Antropologia e Arte, a Apropriação e a Fotografia Colonial

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Ensaio Final Antropologia e Práticas Artísticas - Mestrado Culturas Visuais

Antropologia e Arte, a Apropriação e a Fotografia Colonial

Docente: Sónia Almeida Discente: André Pinto nº 41290 2016/2017

Abstract O presente ensaio tenta analisar e desconstruir a relação existente entre Antropologia e Arte, pretendendo olhar também para a Cultura Visual, ao focar no olhar do antropólogo. Abordará também o conceito de apropriação, de forma a relacionar com a fotografia. O valor do arquivo/memória será também analisado. Por fim, será observada uma exposição, com vista a uma observação mais concreta da fotografia colonial e dos discursos inerentes a esta.

Palavras-chave:

Antropologia;

Arte;

Apropriação;

Arquivo;

Fotografia;

Colonialismo;

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Índice

Introdução - Antropologia e Arte contemporânea: modos de relação .................. 4

A Cultura Visual e o olhar antropológico – Ricardo Campos (2012) ................ 6

Conceito de Apropriação – Arnd Schneider .......................................................... 8

Os Artistas e o Arquivo – Fotografia & Arquivo ................................................... 9

Fotografia Colonial e o a Exposição “Botânica” de Vasco Araújo .................... 11

Bibliografia ........................................................................................................... 15

ANEXOS ............................................................................................................... 16

Biografia de Vasco Araújo ................................................................................ 17

“Botânica” – Exposição MNAC. Vasco Araújo (2014) - Fotografias ............. 18

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“(…) art is becoming one of the main sites of cultural production for transforming difference into discourse, for making it meaningful for action and thought. Especially because anthropology has also seen this as its role in the production of cultural knowledge, we argue that critical understanding and a new relationship between art and anthropology are required.” (Marcus and Myers 1995, 34-35)

Introdução - Antropologia e Arte contemporânea: modos de relação Marcus e Myers (1995) - antropólogos de formação - foram dois autores pioneiros no que toca à relação que existe entre antropologia e arte. Segundo os mesmos, na vida cultural contemporânea, a arte começou a associar-se mais aos modos de produção que a antropologia tinha enquanto – tornando-se assim um dos principais locais de “rastreamento”, representação e realização dos efeitos das diferenças na vida contemporânea (Marcus and Myers 1995, 1). No passado, o estudo antropológico da arte foi marginalizado. Atualmente esse não deve ser o caso uma vez que a arte passou a fazer parte de um dos principais locais de produção cultural – isto aconteceu porque a antropologia se revê no papel de produtora de conhecimento cultural, tal como a arte neste momento. Penso então, que até à data desta publicação (1995), a antropologia e a arte eram vistas como duas disciplinas estranhas uma à outra, não existindo uma antropologia da arte, mas sim uma antropologia que analisa a arte. Nesta teia de relações, uma das questões que se levanta é a influência que a antropologia teve na arte. Entender de que modo é que a arte se apropriou de interesses antropológicos – tais como a produção, escrita ou marketing – é um dos pontos fundamentais, seja nas teses de Marcus e Myers (1995), como também de Arnd Schneider (2006). Existe também algo que devemos ter em conta e que é essencial salientar - o “primitivo” era uma figura central no que toca tanto aos discursos antropológicos, como às práticas artísticas modernistas. Marcus e Myers (1995) referem que apesar disso, não era central nas suas análises. No entanto, foi muito utilizado e podemos constatar que ainda nos dias de hoje, “primitivo” tem um sentido pejorativo e serve como adjetivo classificatório de algo atrás no tempo ou de forma a distinguir o moderno e não moderno.

