Antropocentrismo e perspectivismo entre duas concepções de sabedoria humana

July 1, 2017 | Autor: Pedro Vieira | Categoria: Kant's Practical Philosophy, Antropocentrismo, Perspectivismo Amerindio
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ANTROPOCENTRISMO E PERSPECTIVISMO ENTRE DUAS CONCEPÇÕES DE SABEDORIA HUMANA

Pedro Henrique Vieira [email protected] Doutorando em Filosofia | UFPR CAPES

Resumo: Este trabalho visa contrapor, no tocante à noção de sabedoria humana, a filosofia de Kant e a etnografia de Tânia Stolze Lima acerca dos índios Yudjá. Lima argumenta que o universo Yudjá dotaria os humanos de uma exclusiva sabedoria, uma capacidade única de perspectivar a si mesmos. Contudo, isso parece sugerir um antropocentrismo que poderia comprometer a própria noção de ponto de vista, a partir da qual sua análise se desenvolve. Cremos, porém, que essa impressão se desfaz mediante uma comparação com um paradigma ocidental que também confere ao humano uma exclusiva sabedoria: a filosofia de Kant. Compreendendo o homem como “pessoa”, Kant o diferencia dos demais seres, tomados então como “coisas”, e faz da sabedoria humana um modo de submeter toda a natureza à promoção da humanidade. Diante disso, nos parece descabido imputar antropocentrismo aos Yudjá, os quais se relacionam constantemente com perspectivas não humanas que carregariam sempre a possibilidade de se sobrepor ao seu ponto de vista. Por fim, sugerimos que a filosofia kantiana, conferindo ao humano a única perspectiva possível, possa aparecer aos Yudjá como uma negação da pessoa em relação à sua própria alma, que, para os últimos, apenas a outrem não humano seria visível. Palavras-chave: Sabedoria; antropocentrismo; perspectivismo.

A meta deste trabalho é estabelecer uma contraposição, concernente à noção de “sabedoria humana”, entre a filosofia de Kant e a etnografia de Tânia Stolze Lima acerca dos índios Yudjá. Enquanto referencial maior do antropocentrismo moderno, o pensamento kantiano deve servir de termo de comparação para o desenvolvimento de possíveis problematizações em torno à concepção de ponto de vista presente nessa etnografia. Pretendemos, com isso, pôr em relevo o perspectivismo que se desenvolve no universo Yudjá e, ao mesmo tempo, questionar as partições ontológicas e políticas contidas na filosofia kantiana. Entre o antropocentrismo e o perspectivismo, essas duas noções de sabedoria humana nos apontarão então a distância entre, de um lado, um empenho de restringir a uma concepção prévia de humano todo e qualquer ponto de vista e, de outro, uma cisão, interna a cada ser, entre o humano e não humano, dado o 1

constante relacionamento com uma alteridade cuja perspectiva é reconhecida em sua total efetividade e periculosidade. Oriunda de um esforço de “levar o pensamento do nativo a sério”1, a noção de um perspectivismo cosmológico ameríndio expressa a tentativa de ensejar uma transmutação conceitual da tradição ocidental através de sua exposição a práticas discursivas indígenas. Buscando abrir-se ao pensamento alheio sem reduzi-lo a conceitos prévios, o pensamento ocidental poderia, ao “pensar com os índios” (Viveiros de Castro 2010:211), ensejar uma metamorfose discursiva que subverteria seus próprios pressupostos norteadores. A transformação que assim se operaria seria a de fazer com que os conceitos ocidentais de humanidade e não humanidade, manifestos especialmente na dualidade entre cultura e natureza (e nas dualidades correlatas entre alma e corpo, subjetivo e objetivo, dentre outros), deixassem de designar “províncias ontológicas” fixas, tornando-se “contextos relacionais, perspectivas móveis, em suma, pontos de vista” (Viveiros de Castro 1996:116). Natureza e cultura deveriam então designar não reinos distintos, mas perspectivas divergentemente sobrepostas sobre os mesmos seres, de modo que cada ente se dividiria internamente entre humano e não humano, o que, assim, permitiria que humanos fossem animais ou espíritos aos olhos de animais ou espíritos que, para si próprios, seriam humanos. 2

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Diante da reiterada postura do pesquisador ocidental, que pretende atribuir, a partir de uma suposta “vantagem epistemológica” sua, ao discurso do nativo o seu sentido, encontra-se, na base dessa reflexão, o questionamento acerca do que aconteceria: “[...] se recusássemos a vantagem epistemológica do discurso do antropólogo sobre o do nativo; se entendêssemos a relação de conhecimento como suscitando uma modificação, necessariamente recíproca, nos termos por ela relacionados, isto é, atualizados. Isso é o mesmo que perguntar: o que acontece quando se leva o pensamento nativo a sério?” (Viveiros de Castro 2002b:129) Cabe lembrar, todavia, que já Pierre Clastres, pensando na relação do conceito ocidental de “poder político” com os modos de autodeterminação política dos coletivos indígenas, propõe que se pare de tomar o mundo cultural do ocidente, ele próprio particular, como se ele pudesse, ao pretensamente se desdobrar no universal, fornecer uma medida única para a reflexão. Sua decisão: “[...] levar enfim a sério o homem das sociedades primitivas, sob todos os aspectos e em todas as suas dimensões; inclusive sob o ângulo do político, mesmo e sobretudo se este se realiza nas sociedades arcaicas como negação do que ele é no mundo ocidental.” (Clastres 2013:38) Investigar as reverberações e dissonâncias entre essas duas posturas filosóficas e antropológicas pode, certamente, resultar num material muito profícuo para a compreensão de ambas. 2 “[...] o perspectivismo afirma uma diferença intensiva que leva a diferença humano/não humano ao interior de cada existente.” (Viveiros de Castro 2010:51) “Tipicamente, os humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos, os animais como animais e os espíritos (se os vêem) como espíritos; já os animais (predadores) e os espíritos vêem os humanos como animais (de presa), ao passo que os animais (de presa) vêem os humanos como espíritos ou como animais (predadores). Em troca, os animais e espíritos se vêem como humanos: apreendem-se como (ou se tornam) antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie da cultura [...]” (Viveiros de Castro 1996:117)

