Antotipias - Técnica e Poiesis

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Antotipias técnica e poiesis

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6 Karol Luan Sales Oliveira

Antotipias técnica e poiesis Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de licenciado em Artes Visuais pela Universidade Regional do Cariri

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Juazeiro do Norte 2015

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6 Defesa realizada em 19 de Outubro de 2015, com presença dos avaliadores:

Prof. Rubens Venâncio Profa. Dra. Ruth Sousa Regiani

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Prof. Dr. Sergio de Moraes Bonilha Filho (orientador)

6 à minha familia pelo carinho, apoio e suporte. Ao meu orientador, Sergio Bonilha, pela amizade, confiança, conversas e ensinamentos. à Ruth Sousa pela amizade e ensinamentos nutridos durante estes anos.

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Aos amigos que diretamente ou indiretamente contribuiram para a relização deste trabalho.

rResumo/Abstractr Esta pesquisa busca investigar, tanto do ponto de vista histórico/metodológico, quanto poético, a Antotipia, processo fotográfico sistematizado por Sir John Herschel, em 1842. Para tal é realizada uma analise do pensamento de alguns autores em relação à Fotografia , sistematização do processo da Antotipia a partir de referências que também pesquisaram o processo e realização de uma análise da prática de ateliê que foi desenvolvida. Palavras-chaves: Antotipia, processos fotográficos históricos, Herschel, Entropia.

This research seeks to investigate, from a historical / methodological point of view, as well as from a poetic one, the Anthotype process, a photographic process systematized by Sir John Herschel in 1842. For this purpose I propose an analysis of the thought of some authors in relation to photography, a structured process of Antotipia is described and the studio work resulted is analyzed. Keywords: Anthotype, historical photographic processes, Herschel, Entropy.

rSumárior b Introdução 11

b Capítulo I 18

b Capítulo II 29

b Capítulo III

.I

decalque

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.II plasticum 53



.III engenho

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b Considerações Finais

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b Referências Bibliográficas

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rIntroduçãor

O

começo de uma pesquisa pode ser um processo lento e difícil, um abismo a transpor. Solicitanos trazer esquemas mentais para um plano mais tangível, fazer do branco da primeira folha algo menos intimidador, saltar de um simples desafio ao mergulho fascinante. Tal processo nos leva a refletir sobre os porquês que rodeiam a experiência do pesquisador e a definir de que lugar estamos falando, para só então apontar possibilidades de resposta ao infinito de indagações que nos apresenta a pesquisa. Vincular ação e pensamento é combinar pesquisa e circunstâncias da vida real, que nos inquietam e aguçam o espírito pelo conhecimento. Assim sendo, entendo que seja importante traçar um mapa inicial do contexto em que este pesquisador encontra seu objeto, trazer a um nível mais explícito e verbal motivações e desejos que movem a presente pesquisa.

Sinto agora que as imagens sempre foram parte expressiva da minha trajetória de vida; dentre minhas memórias mais primevas estão imagens de televisão. Lembro que quando criança impressionava­-me aquele aparelho quadrado, preto e pequeno, capaz de trazer um mundo incessante de movimento, cores e som. E foi lembrando desse aparelho quase mágico que me vi pensando sobre como teriam se sentido os pré-­históricos Homo sapiens ao produzir suas primeiras imagens, pensando na relação direta entre imagem e magia que nos marca desde as primeiras culturas humanas ­de fato, a imagem, ao nos transportar mentalmente para outro lugar, levando nossa percepção além dos dados naturais presentes no ambiente, produz mágica. Mas houvera também outro tipo de imagem a aguçar minha curiosidade, a fotográfica. Minha avó possui uma imagem de um sobrinho - ­primo em segundo grau para mim - que havia se suicidado anos antes do meu 11

nascimento. Chama minha atenção esse contexto pois, embora não o tivesse conhecido pessoalmente, sua fotografia gerava/gera em mim empatia; eu nunca o poderei conhecê­-lo mas sua imagem nos liga. Quando tornei-me discente do curso de Artes Visuais, conheci e passei a interessar-me por um outro tipo de fotografia, às vezes denominada de alternativa ou experimental. O primeiro contato que tive foi com a fotografia pinhole1, processo esse que apontou para mim novas formas de fotografar, muito diferentes daquelas que conhecera com a máquina 35mm. Destacaria também a obra de fotógrafos que trabalham com a intervenção manual no próprio material fotográfico; confesso que num primeiro momento, essa prática me parecia um tabu, pois eu considerava a fotografia e sua materialidade como algo intocável, sempre a preservar da ação do tempo e do ambiente. Pensava que tais interferências atrapalhavam a função da fotografia que, até então, eu tinha em mente como documento. Porém, ao mesmo tempo, aquelas fotografias me pareciam bastante interessantes e atrativas do ponto de vista estético e artístico. Sentia que estava me confrontando com uma forma diferente de lidar com a fotografia; como na máxima de Klee: “A Arte não representa o visível, a Arte torna visível.” (Paul Klee (1980) apud REY, 2002, p. 129) Aquelas fotografias pareciam extrapolar a ideia de fotografia apenas como representação do mundo visível, aqueles trabalhos operavam a partir de outras coordenadas e além destas. Entre o representar e o tornar, há uma diferença clara de intenção e escolha, o “tornar visível” poderia ser entendido como transformar o visível a partir de sua prática artística. Percebi que as intervenções nas fotografias tornavam visíveis outros modos de relação com a 1 câmera pinhole é uma máquina fotográfica sem lente. A designação tem por base o inglês, pin-hole, "buraco de alfinete”.

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fotografia, como no caso de Geraldo de Barros e suas interferências sobre negativos, com recortes, riscos e desenhos.

Geraldo de Barros, A menina do Sapato, 1949.

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Sobre “A menina do Sapato”, Espada afirma: A documentação fotográfica da mostra Fotoformas revela que obras hoje conhecidas como imagens bidimensionais – A menina do sapato, 1949 [...] foram originalmente concebidas como foto­-objetos. O formato irregular, a ausência de molduras e o descolamento da parede as afastavam definitivamente da concepção de pintura como uma janela aberta para outra realidade. Elas eram a maior evidência de que Geraldo de Barros havia incorporado em seus trabalhos o conceito de que a imagem pintada ou fotografada era um artifício, uma construção que deveria se apresentar como tal. (ESPADA, 2014, p. 15)

Outra produção artística que gostaria de destacar é a de Man Ray, que desenvolveu um procedimento chamado de “rayografia”, imagens realizadas a partir do posicionamento de objetos sobre papel sensibilizado, mergulhado no banho revelador e exposto à luz. O resultado era uma fotografia das formas dos objetos que, embora reduzidos à sua essencialidade, ainda se podia reconhecer. Moholy-­Nagy, por seu turno, desenvolveu um processo análogo às “rayografias” que ele denominava como “fotograma”. A diferença entre os dois, segundo Alexandrian seria: Os fotogramas[…] se assemelhavam às pinturas abstratas e não representavam a profundidade do espaço nem a tridimensionalidade do objeto. Não há nenhuma abstração na raiografia de Man Ray, se reconhece quase sempre o objeto que foi utilizado para impressão.2 (ALEXANDRIAN, 1963, p.24 apud MARRA, 2012, p.57, tradução livre)

Dada a riqueza de possibilidades que essa mistura de procedimentos no campo da fotografia oferece, percebi que o processo de construção da imagem fotográfica é muito maior e até mais importante que o clique fotográfico; a câmera era um dos elementos 2 I fotogrammi [...] rassomigliavano a pitture astratte e non riuscivano a rendere né la profondità dello spazio, né le tre dimensioni dell’oggetto. Non c’è nessuna astrazione nelle rayografie di Man Ray, si roconosce quasi sempre l’oggetto che è servito per l’impressione

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do jogo, mas não o único. Tive então que repensar minha prática enquanto artista e refletir sobre as muitas relações que a fotografia pode estabelecer com outras linguagens e suportes.

Man Ray, Champs Delicieux N° 2, s/d.