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Segundo José Dias (2001) “à relação de colaboração e de reciprocidade entre arte e antropologia sucede-se a uma situação muito mais complexa, em que ambas tratam dos mesmos assuntos e em que o trabalho artístico adota frequentemente a atitude de etnógrafo, e às vezes os seus métodos” (Dias 2001, 116). Partindo desta afirmação de José Dias (2001), é possível perceber que a Arte – evidenciada anteriormente – se “apropriou” da Antropologia, utilizando a Etnografia como método para as suas próprias pesquisas. Muitas vezes os artistas personificavam-se como etnógrafos, como Malinowski em plena Ilha(s) Trobriand (1922) de forma a conseguir obter material para os seus trabalhos. Segundo o próprio, vários autores tratam de modos distintos esta alteração na forma de estudo de ambas as disciplinas. Como referido no primeiro parágrafo, Dias (2001) sublinha que Marcus e Myers (1995) vêm esta relação no sentido de ambas se situarem como “fazedoras” de conhecimento cultural. No mesmo sentido, Foster (1999) afirma que existiu uma “(…) viragem etnográfica da arte contemporânea. Vê a sua génese na deslocação de um modo vertical do trabalho artístico (que assenta num envolvimento diacrónico com as formas disciplinares de um género ou meio artístico dado), para um que é horizontal (num movimento sincrónico de questão social para questão social, de debate político para debate político)” (Dias 2001, 117). Isto quer dizer que a arte passou a tomar sentido em coisas mais quotidianas, tais como o campo da cultura e os “problemas” no mundo em geral. Por sua vez, Schneider (2006) interessa-se essencialmente pela questão da apropriação, apesar de os autores anteriores também se pronunciarem relativamente a esse assunto. “(…) fala de “registos de evidência” para chamar as práticas artísticas que, implícita ou explicitamente, incorporam métodos da antropologia, particularmente o método etnográfico e a recolha (…) reconhece diferenças de grau (a duração da estadia), e também de profundidade e de sistematização, entre as duas práticas etnográficas (…), está mais interessado nas criticas à antropologia desses trabalhos e no que eles podem às vezes acrescentar ao nosso conhecimento antropológico, e não hesita em falar do método etnográfico na antropologia e de método etnográfico artístico” (Dias 2001, 117-118). Apesar de tudo, a arte e a antropologia possuem diferentes conceções principalmente no que concerne ao campo de conhecimento e à criação de valor sobre a cultura. Segundo Marcus e Myers (1995), o discurso e produção artística estão bastante

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mais próximos – se não interligados - a grandes vetores de poder e dinheiro e aos quais a antropologia não pretende ter vínculo. Isto deve-se essencialmente ao facto de a antropologia, como disciplina, pretende ser solta de amarras e de ter, desde os seus primórdios – supostamente - uma relação antagónica com questões de poder e agência. Também no que toca à crítica cultural em relação aos modos de vida moderna ocidental, a arte a antropologia são dissemelhantes, no entanto, ambas criticam a tendência que o Ocidente tem de considerar várias esferas da vida como autónomas de um contexto social maior em vez de incorporá-lo. Marcus e Myers (1995) referem então a existência de uma Etnografia Crítica que se baseia na noção de os atores sociais terem uma consciência crítica das suas próprias condições de vida, mais amplas, mais imperfeitas, parciais, potenciais ou mínimas, tendo em conta também a existência de questões como a “estrutura e agencialidade”. “In this respect, a critical ethnography of the art world has a double vision of it. An ethnographer must, after all, understand his or her subjects; at the same time, he or she need not necessarily accept their truth-claims” (Marcus and Myers 1995, 33). Como é possível perceber pela citação, os autores pretendem que o etnógrafo seja capaz de perceber o sujeito que estuda, mas que tenha também uma apreciação crítica daquilo que o mesmo lhe transmite. Nesse sentido a etnografia deve ser suscetível de contestar o posicionamento do mundo da arte que vê os seus participantes como ocupando uma posição privilegiada, capaz de absorver tudo. Com tudo isto os autores introduzem três fundamentos essenciais na análise da etnografia crítica: a Apropriação (que será examinada no segundo ponto deste ensaio), a Fronteira, e a Circulação (Marcus and Myers 1995, 33-34).

