Anuncios e Enunciados: a emergência do americanismo no Brasil

July 25, 2017 | Autor: M. Alexandre Arraes | Categoria: History, Cultural History, Media and Cultural Studies
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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 ANÚNCIOS E ENUNCIADOS: A EMERGÊNCIA DO AMERICANISMO NO BRASIL

Marcos Alexandre Arraes1

RESUMO

Este artigo traça uma breve história da consolidação do modo de vida estadunidense no Brasil através da atuação do Office Of The Coordinator Of Inter-American Affairs. Aqui procurarei explicar o que se entende por americanismo e que mecanismos discursivos o construíram como paradigma no Brasil. Como este é um campo já bastante estudado, procurarei revisitar algumas obras clássicas e fundamentais sobre o tema para construir minha análise a partir de um debate historiográfico e da análise de jornais, revistas e outros meios de comunicação de massa que divulgavam o americanismo no Brasil na primeira metade do século XX. Palavras-chave: Americanismo, American way of life, Construção Discursiva

ABSTRACT This article traces one brief history of the consolidation of the American Way of Life in Brazil through the performance of the Office Of The Coordinator Of Inter-American Affairs. Here I will try to explain what is Americanism and which discursive mechanisms built it as a paradigm in Brazil. As this is a field already sufficiently studied, I will revisit preview studies on the subject to construct my analysis from a historiographic debate and also from the analysis of some magazines and other mass medias that used to broadcast the Americanism in Brazil in the first half of 20th century. Keywords: Americanism, American way of life, Discursive Construction

I.

Para uma breve História do Americanismo

Observando a sociedade contemporânea, podemos bem aquilatar o quanto representa em seus aspectos culturais a presença massiva no vocabulário, nos padrões de comportamento e nos códigos de conduta, dos modelos provenientes da sociedade e da cultura dos Estados Unidos, com destaque para a cultura de massa2. Ao procurar entender este cenário atual, recuei algumas décadas na história e encontrei, no período imediatamente anterior à deflagração da Segunda Guerra Mundial, um grande embate de ideologias: de um lado, as potências do Eixo e o seu regime nacional1

Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 socialista; e, de outro, os Estados Unidos da América em busca de novos mercados para seu capitalismo industrial em expansão. Nesse contexto, a América Latina aparece como importante mercado consumidor dos produtos manufaturados europeus e estadunidenses e, também, como grande reserva de matérias-primas para alimentar as indústrias de base das nações em processo de industrialização, o que a levou ao “fogo cruzado” das disputas ideológicas, econômicas e culturais. Dentro desse clima conflituoso, a principal arma das potências do Eixo - em especial, a Alemanha - foi o Comércio de Compensação, travado com alguns países latinoamericanos, especialmente o Brasil. Dessa forma, a Alemanha conseguiu estabelecer influência nestes países com a troca de produtos sem a intermediação de moedas fortes, escassas em ambos os lados da transação, além de difundir os valores do nacionalsocialismo pela via aberta com o comércio, uma vez que chegavam, por intermédio desses acordos, livros, filmes e outros produtos que continham, em si, tais valores arraigados.3 Os Estados Unidos, que já representavam o maior expoente do ideal liberal nas Américas, sabendo que a América do Sul constituía parte importante do plano de expansão nazista e temendo não só perder sua influência nessa região mas, também, a possibilidade de consolidação de um sítio de colonização alemã próxima ao seu território, passaram a rever a sua política externa em relação às nações latino-americanas. Desde meados do século XIX a América Latina faz parte dos interesses estadunidenses, e diversas foram as atitudes derivadas desses interesses para com os vizinhos mais ao Sul, a maioria delas, de uma forma mais ou menos explícita, baseadas na doutrina do Destino Manifesto. Segundo essa doutrina, a expansão dos EUA por todo o continente americano, além de óbvia, era inevitável, era um dever determinado por Deus àquele povo, que deveria seguir sua expansão com base nos princípios da democracia e liberdade4. Foi com base nesse pensamento que se deu a expansão das Treze Colônias para o Oeste, então visto como o wilderness5; foi também segundo esse princípio que, ainda no século XIX, foi formulada a Doutrina Monroe, “a América para os americanos”, que pregava que cabia aos Estados Unidos o dever de defender a integridade das nações do continente americano diante de ameaças de outras potências, especialmente as europeias. Já no século XX, a política do big stick, implantada no governo de Theodore Roosevelt, ainda possuía certos aspectos do Destino Manifesto, ainda que não explícitos. Essa política não poupava o uso da força para garantir que seus interesses políticos e econômicos no continente fossem mantidos. Contudo, esses métodos não mais