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Em 2012 recebemos no Centro de Artes Reitora Violeta Arraes Gervaiseau uma oficina, realizada em quatro dias por Sergio Sakakibara, fotógrafo e pesquisador de processos fotográficos alternativos, que propunha a experimentação de processos fotográficos históricos: antotipia, cianotipia, goma bicromatada e pinhole. O contato com essas técnicas me impeliu a pesquisar mais ainda e experimentá­-las detidamente. Proponho-­me, então, a pesquisar o processo da antotipia, imagem fotográfica realizada a partir de emulsões produzidas com plantas, flores ou frutas, cujas possibilidades foram descritas primeiramente por Sir John Herschel, no artigo “On the Action of the Rays of the Solar Spectrum on Vegetable Colours, and on some new Photographic Processes”, em 1842. Enquanto metodologia, além da análise bibliográfica sobre as questões já levantadas pelo percurso que desemboca neste trabalho, sigo as premissas de Rey (2002) sobre a constituição do objeto da pesquisa em arte. Comparando a pesquisa em arte com outras formas de pesquisa, Rey afirma que diferente da pesquisa científica, que procura comprovar uma verdade, a pesquisa em artes visuais trabalha na direção de desvelar a instauração desta verdade. Tal autora também faz uma analogia com o conceito de utopia na acepção de algo que não se encontra ainda definido no tempo presente, sendo objeto de pesquisa o processo de instauração desta utopia. Rey afirma: A obra se fazendo constitui­-se numa utopia na medida em que a idealização de um projeto é como o lançar uma flecha: partimos de um ponto determinado como uma mira, porém o ponto de chegada só poderá ser determinado pela trajetória. Não podemos prever com exatidão os caminhos pelos quais a obra se concretizará. (REY, 2002, p.133)

Por trabalhar com um objeto em constituição, este trabalho abordará aspectos teóricos e práticos presentes na elaboração do 16

mesmo, discutindo questões que permeiam esta trajetória a partir de conceitos operatórios extraídos da prática artística. Esta metodologia está ancorada na ideia de poiética3, que é o estudo da obra em processo. No primeiro capítulo analiso a minha trajetória dentro da prática fotográfica e o meu pensamento sobre a fotografia a partir de alguns referenciais artísticos e teóricos. No segundo capítulo desenvolvo a pesquisa histórica sobre a antotipia e sistematizo o processo a partir dos escritos de Herschel, Fabbri, Coelho e da minha experiência de ateliê. Neste capítulo também abordarei questões e conceitos levantados pela pesquisa e as implicações de uma prática experimental de fotografia sobre o pensar e fazer da linguagem fotográfica. No terceiro e último capítulo realizo uma análise da prática de ateliê que desenvolvi concomitante à pesquisa histórica e metodológica sobre o processo.

3 Poiética (de poiètique), termo cunhado por Paul Valery em conferência no College de France para estudar a gênese de um poema. René Passerron ampliou a significação para o conjunto de estudos que tratam da criação na instauração da obra, notadamente da obra de arte. (REY, 2002, p.134)

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r Capítulo I r

C

omo fotógrafo, inicialmente, interessei-­me por aspectos ligados à forma e à luz, e realizei algumas séries com imagens com alto contraste e saturação, procurando enfatizar mais os aspectos formais da imagem do que documentais. Tinha apreço pelo trabalho de alguns fotógrafos modernos brasileiros e russos, como Ademar Manarini e Rodtchenko. Fui construindo novos olhares e trabalhos fotográficos durante esse tempo. Percebi que diferente de uma analogia a um tempo passado, a fotografia passou a representar para mim uma experiência vivida.

Série P&B, 2011.

O estudo teórico da fotografia também foi intenso nestes anos. Nessa mudança de percepção, participaram grandemente os tra18

balhos de Barthes, Cartier-­Bresson, Flores e Rouillé como referências que formaram minha perspectiva em relação à fotografia. Explanarei adiante sobre estes referenciais. Roland Barthes, em seu ensaio “Câmara Clara”, nos leva em suas divagações ao se confrontar com suas fotografias preferidas e outras de sua família. Para Barthes, a fotografia representa uma microexperiência de morte, pois ao sermos fotografados nos tornamos um espectro de nós mesmos. Barthes afirma: Dir-se­-ia que a Fotografia traz sempre consigo o seu referente, ambos atingidos pela mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no próprio seio do mundo em movimento: eles estão colados um ao outro, membro a membro, como o condenado acorrentado a um cadáver em certos suplícios. (BARTHES, 1980, p.13)

Frisemos que a referencialidade seria – no noema4 “isto foi", cunhado por Barthes – essência de toda a fotografia. Tal constatação está ligada aos estudos que afirmam ser a fotografia uma prática ligada indubitavelmente ao índice, um dos signos da teoria semiótica de Charles S. Pierce. É possível fazer uma analogia entre o pensamento de Barthes com o do teórico da Arte Moderna Clement Greenberg. Embora Greenberg trate precisamente de questões relacionadas à pintura moderna, sua discussão e visão também passa por questões essencialistas. Se para Barthes a fotografia é o índice que algo esteve em frente à câmera, algo que adere na própria matéria fotográfica, para Greenberg o parâmetro ontológicos para a atividade pictórica é o plano. Os dois autores trabalham no delineamento de um “grau zero” para os respectivos campos. Em relação a fotografia Greenberg afirma: 4 noema no.e.masm (gr nóema) 1 Ret ant Figura com que se faz entender uma coisa, quando se diz outra. 2 Filos Ideia em geral. 3 Ling O significado de um glossema; termo equivalente à amálgama (unidade de traços indissociáveis). Ex: eu (não se pode expressar a primeira pessoa independentemente de singular). É um tipo especial de sema.

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A Fotografia é o mais transparente dos meios criados ou descobertos pelo homem. Provavelmente, é por isso que se torna tão difícil fazer com que a fotografia transcenda sua função quase inevitável como documento e ao mesmo tempo atue como obra de arte. Mas há evidências que as duas funções são compatíveis.5 6(Greenberg, 1984, tradução livre)

Todavia, em uma crítica a esse pensamento, Rouillé afirma: Longe da esfera macroscópica das funções sociais, das questões econômicas, dos códigos culturais, e da estética, a imagem fotográfica é transportada para “seu nível mais elementar”, para sua definição mínima, banalmente técnica e material, a de uma imagem que “aparece primeiramente, simplesmente e unicamente como uma impressão luminosa, mais precisamente como uma marca, fixada em um suporte bidimensional [...] Isso consiste em não dissociar a análise (do dispositivo e do médium) do estudo concreto do campo fotográfico e de suas transformações. (ROUILLé, 2009, p.193)

Em seu artigo "O instante decisivo" Bresson descreve minuciosamente aspectos e dilemas de um fotógrafo. Entre suas pontuações se destacam trechos relativos aos aspectos formais da fotografia, questões composicionais que surgem da relação do fotógrafo com o seu objeto. O instante decisivo seria segundo as palavras do próprio autor: Dentro do movimento existe um instante no qual todos os elementos que se movem ficam em equilíbrio. A fotografia deve intervir neste instante, tornando o equilíbrio imóvel.7 (CARTIER-­BRESSON, 1952).

Bresson coloca um grande peso nas questões composicionais da fotografia, uma dialética entre o olhar, a cena e os movimentos 5 Photography is the most transparent of the art mediums devised or discovered by man. It is probably for this reason that it proves so difficult to make the photograph transcend its almost inevitable function as document and act as worl of art as well. But we do have evidence that the two functions are compatible 6 Disponível em: < http://docslide.us/documents/clement-greenberg1946-the-cameras-glass-eye.html > Acesso em: 09 de Junho 2015. 7 Disponível em: Acesso em: 09 de Junho 2015.

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do fotógrafo são fatores decisivos, sendo o ato de composição acionado ao se pressionar o obturador, na velocidade de um reflexo. O fotógrafo “congela” o fluxo das coisas na imagem fotográfica, alcançando de forma instintiva o momento de uma composição bela, ligado a um padrão geométrico que estrutura a imagem, que não é dada a priori por esquemas geométricos. O tempo fotográfico é assumido como este instante, em que, instintivamente, a luz entra em contato com a superfície. Não há como refutar que um dos principais usos sociais da fotografia é o de documentar o instante, e que o momento da captação é importante, no entanto, acrescentaria, citando Gilles Deleuze em sua análise sobre os espelhos de Alice: Passar para o outro lado do espelho é passar da relação de designação à relação de expressão – sem se deter nos intermediários, manifestação, significação. É chegar a uma dimensão em que a linguagem não tem mais relação com designados, mas somente com expressos, isto é, sentido. (DELEUZE, 2009, p.27)

Se tomarmos a fotografia como espelho, poderíamos afirmar que ela se constitui como um espelho problemático entre designação e expressão. Rouillé constata: Em fotografia, a designação pode envolver a expressão, na medida em que as imagens têm a preciosa particularidade de serem duplas, de combinarem um dispositivo (que designa as coisas) e as formas (que exprimem o sentido e o evento) [...] a designação, que diz respeito aos corpos e às coisas, pode envolver a expressão, que diz respeito aos eventos incorporais, porque o evento está indissociavelmente encarnado nas coisas e é expresso por imagens. (ROUILLé, 2009, p.207)