A Cultura Visual e o olhar antropológico – Ricardo Campos (2012)

Neste seu texto, Ricardo Campos (2012) faz uma reflexão sobre a Antropologia e a Cultura Visual. Segundo o próprio, a antropologia deambulava por um caminho “amargo” devido a uma “(…) crise da representação etnográfica despoletada na década de 80, vagueia em busca de caminhos alternativos que expressem novas formas de investigar e comunicar em ciência” (Campos 2012, 19). Na minha opinião, o autor pretende com esta frase alertar para o facto de que, uma vez que a antropologia já tem

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“um olhar sobre o outro” representado em forma de texto, deverá passar para a fase em que esse “olhar” se tornará no olhar dos outros, inserindo a arte e, mais concretamente, a fotografia, nos seus trabalhos. Devido à sua abrangência aliada ao facto da noção de Cultura Visual ser um pouco confusa, Campos (2012) opta por designa-la – numa perspetiva essencialmente antropológica - de Estudos Visuais classificando-a como a área disciplinar da cultura visual, e que corresponde “(…) a um conjunto de abordagens multi e interdisciplinares que, em comum, possuem unicamente o seu objeto: a imagem, a visão e a visualidade (…)” (ibid.21). No entanto mais à frente, dá uma explicação pertinente daquilo que a cultura visual representa como sistema “uma forma particular de percecionar e retratar a realidade (…) uma esfera particular da cultura construída e partilhada por um coletivo de pessoas (sociedades, grupo, comunidade, etc.) (…) um repositório visual (…) um modo de apreender e descodificar visualmente a realidade (…) um sistema composto por um aparato tecnológico, político, simbólico, económico;” (ibid.22, 23 e 24) Como o autor refere, a Antropologia sempre foi uma disciplina preocupada com o “outro” e, além disso, partilha o interesse pela criatividade, pelas formas como esse outro se representa, seja a nível social, cultural, hierárquico ou artístico. Além disso, as formas de relação que o ser humano tem, a prática da apropriação e a globalização generalizada são dogmas que transformam as sociedades, sejam elas “passadas ou futuras”. “Ora a Antropologia, para além de partilhar o interesse pelo ato criativo, localizado e subjectivo, estabelece pontes com os contextos circundantes e com horizontes mais vastos que remetem para os processos de mediatização ou globalização, por exemplo. Os artefactos estéticos são engendrados num ambiente cultural e visam preencher um espaço simbólico e comunicacional através do qual as pessoas dão sentido às coisas. Importa, pois, detetar o cultural e o social por detrás das imagens e dos imaginários representados. Compreender a sociedade atual e a sua relação com o olhar e as imagens, obriga a uma grande flexibilidade epistemológica, assente numa abordagem necessariamente interdisciplinar” (ibid. 32) - deste jeito Campos termina o seu artigo demonstrando que é preciso um diálogo entre a Antropologia e os Estudos Visuais e que este mesmo diálogo pode ser proveitoso para ambos.

