Antropologia e Estudos Culturais: cultura e identidade na América Latina. Uma aproximação introdutória.

June 27, 2017 | Autor: Selma Baptista | Categoria: Cultural Studies, Anthropology
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Antropologia e Estudos Culturais: cultura e identidade na América Latina. Uma aproximação introdutória. Autora: Selma Baptista Antropóloga, pesquisadora [email protected]

Resumo: este texto apresenta uma breve retrospectiva histórica das relações possíveis entre cultura e identidade na América Latina, destacando a perspectiva comparativa entre o Brasil e alguns países vizinhos. Esta abordagem enfatiza o campo epistemológico, também de maneira comparativa, entre a Antropologia e os Estudos Culturais.

Abstract: this text presents a brief historical review of the possible relations between culture and identity in Latin America in a comparative perspective among Brazil and some other neighbouring countries. This approach emphasizes the epistemological field, also in a comparative way, between Anthropology and Cultural Studies.

Desta narrativa histórica, que é cumulativa, mas não no sentido progressista e/ou evolutivo, interessa-nos destacar um “núcleo” de pensamento, e, acompanhá-lo nesta caminhada: as relações entre cultura e identidade. E, além disso, num espaço territorial e cultural específico: a América Latina, e neste espaço, em especial, o Brasil em perspectiva comparativa, ou seja, em relação aos países vizinhos. Os estudos sobre história, cultura e identidade na América Latina têm passado por vários momentos estimulantes e consecutivos, com enfoques variados. Na realidade, a tradição intelectual latino-americana, além de extensa e ininterrupta, tem aprofundado, cada vez mais, temas caros e jamais abandonados por sua intelectualidade. Poderíamos mesmo pensar esta prática como a de um fotógrafo, cujo “zoom” incessante, trabalhasse a mesma paisagem ou imagem de maneiras infinitas e cada vez mais íntimas, perscrutando dobras e relevos insuspeitados.

2 Este olhar minucioso acompanha, portanto, o tempo histórico, inserindo-se no processo da modernidade que, entre nós, dando-se de formas desiguais de acordo com as particularidades regionais e locais, sempre suscitou questões arrojadas e instigantes.1 Mas esta reflexão também se encontra profundamente enraizada nos debates acerca da constituição dos Estados nacionais, e, portanto, ligada aos dilemas da identidade nacional. 2 Neste sentido, as ressonâncias das vanguardas artísticas históricas dos anos vinte e trinta do século passado, ao mesmo tempo em vários países da América do Sul, continuam a alimentar debates férteis por terem aberto um caminho para lidar com as especificidades de cada país sem deixar de possibilitar inúmeras interlocuções culturais mais amplas, que puseram artistas, intelectuais e acadêmicos em uma espécie de contato crítico até hoje estimulante.3 Assim, quando se trata de tomar tal percurso, que envolve história, identidade e cultura, a perspectiva dos Estudos Culturais latino-americanos oferece um campo estimulante em ambos os sentidos citados anteriormente: em primeiro lugar, sob o ponto de vista do objeto, ou seja, das manifestações culturais em vários campos das atividades sociais, percebendo seus processos de hibridação cultural 4 Em segundo lugar, em função de uma teoria da cultura mais intercultural, mapeando totalidades oriundas da profícua inter-relação entre dados etnográficos e históricos, expandindo e incluindo inter-relações, conduzidas pela perspectiva da interdisciplinaridade. Em terceiro lugar, dissolvendo a dicotomia centro/periferia, que conduziu estas reflexões durante longo tempo, inserindo a cultura latino-americana no âmago das questões contemporâneas do mundo capitalista em geral. Portanto, se o fenômeno das vanguardas artísticas históricas, entre 1916 e 1935, partiu das especificidades culturais de cada país, e, por determinações históricas, acabou por colocar em contato vários artistas e intelectuais da sua época criando um movimento