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De capital importância para a elaboração do perspectivismo ameríndio enquanto conceito antropológico, o trabalho etnográfico de Tânia Stolze Lima expõe categorias ontológicas do pensamento Juruna/Yudjá3 a partir da noção de ponto de vista. O universo Yudjá é por ela apresentado como uma rede de disputas perspectivas em que seres diversos constituiriam para si mesmos uma humanidade e um ponto de vista peculiar, de modo que suas relações, ao fundarem-se na equivocidade de suas perspectivas, tornariam duplo todo ser ou acontecimento. Tratar-se-ia de um mundo em que porcos, por exemplo, sob seu próprio ponto de vista, seriam humanos, – em guerra contra os Yudjá, vistos como inimigos que eles buscariam capturar, – de modo que a caça dos Yudjá aos porcos carregaria a virtualidade, a todo momento atualizável, de uma guerra, cuja consequência para os Yudjá, capturados e levados então pelos inimigos, seria sua transformação em porcos. No limite, não se trata de um único acontecimento visto sob dois ângulos diferentes, mas da disputa, advinda de um equívoco de perspectivas, entre dois acontecimentos paralelos (a caça e a guerra) em que um ocuparia o lugar de duplo virtual do outro, na medida em que eles reciprocamente expressariam o risco de uma sobreposição do ponto de vista alheio, de modo que um acontecimento seria sempre dois: “[...] dois acontecimentos paralelos que se reflet[iriam] um no outro e que compreend[eriam], cada um, duas dimensões paralelas que se reflet[iriam] uma na outra [...]” (Lima 1996:39) Por isso se justificaria o cuidado dos Yudjá – em sua conduta, alimentação, fala, etc. – diante do olhar de diversos seres. O constante empenho de afirmar seu ponto de vista como o verdadeiro seria correlato aos perigos, também constantes, de captura pelo ponto de vista do outro. (Lima 1996) Postas a cada vez em relação com perspectivas alógenas, também as pessoas humanas seriam duplas. Aquilo que outros seres – mortos e porcos, por exemplo – veriam dos Yudjá seria justamente o que a estes próprios escaparia: sua alma, acessível apenas sob pontos de vista alheios em relação aos quais ela se constituiria. A alma Yudjá seria um desconhecido dentro de si, distinto e ejetável; seria o outro que a pessoa se tornaria após a morte e que se separaria dela também no sonho e na atividade xamânica.

Haveria,

pois,

uma

“não

identificação

relativa”

e

mesmo

um

3

Sobre a relação e a diferença entre os dois etnônimos, cf. Lima 2005:15-16. Aqui, seguindo a opção da autora nessa mesma obra, daremos preferência à forma “Yudjá”, em detrimento da alternativa “Juruna”.

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desconhecimento “entre uma pessoa e sua alma”. (Lima 2005:336) Esta, porquanto acessível ao olhar de outros, seria justamente aquilo que esses outros ameaçariam. Se, na caça aos porcos, prevalecesse o ponto de vista destes últimos, – isto é, a guerra, – as almas Yudjá poderiam ser capturadas e levadas pelos porcos, que as veriam como inimigos, para viver consigo. Isso acarretaria, sob o ponto de vista Yudjá, a morte da pessoa e a transformação de sua alma em porco. (Lima 1996:36) De modo semelhante, no antigo festival no qual se afirma que os mortos vinham beber com os Yudjá, havia o risco de que algum dentre estes últimos fosse raptado ou mesmo assassinado pelos mortos. A pessoa então entrava, ainda em vida, em processo de decomposição e, quando finalmente morria, transformava-se em nada, visto que não possuía mais a alma que se tornaria ao morrer, na medida em que esta havia sido morta pelos mortos. (Lima 2005:38-39) Também em sonho, quando a alma se separaria da pessoa, haveria o perigo de que ela estabelecesse novas relações e, acostumando-se a uma outra vida, não retornasse, ocasionando a morte da pessoa. (Lima 2005:259) Num mundo em que tudo seria dois, a própria pessoa se comporia de um duplo que a apartaria de si mesma e a tornaria vulnerável aos demais pontos de vista, os quais, capturando aquilo que à própria pessoa escaparia, poderiam matá-la e torná-la outra em relação a si mesma. Nisso tudo, destacar-se-ia uma “assimetria” da perspectiva humana por relação às demais. Isso porque, a despeito da divergência entre uma pessoa e sua alma e do cuidado constante com outros pontos de vista, os humanos seriam humanos na visão de todos os seres. Enquanto animais, por exemplo, sendo humanos para si mesmos, portariam uma natureza animal visível aos humanos, as pessoas humanas sempre lhes apareceriam como tais. Nas palavras de Tânia Stolze Lima: “[...] o animal que se toma por gente me toma por um igual, mas eu não o tomo assim.” (Lima 2005:336) Mesmo os mortos, afirma-se, que em condições normais não seriam visíveis, consideravam os Yudjá iguais a si quando bebiam em seus festivais, sendo ciência apenas dos Yudjá que, nesse encontro, travavam relação “pessoas dotadas de condição ontológica distinta, perspectivas irremediavelmente afastadas, portanto.” (Lima 2005:260, 338) Destoa-se aqui, portanto, de outras cosmologias notadamente perspectivistas 4 ou mesmo dos 4

A esse respeito é muito ilustrativo o mito Medatia, do povo Yekuana, que, ao narrar a formação do primeiro xamã, destaca a não humanidade do humano em sua relação com outros seres. (Civrieux 1992:216-226.) Também a etnografia acerca dos índios Wari’ desenvolvida por Aparecida Vilaça apresenta uma reciprocidade simétrica na relação entre eles e os animais de caça, visto que ambos