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 funcionavam dentro do jogo de disputas vividos nesse momento. Era preciso criar mecanismos capazes de conquista pela simpatia em vez de pela força, uma vez que os EUA não estavam mais sozinhos na corrida pelos mercados e pela influência na América Latina. Assim, o recém-eleito Franklin D. Roosevelt anunciou a Política da Boa Vizinhança, que buscaria, através da conquista de “mentes e corações”, ganhar a simpatia das nações americanas a partir da ideia de amizade e irmandade entre os países vizinhos; o Brasil, nação de destaque ao sul do continente, mereceria atenção especial. Nesse contexto, alguns setores do governo Vargas, especialmente no âmbito das forças armadas, mostravam-se contra o paradigma estadunidense e seu mundo de abundância e de apologia ao prazer pelo consumo. Para os militares das forças armadas, defensores do autocontrole e da disciplina, o american way of life talvez representasse uma atitude indisciplinada e evasiva demais. Ao mesmo tempo, as vitórias alemãs nos campos de batalha europeus, aliadas à propaganda germanista que chegava ao Brasil através da radiodifusão, principalmente através das ondas da Rádio Berlim, compunham um imaginário que deveria ser seguido. Agregando mais força a esses setores, havia ainda, em algumas regiões do Brasil e de forma mais acentuada no Sul do país, uma forte presença de cidadãos alemães e italianos reunidos em colônias e vivendo dentro dos costumes de seu país de origem. Além disso, Getúlio Vargas, então presidente do Brasil, soube tirar proveito da situação internacional e lançou o país numa política externa ambígua, ora direcionada para as negociações com os EUA, ora para um relacionamento próximo às potências do Eixo, em especial com a Alemanha. Essa “equidistância pragmática” adotada pelo governo Vargas chegou a garantir, ainda antes da deflagração do conflito europeu, o treinamento de parte do exército brasileiro por tropas alemãs e, pelo lado estadunidense, vantagens econômicas para subsidiar seus planos de industrialização. Como exemplo do seu “jogo duplo”, dias após proferir um discurso com mensagens dúbias em junho de 1940, exaltando uma “marcha a um futuro diverso” e o fim dos “liberalismos imprevidentes”, tido por muitos como um discurso em prol do germanismo, Vargas demonstrou simpatia pela política pan-americana proposta pelos EUA. Em tais circunstâncias, a aproximação lhe garantiria bons resultados comerciais, tais como a facilitação da compra do café brasileiro pelos “bons vizinhos do Norte”.6 Preparando sua entrada na guerra europeia, os EUA perceberam que atitudes como as do presidente brasileiro e também as de parte do oficialato do exército do país vizinho constituíam um perigo mais que iminente, com a agravante de que cidadãos e seus descendentes daqueles países contra os quais guerreavam por posições estratégicas, viviam no território brasileiro. Num documento datado de 23 de abril de 1940, do Departamento para

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 Assuntos Militares da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, são tecidos comentários sobre a situação militar na América do Sul, sua geografia e a possibilidade de invasões estrangeiras. Nesse documento, merece destaque a região Sul do Brasil: The geographical position of the east coast south american countries (sic) practically eliminates war probabilities with countries of other continents, except for the narrow strip (Corrientes Missiones Corridor). Argentina is physically shut off from her (sic) strong neighbor and potential enemy, Brazil, by the buffer states Bolivia, Paraguay and Uruguay. Brazil is subject to invasion through these same areas. (…) A probable theater of war – the Corrientes Missiones Corridor – and its adjacent Brazilian state of R. G. do Sul has a fairly healthful climate but in many places is densely wooded and marshy, particularly along the rivers and during the rainy season. In this area, the Province of Corrientes is the most likely sector from which to launch an 7 invasion of Brazil.

