respondendo diretamente ao Papa. Além do que por um período de 6 anos foi pregador da casa pontifícia, feito notável, para quem se desenvolveu e amadureceu espiritualmente e intelectualmente na periferia do mundo. Em 1681 ao retornar à Colônia, já enfraquecido pela idade e incompreensões internas na Companhia retira-se da vida pública e praticamente cego tenta codificar seus escritos, trabalho inconcluso devido sua morte em 18 de julho de 1897. Antônio Vieira foi um escritor de mão cheia. Seu estilo barroco é patente, deixando transparecer em suas pregações e escritos. Muito do que deixou para a posteridade recebeu a influência do contexto histórico da Contrarreforma e do 2 3

Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p.33 Ibid,. 38

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Renascimento. A pena de Vieira deixa transparecer bem a luta entre corpo e alma, a fugacidade do tempo, cultismo e conceptismo, figuras de linguagem etc,. 4 Viera deixounos cerca de 200 sermões e 500 cartas. Segue a lista de algumas obras de destaque. Sermão de Nossa Senhora do Rosário; Sermão do Quinto Domingo da Quaresma; Sermão do Mandato; Sermão Segundo do Mandato; Sermão de Santa Catarina Virgem e Mártir; Sermão Histórico e Panegírico; Sermão da Glória de Maria, Mãe de Deus; Sermão do Primeiro Domingo do Advento (1650); Sermão do Primeiro Domingo do Advento (1655); Sermão de São Pedro; Sermão da Primeira Oitava de Páscoa; Sermão nas Exéquias de D. Maria de Ataíde; Sermão de São Roque; Sermão de Todos os Santos; Sermão de Santa Teresa e do Santíssimo Sacramento; Sermão de Santa Teresa; Sermão da Primeira Sexta-feira da Quaresma (1651); Sermão da Primeira Sexta-feira da Quaresma (1644); Sermão de Santa Catarina (1663); Sermão do Mandato (1643); Sermão do Espírito Santo; Sermão de Nossa Senhora do Ó (1640); Sermão do Segundo Domingo da Quaresma (1651); Maria Rosa Mística; Excelências, Poderes e Maravilhas do seu Rosário; Sermão das Cadeias de São Pedro em Roma; Sermão do Domingo XIX depois do Pentecostes (1639); Sermão de Dia de Ramos (1656); Sermão do Quarto Sábado da Quaresma (1640); Sermão Nossa Senhora do Rosário com o Santíssimo Sacramento; Sermão XI Com o Santíssimo Sacramento Exposto; Sermão do Quinto Domingo da Quaresma (1654); Sermão nas Exéquias de D. Maria da Ataíde (1649); Sermão de São Roque (1652); Sermão Segundo do Mandato (II); Sermão do Mandato (1655); Sermão da Epifania (1662); Sermão do primeiro Oitavo da Páscoa (1656); História do Futuro; Esperanças de Portugal; Defesa do livro intitulado Quinto Império.

Desse universo de escritos alguns se tornaram notórios pelo estilo, agudeza de raciocínio, figuras de linguagem e contexto histórico: Sermão da Sexagésima, Maria Rosa Mística, Sermão de Santo Antônio aos Peixes, Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal Contra as de Holanda, Sermão do Bom Ladrão.

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Cf.< http://www.soliteratura.com.br/barroco/barroco06.php>. Acesso em: 31 de out de 2013.