A designação seria o aspecto indicial da imagem fotográfica, aquilo que é visível na imagem pelo seu dispositivo físico, porém também atuam aspectos invisíveis, não expressos visualmente na imagem. Ao analisarmos apenas a designação, sem levar em conta a expressão, privilegiamos apenas um aspecto da imagem fotográfica. A referencialidade se assemelharia ao mito de Narciso, 21

que ao olhar para sua própria imagem refletida na água, viu a si próprio, sem distinguir-se de sua imagem. Machado propõe, a partir do pensamento de Vilém Flusser, que a imagem fotográfica seja entendida enquanto expressão de um conceito, ou seja, como sendo pertencente a categoria de símbolo na definição de Charles S. Pierce: Eis porque uma fotografia pode ser considerada, sem nenhuma vacilação, um signo de natureza predominantemente simbólico, pertencente prioritariamente ao domínio da terceiridade peirceana, porque é imagem científica, imagem informada pela técnica, tanto quanto a imagem digital, ainda que um certo grau de indicialidade esteja presente na maioria dos casos. Em outras palavras, fotografia é, antes de qualquer outra coisa, o resultado da aplicação técnica de conceitos científicos acumulados ao longo de pelo menos cinco séculos de pesquisas nos campos da ótica, da mecânica e da química, bem como também da evolução do cálculo matemático e do instrumental para operacionalizá-­lo. Enquanto símbolo, segundo a definição peirceana, a fotografia existe numa relação triádica entre: o signo (a foto, ou, se quiserem, o registro), seu objeto (a coisa fotografada) e a interpretação físico­química e matemática. Essa interpretação é um terceiro, podendo ser “lida” (aliás, essa é a única leitura séria da fotografia) como a criação de algo novo, de um conceito puramente plástico a respeito do objeto e seu traço. (MACHADO, 2000, p.8­9)

Hyppolite Bayard é considerado um dos inventores da fotografia, seu processo se baseava na impressão de positivos sobre papel, o que poderia ser uma alternativa ao metal, de Daguerre, que teve sua invenção apresentada na Academia de Ciência e Belas Artes. O processo de Bayard é apresentado exclusivamente na academia de Artes, dois meses após o anúncio de Daguerre. Hyppolite inscrevia sua invenção nitidamente como pertencente ao ramo da Arte, enquanto Daguerre no campo da Ciência e veracidade do documento. Em um dos seus trabalhos, intitulado “O Afogado”, Bayard ironiza essa tensão presente em face a esta nova invenção. No verso da fotografia consta o seguinte texto: 22

Este cadáver que vocês veem é do Sr. Bayard, inventor do procedimento que vocês acabam de presenciar, e cujos maravilhosos resultados já presenciaram. De acordo com meus conhecimentos, este inventor genial e incansável trabalhou durante três anos para aperfeiçoar sua invenção [...] isso lhe outorgou uma grande honra, mas não lhe rendeu um centavo. O governo, que deu muito ao Sr. Daguerre, declarou que não podia fazer nada pelo Sr. Bayard e ele, menosprezado, decidiu resignar-se [...] melhor seria que vocês passassem de largo para não ofender o seu olfato, pois, como podem observar, o rosto e as mãos do cavaleiro começam a decompor-se (Bayard, 1840 in BATCHEN, 2004, p.172 apud FLORES, 2011, p.145)

Hyppolite Bayard, O Afogado, 1840.

Neste trabalho Bayard transgride o discurso hegemônico construído em torno da fotografia no seu surgimento, ironizando a condição de documento e verdade da fotografia. Como afirma Flores: 23

O campo no qual Bayard se inscreve com essa atitude é obviamente, o campo da criação artística. Com O afogado, ele constata que com a invenção da fotografia surgem duas possibilidades simultâneas e contraditórias: documentar uma realidade e criá-la. (FLORES, 2011, p.146)

Levando em consideração as questões discutidas até agora, podemos fazer uma leitura crítica do noema “isto foi” de Barthes e do “instante decisivo” de Bresson em relação ao trabalho de Bayard. Barthes e Bresson se ligariam claramente à referencialidade, ao espelho de Narciso. Como espelho problemático, a imagem de Bayard não se liga a nenhuma lógica referencial do mundo e traz à luz o dispositivo que sustenta uma construção cultural: a ideia do “realismo” na fotografia. Flores continua: Percebe­-se como realista aquilo que ostenta as características predefinidas por uma cultura como tal. Enquanto cultura ocidental, o natural, ou seja, o semelhante à percepção visual, é visto como realista, outras culturas alheias à nossa idiossincrasia verão o natural como codificado. (FLORES, p.147, 2011)

Karol Luan e Charles Farias, Série sem título, 2011.

Assim, em contraposição ao “isto foi” de Barthes, Flores propõe o “isto aconteceu porque eu o inventei”. Seguindo esse pensamento, considero que a imagem fotográfica representa um produto da minha visão e escrita sobre o mundo das imagens, e citando Machado: O arranjo do objeto no seu espaço natural ou no estúdio, a disposição da iluminação, a modelação da pose, os ajustes do dispositivo técnico e todo o processo de codificação

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que acontece antes do “clique” é tão fotografia quanto o que acontece no “momento decisivo”. (MACHADO, 2000, p.13)

Concomitante à pesquisa teórica sobre fotografia, desenvolvi trabalhos poéticos nessa linguagem. Nesta obra feita em conjunto com o colega de curso Charles Farias, decidimos realizar intervenções corporais em lugares inusitados na cidade, interferindo no cotidiano a partir de ações planejadas para serem fotografadas, um instante construído para a câmera. Queríamos subverter a normalidade comportamental nos espaços e não ­lugares da cidade, como, por exemplo, no supermercado e paradas de ônibus. Não avisávamos de antemão os presentes para que se pudesse captar as reações advindas destes durante aquele instante modificado.

Tensão, 2011.

Nesta outra série, intitulada Tensão, continuo de certa forma a proposta do primeiro trabalho, porém desta vez ao invés de uma pessoa, faço uso de uma escada sustentada por duas bolinhas de tênis, parto da ideia de provocar uma tensão entre a estabilidade da escada e o seu apoio frágil. Inicialmente pensei na escada em si como uma escultura, posteriormente realizei o seu registro e decidi adotá­-lo como obra, tanto por fins práticos, quanto por questões relacionadas a proposta do trabalho, o registro fotográfico me per25

mite contextualizá-­lo de forma especial dentro do espaço urbano, submetendo o objeto que está montado na rua à irreversibilidade do registro fotográfico e sua qualidade de apresentação. Sobre esta relação da fotografia com outras artes, Soulages afirma: A abertura da fotografia para outras artes não é, pois, um acidente, mas uma de suas potencialidades, uma das maneiras de explorar esse trabalho com o negativo. Não que a fotografia se aproveite de uma outra arte, é que ela tira proveito de todas as suas próprias possibilidades: na utilização de escultura como suporte, estamos plenamente no fotográfico e não inicialmente no escultural. (SOULAGES, 2010, p.140)

Série Desaparecidos, 2012

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Essa prática se relaciona ao conceito de 'arte ao quadrado' cunhado também por Soulages, conceito este descrito nas palavras do autor da seguinte forma: Com uma obra de arte, a fotografia pode operar como com os fenômenos visuais: pode não só registrá­-la, mas também, a partir dela, fazer uma foto que seja ela própria uma obra de arte, não porque seria a réplica fiel da obra de origem – a fotografia nunca é fiel, mas sempre metamorfoseante – mas porque pode criar uma imagem fixa que será aproveitada no trabalho com o negativo e na apresentação. É nisso e por isso que podemos dizer que a fotografia é uma arte ao quadrado (SOULAGES, 2012, p. 327)

Na série “Desaparecidos” faço uso do photoshop para produzir variações de mim mesmo, e espalho os cartazes pela cidade. Para Fontcuberta a fotografia digital já não pode funcionar com os mesmos critérios usados até então, como a ligação da fotografia com a memória e por consequência ao caráter indicial da representação, o artista afirma: Uma fotografia sem essa classe de realismo torna-se então uma fotografia desconcertante, um produto de um media que esgotou seu mandato histórico […] A representação fotográfica se libera da memória, o objeto se ausenta, o índice evapora. A questão da representação da realidade dá lugar a construção de sentido.8 (FONTCUBERTA, 2013, p.63 , tradução livre)

Até então minha relação com a fotografia tinha sido em pequena parte analógica, e em grande parte digital. Quase todos os trabalhos que desenvolvi até este ponto fizeram uso de câmera digital. Em 2011 participei de uma oficina de antotipia e interessei­ me logo por este processo, a origem etimológica do termo vem das palavras gregas anthos, que significa flor, e tipus, impressão. Das suas características, as que mais me instigavam eram o seu longo 8 Una fotografia sin esa classe de realismo deviene entonces una fotografia desconcertada, el produto de un médio que ha agotado su mandato histórico[...] La representacion fotográfica se libera de la memoria, el objeto se ausenta, el índice se evapora. La cuestion de representar la realidade deja passo a la construccion de sentido.