Esse documento demonstra duas preocupações estadunidenses: a primeira era fazer um mapeamento do território da América do Sul para traçar possíveis planos de defesa/invasão, a serem postos em ação caso necessário; e, em segundo lugar, a necessidade de atenção especial que demandava a região ao sul do Brasil. Tais preocupações advinham, entre outros fatores, da existência de uma significativa população germânica ali residente, ambas comentadas em outros documentos da mesma época. Urgia, portanto, encontrar solução rápida para o impasse. Dessa forma, procuraram coordenar esforços de vários setores governamentais para planejar uma eficiente política externa específica para os países latino-americanos, em especial o Brasil, visando a minimizar ou mesmo liquidar a influência germânica sobre esses países. Essa conjuntura fez crescer as atenções dadas à política externa. Roosevelt, então buscando sua segunda reeleição, recebe proposta de criação de uma agência destinada a preparar políticas para a América Latina, centrando foco na questão das relações culturais. A proposta partiu de um grupo chefiado por Nelson Aldrich Rockfeller, herdeiro do multimilionário John D. Rockfeller Jr., empresário estadunidense dono de companhias que atuavam no mercado latino-americano, entre elas a Standard Oil Company. Entusiasmado com as ideias desse grupo e também interessado em contar com o grande poder financeiro de Nelson Rockfeller, Roosevelt tomou todas as providências para que em 16 de agosto de 1940 fosse criado o Office for Coordination of Commercial and Cultural Relations between the American Republics. Em pouco tempo Rockfeller ganha espaço e poder e, diante do agravamento da situação europeia e do avanço das tropas nazistas, passa a deter ainda mais autoridade e destaque na agência em 30 de julho de 1941, quando é nomeado para diretor, passando, então, o órgão a se chamar Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), ou Escritório do Coordenador dos Assuntos Interamericanos.

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 O referido Escritório, ligado ao Departamento de Estado daquele país, foi transformado no órgão--chefe da estruturação e efetivação da política externa estadunidense para as Américas; abrangendo diversos setores governamentais e contando inclusive com a participação das embaixadas, visava, principalmente, a combater a influência do Eixo no continente e consolidar os Estados Unidos como potência hegemônica no contexto americano. Num primeiro momento, Nelson esperava que, com ajuda financeira, pudesse manter politicamente estável a região ao sul do Rio Grande. Sem dúvida, ele estava envolvido na luta contra a expansão do nazismo, mas acima de tudo prevalecia a visão política do empresário que queria afastar da América Latina os produtos 8 alemães que concorriam com os americanos.

Com o passar dos anos e o crescente perigo de expansão do germanismo diante das vitórias do Eixo nos campos de batalha europeus e do bem embasado projeto propagandístico alemão, a via do mercado para o OCIAA passou a funcionar não apenas como objetivo final, mas também como meio de construir o paradigma estadunidense nas Américas. A cultura de consumo, aliada a outros fatores no campo das relações culturais, emerge como eficiente fator discursivo: era preciso vender não apenas os produtos estadunidenses, mas também o american way of life. Cultura e propaganda passaram a ser consideradas materiais tão estratégicos como qualquer outro produto. A estabilidade política e social seria a melhor defesa 9 de todo o continente. O combate ao germanismo deveria ser feito via mercado.

Para atuar com eficiência nesse setor, o OCIAA contava com uma estrutura bem organizada, com departamentos e setores divididos com funções específicas, cada qual atuando de forma semi-independente, devendo satisfação apenas à sua chefia imediata e ao coordenador geral, ou seja, Nelson. A espinha dorsal da organização era o Departamento de Comunicações, no qual estavam inseridas as divisões de Imprensa e Publicações, a de Rádio, a de Cinema e a de Informação e Propaganda. Esse departamento possuía objetivos bem particulares: primeiramente, construir uma mensagem positiva sobre os EUA nos países da América Latina, especialmente o Brasil, contando com a colaboração de empresas e setores governamentais desses países; depois, combater a influência do Eixo ao sul do Rio Grande; e, por fim, criar uma imagem positiva desses países e de seu povo nos Estados Unidos para que, entre outras razões, a ideia de amizade e boa vizinhança fizessem sentido àqueles que visitavam os EUA. Faziam ainda parte da estrutura do Office o Departamento de Saúde, encarregado de prestar assistência a problemas ligados à saúde pública e à nutrição nos países vizinhos por meio de programas especiais e com envios de missões de profissionais da área aos locais afetados; e o Departamento Comercial/Financeiro, que lidava com as questões de exportação, transporte, finanças e desenvolvimento.10 Dentro dessas divisões, cabe destacar o papel desenvolvido pelos setores de Rádio e Cinema. O primeiro destes setores ficou sob a chefia de Don Francisco, um importante 5

Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 profissional da propaganda nos Estados Unidos, que assim definia a missão do setor que estava sob seu comando: O rádio ajuda a criar uma opinião pública dinâmica no hemisfério ocidental, apoiando de forma contínua o esforço de guerra das repúblicas americanas. A opinião pública, uma vez informada, não aceitará nem tolerará a propaganda dos 11 países do Eixo que atinge o continente .

Já o setor de cinema ficou a cargo do amigo pessoal de Rockfeller, John Hay Whitney, ou Jock Whitney, como era chamado. Whitney era um conhecido empresário do ramo cinematográfico, sua escolha não se deu por acaso: deveu-se à sua parceria com Rockfeller a conquista de importantes artistas para a causa da Boa Vizinhança, como Walt Disney e Carmen Miranda. A esse setor coube o papel de consolidar o cinema como um dos principais meios de divulgação do american way of life, pelo intermédio de uma poderosa estrutura discursiva. Além de seu composto organizacional, um dado importante para o Escritório de Rockfeller seria a conquista do apoio interno às suas políticas. Boa parte da população estadunidense desconhecia os seus “vizinhos de baixo” ou os associava a imagens negativas divulgadas pelo cinema de Hollywood, como a bandidos e fugitivos em filmes de far west, sujeitos ingênuos e manipuláveis que só entravam na trama para fazer o público rir. O OCIAA precisaria, portanto, trabalhar em duas frentes: na criação de uma imagem positiva dos latino-americanos no imaginário do povo estadunidense; e na divulgação dos valores de base do american way of life, a serem construídos para os vizinhos do sul. Daí a importância do Departamento de Comunicação, como já foi apontado anteriormente. E é exatamente com esse objetivo que o Office de Rockfeller irá, no inicio dos anos 40, incrementar o seu trabalho de disseminação de aspectos da cultura anglófila das Américas no Brasil. Não que antes não houvesse aqui uma forte presença econômica e, em certo sentido, até mesmo a política dos Estados Unidos. A modernidade e os paradigmas que eram importados da Europa passaram por certo questionamento após a guerra de 191418, pois o velho continente ficou associado a uma incapacidade de resolver pacificamente seus problemas internos, tendo sido necessário o auxílio estadunidense para apaziguar os ânimos. Os Estados Unidos seriam crescentemente associados a uma vanguarda, ao menos no campo militar e, posteriormente, no campo econômico12. Contudo, esses padrões não se faziam sentir no cotidiano dos habitantes das cidades e na vida das pessoas. É com o início da difusão dos valores culturais estadunidenses - através do cinema, da música, do rádio, de propagandas em revistas de grande circulação - que o imperialismo daquele país fez-se sentir nos padrões de comportamento, no pensamento artístico e científico e nas relações entre as pessoas por todas as grandes cidades brasileiras. Daí, o papel fundamental da máquina de produção discursiva de Rockfeller. 6

Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 Foi neste contexto que os brasileiros aprenderam a substituir os sucos de frutas tropicais onipresentes à mesa por uma bebida de gosto estranho e artificial chamada Coca-Cola. Começaram também a trocar sorvetes feitos em pequenas sorveterias por um sucedâneo industrial chamado Kibon, produzido por uma companhia que se deslocara às pressas da Ásia, por efeito da guerra. Aprenderam a mascar uma goma elástica chamada chiclets e incorporaram novas palavras que foram integradas à sua língua escrita. Passaram a ouvir o fox-trot, o jazz, e o boogiewoogie, entre outros ritmos, e assistiam agora a muito mais filmes produzidos em Hollywood. Passaram a voar nas asas da PanAmerican, deixando para traz os 13 “aeroplanos” da Lati e da Condor.