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Ver a este respeito o artigo de Perry Anderson, “Modernidade e Revolução”, in Novos Estudos CEBRAP, 1986, no. 13, Fevereiro. 2 Ver a este respeito: La Resistencia Cultural. La Nación em el ensayo de las Américas, de Thomas Ward, Editorial Universitária, Universidad Ricardo Palma, Lima, 2004. Ver também: Nação e consciência nacional, de Benedict Anderson, São Paulo, Editora Ática, 1989. 3 Ver a este respeito, o trabalho de síntese de Jorge Schwartz: Vanguardas Latino-americanas. Polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo, Iluminuras:Edusp/FAPESP, 1995. 4 Vamos tratar deste assunto especificamente mais adiante, mas podemos adiantar uma definição: “um processo com múltiplos níveis e modalidades que a dinâmica econômica, social e institucional do poder engendra ao entrar em jogo com a produção e consumo de bens culturais”. Cf . Rita de Grandis, “Processos de Hibridação Cultural”, in Imprevisíveis Américas. Questões de hibridação cultural nas Américas., Porto alegre: Sagra – D.C. Luzzatto.

3 muito maior do que inicialmente havia planejado, de forma semelhante, a perspectiva dos Estudos Culturais hoje, ainda que não seja artística em si mesma, parte de uma idéia geral ( a globalização, os hibridismos, etc...) para aprofundar as especificidades de cada contexto, cada movimento de identidades grupais e/ou particulares. Esta é uma teoria da cultura absolutamente contemporânea, que dialoga com pensadores do mundo todo. Em artigo de 1991, o antropólogo George Marcus já havia apontado a fecundidade destas abordagens que procuram trabalhar neste espaço intervalar da constituição tanto de objetos descritíveis quanto de sujeitos históricos para além das situações mais claras e definidas: “(...) os processos de identidade na modernidade consistem num “espírito sem lar” que não pode ser resolvido de uma vez por todas e de modo coerente ou como uma formação estável quer em teoria quer na própria vida social”.5 Parafraseando Perry Anderson (1986: 02), podemos afirmar que o processo da modernidade como um todo, tanto ao nível das metrópoles quanto das regiões mais afastadas dos grandes centros, delineou uma unidade de des-unidade que “(...) envolvenos a todos num redemoinho perpétuo de desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser parte de um universo em que, como disse Marx, tudo o que é sólido se volatiliza”. Fazer parte deste movimento avassalador procurando compreender as inter-relações da tríade modernismo, modernidade e modernização, continua a ser uma chave estimulante para desencadear reflexões e debates acerca da nossa sensibilidade moderna e contemporânea e, ao mesmo tempo, circunscrita a espacialidades e temporalidades diferenciadas. Trata-se da experiência histórica de cada nação, cada população, cada espaço, cada tempo, e, simultaneamente, da situação pós-colonial que nos une a todos em termos da construção de identidades num mundo globalizado. Na esteira dos Estudos Culturais britânicos e norte-americanos, o campo dos Estudos Culturais na América Latina como um todo, veio desenvolvendo uma perspectiva própria, muito em função das práticas intelectuais comprometidas com uma postura politizada e libertadora. Esta perspectiva, por sua vez, vai de encontro à paixão política que dominou a tradição ensaística latino-americana de maneira geral, a mesma que sempre debateu as grandes questões que nos assolavam por todos os lados. 5

Marcus, George (1991: 201/201) “Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobre a modernidade no final do século XX ao nível mundial”, in Revista de Antropologia. São Paulo, USP, no. 34.

4 Lembrando Raymond Williams, pai fundador dos Estudos Culturais britânicos na década de 50 do século passado, para quem era importante politizar a teoria e teorizar a política levando os estudos sobre cultura para fora da academia e dialogando com outras instâncias de cultura e poder, torna-se fundamental adentrar o campo da crítica cultural latino-americana revisitando nossos mais notáveis expoentes do passado e do presente, divulgando e debatendo nossa tradição ensaística e crítica, mas também, considerando a porosidade das fronteiras intelectuais do presente, nossa diversidade cultural e nossas espacialidades e temporalidades desiguais, como bem lembrou Perry Anderson no texto “Modernidade e Revolução”.6

I. Os Estudos Culturais na América Latina.

Segundo Ana Carolina D´Escosteguy, os Estudos Culturais na América Latina tiveram início nos anos 80, seguindo a tradição de origem, isto é, voltada aos estudos sobre as relações entre cultura e comunicação, tendo como eixo central as questões acerca das configurações emergentes da cultura popular em função do aparecimento das indústrias culturais.7 Esta proposta de uma “teoria cultural” mais politizada passou a questionar a definição hierarquizada das formas e práticas culturais que parte da oposição entre uma cultura “legítima” e outras, cotidianas, que seriam “insignificantes”, isto é, sem significado. Justamente por reconhecer que todas as práticas sociais e culturais são produzidas e produzem significados é que esta proposta entende a cultura como um terreno de práticas determinadas pelas questões de política, poder e dominação. Os principais eixos teóricos deste campo de estudos, portanto, são: as relações entre cultura e ideologia, a ênfase na cultura popular e a construção de identidades culturais contemporâneas mediadas pelos meios de comunicação.