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Conceito de Apropriação – Arnd Schneider Na minha ótica, penso que atualmente existe uma maior preocupação em estudar a sociedade e as suas práticas culturais focando menos no individuo e nos grupos individuais. Posto isto, neste segundo ponto do meu ensaio achei pertinente “invocar” Arnd Schneider (2006) e o conceito de Apropriação –que Marcus e Myers, já tinham “introduzido” em 1995. Como foi possível perceber ao longo da primeira parte, a arte e a antropologia sempre se apropriaram “do outro”, aliás, toda e qualquer sociedade ou individuo se apropria de algo que não é seu - não no sentido de alienação ou supremacia de uma pela outra, mas sim nas interações e na construção que originam as comunidades. Esta é uma teoria bastante simples de ser compreendida uma vez que o mundo não é um sistema fechado, que têm em si uma base de relações e que as sociedades como sistema orgânicodesde os egípcios aos esclavagistas, até à dita “modernidade” - dependem das interrelações e de modos de ligação entre nós. Sem a existência de um “outro” não seria possível existir cultura, língua, arte, música ou religião, e é nesse sentido, que o facto de “ele e nós” existirmos, nos permite construir, comunicar, interagir, e claro, apropriar. Schneider (2006) em “Appropriations” presume que a apropriação se considera como “(…) uma tentativa de “perceber”, se não, dialogar com o outro”1 (Schneider 2006, 34), sendo que logo a seguir sugere uma definição extensa daquilo que considera como apropriação cultural “(…) the taking – from a culture that is not one’s own – of intellectual property, cultural expressions or artefacts, history and ways of knowledge” (ibid. 37). Podemos então perceber que, tanto artistas como antropólogos, fazem uso da dimensão prática das suas atividades apropriando-se e representando o “outro”. O autor refere que este processo de apropriação é fundamental para o intercâmbio e mudança cultural uma vez que os outros representam se a si mesmos através de nós e vice-versa. No entanto, Schneider (2006) levanta uma questão muito debatida no núcleo antropológico e que continuará a ser foco de investigação, o ponto de vista “avançado” que o Ocidente tem em relação ao “Terceiro Mundo”. Para além disso, o próprio refere que não existem originais na arte, mas sim formas diferentes de dialogar e expor as suas 1

Todas as citações apresentadas neste ensaio de textos em inglês, são tradução livre da minha autoria.

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ideias. Alfred Gell (1992), um dos autores citados por Schneider, refere o facto de os objectos possuírem agencialidade, intenções e discursos próprios ligadas à sua produção – possuem significados; Marcus e Myers (1995) talvez não tendo em conta essa agencialidade, tinham como foco de trabalho o facto de o mundo das artes se “apropriar das coisas dos outros”, e vão alertar para uma circunstância em que o artista deverá levar não só o objeto, mas também o seu contexto cultural, as suas raízes, o seu local, a sua história e tudo aquilo que é anterior à sua produção. É então a partir da definição de apropriação de Schneider (2006) aliada ao facto de todos os objectos terem um discurso por trás do trabalho, que irei focar o tema da fotografia e o arquivo, o colonial e seus discursos e, tendo como ponto final de análise, a exposição “Botânica” de Vasco Araújo.

Os Artistas e o Arquivo – Fotografia & Arquivo *Click* - “Já está!” Talvez seja assim que começam infindáveis histórias. Após o obturador fechar, um momento é cristalizado numa coisa estática, parada, sem movimento, porém, repleta de carga simbólica. Ora, a fotografia desde os seus “primórdios” representa o que de melhor a pintura tinha – o facto de ser um retrato exato do momento, um quadro “perfeito” do que vemos com os nossos olhos –, aliada à rapidez e precisão de uma máquina, “um registo documental de ações efémeras” (Rosengarten 2014, 1). Para além disso, a fotografia é nada mais nada menos do que algo que valida a nossa presença, um testemunho antes em papel, agora num telemóvel ou num computador, que credita o facto de termos estado lá, presenciado, vivido algo e, claro, ajuda a relembrar e a criar memória. Pois bem, um arquivo, segundo Rosengarten (2014) “(…) goza de um estatuto semelhante por razões parecidas: apropria-se do passado de uma forma indexical em vez de mimética (…) gera significado histórico (…) um objeto de arquivo é, portanto, e por definição, possuidor de uma singularidade, existente como o traço – e portanto, a prova – de um evento único. Pouco depois da sua invenção e devido ao seu estatuto indexical, as