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tempo de exposição, e a fragilidade e fugacidade da sua materialidade, imagem esta composta pelo sumo extraído não só de flores, como também de folhas e frutos. A antotipia me impunha uma nova sensibilidade em relação a imagem e ao processo fotográfico.

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I

r Capítulo II r

niciemos o presente capítulo com um sucinto “manual contextualizado” sobre a obtenção/criação de imagens em antotipia. A antotipia foi sistematizada por Sir William John Herschel, que em 1842, publicou um artigo intitulado “On the Action of the Rays of the solar spectrum on vegetable colours, and on some new photographic processes”. Sobre o processo, Herschel afirma: A ação é positiva, isto é, a luz destrói a cor; totalmente, ou deixando uma tonalidade residual, em que não tem mais, ou muito mais lentamente, uma ação. E, assim, é efetuado um tipo de análise cromática, em que dois elementos distintos de cor estão separados, um é destruído, o outro é preservado extraordinariamente. Quanto mais velho o papel, ou a tintura com a qual está embebido, maior é a quantidade desta cor residual.9 (HERSCHEL apud FABBRI, 2012, p.20, tradução livre)

Embora a sistematização do processo seja atribuída a Herschel, o estudo da fotossensibilidade de plantas precede seus estudos e contemporaneamente outros também pesquisaram sobre o processo. Dentre estes se destaca Mary Somerville, uma das primeiras mulheres a se tornar membro honorário da Academia Real de Astronomia inglesa, embora tenha pesquisado o processo, seus estudos foram impossibilitados de serem publicados pois à época mulheres não tinham permissão para tal, todavia, seu trabalho foi documentado em uma carta escrita para Herschel. Pode-­se usar folhas, flores ou frutos para a obtenção de um pigmento sensível à luz. Depois de macerado e filtrado, adiciona-­se

9 The action is positive, that is to say, light destroys color; either totally, or leaving a residual tint, on which it has no further, or a very much slower action. And thus is effected a sort of chromatic analysis, in which two distinct elements of color are separated, by destroying the one and leaving the other outstanding. The older the paper, or the tincture with which it is stained, the greater is the amount of this residual tint.

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álcool e aplica-­se diretamente no papel. A não adição do álcool à mistura implica que a exposição à luz solar deve ser feita imediatamente após a aplicação. Para a obtenção da imagem pode-­se valer de duas opções: a exposição com objetos colocados em direto contato com a folha, seguindo à lógica do fotograma, ou imprimindo uma imagem positiva em transparência, com alto contraste. Como afirma Herschel, o efeito da luz solar é o de destruir as cores, portanto as partes mais claras da imagem terão um tom bem mais claro do que as partes escuras. A imagem obtida sempre apresenta um tom suave. A ação da luz no pigmento pode alterar consubstancialmente a cor inicial dele, aconselha-se testar antes o pigmento para saber exatamente se o tom obtido é o desejado.

Margaret Cameron, Sir William John Herschel, 1867

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Em relação aos processos fotográficos com metais nobres como a prata, a Antotipia pode ser considerada de fácil execução por não necessitar necessariamente de um ambiente escuro nem de banhos em fixador, a revelação da imagem acontece durante a exposição ao sol, e sua permanência depende do cuidado com que é exposta à luz. Basicamente, para começar os materiais necessários são folhas, flores ou frutos que possuem sensibilidade à luz, um gral com pistilo, folha de papel(para que não enruguem, é aconselhável o uso de papel com alta gramatura), chapa de vidro do tamanho da folha de papel utilizada, uma chapa de madeira ou prancheta, filtros para café, um recipiente e presilhas.

Gral e pistilo.

Comece separando as folhas do caule, para começar aconselho o uso de plantas como agrião e espinafre pela comprovada utili31

dade no processo e facilidade de encontrá­-las em qualquer época do ano em mercados. Além destas podem ser utilizadas flores, raízes e frutos. É importante destacar que nem sempre há uma correspondência entre a cor do material vegetal e a cor da impressão final, aconselha­-se a realização de testes para saber ao certo qual a cor obtida após a exposição da emulsão à luz solar, outro ponto importante é sobre a segurança, o sumo de certas flores e folhas pode ser venenoso se ingerido ou causar alguma reação alérgica, o uso de luvas é aconselhável, e caso deseje estocar parte do sumo, que o faça com a devida identificação e precaução. Herschel adverte sobre a maturidade das flores: As flores jovens de qualquer espécie criadas ao ar livre [...] são mais sensíveis do que as flores em final de período de floração , mesmo que sejam da mesma planta, elas(flores jovens) têm as suas cores mais completamente afetadas pela luz. À medida que o fim do período de floração chega, não só a destruição da cor pela luz é mais lenta, mas matizes residuais resistem teimosamente.10 (HERSCHEL,1842, p.189, tradução livre)

Coloque as folhas no gral e comece a triturá­-las, é também possível cortá­-las em pequenos pedaços para facilitar a maceração. Nesta fase é opcional a adição de gotas de álcool ou água para facilitar a extração do sumo. Porém deve-­se ter cuidado com a quantidade, pois a adição em excesso pode enfraquecer a cor do sumo. A maceração também pode ser realizada com um liquidificador ou processador de alimentos. Depois de maceradas, extraia o sumo da massa de folhas espremendo­a diretamente com as mãos ou envoltas num filtro (de papel ou pano), apertando bem até que se extraia o máximo de líquido possível. 10 The earlier flowers of any given species reared in the open air[...] are more sensitive than those produced even from the same plant, at a late period in its flowering, and have their colours more completely discharged by light. As the end of the flowering period comes on, not only the destruction of the colour by light is slower, but residual tints are left which resist obtinately.

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Folha de Agrião

Maceração

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Após a extração inicial, o líquido filtrado pode ser novamente filtrado pois nesta fase alguns pequenos pedaços de folha podem passar para o sumo, que causarão pontos e manchas na impressão final. A aplicação do sumo no papel exige cuidados para que não se formem bolhas ou manchas indesejadas. Há duas opções de aplicação: com pincel ou por submersão de uma das faces em um recipiente. Na primeira opção Fabbri(2012) aconselha que se passe uma esponja molhada na face de trás do papel antes da aplicação do sumo para evitar a formação de bolhas. Depois prenda o papel para que ele não enrugue e aplique o sumo, inicialmente com pinceladas horizontais, espalhando o sumo de modo mais homogêneo possível. Em relação ao tipo de papel adequado, Coelho afirma: Para a prática da antotipia, é aconselhável o emprego de papéis de pH neutro os quais não reagirão quimicamente com a tintura floral. É também desejável que o papel não seja muito absorvente, pois esta característica dificulta a obtenção de uma superfície homogênea quando a emulsão é aplicada sobre o papel. Os papéis mais recomendados, portanto, são os papéis para aquarela, preferencialmente de algodão, de superfície lisa. Os papéis de gramatura igual ou superior a 180 g/m2 são especialmente adequados pois, no momento em que a emulsão é aplicada, sua superfície não enruga como ocorre com papéis mais finos.(COELHO, 2013, p.50)

Deixe o papel secar em ambiente com pouca luz, caso queira uma secagem rápida, use um secador com uma certa distância do papel e com temperatura média/baixa. Após seco, caso queira uma coloração mais forte, aplique outra pincelada, só que dessa vez de cima para baixo. Fabbri(2012) afirma que papéis sensibilizados podem ser guardados para sempre, desde que mantidos no escuro, o autor no entanto adverte que isso pode depender do sumo utilizado, é possível que alguns não resistam ao tempo. A melhor opção talvez seja planejar o número exato de material ne34

cessário para fazer o trabalho proposto, evitando assim desperdícios.

Pinceladas

O processo por submersão consiste basicamente em colocar o sumo em um recipiente e banhar uma das faces do papel no líquido. Depois tire o papel com uma pinça e deixe secar. Para obter uma cor mais forte, basta repetir o processo.