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Dentre tantos ensaístas latino-americanos há que se destacar, numa leitura cronológica, José Martí, Rodó, Sarmiento, José Vasconcelos, Manuel González-Prada,, José Carlos Mariátegui, Octavio Paz, Carlos Fuentes, Jesús Martin-Barbero, Nestor García Canclini, George Yúdice, Beatriz Sarlo, Daniel Mato, Nelly Richards, Elisabeth Jelín, Walter Mignolo, Jean Franco, Otto Maria Carpeaux, Antonio Cândido, Silviano Santiago, Davi Arrigucci Junior, Eduardo F. Coutinho, Alfredo Bosi, Roberto Ventura, Antonio Arnoni Prado, Jorge Schwartz, entre outros, sem mencionar aqui os antropólogos, que constarão em item específico. 7 D´Escosteguy, Ana Carolina (2001) Cartografias dos estudos culturais. Uma versão latino-americana. Belo Horizonte, Editora Autêntica.

5 Como diz a autora mencionada, alguns eixos-nodais permeiam este campo, sendo, portanto, fundamentais nestas discussões: o papel do intelectual na esfera da cultura, o papel da hegemonia e os problemas da recepção.8 Em relação ao papel do intelectual na esfera da cultura, trata-se de refletir sobre o intelectual enquanto uma figura pública, desafiada a tornar seu pensamento um modo de ação, ou seja, “tem suas atitudes relacionadas à opinião pública, à revolução, à problemática da autonomia, à autodeterminação, ao conhecimento das necessidades do seu tempo e dos meios para satisfazê-las (...) à livre comunicação do saber e as necessárias implicações com os meios de divulgação e de comunicação de massa (...)“. 9

Por sua vez o conceito de hegemonia, cujas discussões remontam a Antonio Gramsci, explicita a determinação da liderança cultural de uma classe sobre as outras, revelando sua natureza autoritária de força econômica, social e histórica. 10 Como esclarece Dênis de Moraes, a palavra “hegemonia” deriva do grego eghestai, que significa “conduzir”, “ser guia”, “ser chefe”, “comandar”, “dominar”. Nas suas palavras, “em condições de hegemonia, a burguesia solidariza o Estado com as instituições que zelam pela reprodução dos valores sociais, conformando o que Gramsci chama de Estado ampliado”. (2002:03)11 Por sua vez, a questão da recepção revela os processos através dos quais, na interação entre a produção e o consumo de bens materiais e simbólicos, as pessoas se relacionam consigo mesmas e com os outros, construindo identidades ao nível das experiências cotidianas e concretas. Portanto, a recepção diz respeito às possibilidades através das quais valores, normas, comportamentos, códigos, enfim, a cultura, transmitida pelos meios de comunicação e pelo consumo em geral, constrói aglutinações, grupos de interesse, consolidando-os, ou, provocando rupturas e dissensos. 12

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Segundo Dênis de Moraes, a “hegemonia não é uma construção monolítica, e sim o resultado das mediações de forças entre blocos sociais atuantes em determinado contexto histórico”. Sobre este assunto ver deste autor: Imaginário social e hegemonia cultural- Gramsci e o Brasil, ENECOM, julho de 2009. 9 Cf. Margato, Izabel & Cordeiro Gomes, Renato (2004:08), O Papel do Intelectual Hoje. Belo Horizonte:Editora UFMG. 10 Antonio Gramsci foi um intelectual italiano, cientista político, comunista, anti-fascista, nascido em 1881, e falecido em 1937. Estudioso das relações entre a cultura e o poder do Estado. 11 Ver a coletânea de textos sobre as idéias de Gramsci organizada por Carlos Nelson Coutinho e Marco Aurélio Nogueira: Gramsci e a América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 12 Ver a este respeito: Souza, Mauro Wilton de (1995) Sujeito, o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense.