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termos mais ou menos abstratos em que se desenvolve uma noção geral do perspectivismo,5 nos quais se estabelece uma simetria na relação entre perspectivas distintas, dado que ambas veriam a si mesmas como humanas, ao passo que reciprocamente se veriam como não humanas. Isso porque, dentre os Yudjá, ainda que aos não humanos fosse visível um duplo que às próprias pessoas escaparia, esse outro da pessoa lhes apareceria também como gente, de modo que as pessoas humanas se configurariam “termos invariantes de todas as perspectivas”. 6 De maneira estreitamente relacionada a essa assimetria da perspectiva humana em relação às demais, – talvez mesmo em decorrência dela, – os seres humanos “vivos e despertos” seriam, para os Yudjá, dotados, além disso, de uma exclusiva “sabedoria”7, uma capacidade reflexiva de lidar com outros pontos de vista. (Lima 1999:49-50) Essa “reflexividade”, parece-nos, acentuaria a referida assimetria, pois, além dos mortos, animais e outras entidades aparecerem como tais aos humanos (os quais, por sua vez, apareceriam sempre como humanos aos demais), apenas os humanos possuiriam ciência do ponto de vista alheio: “O porco se sabe humano, sabe que um Juruna é um semelhante, mas não sabe que é um porco para os Juruna.” (Lima 1999:50) Isso tornaria as pessoas humanas capazes de “perspectivar a si mesmas” (Lima 1999:50), isto é, de colocarem a si próprias sob o ponto de vista alheio, bem como de indagarem a respeito do olhar de outrem sobre as mais diversas manifestações do

enxergariam a si mesmos como humanos e predadores e aos outros como animais e presas. (Vilaça 1992:49-76; 2000:59) Acerca da discrepância no estabelecimento de uma simetria na relação dos Wari’ com os animais e de uma assimetria na relação dos Yudjá com os mesmos, cf. Lima 2005:215. 5 Cf. nota 2, supra. 6 “O sistema Yudjá faz, de homens e mulheres yudjá e do cauim produzido por mulheres yudjá, termos invariantes de todas as perspectivas.” (Lima 2011:639) Nessa passagem, a autora atribui essa assimetria exclusivamente às pessoas yudjá (bem como ao seu próprio cauim). Contudo, não nos parece perfeitamente claro, sobretudo levando em consideração outras passagens (Lima 2005:336-341; 1999:4950, esta última no que diz respeito à noção de “sabedoria humana”, que em seguida apresentaremos), se isso se refere somente aos Yudjá ou “em geral” aos humanos (isto é, também aos outros grupos humanos com os quais os Yudjá estabeleceriam relação), de que modo que se lidaria aqui com um conceito de humanidade que, embora de todo distinto do ocidental, recairia mais ou menos sobre os mesmos seres que este último. 7 Tânia Stolze Lima não parece esclarecer, ao menos dentre os textos por nós consultados, a relação exata entre as noções de “assimetria” e “sabedoria” concernentes à perspectiva humana. Além disso, devemos ter em mente que a “sabedoria humana” é um conceito antropológico elaborado pela etnógrafa em face dos discursos Yudjá, mas não um conceito referido pelos próprios Yudjá. Conforme afirma a autora, em debate com Eduardo Viveiros de Castro acerca dos problemas em torno de noções como “reciprocidade de perspectivas” e “hierarquia de perspectivas”: “Minha opinião sobre o caráter ‘especial’ da perspectiva humana vem da percepção etnográfica, não do discurso indígena.” (Lima et al s/d)

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cosmos.8 Nas palavras de Tânia Stolze Lima, seria como se o xamanismo, enquanto privilegiado ponto de vista “da variação entre aqueles pertencentes às diferentes categorias de alteridade”, fosse, entre os Yudjá, “que perderam os xamãs e relutam em assumir esta função”, “a própria sabedoria”, atributo exclusivo dos humanos. (Lima 1996:33) Contudo, essa assimetria e essa sabedoria não sugerem um vetor antropocêntrico que sobreporia às demais a perspectiva humana? Ora, isso não estaria a ponto de comprometer a própria noção de ponto de vista, enquanto esta pressupõe a relação entre perspectivas irredutíveis umas às outras e, por isso, não menos verdadeiras umas que as outras? Se o perspectivismo se caracteriza por uma desestabilização das posições de natureza e cultura a ponto de sobrepor sobre os mesmos seres, sob pontos de vista divergentes, a humanidade e a não humanidade, essa assimetria não impediria tal movimento, na medida em que colocaria o humano numa posição invariante sob qualquer ponto de vista?9 A exclusiva sabedoria da qual seriam dotados os humanos não 8