Disposição entre prancheta (abaixo), papel e vidro (acima)

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Depois de seco, coloque o papel na prancheta e posicione o seu positivo sobre a face fotossensível. Para pressionar o positivo contra o papel é necessária a utilização de presilhas e um v i d r o que seja de tamanho igual ou maior que papel. Como já dito, a antotipia é um processo positivo, as partes escuras da imagem permanecem, enquanto as claras tendem a desaparecer ou apresentar baixa nitidez. Para a realização do meu trabalho de ateliê, trabalhei tanto com o contato direto de objetos com o papel sensibilizado, quanto com a impressão de uma fotografia em transparência. Neste segundo caso, deve­-se optar por uma imagem com alto contraste. Usando o Photoshop é possível transformar imagens fotográficas em positivos aptos ao processo. Coelho aconselha o uso das seguintes ferramentas: Em decorrência do baixo contraste característico às impressões em antotipia, é recomendável que a imagem digital a ser usada na impressão do positivo seja ajustada em termos de contraste e tonalidade. Estes ajustes visam dotar a impressão final de maior contraste, e podem ser facilmente realizados com o auxílio de programas de edição de imagem como o Adobe Photoshop ou Gimp. Controles como os níveis (levels), curvas (curves), brilho/contraste (brightness/contrast), sombras/ altas luzes (shadows/highlights) são bastante eficazes para esta finalidade. (COELHO, 2013, p.55)

Exponha ao sol até que seja obtido o resultado desejável em termos de contraste, este tempo pode ser bastante longo dependendo das condições climáticas e da emulsão utilizada, geralmente trabalho no horário de 10h da manhã até as 16h30, pois é o horário com maior incidência de raios na minha região. Em dias úmidos, a prática é desaconselhável pois o papel pode absorver parte desta umidade e a solução esmaecer ou se desfazer. Coelho afirma que realizou testes com luz artificial: Além da exposição ao sol, foram também executados testes com fontes luminosas

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artificiais. O aparato utilizado para esta finalidade consistiu em uma caixa de luz com as dimensões de 100 cm de comprimento, 50 cm de altura e 80 cm de profundidade feita em MDF. Na parte superior da caixa foram dispostas 10 lâmpadas fluorescentes ultravioleta Phillips TLD – 15W/05. A partir dos testes realizados com esta caixa, observou­se que a intensidade luminosa das lâmpadas utilizadas é discretamente menor que a intensidade do sol direto de verão (COELHO,2013, p.60)

Exposição à luz solar direta

Segundo Fabbri(2012), o objetivo das pesquisas de Herschel era possibilitar a introdução de cores na fotografia, no entanto com o longo tempo de exposição necessário para a obtenção da imagem, a sua fragilidade, e a falta de valor comercial, o processo nunca ganhou popularidade. Fazendo uma análise crítica da antotipia e de sua relação com o quadro mais amplo do que consideramos Fotografia, podemos afirmar que este processo desmistifica em parte os valores associados à ela. De acordo com Flores: A Fotografia é inventada para satisfazer as crescentes necessidades de perfeição e reprodutibilidade das imagens. O primeiro fator – a perfeição – está ligada aos parâmetros filosóficos da visão objetiva, enquanto o segundo fator – a necessidade

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de automatismo e reprodutibilidade – está ligado à idiossincrasias da revolução industrial. Obviamente, quando a fotografia foi inventada, já existiam outras técnicas de reprodução gráfica que resolviam em certa medidas ambas as necessidades, mas não perfeitamente.[...] Os valores associados à mecanicidade e à indústria – perfeição, exatidão, automatismo – marcarão não apenas a invenção da fotografia, mas também a preeminência de um tipo de fotografia[..].(FLORES, 2011, p.139)

Partindo dos valores usados pela autora para designar a fotografia hegemônica, podemos considerar que o processo de antotipia vai exatamente para o lado oposto destes. A perfeição da fotografia hegemônica está ligado ao seu poder mimético com o mundo exterior, sendo este aspecto uma expressão de uma ideologia visual que vai além da fotografia, que a autora denomina de visão objetiva, esta ideologia está ligada à naturalização da artificialidade das imagens, que ao invés de serem entendidas como representações, são tomadas como apresentações. Os outros valores como exatidão, automatismo e reprodutibilidade expressam os valores dominantes em uma sociedade que à época assistia a consolidação da Revolução Industrial como modelo de produção e organização da vida social. A antotipia, embora surgida neste mesmo contexto histórico, não preenche estas demandas, ela resulta em uma imagem única, que não poderá ser reproduzível; a sua “perfeição” não está prontamente assegurada em seu processo, pois tem que lidar com variáveis como pigmento e luz solar que na antotipia possibilitam um grau maior de heterogeneidade nos seus resultados, podendo resultar em imagens com graus de nitidez diferentes. Talvez o aspecto que mais a distancie daqueles valores seja o seu alto caráter de perecibilidade. Durante o processo de coleta de informações sobre o processo, deparei­-me com comunidades online que discutiam processos alternativos em fotografia, com catalogação de processos e de artistas que trabalham com eles. Dentre estes é importante des38

tacar o site www.alternativephotography.com, pela organização e compilação de informações sobre os mais diversos processos. Adquiri dois livros que discutem o processo, o The Photographic Alternative Processes, do autor Christopher James e Anthotypes, de Malin Fabbri. O primeiro é uma compilação dos diversos processos alternativos, com a história, passo a passo das técnicas e materiais necessários para a execução. O segundo versa exclusivamente sobre o processo da antotipia, e possui uma rica compilação de flores, folhas e frutos que podem ser utilizados para a realização do processo. Esta compilação foi importante para mim, pois a partir dela iniciei uma procura pelos materiais disponíveis na região, iniciei também paralelamente uma pesquisa sobre plantas nativas e endêmicas que poderiam ser utilizadas no processo, porém, devido ao tempo necessário para coletar as plantas, fazer a emulsão e avaliar os resultados, acabei optando por trabalhar com folhas, frutos e plantas – que podem ser encontrados em qualquer feira ou central de abastecimento hortifrúti – já comprovadamente utilizadas com sucesso para realizar antotipias. Como o processo é pouco conhecido e o mundo vegetal bastante vasto e diverso, acredito que existe uma larga lacuna de pesquisa de materiais aptos ao processo, o que pode ser uma contribuição importante para quem deseja enveredar por este processo. Para elaboração dos trabalhos usei os seguintes materiais: agrião, espinafre, rúcula e rosas vermelhas. Aconselha­-se o uso de papel com alta gramatura para que não enrugue durante o processo. Como já dito antes, a perecibilidade e tempo foram questões que me instigaram a trabalhar com este processo, pensar à desaparição da imagem me fazia refletir sobre a criação a partir da destruição, embora eu tenha escolhido trabalhar com imagens, criá­-las com um tempo de vida curto me dava a sensação de devolvê­-las ao curso das coisas e trazia-­me questões como o 39

pensar numa fotografia para além da ideia de documento do passado. No caso da antotipia, a imagem corre com o tempo, ela é parte desse estado das coisas, a fotografia, que sempre é pensada como um instante congelado, fixo e perene, torna­-se uma matéria corruptível. Sobre essa contradição da matéria fotográfica, poderíamos citar Aristóteles, que afirma: A matéria é, no sentido mais próprio do termo, o substrato capaz de admitir a geração e a corrupção, mas é também, em certo sentido, o substrato das restantes mudanças, porque todos os substratos são capazes de admitir certas contrariedades. (ARISTÓTELES (300 a.c.), 2009, p.79)

Há um paradoxo em relação à luz do sol, já que ao mesmo tempo que dá visibilidade, esta é também o algoz da imagem. A forma de impedir o desaparecimento progressivo da imagem é mantê-­la no escuro, escondida da luz forte do dia. Ver a imagem é perdê-­la ao mesmo tempo. Este aspecto está presente em toda fotografia de base química também, porém no caso dos minerais como prata, o processo pode ser congelado com o banho da imagem no hipossulfito de sódio, técnica desenvolvida também por Herschel. No caso da Antotipia, a progressiva desaparição é parte inerente ao processo, a criação e destruição da imagem são dois lados da mesma moeda, o que torna possível fazer uma analogia com o pensamento aristotélico em relação à mudança da matéria: Assim, por exemplo, se o ar se gera a partir da água, não será devido a uma mudança da água, mas porque a matéria do ar se encontra contida na água como se estivesse num recipiente. Nada impede, portanto, que haja na água uma variedade indeterminada de matérias que possam tornar­-se coisas em acto. (ARISTÓTELES (300 a.c.), 2009, p.80)

Outro aspecto que podemos relacionar ao processo da antotipia é a noção de entropia que, segundo o dicionário Michaelis, seria “quantidade de energia de um sistema, que não pode ser convertida em trabalho mecânico sem comunicação de calor a algum outro corpo, ou sem alteração de volume. A entropia aumen40

ta em todos os processos irreversíveis e fica constante nos reversíveis.” A entropia indica que o tempo é uma passagem apenas de ida e que o universo tende à desordem. Assim, de acordo com Mouamar e Bocca: A energia total do universo estaria sujeita a degradação em função de um continuo aumento de desordem, que cresce enquanto decresce a ordem e por fim se estabiliza em definitivo no equilíbrio ou repouso. A energia total, nessa ótica, seria a responsável pela passagem do tempo, pelo envelhecimento e desgaste, num sentido irreversível, da matéria e da energia disponível. (MOUAMMAR & BOCCA, 2011, p.444 e 445)

Poderíamos interpretar, por analogia, a fotografia como uma reação à entropia, em seu uso social e habitual. Ela é uma forma de organização de acontecimentos, que evoca uma rememoração, funciona como uma memoria palpável. A antotipia, porém, se afirmaria como o irreversível, como uma imagem entrópica, nela o tempo sempre aponta para frente, para a sua inevitável dissolução.