6 2. A Antropologia e a América Latina

A Antropologia contemporânea dialoga bem de perto com estas questões, a saber: as relações entre cultura e identidade. Nesta perspectiva, a produção que acontece nos mais variados setores da cultura como, por exemplo, no cinema, teatro, concertos, exposições, festas populares, rituais, entre outros, tornam-se espaços e manifestações preferenciais para a observação dos processos de produção, distribuição e consumo cultural. E, através deles, da construção de identidades. São exatamente estes aspectos que necessitam de uma abordagem mais ampla e interdisciplinar, capaz de dialogar com os meios de comunicação, das tecnologias de produção e reprodução, dos mercados culturais e das inúmeras formas de institucionalização da produção cultural subvencionadas pelo mecenato do Estado, pela iniciativa privada e pelas organizações não governamentais. Finalizando esta introdução ao tema, é importante salientar a contribuição específica da Antropologia no tratamento destas questões, considerando seu desenvolvimento histórico e contemporâneo, metropolitano e local. É importante esclarecer que, em termos do movimento que passou a ser chamado de “antropologia pós-moderna”, a partir dos anos oitenta do século passado nos Estados Unidos, não encontramos uma tendência única. Este aspecto é fundamental porque permite compreender melhor a possibilidade de aproximação entre a Antropologia e os Estudos Culturais, especialmente nos países anteriormente colonizados. 13 Esta situação de aproximação, foco do nosso interesse aqui, assenta-se, fundamentalmente, na problematização da relação entre “lugar” e “teoria antropológica”. A Antropologia no seu período “clássico”, isto é, desde seus primórdios até os anos sessenta do século passado, foi construída a partir do deslocamento de pesquisadores em direção a algum lugar diferente/distante das suas culturas de origem.14 Assim, certos

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Esta constatação vale também para outras regiões do mundo: especialmente a África, América Central e do Sul e a Ásia, mas não necessariamente nestes locais como ponto de difusão, e, sim, através de intelectuais provenientes destas regiões e estabelecidos nas grandes metrópoles como Londres, Nova Iorque, Paris, São Paulo, México, Buenos Aires, Caracas etc... Refiro-me a movimentos migratórios intelectuais constituidores de novas redes que interligam o que antes era polarizado como “centro e periferia”. 14 Vamos tomar estes “primórdios” não a partir da curiosidade já existente na antiguidade grega, por exemplo, mas desde o aparecimento de um “projeto” sistemático de busca do conhecimento sobre as

7 “lugares” particulares de pesquisa geraram certas teorias específicas. Por exemplo: África/teorias do conflito, Américas/teorias do parentesco e mitologia, Melanésia/reciprocidade. No mundo pós-colonial, diante da crescente globalização, a relação entre centro e periferia veio se desfazendo crescentemente e aquela relação tradicional entre “lugar” e “teoria antropológica” passou a sofrer restrições na medida em que não mais satisfaz as necessidades colocadas a partir das profundas transformações pelas quais estes universos foram passando ao serem crescentemente cooptados pelo movimento da globalização.15 Tais práticas e teorias, se não forem relativizadas na contemporaneidade, podem gerar equívocos interpretativos ao relacionar de maneira acrítica lugares, condições de comparação e generalização. Soma-se a isso tudo, a questão dos intelectuais pós-coloniais e seus estudos sobre suas próprias sociedades, das tradições de pensamento que foram construindo, e, acima de tudo, a necessidade de considerar que a modernidade entre nós, os chamados “periféricos, ou terceiro-mundistas, ou, em desenvolvimento, ou pós-coloniais”, não pode ser pensada como ruptura radical com o passado, mas como resultado de experiências cambiantes, irregularmente autoconscientes, geral, e com toda sorte de passados.16 Esta maneira de pensar a cultura pós-colonial possui um caráter relativizador muito interessante porque abre possibilidades interpretativas para estas novas configurações sociais e culturais, em contextos emergentes, sem deixar de levar em consideração o passado, suas tradições, favorecendo instigantes releituras. O abandono do substantivo/termo cultura pela forma substantivada plural, culturas, bem como a forma adjetivada cultural, nos leva a um domínio mais estimulante e desafiador no estudo das diferenças, contrastes e comparações entre as culturas. Estas