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2 Brasil colônia e a educação jesuítica A situação do Brasil no século XVII era de total precariedade. Os portugueses tinham o domínio prático da Colônia, mas na primeira metade do século a Espanha também chegou a deter poder de mando sobre o pedaço de terra que viria a ser chamado Brasil, devido à União Ibérica. A Colônia possuía duas “cabeças”, uma produtiva, Pernambuco, com sua forte produção açucareira, e Bahia, ligada a assuntos mais administrativos. Ressalte-se o fato de não se poder mensurar com absoluta certeza a população colonial daquele período, mas o que se deduz é que devido a grande migração forçada de africanos, a maioria dos habitantes era procedente de Guiné, Congo e Angola. A população branca era escassa e os índios, que segundo alguns eram de 2 a 5 milhões, estavam sendo dizimados no litoral, quer pela escravidão quer pelas inúmeras doenças trazidas pelos europeus, especialmente a varíola. É sabido que o interesse lusitano no Novo Mundo era a exploração através da extração de madeira, plantations, metais preciosos e drogas do sertão. Nunca foi propriamente estabelecer uma colonização planificada, procurando desenvolver um novo tecido social a exemplo das 13 colônias no nordeste estadunidense. O princípio básico para uma adequada organização social passa pela educação. É fato conhecido que o decadente império português resistiu até as últimas circunstâncias a estabelecer centros de instrução formal em suas colônias. Isso se tornou evidente da inveterada resistência lusa em implementar bons centros de ensino, mormente o superior. Ao contrário dos espanhóis que permitiram fundar universidades em Santo Domingo em 1538 e no Vice-Reino do Peru em 1551.5 Na Colônia a educação era feita através de “seminários” religiosos que formavam os futuros padres ou davam um verniz na instrução dos filhos dos colonos. Pode-se dizer que o rigor e a seriedade dos estudos jesuíticos na capital baiana estavam se não iguais, ao menos próximo da excelência acadêmica universitária europeia, e por mais que tentassem esse status o governo não quis reconhecê-lo.6 Um jesuíta era educado para resistir e enfrentar toda e qualquer adversidade, por isso mesmo cada centro de estudos jesuítas eram verdadeiros laboratórios para aprofundar a fé, robustecer as convicções e fortalecer o caráter preparando os alunos para toda e 5

Cf.< http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_das_universidades_mais_antigas_do_mundo>. Acesso em 31 de out. 2013 6 Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p. 39

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qualquer circunstância. “Recebiam instruções de boas maneiras, lições de como usar as mãos e a voz, aulas sobre o modo de olhar, de se vestir e de rir”.7 Sucintamente a grade de ensino consistia: Ratio Studiorum para a filosofia com destaque para a Lógica; a teologia era marcada pela Suma Teológica de Tomás de Aquino, o Curso Conimbrense (teologia moral), Sagrada Escritura, língua latina e a língua geral, isto é, o tupi.8 Nesse cenário temos o jesuíta, o escritor, o orador e o catequeta Vieira. Devido sua reconhecida inteligência, o Pe. Vieira foi encaminhado para a docência ensinando filosofia/lógica e retórica em 1634. Mas o Jesuíta não se enclausurava em meio aos pergaminhos somente, era homem de ação, em suma, de catequese. Daí advém, o precioso recurso da palavra, da pregação. A cristianização dos silvícolas era “conditio sine qua nom” da sua missão de padre da Companhia. A educação jesuítica se tornou famosa pela eficiência. A Ordem nasceu para ser um exército altamente preparado á disposição do papa, assim como também para retificação das heresias advindas do protestantismo. Ainda no século XVII a força civilizadora dos jesuítas pela educação se fez sentir através dos 7 povos das Missões na Bacia do Prata, tamanha era a força e capilaridade nas terras do Novo Mundo.

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Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p.37. Ibid,. p. 38

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3 Vieira, catequeta e missionário Na história da Igreja há muitas pedagogias de missão. Particularmente entre os séculos XIII ao XVII o mundo católico conviveu com quatro maneiras de evangelizar: a monástica (que remonta ao século IV), a franciscana, a dominicana e por último a jesuíta. Todas absorveram do monasticismo o caráter ascético de vida, franciscanos entregaram-se a uma vida devota pelo sentimento, dominicanos surgiram da necessidade de pregar o evangelho e retificar mentes heréticas, e os jesuítas pela pedagogia da persuasão e educação da mente e do espírito. Em determinado tempo, franciscanos e dominicanos cultivaram certa animosidade. No século XVII dominicanos também entraram em rota de colisão com os jesuítas, mas agora por uma questão de método. Enquanto os filhos de Inácio propunham o exemplo, a proximidade, a catequese persuasiva, os filhos de Gusmão desejavam cristianizar pela repressão, intimidação e o medo. Enquanto dominicanos estavam com a mentalidade de Cristandade Medieval, os jesuítas estavam mais para uma devotio moderna. Jesuítas, didaticamente e metodologicamente falando, nasceram na Modernidade.