Numa outra formulação: “É atitude humana apreender o animal como tal e como uma pessoa outra, isto é, tal como ele se vê e nos vê. Ou seja, é próprio da pessoa humana ser dotada de uma perspectiva que contém outras.” (Lima 2005:216) 9 Parece-nos importante ressaltar que a própria Tânia Stolze Lima – pressupondo a ideia do perspectivismo de que “as diferenças entre os humanos e os animais, entre os povos amazônicos, não são propriamente diferenças conceituais, não são diferenças de grau”, mas diferenças perspectivas (Lima 2011:617) – afirma: “Uma tradução mais abstrata das relações diferenciais implicadas pelo idioma do perspectivismo indígena pode ser a seguinte. Um ser aparece para si mesmo de modo distinto do que ele aparece para outrem, isto é, a relação a si difere da relação a outrem – ‘pronomes cosmológicos’, como propôs Viveiros de Castro (1996). A relação diferencial que liga-e-separa o ser humano e a onça também liga-e-separa a onça de si mesma e o ser humano de si mesmo. Em outras palavras, a distância gente-onça separa ao meio as onças e os seres humanos, cada um por sua vez; ela passa pelo meio de cada um desses seres.” (Lima 2011:621) Contudo, isso parece não valer assim tão estritamente no caso dos Yudjá, visto que eles apareceriam tanto para si como para outrem da mesma maneira, isto é, como humanos. A própria autora afirma que esse aspecto do “idioma do perspectivismo” não seria facilitado por sua etnografia (Lima 2011:621-622), em função justamente do fato já mencionado de que “o sistema Yudjá faz, de homens e mulheres yudjá e do cauim produzido por mulheres yudjá, termos invariantes de todas as perspectivas” (Lima 2011:639). Em outras palavras, pode parecer que, a despeito da dualidade expressa na concepção de uma “gemelaridade virtual da pessoa” (Lima 2005:337), a proposição de uma assimetria da perspectiva humana levaria a uma identificação – e não a uma separação – dessa última em relação a si mesma, dada sua invariabilidade sob outras perspectivas. Em que medida isso não iria frontalmente de encontro ao conceito do perspectivismo, conforme ele é entendido inclusive pela própria autora? Lembrando também que, ao propor, através da noção de perspectivismo, um reposicionamento conceitual dos domínios da cultura e da natureza em termos não mais de substantivos, mas de pronomes, Viveiros de Castro relaciona à primeira a posição de “eu” e à segunda a posição de “ele”, o que, por fim, geraria a necessidade de uma terceira posição, a do “tu”, posição do outro enquanto sujeito, do não humano que, enquanto ocuparia o ponto de vista do humano, poria a humanidade do próprio humano em questão. Seria essa a categoria da sobrenatureza, cujas manifestações expressariam sempre a possibilidade da perda de ponto de vista por um humano que assumiria justamente que humano, na verdade, seria o outro. “Quem responde a um ‘tu’ dito por um não-humano aceita a condição de ser sua ‘segunda pessoa’, e ao assumir por sua vez a posição de ‘eu’ já o fará como um não-humano. A forma canônica desses encontros

6

incrustaria

no

universo

Yudjá

algum

resíduo

de

um

antropocentrismo

antiperspectivista?10 Perguntas como essas parecem contestar a pertinência do perspectivismo em sua tentativa de fazer repercutir os discursos indígenas sobre o pensamento ocidental, já que apontam nesse conceito as mesmas partições ontológicas que ele deveria deslocar. É por isso que essas questões podem instigar, justamente num debate com a tradição ocidental, a marcação das diferenças entre esses regimes de pensamento, buscado descobrir, ao fim, se se encontra ou não no pensamento indígena a mesma fixidez ontológica que com ele se buscava subverter. Tendo isso em vista, tomaremos doravante como termo de comparação com a etnografia Yudjá um paradigma ocidental que, além de também conferir ao humano uma exclusiva sabedoria, se mostra como um dos pilares no empenho moderno de solidificação da cisão entre o homem e a natureza: a filosofia de Kant. Nossa aposta é que o referencial kantiano, notadamente antropocêntrico, pode servir de contraponto para que, uma vez subvertidos os pressupostos de seu antropocentrismo, se desfaça essa aparência antiperspectivista da etnografia Yudjá. Dando continuidade a uma longa tradição filosófica, Kant compreende o homem como ser racional. A “razão” – propriedade que distinguiria o humano do meramente animal, dotando-o de “vontade” – seria “[...] a faculdade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios [...]”. (Kant 2009:183) Enquanto sobrenaturais consiste, assim, em intuir subitamente que o outro é ‘humano’, entenda-se, que ele é o humano, o que desumaniza e aliena automaticamente o interlocutor, transformando-o em presa, isto é, em animal.” (Viveiros de Castro 1996:135) Em que medida tal categoria de sobrenatureza não seria barrada no universo Yudjá, visto que este determina o humano como aquele que seria visto enquanto tal sob todos os pontos de vista? Haveria espaço para uma sobrenatureza na cosmologia Yudjá? Acreditamos que questões como essas, além de exigir coerência entre as noções propostas, nos levam a refletir sobre a própria relação entre um conceito genérico e abstrato de perspectivismo e a variedade etnográfica à qual ele pretende se referir. Em que medida esse conceito é capaz de lidar com tais peculiaridades sem reduzilas todas a uma suposta identidade afirmada não pelos indígenas, mas apenas pelos antropólogos? Não havia sido dito que o perspectivismo conviria “para batizar regimes de diferenças nas cosmopolíticas indígenas da Amazônia” justamente por exigir “uma ferramenta conceitual outra que aquelas que põem a diferença a serviço da identidade e do todo”, rechaçando “a ideia de que a diferença deve (obrigatoriamente, se preciso for) conduzir a uma identidade (unidade, totalidade) de ordem superior”? (Lima 2011:617) Diante de tantas perguntas, pretendemos apenas assinalar, em seguida, para a possibilidade de algumas respostas, em função, em parte, da complexidade do tema, mas principalmente em decorrência de seu caráter essencialmente “aberto”, – oriundo da multiplicidade etnográfica em questão, – o qual nos parece impedir – felizmente, cremos – uma palavra última em relação aos questionamentos que a esse respeito se colocam. 10 Viveiros de Castro distingue, como “atitudes cosmológicas antagônicas” o antropocentrismo ocidental e o antropomorfismo indígena. (Viveiros de Castro 2002a:375-376)