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fotografias começaram a ser consideradas registos de prova, obtendo assim o estatuto de documentos de arquivo por excelência” (ibid. 2). Sabemos que o tempo de uma imagem pode ser cíclico, ciclo esse que nunca termina dado que, a qualquer momento, pode ser revisitada e reinterpretada de forma diferente. Portanto, as imagens são memórias e muitos artistas usam os arquivos “(…) como metáfora geradora dos lugares da memória”2 (ibid. 11). Precisam de um ator que as interpreta, que as abra, que lhes subtraia o significado “As fotografias são tecidos, malhas de silêncios e de ruídos. Precisam de nós para que sejam desdobrados os seus segredos. As fotografias são memórias, histórias escritas nelas, sobre elas, de dentro delas, com elas (…) são pequenos refúgio (…) são confidências, memórias, arquivos (…) são os nossos olhos passados, presentes e futuros, olhos da história (…)” (Samain 2012, 160, 162). Em “Archive Fever” de Enwezor (2008) a fotografia é explorada como arquivo de algo que é muitas vezes apropriado, interpretado, reconfigurado e interrogado pelos artistas. Uma vez que a fotografia é documental, ao longo do tempo foi sendo introduzida nos mais variados meios e, assim, apropriada para “(…) fins institucionais, industriais e culturais – propaganda governamental, propaganda de moda, entretenimento, comemoração pessoal, arte.” (Enwezor 2008, 12). Esta sua versatilidade aliada ao desejo de fazer e ter uma fotografia ou documentar um evento, está diretamente relacionada com a aspiração de produzir um arquivo, de ter algo que possamos pegar, abrir e ver passados muitos anos, conseguindo relembrar e criar histórias do que ali se apresenta. Nesse sentido, segundo Enwezor (2008), criou-se uma “Febre do Arquivo”. O autor explica então que nesta febre existem dois intervenientes - o artistas e o próprio arquivo - “(…) o artista serve como o agente histórico da memória, enquanto o arquivo surge como um lugar nas preocupações com o passado (…) no entanto, contra a tendência das formas contemporâneas de amnésia em que o arquivo se torna um local de origens perdidas e a memória despojada, é também dentro do arquivo que ocorrem os atos de lembrança e regeneração, onde se realiza uma sutura entre o passado e o presente (…)” (ibid. 46, 47) Como antropólogo e tendo já feito um curto trabalho de campo, sei as vantagens que a fotografia trouxe na construção de um diálogo e na realização de uma Etnografia

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Os lugares de memória são também discorridos por Nora (Nora in Godinho, 2012)

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com exemplos “palpáveis” e concretos no que toca à veracidade de algumas coisas – sejam elas ritos, objectos, posturas, edifícios, alimentos e por aí adiante. É então, assim, que introduzo o tema da Fotografia Colonial. Algo que pretendo enfatizar é o facto de a mesma se ter constituído como uma estratégia bastante inteligente, usada pelo Estado Novo, com o objetivo de legitimar as suas ações fora do país; e, também, para que quem estivesse em Portugal pudesse acompanhar em “tempo-quase-real” a situação colonial – exemplo disso mesmo foram as Exposições do Mundo Português em 1934 e 1940, “Estas exposições tinham dois propósitos: mostrar o exótico ao mundo civilizado, sobretudo depois da partilha de Africa pelos europeus, e, por outro lado, demonstrar aos europeus que era uma raça superior que dominava o mundo”3

Fotografia Colonial e o a Exposição “Botânica” de Vasco Araújo “A fotografia colonial surgiu nesse sentido, para ver “lá em casa” como seria “o Outro”, mas também para mostrar e reproduzir a superioridade do colonizador sobre o colonizado em vários referentes. O poder simbólico da fotografia tornou-se, desde a sua criação, sinónimo de reprodução das relações de dominação e subordinação e, portanto, das relações coloniais” (Barradas 2009, 73) Como referi anteriormente, a fotografia tem sido utilizada nas mais diversas áreas e para os mais diversos fins. Espontaneamente, e seguindo o decurso tecnológico da história, a época colonial não se desligou desse facto e usou a fotografia como uma arma de propaganda e de proliferação de discursos “supremacistas”. É importante perceber que, aos olhos dos europeus e, neste caso, dos portugueses, o exótico era algo que chamava à atenção pelo seu “desconhecido” – e naturalmente levava a que existisse um discurso não só de superioridade como também de racismo e xenofobia. A fotografia era então um veículo de transmissão da missão colonial em países como Angola ou Moçambique, pois serviam de ilustração de um mundo desconhecido 3

Palavras dirigidas por Vasco Araújo numa entrevista dada à RTP na sequência da sua nova exposição.