Vieira entrou jovem na Societas Iesus, precisamente aos 15 anos de idade no dia 15 de maio de 1623. Gostava de estudar, mas era a missão evangelizadora que elevava o seu espírito. Depois de temporadas entre Bahia, Pernambuco e a Europa, foi a missão no Maranhão e no Grão-Pará, em meio aos índios, que o fez sentir-se verdadeiro missionário. Sua ação missionária em terras maranhenses fez com que levasse a cabo uma de suas maiores paixões: a catequese do aborígene. Para esse Miles Christi civilizar o bárbaro, protegê-lo da escravidão, salvar a sua alma, era o verdadeiro motivo que o fez abraçar a vida religiosa.

De idade de dezessete anos fiz voto de gastar toda a vida na conversão dos Gentios e doutrinar aos novamente convertidos, e para isso me apliquei às duas línguas do Brasil e Angola, que são os gentios e cristãos boçais daquela Província. E porque para este ministério me não era necessária mais ciência que a doutrina cristã, pedi aos superiores me tirassem dos estudos, porque não queria curso nem teologia, e cedia dos graus da Religião que a ele e a ela se seguem. E posto que os Superiores mo não quiseram conceder, antes me tiraram a

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obrigação do voto, e o Padre Geral fez o mesmo, eu contudo o tornei a renovar e insistir nele, até que ultimamente o consegui, indo-me ao Maranhão, tanto contra a vontade de El-Rei e do Príncipe, como é notório, levando e convocando de diversas partes da Companhia para mesma missão mais de trinta religiosos de grandes talentos.9

Em todo caso, o anseio em expandir o catolicismo aliado à causa civilizacional, foram os grandes impulsos para dar continuidade ao trabalho missionário. A teologia tridentina do “salva a tua alma” tinha papel determinante em não deixar arrefecer o ardor inicial. Catequizar os indígenas traziam três grandes benefícios: materiais, já que pela ordenação ao trabalho enriqueceria os demais membros da tribo; políticos, ao amansar os índios a terra obteria aliados contra os invasores e solidificaria a harmonia social e por último o espiritual, a salvação da alma nativa (o mais importante). Isso na teoria, na prática avolumava-se os desafios. Os obstáculos à missão transpareciam pela escravidão imposta pelo colono invasor, a desconfiança natural do indígena e o choque cultural entre civilizações. Não se pode dizer que os resultados foram de todo negativos. Vieira avançou em seus esforços com perseverança e dedicação, obtendo a cristianização sincera de muitas “almas”. É digno de nota o feito político de assegurar por meios jurídicos a liberdade dos gentios, através de leis e decretos, infelizmente a maioria ineficaz abaixo da linha do Equador.

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Niskier, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os judeus. p.71.

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4 Defensor dos índios e condescendência à escravidão africana A escravidão sempre esteve a serviço dos fatores econômicos. O desejo humano de sobrepujar outrem em benefício próprio sempre esteve presente desde os primórdios da humanidade. A questão é que primeiro vem a necessidade, a realidade dos fatos, os interesses e depois para se justificar tal empreendimento humano se ideologiza, raciocina-se uma determinada prática consolidada. Assim foi com a filosofia antiga em Aristóteles, a servidão moral medieva até chegar à construção teológica para respaldar a escravidão africana. Portanto, a linha de compreensão é que o pensamento está a serviço da realidade, nesse caso da prática da escravidão. A Ordem de Padre Antônio Vieira nasceu para fortalecer a fé católica, é reduzido demais dizer que nasceu para conter apenas o avanço dos protestantes. A Igreja Católica Romana nunca se identificou com uma etnia em particular por acreditar que o princípio básico da evangelização passa pela “missão”. A catolicidade, a universalidade é parte constitutiva do ser da Igreja. Para tal intento, missionários católicos apropriaram-se de todos os meios possíveis, tal atitude é passível de críticas, quanto a aceitar todos os métodos para obter a salvação das almas. Quanto ao contato com outros povos, línguas e nações a Igreja, a partir do séculos XVI e subsequentes, enquanto filha do seu tempo, agrilhoada ao padroado e até mesmo à subserviência dos Reis, se submeteu a dois pesos e duas medidas quanto a índios e africanos. Ambos tinham que ser salvos, contudo apenas um podia receber os esforços contra a barbárie europeia em que cairia muito bem a afirmação de Vírgilio auri sacra fames (Virgílio, Eneida, Livro III, v. 56/57). Os jesuítas eram muito bem instruídos e sabiam de sua importância e dignidade. Eram suficientemente inteligentes para saber que se entrassem em uma dupla frente de batalha perderiam as duas, era forçoso fazer uma opção e a fizeram pelo nativo. Pelo antigo direito romano quem vivia na terra era o seu dono : “Utti Possidetis ou uti possidetis iuris é um princípio de direito internacional segundo o qual os que de fato ocupam um território possuem direito sobre este”.10 O bom senso dizia que o dono da terra era o índio, para refutar o evidente se criou esquemas mentais baseados em raciocínios filosóficos e teológicos.