outras sociedades, ou seja, desde o final do século XVIII em diante. Ver a este respeito referências sobre La Société des Observateurs de l´Homme, que existiu na França de 1799 a 1804. 15 O período de descolonização da África e da Ásia foi e ainda é um processo amplo e complexo. No entanto, em geral, a primeira etapa tem sido datada entre 1850 e 1950. Na América Latina, os processos independentistas ocorreram antes, mas o processo de “descolonização” foi, também, longo e complexo. 16 Acerca do papel dos intelectuais nos ambientes pós-coloniais, já há uma literatura muito instigante: ver, por exemplo, Arjun Appadurai, Homi Bhabha, Edward Said, Stuart Hall, Daniel Mato, Jesus MartinBarbero, Nestor García Canclini, Roberto Schwartz, Silviano Santiago, Antonio Cândido, Raúl Antelo, George Yúdice, Zilá Bernd, Eneida Maria de Souza, entre tantos outros.

8 mudanças, por sua vez, nos aproximam da questão da demarcação de fronteiras simbólicas e/ou culturais e, portanto, das identidades. 17 Desta maneira, a proposta de uma Antropologia como crítica cultural, distancia-se do simples interesse pela descrição de “outras” culturas e exerce a etnografia, ou seja, o ato de escrever sobre “outros culturais”, como uma experimentação diante das incontáveis possibilidades expressivas dispersas em variados contextos. 18 Assim, Antropologia e os Estudos Culturais encontram, no mundo contemporâneo e pós-colonial, crescentes possibilidades de diálogo interdisciplinar.

3. Mestiçagem e hibridismo cultural A origem destes conceitos é a situação colonial, ou, melhor dizendo, dos desenvolvimentos do processo de descolonização. Mundos e populações em confrontos de poder e violência, e as decorrências deste conflito inicial ao longo do tempo. Escrevendo sobre o processo de colonização no Caribe, Peter Hulme diz que “todo gesto de descobrimento é, ao mesmo tempo, uma estratégia de ocultamento” (1986: xiii, tradução da autora). 19 Sem dúvida, estes processos de silenciamento e ocultação foram percebidos e pensados através de vários conceitos ao longo da história: mestiçagem, hibridismo, transculturação, totalidade contraditória, heterogeneidade multitemporalidade, culturas em errância, em exílio, entre outros, com o objetivo de caracterizar as culturas resultantes destes processos de colonização/descolonização ao redor do mundo. E todos estes conceitos partem do pressuposto de que estes atos concretos e discursivos que inauguram os processos de colonização inauguram, também, a justaposição conflituosa entre conquistadores e conquistados. Estas profundas clivagens entre mundos tão diferentes gestaram inúmeras alternativas que não se resumiram apenas em desaparecimento, e/ou, submissão dos conquistados. Nas palavras de Serge Gruzinski, “(...) se nem todas as mestiçagens nascem necessariamente de uma conquista, as desencadeadas pela expansão colonial na 17

Sobre o estudo das Antropologias nacionais, ver: Roberto Cardoso de Oliveira, Guillermo Raul Rúben, Mariza Peirano, George Zarur, Federico Neiburg, Fernanda Peixoto, Heloísa Pontes, Lília Schwarz, Selma Baptista, entre outros. 18 Ver a este respeito: ( 1999) Marcus, George & Fischer, Michael M. Anthropology as Cultural Critique. Na Experimental Moment in the Human Sciences. Chicago: University of Chicago Press. O sentido de “experimentação” a que me refiro aqui diz respeito às formas de representação com as quais o antropólogo se envolve para escrever/ narrar sua própria experiência com estes “outros” culturais, a partir da construção de distanciamentos e aproximações com estas “realidades” que pesquisa. 19 Hulme, Peter (1986) Colonial Encounters. London & New York: Methuen.