Lusa, 11 Mar, 2014, 18:50 | Cultura (http://www.rtp.pt/noticias/cultura) - Exposição com nova obra de Vasco Araújo que ser “alerta à consciência” – Cultura – RTP Notícias

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para a maioria daqueles que viviam em Portugal. No entanto, esta era uma história de manipulação e “meias verdades”. Como refere Filipa Vicente (2012) “Também é importante, no entanto, pensar na fotografia enquanto algo produzido, consumido, colecionado, guardado por aqueles que habitavam os espaços coloniais e que eram constituídos por uma multiplicidade de pessoas (…) a sua portabilidade converteu-a num “objeto viajante”, as suas possibilidades reprodutivas multiplicaram os seus significados discursivos (…) o postal e o desenvolvimento das publicações ilustradas em geral, transformaram a difusão de imagens das colónias, alargando o âmbito dos seus observadores.” (Vicente 2012, 435, 438, 439). Segundo a própria, esta banalização de imagens seja de África, como da Índia, teriam como objetivo a proliferação e reprodução daquilo que seria mais facilmente reconhecível ou identificável, à luz da visão europeia relativamente a ideias pré-concebidas sobre estes locais (Vicente 2012). Perante tais “condições” especificas relativamente àquilo que supostamente se deveria mostrar das colónias, muitas das fotografias seriam consideradas de cariz sexual, dominação ou classificatórias – estas últimas relacionando obviamente com questões de raça e antropometria – demonstrando também a evolução urbana que se fazia sentir, desde a chegada dos europeus. De todos os textos analisados e que apresentavam alguma fotografia, a generalidade representava mulheres seminuas ou com crianças ao colo; encenando atividades do quotidiano e exibindo trajes “típicos”; homens com as suas armas e vestes; preparação de alimentos; retratos que serviriam para enfatizar o “exotismo” natural dos colonizados. Estas fotografias teriam assim um pretexto muito próprio, sublinhavam as diferenças culturais e físicas que existia, entre “nós e eles”, porém, transmitindo subliminarmente a mensagem de que não tinham sido “tocadas” pelo colonialismo. No sentido de afunilar este tema, pretendo introduzir aqui a exposição Botânica de Vasco Araújo4, apresentada no Museu Nacional de Arte Contemporânea, em 2014. Vasco Araújo faz então uso de dois conceitos que analisei neste ensaio – apropriação e arquivo. O artista utiliza imagens de arquivo do tempo colonial e “apropriase” das mesmas, no sentido em que as retira do seu local e as reinterpreta à luz de questões

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“É um dos artistas que mais tem refletido sobre o “exótico”, indagando de forma crítica as suas formas de

inserção e permanência no imaginário nacional” (Emília Tavares, curadora da exposição - 2014).