Fischli e Weiss, The Way Things Go, 1987.

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No trabalho “The Way Things Go”, da dupla Fischli e Weiss, uma sucessão de objetos e matérias de diversas naturezas dispostos pelos artistas na forma de um sistema, sofrem processos de transformação em cadeia, cada um transferido para o outro energia, desencadeando muitas vezes a sua destruição como o fator que leva ao encadeamento de acontecimentos. Enquanto isso, uma câmera segue continuamente todos os acontecimentos. Esse trabalho pode ser lido como uma alusão à entropia, o movimento continuo da câmera remete ao tempo que segue (causa­-motor), na medida em que esse sistema intencionalmente cria um caos. O artista Robert Smithson trabalha a entropia como um dos principais conceitos associados ao seu trabalho, Smithson afirma: Ao invés de fazer­nos lembrar o passado como os velhos monumentos, os novos monumentos parecem nos fazer esquecer o futuro[...] Eles não são construídos para as eras, mas contra as eras. Eles estão envolvidos numa sistemática redução de tempo para frações de segundos, ao invés de representar os longos espaços de séculos. Passado e futuro são localizados em um presente objetivo. (SMITHSON, 1966, p.01)

Em “Partially Buried Woodshed”, Smithson despejou cerca de 20 carregamentos de lixo sobre um deposito abandonado feito de madeira até que o pilar central da construção se fraturasse. O artista então doou o trabalho para uma universidade com a ressalva de que o declínio natural da obra fosse mantido. Podemos afirmar que esse trabalho é uma demonstração do princípio da entropia, e no caso, quanto maior o declínio físico do trabalho, maior será a relação com o conceito trabalhado pelo artista. A opção pela entropia por parte de Smithson também pode ser relacionada a uma critica da arte como objeto, que afirmaria a ideia de permanência e preciosidade. Em contraposição, as obras de Smithson tendem ao declínio total, a entropia. 42

Robert Smithson, Partially Buried Woodshed, 1970.

Embora estas duas referências se dêem em trabalhos com linguagens, materiais e meios distantes da técnica da antotipia, podemos relacioná­-los no nível conceitual, uma vez que a ideia de entropia também é algo que a antotipia traz consigo (parece ser insinuada pelo desaparecimento da imagem). A materialidade da imagem se transforma, um movimento gerador, no caso a sua ex43

posição ao sol, desencadeia também o movimento de corrupção da imagem, que assim tende ao seu declínio enquanto tal. No livro “Estética da Fotografia”, o pesquisador François Soulages cunha o termo fotograficidade para definir a especificidade da fotografia, que para ele é baseada no irreversível e no inacabável. O irreversível se constituiria do ato fotográfico e da obtenção do negativo, já que uma vez realizado, este processo não poderá ser revertido, as condições sempre serão diferentes. O irreversível, porém, dá origem ao inacabado, que é o próprio negativo, que pode ser trabalhado de infinitas formas. No que tange a ideia do irreversível, ela está mais próxima da vida acontecendo que do próprio artefato fotográfico (negativo ou arquivo digital); já em relação a ideia do inacabável, ela seria uma espécie de paradoxo devido ao declínio dos compostos orgânicos da emulsão, por si só derivando em novas correlações de contraste e cor que poderíamos entender como variações da primeira imagem, o que por outro lado leva à impossibilidade de gerar variações mais próximas a imagem inicial.

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r Capítulo III r

A

s três séries aqui apresentadas são resultado de uma busca por investigar de modo tanto prático quanto teórico as possibilidades de criação do processo da antotipia. Tal busca levou em consideração questões decorrentes do processo em si, tais como, a produção de fotografias sem câmera, o caráter corruptível e entrópico das imagens geradas (dada a instabilidade destas, seja em sua fixação ou geração), além de elementos teóricos relativos às várias facetas das noções de cópia, original e simulacro, dentre outras, como veremos a seguir. .I Decalque Este primeiro grupo de imagens contém retratos em forma de silhuetas. Nessa série, intitulada Decalque, com a máquina fotográfica digital tomo inicialmente retratos em caráter padronizado, seguindo o esquema da pose para retratos perfilados, pose essa que se relaciona diretamente à mitologia grega em torno da criação da pintura e da modelagem de retratos com argila. De acordo com Plínio, O Velho, a origem da pintura está relacionada com o ato de traçar linhas ao redor da sombra humana em perfil, primeira forma de construção das imagens, que deu origem à tradição pictórica e em seu segundo estágio teria empregado grandes áreas monocromáticas, conhecidas como monochromaton. Segundo o mesmo autor, a técnica foi se complexificando gradualmente até chegar na representação mais naturalista da figura humana: Butades, um oleiro de Sicião, foi o primeiro que inventou, em Corinto, a arte de retratos de modelagem com a terra que ele usava em seu comércio. Foi através de sua filha que ele fez a descoberta; que, estando profundamente apaixonada por um jovem prestes a partir em uma longa viagem, traçou o perfil do seu rosto, como aparecia na parede em um contraluz com uma lâmpada. Ao ver isso, seu pai

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preencheu o esboço, comprimindo argila sobre a superfície, e assim fez um rosto em relevo, que ele então endureceu pelo fogo, juntamente com outros artigos de cerâmica.1112 (Plínio, O Velh; 1885, tradução livre)

Este mito fundador é, por sua vez, tema de várias pinturas ao longo da história da arte, dentre as quais destaca­ se a versão realizada em 1852 pelo pintor e fotógrafo Oscar Gustave Rejlander. Seguindo a iconograf ia da pintura, Rejlander realiza “The first negative” (O primeiro negativo), reencenando o momento em que a f ilha de Butades traça o perf il do amado. Pode-­se dizer que este artista coloca a fotograf ia como continuidade da tradição pictórica – inclusive, inf luenciando o surgimento do movimento pictorialista – o que já aponta para a questão de, apesar do seu caráter indicial, a fotograf ia poder ser utilizada para a f icção, af irmando assim o caráter de linguagem artif icial da fotograf ia. Como já explanado no primeiro capítulo, acredito que toda fotograf ia carrega consigo essa ambivalência de poder ser lida simultaneamente dentro desses dois paradigmas, o da indicialidade e o da artif icialidade. No caso da série Decalque, a forma de corte logo abaixo dos ombros também pode ser relacionada ao modelo de retrato herdado da pintura do século XV, vale dizer, o que também está presente em boa arte das primeiras fotograf ias, que acabaram adotando regras próprias ao retrato pictórico. Sobre essa forma de retrato Francastel af irma: 11 Butades, a potter of Sicyon, was the first who invented, at Corinth, the art of modelling portraits in the earth which he used in his trade. It was through his daughter that he made the discovery; who, being deeply in love with a young man about to depart on a long journey, traced the profile of his face, as thrown upon the wall by the light of the lamp. Upon seeing this, her father filled in the outline, by compressing clay upon the surface, and so made a face in relief, which he then hardened by fire along with other articles of pottery. 12 Disponível em:≤ http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=urn:cts:latinLit:phi0978.phi001.perseus-eng1:35.43> .Acesso em: 09 de Junho 2015.

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Apresentado sobre um fundo neutro, é tomado de três quartos ou de perfil, nunca de frente; aparece cortado um pouco abaixo dos ombros e confere muita importância ao penteado. (FRANCASTEL, 1966, Apud FABRIS, 2004, p.26)

Gustav rejlander, The first Negative, 1852

Seguindo o mesmo modelo descrito por Francastel, coloquei­-me a fotografar perfis de colegas e conhecidos em diversos lugares, sem qualquer interesse em dar a tais retratos algum conteúdo psicoló47

gico. Apenas busquei perfis com diferentes proporções e fiz uso da câmera seguindo sempre um mesmo protocolo de representação: retratos em perfil até a altura dos ombros. Em seguida, processei as fotos em software para edição de imagens, recortando o contorno de cada fotografado para substituir o fundo e a figura por uma cores únicas (branco e preto), deixando apenas a silhueta. O que me interessa nesses retratos são a sua eloquência apesar do nível mínimo de representação fisionômica. Parto da ideia de que a representação em silhueta leva estes retratos do particular ao genérico, não podendo ser imagens que identificam o particular, embora as proporções fisionômicas ainda garantam uma identificação da figura humana; tornam­-se estereótipos de uma ideia de retrato. Discutindo se o retrato representaria de fato o “eu”, Soulages toma como base retratos da fotógrafa Margareth Cameron para afirmar que: Todo retrato é uma representação: o retrato da mulher desconhecida com um turbante nos designa não mais uma determinada mulher, mas um tipo de mulher representado; passamos do individual ao típico e ao universal (…) a fotografia, que parecia ser uma técnica que reproduzia o fenômeno, coloca­-se como uma arte que resulta no conceito (SOULAGES, 2010, p.72)

Parto de uma imagem digital – com um nível de detalhamento e sofisticação mecânica bastante maior – para então chegar a uma imagem que é tida como a gênese da própria ideia de representação, a silhueta. Enquanto procedimento, a série Decalque se aproxima em vários aspectos do processo fotográfico utilizado pelo fotografo Floris Neusüss – que desde 1958 experimenta a fotografia sem câmera. Esse artista utiliza a técnica do fotograma, colocando o papel sensibilizado em contato direto com o objeto que se quer gravar. Depois de exposto à luz, o resultado é uma imagem que guarda as mesmas proporções e contornos dos referidos objetos, 48

apresentando caráter extremamente indicial. É mesmo possível imaginar o processo utilizado por Floris ao observarmos a obra a seguir, “Hanging one’s own shadow” (Segurando a própria sombra), em que um fotograma em tamanho humano é apresentado ao lado de uma cadeira utilizada durante a etapa de exposição do papel fotográfico.