9 América iniciam-se invariavelmente sobre os escombros de uma derrota”. (2001:64).20 No entanto, sabemos que “derrota” passou a ser um termo crescentemente relativizado, e estes dois conceitos, mestiçagem e hibridismo, olhados ao longo do tempo dão-nos a perspectiva necessária para perceber que não possuem o mesmo significado. Este trabalho de Serge Gruzinski traz à tona um esclarecimento necessário: que diferenças podem ser atribuídas a estes dois conceitos aparentemente tão próximos como os de mestiçagem e hibridismo? O conceito de mestiçagem serviu para falar das misturas que aconteceram em terras americanas no século XVI entre seres humanos, representações e formas de vida.21 Portanto, a miscigenação que aconteceu entre as “raças” jamais foi apenas “biológica”. Quanto ao termo hibridação, ele servirá para descrever as misturas que passaram a acontecer nestes grupos humanos que se desenvolveram a partir deste primeiro choque, dentro das condições históricas de cada grupo humano. Misturas de corpos e almas. Portanto, jamais deixaram de ocorrer desde então. Mas que diferenças há, então, entre estes dois termos? Como esclarece Fantini (2004:173), ambos dizem respeito tanto a processos objetivos, logo observáveis de várias maneiras, ou seja, nos corpos, nos costumes, nas manifestações de arte e cultura, na linguagem, mas também subjetivamente, nas formas de consciência que os atores sociais foram tendo a este respeito. Portanto, podemos falar em “hibridismos” no sentido dos diferentes graus de conscientização que foram emergindo ao longo da história, numa espécie de “reavaliação” do passado. A este processo podemos também denominar teorias alternativas da cultura. Vamos percorrer as possibilidades que o conceito de hibridismo nos oferece, conforme formulado por alguns teóricos dos Estudos Culturais, indicando os diálogos possíveis com o campo da Antropologia na América Latina. Este recorte que vamos fazer neste momento deixará de lado, por enquanto, a longa tradição do ensaísmo crítico latinoamericano e mesmo o fenômeno das vanguardas artísticas históricas: vamos mapear as discussões que vieram acontecendo a partir do aparecimento do campo dos Estudos Culturais na América Latina, ou seja, a partir de meados dos anos 70 do século XX para

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Gruzinski, Serge (2001) O Pensamento mestiço. São Paulo, Co. das Letras. Fantini, Marli ( 2004) “Águas turvas, identidades quebradas. Hibridismo, heterogeneidade, mestiçagem & outras misturas”, in Margens da cultura. Mestiçagem, Hibridismo & outras misturas. São Paulo: Boitempo. 21

10 cá. Neste sentido, parece oportuno começar apresentando, em linhas gerais, as idéias de Jesús Martín-Barbero.22 O eixo principal do seu pensamento é a relação entre cultura e comunicação: desde 1995 investiga os novos regimes da oralidade e os aspectos visuais da mídia eletrônica, tais como as telenovelas, por exemplo, enquanto expressão de identidades e matrizes históricas. São também importantes suas pesquisas sobre a indústria cultural e a cidade, a comunicação de massas, os modelos de recepção na América Latina, os processos de negociação das identidades através do consumo cultural. Um aspecto importante deste trabalho é sua compreensão da cultura popular como sendo independente e autônoma em relação à cultura de massa, com valores próprios. Neste sentido, toda a produção midiática, ou seja, aqueles conteúdos gerados pela televisão, rádio, cinema, internet, acabam sendo re-utilizados nas rotinas e nos contextos familiares, comunitários e nacionais. Portanto na sua análise, o discurso narrativo dos meios de produção da cultura de massa adapta-se às tradições das narrativas populares. Daí a importância das telenovelas enquanto formato televisivo contemporâneo: os meios podem ser massivos, mas a estrutura narrativa e o conteúdo são populares. São os valores da cultura popular que se mantém rearticulando-se. 23 Outro autor importante nesta área dos Estudos Culturais latino-americanos é Néstor García-Canclini, antropólogo argentino que nasceu em La Plata, em 1939. Seus principais assuntos são a pós-modernidade e a cultura, na perspectiva latino-americana. Desenvolveu uma ampla discussão sobre os “gêneros híbridos”, que são os fenômenos de instersecção entre o visual e o literário, o culto e o popular. Por outro lado, dando continuidade à discussão gramsciana de “hegemonia”, vem trabalhando a questão das culturas hegemônicas como fruto das novas tecnologias comunicacionais, que reordenam o público e o privado dentro do espaço urbano, desterritorializando os processos simbólicos. Exemplo deste fenômeno contemporâneo são os grupos musicais que fundem as informações e determinações do modelo de produção global com os ritmos e tradições locais: as músicas étnicas, globalizadas, como os ritmos caribenhos, são um exemplo disso, mas não apenas. Este é um fenômeno que abrange musicalidades 22