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< http://pt.wikipedia.org/wiki/Uti_possidetis>. Acesso em 01 de Nov de 2013.

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“No caso dos índios, escravidão e catequese se opunham, no caso dos africanos, completavam-se. Contradição insolúvel do ponto de vista moral, era porém alicerçada em forte base teológica”.11 O que se começou a pensar para justificar a escravidão africana em terras coloniais é a alusão aos filhos de Cã, que teriam sido amaldiçoados e portanto seria algo “natural” e desejado por Deus a condição de cativos. Para tirar-lhes da escravidão espiritual seria então justificado a escravidão tal como estava sendo feita pois assim a salvação da alma estava garantida. As Ordens Católicas foram subservientes a esse tipo de construção teológica, não foram raros os teólogos da “corte” que corroboraram essa “ideologia” a serviço da manutenção do “status quo” da classe dominante. Toda essa mentalidade estava presente no contexto de Vieira. O Jesuíta apresenta um ciclo de pregações chamado de Maria Rosa Mística, em 1633, no qual tenta convencer da situação favorável dos cativos no que se refere a salvação de suas almas. Na boca de alguns padres a teologia a favor da escravidão era transmitida com apelos dramáticos bem aparentados com o barroco: o negro cativo a exemplo de Cristo cativo e subjugado pela paixão, o engenho é o doce do inferno, a escravidão é o prelúdio do paraíso.12 Por sua vez, no Sermão do Rosário, Antônio Vieira deixa transparecer uma defesa do negro assim como também a certeza de que todos são iguais, negros e brancos, mas que essa situação calamitosa de degradação humana só pode ser explicada ou entendida a partir divina providência.13 No Brasil os escravos eram chamados de três modos: etíopes, pretos e negros da Guiné. Interessante ainda acerca desses aspectos étnicos e das opções a serem feitas quanto à defesa de negros e índios, é o fato de Vieira ter origem africana por via materna. O assunto para Vieira era tabu, não gostava de falar sobre suas origens e só acossado pela Inquisição revelou alguns detalhes que ficaram em registro, portanto é consenso entre os historiadores do caráter mestiço do lusobrasileiro. O assunto era demasiadamente perigoso para Vieira falar com naturalidade, ainda mais num tempo que o Santo Ofício português além de salvaguardar a pureza da doutrina quis também estabelecer a pureza de sangue.

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Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p. 53. Cf. Ibid,. p. 58 13 Cf. Niskier, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os judeus. p.82. 12

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Vejamos mais detidamente acerca dos índios, a grande paixão do catequista jesuíta. Ao retornar ao Brasil em 1653 depois de uma longa temporada na corte portuguesa, é no mato em meio ao bafo da floresta que o jesuíta assolado por todo tipo de adversidade realiza mais uma etapa de sua missão. De modo geral ele se desloca entre Maranhão e Grão-Pará. O objetivo-mor é o contato com os nativos e sua adesão à fé católica. Enfrenta com altivez os colonos por palavras e obras. O raciocínio dos colonos para escravizar os indígenas consistia em considerá-los inconstantes, irracionais e bárbaros utilizavam-se inclusive de argumentos gramaticais: “a ausência dos fonemas F,L e R, já desde o século XVI, como sinal da falta de fé, de lei e de rei”.14 Seria uma grande ingenuidade querer travar uma disputatio envolvendo letras com aquele que Fernando Pessoa cognominou de Imperador da Língua Portuguesa. Por isso mesmo, Viera travou lancinante batalha contra os que desejavam desestabilizar a vida de missão e catequese entre os silvícolas. No assim conhecido Sermão das Verdades, utilizando-se da consoante M de Maranhão discorreu da seguinte maneira, eis um excerto: “M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar e sobretudo M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras,mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente”.15 Na carta ao rei João IV, Vieira afirma que é pela docilidade o meio mais fácil de chegar ao indígena e não pela violência e brutalidade tão comuns aos portugueses. Tal convicção solidificou-se quando do seu contato com a tribo dos Nheengaíbas de Marajó, segundo o grande biógrafo João Lúcio de Azevedo. Ao mesmo tempo em que missionava com todo ardor religioso, o filho de Inácio não deixava seu pragmatismo político ao antever os benefícios de amansar os índios do norte do Brasil tornando-os assim aliados aos lusos e resistentes a uma possível invasão batava ou francesa. Fato é que Antônio Vieira granjeou alta estima e consideração por parte dos índios a tal ponto de ser chamado respeitosamente de payassu/payaçu, grande pai em tupi.