Floris Neusüss, Hanging one’s own shadow, 1983

A principal diferença entre o processo que utilizei e o de Neusüss 49

reside no fato de que chegamos ao positivo por diferentes caminhos, eu com a câmera, computador etc., Neusüss a partir da utilização de objetos e/ou do próprio corpo humano. Vale ressaltar que tais retratos sem volume nem profundidade assemelham­-se à linha no desenho: O elemento visual da linha é usado principalmente para expressar a justaposição de dois tons. A linha é muito usada para descrever essa justaposição, tratando­-se, nesse caso, de um procedimento artificial. (DONDIS,1997, p.57)

De fato, é a justaposição de dois tons que torna perceptível a silhueta do retrato, dando visibilidade à linha; é uma abstração mental do limite formado pela justaposição e, porque feita de pontos infinitesimais, seria a rigor impossível de ser representada apesar de termos a sensação de vê­-la. Por outro lado, também a exposição à luz solar, em função de sua intensidade e/ou duração, fará com que a linha se estabeleça dentro de uma gradação que vai do impreciso ao delineável, inclusive podendo passar novamente ao impreciso. Ou seja, desde a sub até a superexposição do papel fotográfico , há uma escala cujas extremidades estariam marcadas pela destituição do aspecto visual da fotografia na possibilidade de distinção entre luz e sombra. As imagens dessa série foram organizadas em dípticos e colocadas em molduras duplas articuladas, tendo como objetivo dar um tempo de vida mais longo às imagens e também oferecer ao observador a decisão de revelá­-las ou mantê-­las na sombra. Lembremos da fragilidade das imagens em antotipia quando expostas à radiação UV, que fatalmente levará ao seu desaparecimento. Nesse caso, o suporte também coloca ao espectador a questão da visibilidade e invisibilidade presentes na imagem, afinal, como dito anteriormente, no caso da antotipia, ver a imagem é também perdê-­la. 50

Série decalque, 2015

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Série decalque, 2015

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.II Plasticum Nesse segundo grupo de imagens tive como ponto de partida a ideia de representar algo que já fosse em si representação. Procurei então nos mercados da cidade folhagens e f lores de plástico para realizar antotipias por contato direto do objeto com a superfície fotossensível e em escala 1:1. Interessava­-me o jogo entre verdadeiro e falso que suscitavam aqueles materiais; f lores de plástico servindo de referente a uma imagem que teve em seu processo de feitura o próprio sumo de folhas e f lores. Rosalind Krauss, comentando sobre o platonismo e as ideias de cópia e simulacro, afirma: Trata­-se de saber quais destes objetos são cópias verdadeiras de formas ideais e quais estão tão degradadas que são falsas. Claro, tudo é cópia, mas a cópia verdadeira, a imitação bem fundamentada é aquela que se parece verdadeiramente, que copia a ideia materna da forma, e não apenas o seu involucro vazio. A metáfora cristã retorna essa distinção: Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, portanto, na origem, o homem era uma cópia verdadeira. Esta semelhança interna com Deus foi quebrada depois que o homem caiu em pecado e ele se tornou uma cópia falsa, um simulacro. (KRAUSS, 2012, p.68)

Assim como na explicação de Krauss, as imagens da série Plasticum constituem também cópias de cópias, cópias falsas, simulacros. Porém, paradoxalmente, pode-­se dizer que tais simulacros guardam relação mais estreita com a cópia verdadeira (a própria f lor) do que seu referente (a f lor de plástico) guardara, af inal, como dissera anteriormente, a emulsão neste caso é feita a partir de pétalas de f lor e de folhagens verdes, apresentando sobre o papel sensibilizado uma silhueta muito semelhante àquela que teríamos caso no momento da exposição à luz do sol utilizássemos a própria planta. Sobre a questão da autenticidade, Walter Benjamin nos diz: 53

A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se perde.(BEN JAMIN, 1987, p.168)

Podemos tomar a as f lores e folhagens em plástico como formas de reprodutibilidade técnica da imagem da natureza, ainda que tais reproduções não ref iram pormenorizadamente as estruturas anatômicas existentes na planta representada, ainda que sejam versões estereotipadas dessa mesma natureza, inclusive com características que os próprios vegetais não contém em si. Seria possível também af irmar que tais cópias de plástico seriam falsas no sentido adotado por Rosalind Krauss, pois, elas copiam apenas o aspecto visual externo, sendo seu interior puro plástico, ou seja, um invólucro vazio. Sobre estas imagens reprodutíveis em escala industrial, Baudrillard diz: Uma nova geração de signos e objetos surge com a revolução industrial. Signos sem tradição de casta, que não conheceram restrições estatutárias, e, portanto, não precisam ser falsificados, desde que produzidos em escala gigantesca. O problema da sua singularidade e sua origem já não se coloca: a técnica é a sua origem, só fazem sentido na dimensão do simulacro industrial. Isto é, a série. Isto é, a mesma possibilidade de dois ou “n” objetos idênticos. Sua relação não é mais aquela de um original está com o seu falso, ou analogia ou ref lexo, mas equivalência e indiferença. Na série, os objetos se tornam simulacros um dos outros e, com os objetos, os homens que os produzem. Somente a extinção da referência original permite a lei generalizada da equivalência, ou seja, a própria possibilidade de produção. Toda a análise da produção varia segundo o que não se veja nela um processo original, incluido aquele que está na origem de todos os outros, no entanto, inversamente, um processo reabsorção de todo ser original e introdução de uma série de seres idênticos. 13 .(BAUDRILL AR D, 1980, p.64 e 65, tradução livre) 13 Una nueva generación de signos y de objetos surge con la revolución industrial. Signos sin tradición de casta, que no habrán conocido jamás las restriccio-

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Com a antotipia, essa imagem tridimensional (da flor de plástico) se insere num processo que joga também um jogo reverso ao da cópia infinita, indistinta e duradoura; surge aqui um novo encontro entre a imagem simulacro da planta de plástico e um processo baseado na materialidade da planta em si – tem-­se o sumo das folhas e pétalas utilizado na produção de emulsão fotossensível de uma imagem bidimensional que se vale da ideia de unicidade, afinal, cada imagem é irreprodutível no caso da antotipia. Embora se possa obter várias imagens a partir do mesmo objeto de plástico, cada cópia será distinta, uma vez que a antotipia não é um processo marcado pela padronização e estabilidade técnicas. Aqui, o duradouro torna­-se transitório. Essa imagem distinta, irreprodutível e única se relaciona ao conceito de “aura” cunhado por Benjamin, que afirma ”generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido” (1987, p.168). Benjamin vê de modo positivo a fotografia como possibilidade de destruição dessa aura, pois, possibilitaria às massas exercitarem­-se em novas percepções e conduziria à liquidação do valor tradicional da cultura. Na contemporaneidade, podemos problematizar essa leitura do autor, uma vez que o excesso de imagens também constitui uma forma de anestesia do olhar. Por outro viés, a ideia de aura nes de estatuto, y que, por lo tanto, no tendrán que ser falsificados, puesto que serán producidos de una vez a escala gigantesca. El problema de su singularidad y de su origen ya no se plantea: la técnica es su origen, sólo tienen sentido en la dimensión del simulacro industrial. Es decir, la serie. Es decir, la posibilidad misma de dos o de “n” objectos idénticos. La relación entre ellos ya no es la de un original con su falsificación, ni analogía ni reflejo, sino la equivalencia, la indiferencia. En la serie, los objetos se vuelven simulacros indefinidos los unos de los otros y, con los objetos, los hombres que los producen. Sólo la extinción de la referencia original permite la ley generalizada de la equivalências, es decir, la possibilidade misma de la producción. Todo el anàlisis de la produccion oscila según que no se vea en ella un processo original, incluso el que està en el origen de todos los demás, sino a la inversa, un processo de reabsorción de todo ser original y de introducción de una serie de seres idénticos.