Nascido em 1937, na Espanha, vive na Colômbia desde 1963. Professor no México, é autor do livro Dos meios às mediações, um dos seus mais conhecidos trabalhos na área dos Estudos Culturais, traduzido no Brasil. 23 Seus principais trabalhos: Comunicación masiva: discurso y poder (Quito: Epoca, 1978), Communication, Culture and Hegemony (Londres: Sage, 1993), Dos meios às mediações (Rio de Janeiro: UFRJ, 1997) e Los ejercicios del ver. Hegemonía audiovisual y ficción televisiva (com Germán Rey) (Barcelona: Gedisa, 2000)

11 de vários países ao redor do mundo.24 Seus estudos sobre o entrelaçamento entre os meios massivos de comunicação e as culturas populares veio determinar o que ele chamou de “culturas híbridas” e, para abordá-las surge a necessidade de uma interdisciplinaridade que envolve a antropologia, a sociologia da arte e o estudo das comunicações. Suas indagações procedem de um recorte muito estimulante contemporaneamente, que é a vida nas grandes metrópoles. Os centros urbanos, com sua dinâmica intensa em termos das trocas simbólicas, econômicas e políticas, apresenta-se como o locus privilegiado para a discussão dos fenômenos da recepção, explicitando o que ele chama de “heterogeneidade multitemporal”, ou seja, diferentes tempos históricos que vieram desde muito tempo coexistindo, e que são presentificados de forma desarticulada. No artigo “La modernidad después de la posmodernidad” (1997) o autor retoma o tema emblemático discutido por inúmeros intelectuais ao longo de todo o século XX: “Por que nossos países cumprem mal e tardiamente o modelo de modernização metropolitano?” ( Beluzzo, 1990:209). Esta pregunta crucial envolve considerações que o autor não respondeu em apenas um ou outro trabalho que vem editando, mas tornouse um tema aprofundado ao longo da sua carreira. Na realidade as variadas e possíveis respostas a esta questão fundamental foram construindo uma recusa de admitir, sem problematizar, a tradicional concepção de “atraso” das nossas modernidades e acabaram por desenvolver perspectivas de valorização da vitalidade criativa do nosso continente. Assim é que, em Culturas Híbridas, por exemplo, ele finalmente dá forma a todas estas indagações mostrando como, diante de um processo de modernização lento e desigual, em termos políticos e econômicos, nossas formas culturais híbridas foram sempre exuberantes e, até mesmo, pós-modernas, no sentido artístico e filosófico. Isso porque, geradas por profundas contradições, acabaram por construir uma “cultura pós-moderna, antes da modernidade”: pelos apectos fragmentários das manifestações artísticas e culturais, pelas identidades fluidas, descentralizadas, enfim, por nossas culturas híbridas. Dentro desta sua teoria da cultura latino-americana destacamos aqui suas considerações acerca das culturas populares. Como ele mesmo coloca: “ (...) é preciso perguntar-se

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Seus principais trabalhos publicados no Brasil: Consumidores e cidadãos. RJ, Ed. UFRJ, 2001. Culturas Híbridas, São Paulo, Edusp, 1997. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo, Iluminuras, 2008. A globalização imaginada, São Paulo:Iluminuras, 2003.