Todas essas mudanças acontecem segundo os rastros de determinado conjunto de enunciados discursivos que a historiografia convencionou chamar de americanismo. Gramsci, o primeiro pensador de que temos notícia a trabalhar com esse conceito, entende o americanismo enquanto uma ideia intimamente relacionada ao modo de produção fordista, sendo seu equivalente e elemento necessário no campo cultural. O americanismo seria a forma ideológica e cultural necessárias para constituição de um modo de vida e de um tipo de trabalhador. Nesse sentido o americanismo é condição sine qua non para que haja o desenvolvimento da forma de produção fordista e vice e versa. O americanismo não surge espontaneamente na “mentalidade” social. A sua origem está estritamente ligada à base material da sociedade. A forma de acumulação e produção capitalista produziu um processo sociometabólico que nasce na fábrica. Em outras palavras, a forma de produção fordista determina e exige a formação de uma mentalidade e um modo de vida, que gera a existência 14 deste modelo de produção, sendo uma relação mutua.

É neste sentido que a atuação do Office de Rockfeller encaixa-se nos interesses econômico-industriais do seu país de origem. Segundo Tota, é a partir da atuação do OCIAA que se estrutura efetivamente “o americanismo, entendido aqui como uma ideologia programática, em que o sufixo – ismo tinha se transformado num poderoso armamento intencional, com o claro objetivo de suplantar outros – ismos, autóctones ou não”.15 E é, então, nesse momento que os brasileiros começam a familiarizarem-se com o discurso americanista e o estilo de vida cotidiano proposto por ele: o american way of life. No bojo desse discurso estavam presentes diversos elementos valorativos, tais como o ideal de democracia, o progresso, o tradicionalismo (parece contraditório, mas logo ver-se-á que não), o trabalho, a liberdade, que seriam bombardeados por diferentes instrumentos de produção discursiva. Cada uma dessas ideias estavam conectadas e imbricadas umas às outras, de forma a construir uma ideologia bem acabada e pronta a ser exportada, sendo sua recepção e apropriação16 variáveis de acordo com a realidade vigente no país, particularmente interessando-nos o caso brasileiro. Vê-se como esses enunciados se apresentam em artigo de maio de 1942, publicado no Diário de Pernambuco, onde Othon Bezerra de Mello17 defende que o Brasil precisa continuar com o alinhamento aos EUA não só durante a guerra, mas principalmente após esta, espelhando-se naquele país que muito tinha a ensinar sobre a civilização e o progresso.

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 Não é somente na fase difícil que o mundo atravessa que a orientação da nossa política internacional deve ser de uma maior colaboração com os Estados Unidos. Passada a guerra, restabelecida a paz, dedicando-se o homem às lutas pacíficas do trabalho que levam o conforto e o bem estar a todos os lares, fazendo a felicidade dos povos, essa política deve ser intensificada, podendo chegar talvez a uma aliança, com o que somente teríamos nós a lucrar. (...) [aos Estados Unidos] nos devemos associar, para colher-lhes os frutos optimos, colaborando com um grande povo, com uma grande nação que, pela capacidade de seus filhos e pela pujança de sua economia, está destinada não somente a dirigir os destinos da América, como também os de toda a humanidade. O Brasil tem elementos naturais, tem riquezas latentes para ser na América do Sul o que os Estados Unidos são na América do Norte. Abram-se nossos portos à imigração européia, deixando aqui entrar todo o europeu sadio de corpo e são de espírito que conosco queira trabalhar e progredir. Apertemos nossos laços políticos, econômicos e financeiros com os americanos e teremos em breve transformado a situação de nosso país e da nossa gente, dando-lhes abastança, conforto e bem estar. (...) Somos muito pobres enquanto os americanos são riquíssimos. Nosso standard de vida é dos mais baixos que registram as estatísticas (...) Apertemos nossos laços políticos, econômicos e financeiros com os americanos, e teremos em breve transformado a situação do nosso país e de nossa gente, dandolhes abastança, conforto e bem estar. (...). Nosso futuro, o futuro da nossa terra e da nossa gente está com os americanos. Eles já são os nossos melhores amigos, como também os nossos melhores clientes. Quereríamos que, por meio de uma futura aliança sincera e duradoura, fossemos seus associados. (...) precisamos dar à nossa gente não o standard de vida do americano, que é demasiado elevado, mas um standard ao menos compatível com a dignidade e com 18 a decência humanas, que ainda não temos!