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também pode ser analisada à luz do fato de que pode ser construída, ou seja, não é um valor inerente ao objeto. A antotipia possibilitaria, então, esse encontro estranho entre o reprodutível e o único.

Joseph Kosuth, One and Three Chairs, 1965

Em One and Three Chairs, Joseph Kosuth representa uma mesma cadeira de três maneiras: uma cadeira manufaturada, uma foto de uma cadeira e a definição de dicionário da cadeira. Em uma leitura platônica do trabalho, poderíamos afirmar que ele traz em si as três dimensões que o filósofo descreve na alegoria da caverna: a definição de dicionário poderia ser relacionada ao mundo conceitual, imutável e abstrato que, para Platão, seria o mundo das ideias; já a cadeira manufaturada seria uma cópia perfeita da ideia de cadeira; enquanto que sua fotografia seria uma cópia falsa, um simulacro. O trabalho é um jogo entre estes três níveis de representação que estão inter­relacionados. Sobre essa obra, Archer comenta: O que a peça pergunta, no entanto, é se podemos nos dar por satisfeitos com isso, ou se, de fato, a fotografia e o texto fotocopiado não existem como cadeiras. Até que ponto a fotografia pode ser confiável como evidencia de um estado de coisas? Ela

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certamente parece ser uma imagem da cadeira real diante de nós, mas pode muito bem ser a de outro item quase idêntico de mobília. (ARCHER, 2001. p.82)

Renzo Assano, Sem Título, Série Fragmentos - Frames

Entretanto, se olharmos tais ideias por outro ângulo, como no caso dos mock­ups realizados a partir de cenas de filmes pelo artista Renzo Assano, viraremos pelo avesso parte dos conceitos supracitados. Isso porque as materializações escultóricas/instalativas de tais objetos aparecem destituídas das capacidades vistas nas referidas cenas, constituindo então cópias de cópias imperfeitas, situação esta inusitada que leva à revisão do próprio conceito de simulacro. Quase que numa operação matemática, como quando dois sinais negativos ao serem multiplicados entre si produzem um valor de sinal positivo, os objetos partícipes na obra parecem “menos reais” que aqueles da cena de referência, afinal, (re)aparecem destituídos das capacidades visíveis no filme. Em “sem título”, da série “Fragmentos - Frames”, Assano reconstitui visualmente um cenário do filme de Jean Cocteau, “Le Sang d’un poète”, todavia, certamente não ocorrerá com o espelho presente na instalação aquilo que acontece na cena em questão quando o personagem consegue atravessar tal espelho mergulhando nele. 57

Relacionando a série Plasticum com a obra supracitada, frisaria o fato de as imagens que a compõem terem como ponto de partida representações que se desdobram em outras representações, alterando a hierarquia e sentido dos termos original e cópia, todavia, também poderia relacioná­la à obra de Kosuth citada anteriormente, por conta do jogo que também se dá entre diferentes tipos de representação, em níveis que se aproximam e/ou distanciam em sua relação com a ideia que representam.

Série Plasticum, 2015

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.III Engenho O díptico Engenho foi realizado a partir de fotografias tomadas em um passeio pelo sítio Fundão, reserva ecológica da cidade do Crato-CE. Dentro dessa reserva há duas construções tombadas pelo Patrimônio Histórico: uma casa feita de barro batido e madeira mais um engenho abandonado construído por volta de 1880, que encontram-­se em estado de degradação, completamente exposto aos intemperismos; um estado de coisas que remeteume imediatamente aos monumentos feitos para não durarem de Smithson, anteriormente citados neste texto. Fotografei as ruínas desse engenho e produzi fotolitos para expor ao sol junto com o papel fotossensível -­ das três séries de trabalho esta foi a única em que fiz uso do fotolito. Como descrito no breve manual de antotipia presente no segundo capítulo desse trabalho, preparei a imagem digitalmente com o maior nível possível de contraste para impressão. Inicialmente, fiz experimentos tendo o caldo de cana como única base para a compor a emulsão fotossensível, porém, não alcançando com isso uma saturação de cor adequada ­que gerasse um contraste razoável – decidi por misturar espinafre ao caldo de cana, obtendo assim um verde semelhante ao da cana. Optei por apresentar as imagens conseguidas em molduras antigas, com adornos de folhagens e flores para que a moldura e a foto remetessem à ideia de uma fotografia como memória ou registro documental de um lugar. Adicionalmente, considerando que a antotipia quando exposta a luz tende ao desaparecimento percebi aí uma ponte simbólica com o corrente processo de degradação do conjunto arquitetônico do Sítio do Fundão; a imagem carrega em si esse caráter entrópico que expõe ao espectador tal aspecto, tomando o gradual desaparecimento da imagem como alegoria 59

do lento desaparecimento do patrimônio histórico retratado. Sobre a relação da imagem com a memória, Flores comenta: Memória, pois, é trazer algo do passado ao presente no nível mental e espiritual. Enquanto a memória indica o passado, o “percepto”, em contrapartida, assinala o presente: é a forma do percebido enquanto se o está percebendo. A imagem é o rastro que o percepto deixa na mente quando a percepção é descontinuada. (FLORES, 2011, p.124)

Considerando esse comentário, podemos então aproximar tais imagens à noção do percepto e até distanciá­-las daquela da memória, o que, somado ao fato de o fotolito permitir a geração de novas e variadas cópias – infinitas vezes – redundará tanto naquilo que Soulages classifica como o aspecto inacabável da fotografia quanto naquilo que esse mesmo autor chama de irreversível, reiterando também o aspecto mnemônico da fotografia. Assim, dada a falta de fixidez da antotipia, podemos considerar que as cópias assinalariam individualmente o presenteísmo e a mutabilidade da matéria e do tempo (percepto), enquanto que seu conjunto e incessante surgimento – na forma de novas cópias – produziria uma alegoria do esfacelamento daquele conjunto arquitetônico em relação à memória daquilo que foi – isso quando compararmos o estado de desaparecimento de uma cópia em relação a outra.

Yoshiko Seino, Série The signs of Life, s/d.

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A artista japonesa Yoshiko Seino fotografa paisagens marcadas pelos efeitos do processo de industrialização que seu país sofreu a partir do séc. XIX, com foco nos efeitos produzidos pela intervenção do homem na paisagem e na criação de “paisagens naturais artificiais”, mostrando de que modo a natureza reagiu e reage a essas intervenções. Tal obra não pode ser lida como uma oposição entre homem e natureza, pois tanto características antrópicas quanto naturais se imbricam para formar uma paisagem. Entendo que na série Engenho este aspecto também está presente, tanto pelo fator histórico quanto pela poética envolvida no trabalho; até que ponto poderiam as madeiras que compõem o antigo engenho, hoje desprovidas de função para o trabalho da cana, retornar ao seu lugar na natureza?

Série Engenho, 2015

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r Considerações finais r

A

s possibilidades de experimentação e aprofundamento teórico que o processo da antotipia me fez vislumbrar foram o principal motivo pelo qual me encaminhei rumo a este trabalho de conclusão do curso. Desde o primeiro contato, numa oficina sobre processos fotográficos em que participei, passei a repensar o pouco que já sabia e a buscar novas questões relativas à fotografia em termos tanto técnicos quanto teóricos. Assim, a pesquisa levou a séries sucessivas de trabalhos, encadeadas entre si, que me levaram a pensar a fotografia no plural e a redescobrir processos fotográficos históricos para a partir deles realizar experiências poéticas, que me fizeram perceber a técnica não como algo dado, mas como algo que pode irromper novas engendrações de sentido, pontos de inflexão que nos levam a novas conformações e saberes, por uma técnica que se afirme pela experimentação e não pela mera repetição. Se etimologicamente a palavra fotografia significa escrita da luz, podemos considerar nesta uma espécie de Aion da matéria fotográfica, polo emanador que não para de escrever novos seres de sensação – imagens poéticas – em contraposição a um polo outro, com feições de um Cronos prensando egrégoras daquilo que já não somos – reproduções técnicas. Penso agora na luz que participa na construção das antotipias como algo que se liberta do papel, esvaindo­-se juntamente com o contraste das imagens, reafirmando sua própria natureza e efeitos, metamorfoseando-­se, libertando­-se para participar em novas experimentações; mais Aion, menos Cronos. Por uma fotografia que seja transformação: o tempo não como oponente mas como desvelador de diferenças, mudanças, varia63

ções e alternativas. Por diversos instantes do presente, desvios inventivos e gerativos: emancipação. Enfim, reconheço que este conjunto de trabalhos operou em mim a redescoberta de territórios prenhes de uma certo pathos artístico, jorro de reencantamento via poiesis, vida que pretendo continuar explorando.

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