12 agora em que sentido e com quais fins os setores populares aderem à modernidade, buscam-na e misturam-na a suas tradições” (1997:206). No entanto, não basta olhar o presente: segundo Canclini, é preciso “desfazer” as operações científicas e políticas que vieram constituindo este campo do popular ao longo do tempo (idem, ibidem). Desta maneira, ele destaca as tres correntes de pensamento que protagonizam esta “teatralização”, enquanto algo construído: o folclore, as indústrias culturais e o populismo político. Este caráter construido do popular é o ponto forte da sua teoria, como podemos perceber na seguinte afirmação: “Na América Latina, o popular não é o mesmo quando é posto em cena pelos folcloristas e antropólogos para os museus ( a partir dos anos 20 e 30), pelos comunicólogos para os meios massivos ( desde os anos 50), e pelos sociólogos políticos para o Estado ou para os partidos e movimentos de oposição (desde os anos 70).”(op.cit:207) Suas idéias vão de encontro com as de Jesús Martín-Barbero, especialmente na questão da teoria da reprodução e da concepção neogramsciana da hegemonia, destacando, fundamentalmente, o eixo principal que condiciona estas divisões interdisciplinares: a oposição entre tradição e modernidade. Mostrando como a noção de “povo” tem início com o processo de construção das nacionalidades, entre o final do século XVIII e início do século XIX, o autor destaca o processo que veio institucionalizar o dispositivo complexo, também definido por Martín-Barbero como aquele que inclui o “povo” de forma abstrata e o exclui de forma concreta.25 Neste sentido, a ideia de folclore/povo vai estar ligada aos processos de legitimação da burguesia, enquanto um lugar de desarticulação entre o político e o cotidiano, entre a cultura e a vida: o lugar dos costumes populares, bom para ser estudado enquanto tradição, passado, espaço do inculto, das permanências, do folclore, enfim. Daí decorrem as políticas da preservação, do resgate, do patrimônio, da noção de identidade como um dado histórico essencialista. No entanto, como Canclini argumenta, esta curiosa exaltação da cultura local, do incentivo às políticas de preservação e resgate, acabam por atribuir à cultura popular

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Cita a edição em espanhol da obra De los Médios a las Mediaciones, de Martín-Barbero, 1987:15-16.

13 uma autonomia imaginada, surpimindo a possibilidade de explicar o popular pelas interações que tem com a nova cultura hegemônica.(1997:210). Finalmente, em termos das possíveis abordagens do fenômeno do hibridismo cultural, parece oportuno fechar este texto com uma concepção bem atual desta relação entre cultura popular e meios de comunicação, desenvolvida por George Yúdice em livro recentemente publicado no Brasil.26 Partindo da idéia central de que o papel da cultura expandiu-se como nunca para as esferas política e econômica, este autor propõe que vejamos a cultura como recurso e não unicamente como produto. O que significa esta sua percepção da cultura? A cultura como recurso excede em muito a concepção de cultura como produto especialmente quando esta é pensada unicamente como sendo produto/produtora de vínculos consumidores, comerciais, destruidora das identidades locais, nacionais, “autênticas”. A realidade é que estes domínios (o sócio-cultural e o econômico) estão tão absolutamente interligados que se torna muito complicado lidar com eles sem esbarrar num e noutro. Como respeitar as dinâmicas, as estratégias de sobrevivência e de identidade sem levar em conta o mercado? Outro ponto a ser levantado é que o que se “troca” neste mercado cultural não são apenas produtos, mas fundamentalmente, representações, e, neste sentido, o que quer que seja a cidadania hoje, deve ser pensada a partir de várias determinações, gerando um campo bastante complexo. Neste sentido, a cultura como recurso seria exatamente este processo de construção das identidades através deste amplo processo de troca que se dá, exatamente, no mercado dos bens simbólicos. Sem pretender aprofundar a questão agora, podemos dizer que toda e qualquer reflexão sobre a cultura, ou, a ação cultural em contextos urbanos, esbarra em duas questões fundamentais, principalmente em termos das políticas culturais: o registro estético, ou seja, as qualidades expressivas dos produtos culturais, e, também, o registro antropológico27, que diz respeito às ligações que estas formas expressivas possuem com as formas concretas de existência dos grupos que as manifestam. Estes dois registros apontam simultaneamente: para a criatividade das formas populares ( registro estético), assim como para suas ligações com as formas concretas de vida dos grupos ( registro antropológico), e, acima de tudo, em situações públicas,

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Yúdice, G. (2006) A conveniência da cultura. Usos da cultura na era global. Belo Horizonte, editora UFMG. 27 Cf. Miller, T. & Yúdice, G. Cultural Policy, London, Sage Publications, 2002.

14 nas quais não se lida unicamente com critérios apenas ‘criativos”, ou, apenas “antropológicos”, ou apenas os dois. Trata-se de perceber as condições de comunicabilidade que dão visibilidade a estas manifestações, portanto, de um mercado no qual vem participando cada vez mais, além das iniciativas privadas e do mecenato do Estado.

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