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todos os seres naturais seriam “determinados à atividade pela influência de causas alheias” (Kant 2009:347), o homem, em sua racionalidade, definiria os princípios de sua própria ação. Escolhendo os fins, em relação aos quais tudo na natureza apareceria como meio, ele se reconheceria como um “fim em si mesmo”, como um ser que não poderia ser tomado “[...] meramente como meio à disposição desta ou daquela vontade para ser usado a seu bel-prazer, mas te[ria] de ser considerado em todas as suas ações, tanto as dirigidas a si mesmo quanto a outros, sempre ao mesmo tempo como fim.” (Kant 2009:239-241) Sua natureza racional o distinguiria como “pessoa”, “[...] como algo que não pode[ria] ser usado meramente como meio [...]” (Kant 2009:241), e o tornaria um objeto de respeito “contra o qual não se deve[ria] jamais agir” (Kant 2009:275), opondo-o a todos os seres “meramente naturais” (Kant 2009:277), – animados ou não, – que, desprovidos de razão e carentes de vontade, seriam movidos apenas por causas exteriores e, por isso, estariam reduzidos ao estatuto de “coisas”, meros “meios” para o estabelecimento dos fins humanos, “[...] instrumentos colocados à disposição de sua [humana] vontade para o sucesso de seus [humanos] propósitos.” (Kant 2010:22) É consequência disso o princípio supremo erigido por Kant: “Age de tal maneira que tomes a humanidade, tanto em tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim, nunca meramente como meio.” (Kant 2009:243-245) Na medida em que esse imperativo da ação abstrairia de qualquer inclinação sensível ou desejo e consideraria apenas a forma racional dos seres que, estabelecendo seus próprios fins, seriam fins em si mesmos, ele não derivaria senão da própria razão. Deixando-se determinar por essa lei universal, a razão não se encontraria, portanto, “[...] simplesmente submetida à lei, mas submetida de tal maneira que ela também te[ria] de ser vista como autolegisladora e, justamente por isso, submetida afinal à lei (da qual pode[ria] se considerar como autora).” (Kant 2009:251-253) Logo, a vontade que determinasse a si mesma dessa maneira seria inteiramente livre. Dotando o homem de uma exclusiva razão que o levaria a determinar seus próprios fins, Kant eleva a própria racionalidade ao estatuto de fim supremo e faz com que se converta num arquétipo moral a ideia da razão que extrairia tão só de si própria o seu princípio ao agir de modo a não ferir o respeito a qualquer ser racional. É esse o seu ideal ilustrado de uma racionalidade completamente autônoma.

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Com essa concepção kantiana de “pessoa”, é certo que nos afastamos radicalmente da perspectiva Yudjá. Se, entre estes últimos, aparece uma “não identificação” entre a pessoa e sua alma, a filosofia de Kant busca estabelecer, ao contrário, uma completa coincidência da pessoa consigo mesma. Agindo unicamente através de si, a razão, enquanto princípio de ação que apartaria o humano do restante dos seres naturais, deveria estabelecer a concordância do homem consigo, conferindolhe sua “dignidade”11 própria. 12 Ademais, se a separação da pessoa Yudjá em relação a si mesma se encontra estreitamente relacionada à sua exposição a pontos de vista não humanos, – unicamente aos quais a alma seria acessível, – não soa surpreendente que a filosofia de Kant apregoe, inversamente, o ideal de uma completa autoidentificação da razão, porquanto não reconhece nenhuma perspectiva que não a humana, relegando toda a natureza à submissão aos fins que o homem para si mesmo estabeleceria. Sob essa perspectiva, certamente a sabedoria não pode ter o mesmo sentido que adquire no universo Yudjá. Porém, não é de se admirar que, assim como no primeiro caso, ela seja, também para Kant, exclusivamente humana. Assimetria entre perspectivas não pode, aqui, haver, porquanto não há pontos de vista outros em relação aos quais ela se possa efetuar, o humano exercendo a perspectiva pretensamente única. Quanto à sabedoria [Weisheit], ela consistiria precisamente no modo de agir e pensar que submeteria toda a natureza à promoção da humanidade, tomada como único fim em si. Enquanto ideia da “unidade necessária de todos os fins possíveis” (Kant 2001:318), a sabedoria – “que, de resto, consist[iria] mais em fazer e deixar de fazer do que em saber” (Kant 2009:143) – seria o modo de agir que referiria ao “fim último” – o qual 11

“A autonomia [...] é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional.” (Kant 2009:269) 12 Poder-se-ia argumentar, a partir de Kant, em favor de uma dualidade da pessoa humana expressa no conflito, sempre presente, entre sua racionalidade e sua natureza sensível, entre a busca pela felicidade e a lei moral. (Kant 2009:407) Enquanto ser finito, o homem seria “afetado por carências e causas motoras sensíveis” (Kant 2002:54), pelos desejos que lhes despertariam os objetos exteriores através do prazer que pareceriam prometer. Todavia, a busca pela felicidade transgrediria o respeito por si mesmo e pelos demais humanos enquanto seres racionais, pois, por essa via, a pessoa colocaria a si mesma e às outras como meios para a aquisição de um estado prazeroso. Por isso, a moralidade consistiria justamente em sobrepor aos desejos sensíveis a lei que a razão ditaria a partir de si, colocando-se como fim último. Logo, embora haja, segundo Kant, um desnível entre o apelo externo dos sentidos e a lei interna da razão, – desnível cuja resolução seria a própria moralidade, da qual dependeria toda a dignidade humana, – a influência dos objetos exteriores aparece sempre como um resíduo animal a ser dominado no homem por aquilo justamente que o distinguiria, sua racionalidade. O que lhe viria de fora, através de sua participação na natureza, é o que precisaria a todo instante ser submetido àquilo que a razão colocaria internamente como dever para si própria, de modo a permitir que o homem concordasse consigo mesmo, identificando-se, através da lei moral, com o que, afinal, ele seria.