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como o racismo, o exotismo, e as relações de subordinação que implicaram o processo de colonização nacional. “O artista apresenta em Botânica doze esculturas, constituídas por mesas sobre as quais são apresentadas fotografias emolduradas. O conteúdo das imagens confronta o natural com o cultural: imagens de espécies botânicas dos jardins tropicais do Porto, Coimbra e Lisboa, convivem com fotografias de arquivo produzidas durante o longo período colonial português e internacional” (Tavares 2014, 16). Na génese da exposição existe uma interrogação relativamente à ideia do “exótico” e na forma como o mesmo foi sendo utilizado para desvirtuar e desrespeitar culturas e sociedades indígenas, colaborando assim para a alienação e submissão desses “povos” ao Império Colonial Português. Estas fotos emolduradas estão “enterradas” pela mesa a dentro numa clara alusão a algo que ainda se perpetua no seio da sociedade portuguesa. Vasco Araújo (2014) refere que as fotos em madeira – que foram tiradas nos jardins coloniais tropicais - carregam uma memória pesada e o facto de entrarem pela mesa adentro como se fossem facas, pressupondo a sua posição naquele estado para todo o sempre. Para além dessas, existem então as fotos de arquivo – emolduradas numa espécie de moldura prateada – que estão levemente enterradas e é nesse sentido que a exposição nos transmite de forma subtil, mas muito concreta, a marca de um discurso hegemónico, essencialmente racista e xenófobo que apesar de ser “escondido” está presente na nossa história. Segundo Emília Tavares (2014) Botânica é um trabalho que serve para despoletar confrontos relativamente ao nosso passado não tão distante e as repercussões de uma época colonial extensa; “A questão do racismo e da xenofobia continua presente na sociedade portuguesa, não nos iludamos sobre um passado resolvido e arrumado, sobre a vela máxima da “tolerância” dos portugueses face ao Outro, em geral. Portugal foi um país colonizador, e também praticou atos de crime contra a humanidade nos países que colonizou” (Tavares 2014, 21). Esta exposição levanta as mais variadas questões e, pensando um pouco nela, considero que esta analisa uma das ideias pré-concebidas pelos portugueses de que como colonizadores, seriamos muito mais abertos a novas formas de cultura – algo a que Gilberto Freyre (1958) se refere como Miscigenação e o próprio Lusotropicalismo. Vasco Araújo (2014) pretende com esta exposição expor um “(…) discurso de resiliência para

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com o comodismo artístico e a ignorância do passado, mas, acima de tudo, afirma a possibilidade dum pensamento critico sobre a história colonial, a imigração, os bairros problemáticos, as politicas de integração, o multiculturalismo de fachada ou uma lusofonia economicista recheada de interesses económicos e estratégicos” (ibid. 41). Em jeito de conclusão pretendo então referir que a escolha desta exposição fez todo o sentido devido ao tema da Fotografia Colonial que tinha pensado trabalhar. Muito se discute relativamente à relação entre a arte e a antropologia e de que forma as duas disciplinas se intersetam. Vasco Araújo é um artista que interlaça o melhor dos dois mundos, e que aproveita a sua obra em exposição como forma de transmitir uma mensagem – mensagem essa que é também muito divulgada e discutida no seio da antropologia portuguesa. Muito mais haveria a dizer em relação ao tema e aos próprios conceitos aqui “brevemente” analisados, quem sabe numa pesquisa futura ou até uma tese. Foi um ensaio que me deu bastante apreço em fazer, uma vez que tivemos oportunidade nesta cadeira, de tratar e trabalhar temas que não foram muito debatidos na licenciatura – conseguindo então perceber um pouco mais das relações de proximidade que a antropologia tem com inúmeras matérias, especialmente no caso da arte.

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Bibliografia 

Araújo, Vasco. 2014. Botânica – texto de Emília Tavares Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, Lisboa, 16-41;



Barradas, Carlos. 2009. Poder ver e poder saber. A fotografia nos meandros do colonialismo e pós-colonialismo in Arquivos da Memória, nºs 5-6 (Nova Série), Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa, 72-92;



Campos, Ricardo. 2012. A cultura visual e o olhar antropológico Visualidades, Goiânia v.10 n.1 p. 17-37, jan-jun;



Dias, Jill.1991. Photographic sources for the history of Portuguese - speaking Africa, 1870-1914, History in Africa, 18, 67-92;



Dias, José A. F. 2001. Arte e Antropologia no século XX: Modos de relação, Etnográfica, Vol. V (1), CEAS/Celta, 103:129;



Enwezor, Okwui. 2008. Archive Fever: uses of Document in Contemporary Art, Gottingen: Steidl, New York: International Center of Photography;



Godinho, Paula. 2012. “Alguns Trilhos e Muitas Perplexidades”, in Paula Godinho, coord. (2012) Usos da Memória e Práticas do Património, Lisboa, Colibri, 13-23;



Marcus, George. E.; Meyers, Fred. R., (eds.) .1995. The Traffic in Culture. Refiguring Art and Anthropology, Berkeley, Los Angels, London, University of California Press;