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Niskier, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os judeus. p.82. Ibid,. p.74.

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5 O legado de Antônio Vieira Antônio Vieira é fruto de um tecido religioso, social e cultural. A humanidade tira de cada homem, pequenos e grandes feitos, no caso de Vieira sem dúvida, feitos portentosos. O jesuíta é tido como exemplo de superação. De desajeitado nos estudos a sumidade intelectual, de perseguido por civis e religiosos a vencedor de disputas ferinas, da periferia do mundo conhecido ao centro da Catolicidade. O Payassu se destaca como homem político, pensador e missionário. A política sempre foi um tema apaixonante e ao mesmo tempo controvertido para o Luso-brasileiro. Prescindindo dos clichês referentes às suas práticas, o que interessa é o fato de Vieira exercer a sua cidadania plena de português que sabe seus direitos e deveres. Por ser cônscio de seu dever aprendeu a dialogar, a exigir e a encontrar soluções para problemas políticos pondo sua cabeça sob-risco se necessário. Sabia travar diálogo com toda espécie de homem, escravo, índio, mestiço, estrangeiro, rei, papa. O político Vieira tinha por bem maior a harmonia das estruturas políticoreligiosas e para tal foi preciso encontrar pessoas e fazê-las agir. É sabido do seu afã político a tal ponto de vestir a capa da diplomacia oficial. Consta que quando da sua estadia na Holanda prescindiu-se inclusive do uso da vestidura talar,16 ou seja, um homem adaptável a toda e qualquer circunstância. Como pensador Vieira pode ser chamado de filósofo ou termo correlato. Fato é que tinha uma mente pensante, brilhante, não passiva, mas ativa em desdobrar mundividências. “Eu sou tão amigo da razão – dizia Vieira – tenho um tal fraco por ela, que nem mesmo a sua sombra eu poderia descuidar”.17 Enquanto os grandes pensadores do século XVII estavam a par das recentes publicações e próximos das grandes universidades europeias, o jesuíta bebeu toda ciência que demonstrou ter a partir das precariedades da Colônia. Filosoficamente falando, Viera detém atenção especial à moral, ética, política e história. Teologicamente possuía um interesse: a salvação das almas. Quanto à moral, o catequista dos índios estava apegado à concepção estóica tendo em proximidade as ideias do filósofo latino Sêneca.18 Quanto à teologia se fiava na Sagrada Escritura, no magistério e na Tradição. Em um de seus sermões deixa 16

Cf. Vainfas, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. p. 117. Carel, E. Vida do Padre Antônio Vieira, p. 87. 18 Cf. . Acesso em 01 de Nov de 2013. 17