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não seria “outra coisa que o destino total do homem” (Kant 2001:662) – todos os demais fins que a razão se poderia colocar. A própria filosofia a ela se encontraria subordinada, de modo a formar, com seus conhecimentos, um sistema que pudesse “apoiar e fomentar os fins essenciais da razão” (Kant 2001:657), direcionando, “pelo caminho da ciência”, tudo à sabedoria como ao “fim principal, a felicidade universal” (Kant 2001:669) das pessoas. Sábio seria colocar a vontade em conformidade com o sumo bem expresso na ideia de um sistema de todos os seres racionais que, como fins em si mesmos, construiriam a felicidade universal através de suas ações, tal como se estas últimas fossem guiadas por uma inteligência supremamente boa que a isso as destinasse. (Kant 2001:639-656; 2002:179-212) Diante desse projeto de construir um reino em que coincidiriam a liberdade e a felicidade dos seres racionais – os quais, neste mundo sensível, não seriam senão todos os homens, “única[s] criatura[s] raciona[is] sobre a Terra” (Kant 2011:5) – a natureza aparece como mero meio para a realização universal da humanidade. Agir com sabedoria, nesse sentido, seria pressupor todo o decurso dos acontecimentos naturais como desenvolvimento da ideia que dirigiria o homem à sua destinação última. (Kant 2001:646-647) Mesmo a história, enquanto história humana, não seria senão o desdobramento, através dos conflitos entre os povos, dessa realização universal promovida pela Providência. (Kant 2011:17) O que ela operaria, ao fim e ao cabo, seria a unificação de todos os povos numa sociedade universal, numa “grande confederação de nações de um poder unificado” (Kant 2011:13), que possibilitaria e administraria, através do Estado, o exercício da liberdade de todos mediante a “decisão segundo leis de uma vontade unificada” (Kant 2011:13). Tratar-se-ia, enfim, de “um Estado cosmopolita universal, como o seio no qual pode[riam] se desenvolver todas as disposições originais da espécie humana.” (Kant 2011:19) É esse o impulso do cosmopolitismo kantiano: submeter toda a natureza e todos os povos a um ideal de realização humana posto como universal, de modo a constituir um Estado único em que a humanidade poderia exercer adequadamente a liberdade que a distinguiria como racional. Tudo em nome dessa “parte da vasta cena da suprema sabedoria que cont[eria] o fim de todas as demais – a história do gênero humano” (Kant 2011:21-22).

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Destino muito diferente daquele a que, dentre os Yudjá, lhes lança sua sabedoria. Se Kant nos aponta um inelutável e avassalador “cosmopolitismo”, é uma abertura “cosmopolítica”13 que se anuncia por detrás da sabedoria Yudjá, na medida em que ela desvela uma rede de perspectivas não humanas – de todo negadas por Kant – em relação à qual somente ela se exerce. A afirmação de uma sabedoria exclusivamente humana não passa, no caso Yudjá, pela posição do ponto de vista humano como o único possível, isto é, por uma exclusão de todas as outras perspectivas que permitiria uma oposição do homem, enquanto pessoa, ao restante da natureza, tomada então como coisa. Pelo contrário, é justamente numa relação com o ponto de vista, a todo tempo presente e ameaçador, dos ditos seres naturais – ou mesmo sobrenaturais, numa dimensão ausente do universo kantiano – que se desenrola a sabedoria humana Yudjá. A despeito de qualquer assimetria, os Yudjá se encontram imersos numa relação constante com perspectivas não humanas que lhes apresentariam o risco da perda de seu próprio ponto de vista e, consequentemente, de sua humanidade. Por isso, a assimetria perspectiva, tal qual nos informa Tânia Stolze Lima, “[...] não é para ser tomada como um regime hierárquico.” (Lima 2005:340) A perspectiva do não humano, à qual os Yudjá apareceriam sempre como humanos, não deixaria de poder acarretar a estes últimos a captura de seu ponto de vista, de modo que se desenvolveria exemplarmente aqui a lição do perspectivismo, se este deve se caracterizar justamente pela intersecção sobre os mesmos seres, ainda que sob pontos de vista distintos, da humanidade e da não humanidade. Os porcos, não obstante vissem os Yudjá como humanos, os veriam como humanos no mesmo sentido em que se veriam, de maneira que os prisioneiros que fariam dentre os Yudjá se tornariam humanos no mesmo sentido que eles, isto é, se tornariam porcos aos olhos dos demais humanos. Analogamente, os mortos, em sua participação nos festivais Yudjá, não seriam pouco eficazes no que diria respeito à possibilidade de capturar ou mesmo assassinar pessoas, acarretando-lhes um processo de putrefação em vida, uma “morte antecipada” que faria delas “[...] uma espécie de tela de projeção do processo mais macabro que se pode conceber.” (Lima 2005:339) A assimetria característica da pessoa humana não excluiria o perigo de uma captura sobrenatural, de modo que sua própria face animal seria uma virtualidade que 13

Ao utilizar-se da noção de “cosmopolítica”, Tânia Stolze Lima refere-a à “multivocalidade” da comunicação entre pontos de vista humanos e não humanos. (Lima 2011:606-617)

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assombraria a todo momento a humanidade Yudjá: “O ponto é que os animais estão longe de serem humanos, mas o fato de se pensarem assim torna a vida humana muito perigosa.” (Lima 1996:27)14 Se não se deve entender em termos hierárquicos a assimetria que distinguiria das demais a perspectiva das pessoas humanas, também a sabedoria humana “[...] não retiraria da vida a infelicidade” (Lima 2005:338), tendo como seu correlato o risco constante da “equivocação”. A sua sabedoria permitiria aos Yudjá antecipar suas relações com seres não humanos e prever a postura adequada a tomar diante dos mesmos, para que o seu ponto de vista se afirmasse como o verdadeiro em questão.15 Contudo, eles bem sabem que qualquer descuido poderia ser fatal e, por isso, tomam todo cuidado para que, diante do outro, não se o deixe afirmar a sua perspectiva. Topando com os porcos com os quais se deseja estabelecer uma relação de caça, – caça essa por vezes já previamente traçada em sonho, – não convém qualquer comportamento típico da relação entre afins, pois tratar como gente os porcos seria atualizar a virtualidade de seu ponto de vista, o que faria dos Yudjá inimigos a ser capturados. Na hora da caça, todo cuidado com a palavra seria necessário, pois se deveria tornar falsa a perspectiva dos porcos: não se falaria com eles, para negar que fossem gente e, com isso, afirmar o ponto de vista Yudjá que lhes imporia sua face de animal, de presa.16 O medo, o descontrole ou a insensatez de um caçador que gritasse ou falasse com a caça ou da caça como se ela fosse gente poderia ser suficiente para que ele fosse capturado pelos porcos e mudado em um deles. (Lima 1996:22-25)