Rosengarten, Ruth. 2014. Do Arquivo à Instalação, no trabalho de Umrao Singh Sher-Gil e do neto Vivan Sundaram in O Império da Visão: Fotografia no Contexto Colonial Português, Lisboa: Edições ’70, 23-35;

 Samain, Etienne. 2012. As peles da fotografia: fenómeno, memória/ arquivo, desejo Visualidades, Goiânia v.10 n.1 p. 151-164, jan-jun; 

Schneider, Arnd. 2006. Appropriation as Practice: Art and Identity in Argentina, Palgrave Macmillan [Introdução e Apendix 1];



Schneider, Arnd.; Wright, Chris. (eds.). 2006. Contemporary Art Anthropology, Oxford, New York, Berg [“Appropriations”, Capítulo 2];



Vicente, Filipa L. 2012. Fotografia e colonialismo: para lá do visível in Miguel Bandeira Jerónimo, ed., O Império colonial em questão (sécs. XIX-XX): poderes, saberes e instituições (Lisboa: Edições 70), 423-453;

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ANEXOS

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Biografia de Vasco Araújo5 “Licenciado em Escultura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (1994-99), Vasco Araújo complementa a sua formação inicial com o Curso Avançado em Artes Plásticas da Maumaus, Escola de Artes Plásticas e Fotografia (1999-2000). Em 2002, realiza a sua primeira exposição individual, na Galeria César (atual Filomena Soares), em Lisboa, participando, desde 1999, em várias exposições coletivas, nacionais e internacionais. Em 2003 é o vencedor do Prémio EDP Novos Artistas. Ao longo do seu percurso, tem integrado diversos programas de residências artísticas, importantes para um desenvolvimento conceptual que, especificamente, tem enformado algumas das obras produzidas nestes contextos: na University of Arts (2007), em Filadélfia, no Baltic Center for Contemporary Art (2007), em Gateshead, Récollets (2005), em Paris, e Core Program (2003-04), em Houston. Nomeado, em 2008, para um dos mais importantes prémios europeus no âmbito das artes visuais, o Artes Mundi, Vasco Araújo é um dos artistas da sua geração com maior presença no circuito internacional, tendo participado nas importantes 13.ª Bienal de Sidney (2002), 51.ª Bienal de Veneza (2005), 1.ª Bienal de Moscovo (2005), 28ª Bienal de S. Paulo (2008). Através de diferentes suportes, escultura, instalação, vídeo, fotografia e performance, Vasco Araújo tem estruturado o seu discurso a partir de uma original desconstrução e reconstrução de códigos comportamentais que refletem sobre a relação do sujeito com o mundo. Amplamente alicerçado na Literatura e na Filosofia, Vasco Araújo expõe criticamente o olhar do outro, a ambiguidade das relações, a fragilidade dos sistemas, a construção do real, a identidade e a sexualidade, a virtude e a moral do dever, a geografia dos afetos e as pulsões do desejo e da paixão. Nas várias obras do artista, os diálogos acontecem através da multiplicação de identidades, a partir de uma só voz, numa intensa viagem interior. Publicado em vários livros e catálogos, o trabalho do artista está representando em várias coleções públicas e privadas, nacionais e internacionais: Centre Pompidou, Musée d’Art Modern (França); Fundação Calouste Gulbenkian (Portugal); Fundación Centro Ordóñez-Falcón de Fotografía – COFF (Espanha); Museo Nacional Reina Sofia, Centro de Arte (Espanha); Fundação de Serralves (Portugal); Museum of Fine Arts Houston (EUA), entre outras.”

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Retirada do sitio do Museu Calouste Gulbenkian (https://gulbenkian.pt/cam/artist/vasco-araujo/)

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“Botânica” – Exposição MNAC. Vasco Araújo (2014) - Fotografias6

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Fotografias retiradas do sitio de Vasco Araújo (http://vascoaraujo.org/Botanica)

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