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entrever sua inclinação ao “fazer”, ao “agir”. Um pequeno excerto do Sermão do Terceiro Domingo do Advento que revela muito bem o que consiste a essência do homem para Antônio Vieira. Cansados, finalmente, os embaixadores de lhes responder o Batista que não era Messias, nem Elias, nem profeta, pediram-lhe, finalmente, que pois eles não acertavam a perguntar, lhes dissesse ele quem era. A esta instância pôde deixar de deferir o Batista. E que vos parece que responderia? Ego suum vox clamantis in deserto (Jo. 1, 23). Eu sou uma voz que clama no deserto. - Verdadeiramente não entendo esta resposta. Se os embaixadores perguntaram ao Batista o que fazia, então estava bem respondido com a voz que clamava no deserto, porque o que o Batista fazia no deserto era dar vozes e clamar; mas, se os embaixadores perguntavam ao Batista quem era, como lhes responde ele o que fazia? Respondeu discretissimamente. Quando lhe perguntavam quem era, respondeu o que fazia, porque cada um é o que faz, e não outra coisa. As coisas definem-se pela essência: o Batista definiu-se pelas ações, porque as ações de cada um são sua essência. Definiu-se pelo que fazia, para declarar o que era.19 Tal passagem revela um espírito prático, bem diferente do espírito português comum. Bem próprio de quem usa mais imagens concretas que metafísica em sua visão de mundo. Nesse ponto Vieira é homem moderno. Filosoficamente falando é da concepção de que é a prática que molda a essência humana. Importante salientar o fato de Vieira deixar-nos um acervo riquíssimo de escritos. A língua portuguesa, “a última flor do Lácio, inculta e bela”, como chamava Olavo Bilac, tem em Vieira um de seus maiores dominantes. Utilizou como ninguém as figuras de linguagem, os advérbios, os adjetivos, em suma, tudo aquilo ao alcance de uma bom gramático, para bem expor a agudeza de seu raciocínio. Segundo alguns estudiosos, Vieira supera em muito os grandes de sua época, mas devido o raio de alcance do idioma lusitano ser diminuto, só é estudado por uma fração mínima comparado à sua importância. É tido como modelo de prosador e orador até os dias de hoje. O legado de Vieira como homem de fé é talvez a sua maior glória. Como padre da Companhia foi fiel aos seus propósitos de levar a bom termo um projeto de missão 19

. Acesso em 01 de Nov de 2013.

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que envolvia fé e civilização pela educação. Mas o que chama a atenção é a sua luta contra o preconceito em relação aos indígenas tendo-os como seres humanos capazes de deveres e merecedores de direitos. Foi propugnador da liberdade e da tolerância, tornando-se inimigo da máquina manipuladora de consciências que foi a Inquisição. Dessa forma, Pe. Antônio Vieira destaca-se como um homem de assistência social, isto porque tem em vista a promoção de pessoas, quer seja seus congêneres de sangue quer seja os de outros povos como os indígenas. Vieira é um educador por natureza e isto transpareceu através de suas atividades no púlpito, no ensino formal e mesmo na catequese doutrinal. Para o jesuíta o essencial era a promoção da fé e o respeito à dignidade humana.

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Conclusão A Sagrada Escritura, a Igreja e a Teologia transmitem seus conteúdos a partir da linguagem religiosa. A maior arma de defesa e ataque de Vieira é justamente a língua. A busca penetrante por uma linguagem teológica tem por pano de fundo a necessidade de “comunicar” algo. Estudar a vida e os escritos de Pe. Antônio Vieira é meio privilegiado para compreender certa etapa da história da teologia latino-americana, tal busca de conhecimento não é um luxo, antes uma necessidade. Devido essa incomensurável importância que não se pode descurar do seu estudo, na certeza é claro, que o tema é de fonte inesgotável. Através de sua visão de mundo, a fé, a religião e a política tiveram um intérprete no século XVII: Antônio Vieira. Foi mestre em se fazer entender, sabendo utilizar-se das linguagens apropriadas desenvolvendo habilidosa capacidade de inculturação para levar a cabo o intento-mor de sua vida: a evangelização.

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6 Bibliografia CAREL, E. Vida do Padre Antônio Vieira. Edições Cultura Brasileira. São Paulo. Coleção Grandes Homens. NISKIER, Arnaldo. Padre Antônio Vieira e os judeus. Rio de janeiro: Imago, 2004 VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Consultas Online

INSTITUTO

CAMÕES.

Disponível

em: Acesso em 01 de Nov de 2013.

LITERATURA BRASILEIRA. Disponível em: Acesso em 01 de Nov de 2013.

SÓ LITERATURA. Disponível em: Acesso em: 31 de out de 2013.

WIKIPEDIA. Disponível em: Acesso em 31 de out. 2013.

WIKIPEDIA. Disponível em: Acesso em 01 de Nov de 2013.

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