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Parece-nos, portanto, explícita a dimensão sobrenatural do universo Yudjá, na medida em que pontos de vista outros podem se sobrepor ao humano, impondo-lhe uma faceta de não humanidade. Dessa maneira, parafraseando Tânia Stolze Lima, poderíamos talvez dizer que a relação diferencial que liga e separa o ser humano e o porco também liga e separa o porco de si mesmo e o ser humano de si mesmo, já que, nesse embate, os porcos, ao se afirmarem como gente, podem tornar porcos os Yudjá. 15 Partindo da temática da antecipação da caça aos porcos, a qual inscreveria essa atividade no âmbito da ação xamânica e onírica, Tânia Stolze Lima desenvolve seu profundo conceito de “tempo bilinear múltiplo”, o qual não apenas duplicaria o acontecimento em questão, tornando-o uma caça/guerra, mas o reduplicaria, ou multiplicaria, mediante um paralelismo espaço-temporal que o estabeleceria como continuação ou antecipação de acontecimentos decorridos na vida onírica da alma, impondo-lhe assim uma moldura de passado e futuro paralelos, transcorridos nas “compridas linhas” do sonho do caçador. (Lima 1996:39-42) Que efeitos poderia esse conceito ter sobre uma concepção de tempo tal como a kantiana, guiada pelas noções de objetividade e substancialidade? 16 “Se a realidade mental da caça se torna a do caçador, isso, sem dúvida, dota-o de um corpo animal: ele vira bicho. E assim a mudança de perspectiva implica necessariamente mudança de corpo.” (Lima 2005:216)

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Num retrato particularmente elucidativo da situação humana no universo Yudjá, um importante mito afirma que, ao buscar estabelecer uma continuidade entre vivos e mortos, de modo que, após a morte, as pessoas aprendessem o caminho que as traria de volta à vida, os Yudjá realizavam festivais com o intuito de manter perpetuamente os mortos junto a eles. Algumas sérias prescrições seriam, no entanto, colocadas – seria preciso, dentre outras coisas, suspender atividades sexuais diante dos convidados, que detestariam a sexualidade humana. Como já foi dito, apenas os vivos saberiam estar diante de seres de condição ontológica distinta, os mortos vendo aos Yudjá como semelhantes, de modo que a sabedoria dos vivos diante do ponto de vista dos outros e a adequada postura a ser tomada em tal situação lhes garantiria nada menos que a possibilidade de retornar da morte. Não obstante, a ação equivocada de um só homem, o qual teria mantido relações sexuais com sua mulher, teria sido suficiente para irritar os mortos que, partindo embora imediatamente, teriam tornado inviável o retorno das almas Yudjá ao mundo dos vivos. (Lima 2005:60-71) Retratando “a condição humana em termos de um equívoco” (Lima 2005:68), esse mito, bem como outros, evocaria “o pendor para a equivocação e o pendor para a sabedoria” como “os dois polos da condição humana” (Lima 2005:70) e ilustraria exemplarmente a história Yudjá, a qual seria movida pelos descuidos e infelicidades de uma equivocação na apropriação de pontos de vista divergentes aos seus. (Lima 2005:340-341) Deparando-nos com esse retrato humano proposto pela cosmologia Yudjá, perguntamo-nos se cabe ainda aí alguma impressão de antropocentrismo, apta talvez a desmontar a noção de ponto de vista com base na qual se desenvolve a análise etnográfica em questão. Parece-nos, inversamente, que, através da assimetria e da sabedoria, o que encontramos é um relacionamento constante com perspectivas não humanas que a todo momento ameaçariam se impor sobre o ponto de vista Yudjá. A condição distinta da humanidade nesse sistema, longe de excluir perspectivas outras, seria justamente o fundo sobre o qual se desenrolariam as interações cosmopolíticas que lhe seriam peculiares e que o distinguiriam de outras cosmologias também perspectivistas. 17 Não um antropocentrismo, mas um esforço constante de manutenção 17

Podemos aqui nos utilizar dessa distância da etnografia Yudjá tanto em relação a cosmologias que manifestariam um perspectivismo simétrico, como no caso Wari’, quanto em relação a uma definição abstrata, desenvolvida também em termos de simetria, do conceito do perspectivismo ameríndio, como ocasião para pensar a relação entre esse mesmo conceito e a diversidade de etnografias à qual ele se

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da posição de humano, possível apenas em relação a perspectivas outras, é o que nos parece ensinar Tânia Stolze Lima a partir de sua interpretação de uma ontologia Yudjá. Não nos espanta, então, que, a despeito de qualquer distinção ou mesmo, se se quer, privilégio que os Yudjá reconheceriam em seu próprio ponto de vista, não apareça entre eles nenhuma pretensão de submeter aos seus propósitos a natureza e todos os outros povos. Diferentemente do que se manifesta no projeto kantiano, talvez sequer se possa falar, entre os Yudjá, de uma natureza como um todo homogêneo, mas de um complexo de relações cosmopolíticas entre perspectivas divergentes que devem a todo tempo ser levadas em consideração. A natureza não designa aí um conjunto de coisas a serviço do homem, pois este não se arroga a posição de único fim em si. A relação que se trava com os ditos “seres naturais” é a de um conflito entre pontos de vista equivocadamente distintos, unicamente através do qual se dão os acontecimentos, sempre duplos, do universo Yudjá. Que seria dos humanos se não mais travassem relação com a perspectiva dos porcos? Tampouco propõem os Yudjá uma redução de todos os povos a uma realização humana postulada como última e inelutável. Eles não apregoam um conceito “próprio” de humanidade ao qual se deveriam conformar todos aqueles que eles reconheceriam como sendo também humanos.18 O outro, humano ou

refere. Pretendemos ter fornecido elementos o suficiente para concluir que o caso Yudjá, com toda a peculiaridade que ele apresenta através da assimetria que se desenvolve tão bem na noção de sabedoria humana, não contradiz o perspectivismo, mas o torna mais complexo, dado que expressa uma maneira outra de remover os conceitos de natureza e cultura do estatuto de categorias ontológicas fixas para transformá-los em posições de perspectivas virtualmente reversíveis. Sua distinção em relação a outras etnografias não torna inapto um conceito geral que a elas se direcionaria, pois tal conceito não tem por intuito reduzir diferenças sob uma identidade artificialmente elaborada. Pelo contrário, o que uma noção abstrata de perspectivismo se propõe a significar é um aceno a esses universos outros, dessemelhantes entre si, cujo traço compartilhado seria não uma mesma essência neles homogeneamente distribuída, mas uma distância comum, embora a cada caso distinta, em relação ao pensamento ocidental, pela qual eles poderiam de maneiras diferentes subverter a imobilidade característica das partições ontológicas deste último. O que ligaria os Wari’ e os Yudjá não seria, portanto, uma semelhança entre ambos, mas sua comum diferença em relação a nós e o poder de nos propor uma transmutação conceitual que nos permita perspectivar noções que nos habituamos a postular como substanciais, de modo a ensejar um outro olhar sobre as relações que temos estabelecido com o olhar do outro. 18 Novamente é de Clastres (Clastres 2014:75-87) que vem a lição, quando ele, conceituando o “etnocentrismo” em termos de uma “propriedade formal de toda formação cultural, como imanente à própria cultura” (Clastres 2014:81), afirma, porém, que somente o Ocidente, como sociedade com Estado e capitalista, é “etnocida” (Clastres 2014:82) – ou, ao menos, que somente o Ocidente é “absolutamente etnocida” (Clastres 2014:86), se devemos respeitar o seu movimento de pensamento. É importante ressaltar, porém, que essa vocação etnocêntrica atribuída mesmo às culturas indígenas deve ser posta entre parênteses pelo perspectivismo, na medida em que este recusa um conceito único e final de humanidade, a partir do qual se poderia afirmar que um povo humano colocaria a si mesmo como superior aos demais. O caso é que, nos universos indígenas, quem e o que é humano seria justamente o que estaria em questão, de modo que o suposto etnocentrismo indígena poderia se mostrar um fruto da

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não, seria, enfim, aquele cuja diferença, por possibilitar aos Yudjá a dualidade no estabelecimento das relações que compõem todo acontecimento em sua história, deveria a todo momento ser reconhecida. Por fim, a título de adendo meramente especulativo, nos parece plausível sugerir que a filosofia kantiana, ao estabelecer uma completa coincidência da pessoa consigo mesma, mediante a desconsideração – aí sim, visivelmente antropocêntrica – de qualquer perspectiva não humana, possa aparecer, sob o ponto de vista Yudjá, como uma negação da pessoa em relação à sua própria alma. Ora, se esta última apenas a outrem não humano seria visível, se a pessoa “[...] só poderia gerar um outro para si e dentro de si por sua suscetibilidade à perspectiva de outrem” (Lima 2005:340), a filosofia de Kant, ao negar toda perspectiva outra que aquela por ela afirmada não estaria também anulando os pontos de vista unicamente em vista dos quais o homem poderia formar para si mesmo uma alma? Tânia Stolze Lima sugere que sentir-se coextensivo à própria alma seria, sob o olhar Yudjá, algo como chamar a morte, dado que a alma, embora compondo a pessoa, seria justamente o outro ela se tornaria ao morrer. (Lima 2005:336) O que se poderia dizer então do ideal kantiano de concordância total da pessoa com sua alma, encarnada, como nele aparece, na figura moderna da razão? Seria, ao cabo, como se a única alma cabível fosse a própria racionalidade que, manifesta nesta vida, se creria destinada ela mesma à vida eterna. 19 Seria querer que não houvesse um outro que a pessoa se tornasse após a morte, mas apenas um mesmo, um idêntico a si, que, ignorante da condição humana e pretendendo agarrar-se a esta vida, se creria eterno. Não se trataria de algo semelhante ao que se passa àqueles que, assassinados pelos mortos, já nada mais seriam ao morrer, de modo que Kant, negando toda alteridade que lhe permitiria constituir sua alma, se empenharia, ao contrário, ele mesmo em assassiná-la?20 Tentativa de suprimir o outro e, com isso, de inadvertidamente negar as condições que confeririam ao humano sua alma e seu destino após a morte, essa filosofia talvez soe não menos macabra que a putrefação em vida que aplicação de noções outras de humanidade, que permitiriam que esta fosse, ao mesmo tempo, atribuída a seres ditos não humanos, numa manobra que calhou chamar-se de animismo, mas negada a outros grupos indígenas, movimento aparentemente etnocêntrico. (Viveiros de Castro 2002a:368-377; para um desenvolvimento etnográfico específico, cf. o caso Wari’ em Vilaça 1992:106.) 19 Sobre o papel ocupado pela crença na imortalidade da alma na filosofia de Kant, cf. Kant 2001:644645; 2002:197-200. 20 Impossível não recordar aqui a belíssima narrativa de Jorge Pozzobon intitulada “Vocês, brancos, não têm alma”. (Pozzobon 2013:43-57)

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tanto impressionou Tânia Stolze Lima, posto que faria decompor-se não só a si mesma, mas toda alteridade com a qual se defrontaria. Exagero ou não de nossa parte, as consequências nefastas de tal pensamento se encontram aí, nesta nossa vida entre as coisas, as pessoas e etc. “Viver... O senhor já sabe: viver é etcétera...” (Guimarães Rosa 2006:94)

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