Aqui não só está presente a imagem dos Estados Unidos como lugar do trabalho (“a capacidade de seus filhos”), poder e prosperidade (“pujança de sua economia), um exemplo a ser seguido, como também se ressalta um elemento que também está presente na peça publicitária estudada acima: o tradicionalismo (“deixando aqui entrar todo o europeu sadio de corpo e são de espírito...”). Ainda segundo Tota, O tradicionalismo é outro ponto importante do americanismo. O mito da vida pura e saudável na fazenda, a relação íntima com a natureza, a cidade pequena, o enaltecimento dos valores familiares, a coragem dos indivíduos, o temor a Deus. Tudo na verdade, só tinha validade para uma América de brancos, fundamentalistas 19 religiosos, anglo-saxões, anticomunistas e imperialistas apaixonados.

É exatamente isso que se percebe no clamor para que se abram “nossos portos à imigração europeia...”. O mito da raça branca trabalhadora está aí fundamentado. No documento acima, a palavra-chave é “decência”. Vimos que Gramsci defende a ideia de que o americanismo é um componente ideológico que visa à formação do trabalhador dentro da lógica fordista. Ora, o OCIAA era o principal consultor e financiador das peças publicitárias estadunidenses que seriam divulgadas na América Latina, e este órgão estava bem informado de que esse mito da pureza da raça e da vontade de trabalho dos brancos não funcionaria nos países sul-americanos, exceto entre uma pequena elite. Mas o que é

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 decência se não uma normatização de comportamento? Sem liberdade não se pode ter trabalho, e sem labor não há como se ter um “standard ao menos compatível com a dignidade e decência humanas”. Os EUA e seus valores democráticos seriam um paradigma. Como já discutido, o ideal de democracia estava entranhado na cultura estadunidense, indo além do conceito presente no senso comum ligado às questões políticas e de representatividade, sendo relacionado às ideias de liberdade, independência e individualidade; apenas na democracia o indivíduo teria garantidos seus direitos primários.20 Esse fator estava presente nos artigos de consumo cultural que chegavam ao Brasil, mas, devido à situação sociopolítica porque passava o país, com a cessão dos direitos dos indivíduos ao Estado dentro da lógica do Estado Novo, foi pouco discutido internamente nos periódicos nacionais – ao menos até meados da guerra, quando a lógica estadonovista começava a ruir – aparecendo no mais das vezes de forma lacunar, como contraponto ao nazismo. Numericamente, os indivíduos arregimentados nas organizações nazistas representam quase nada em comparação com a totalidade dos descendentes de alemães integrados na vida brasileira. Em outras palavras e para resumir: o perigo que defrontamos não reside propriamente nesse contingente racial em vias de incorporar-se à nossa população, mas na projeção política do hitlerismo sobre o nosso país. Essa projeção é dupla: com os integralistas, por exemplo, ela se mostrava apenas antidemocrática e negadora das nossas tradições federalistas e republicanas; com os nazistas propriamente ditos, ela é ao mesmo tempo negadora da democracia e partidária da constituição de uma minoria étnica alemã em solo 21 brasileiro.

Já com o conceito de progresso ocorreu o contrário. Nos periódicos analisados para este estudo são corriqueiras as matérias a respeito da ideia de progresso e também muito frequentes as peças publicitárias que explorarm essa mesma ideia. Foi no âmbito da propaganda e do marketing que o american way of life foi mais difundido no caso do Brasil. Fortemente arraigado na cultura americana, o termo (progressivism) não pode ser literalmente traduzido para o português, mas está associado ao racionalismo, à idéia de um mundo de abundância e à capacidade criativa do homem americano (a chamada American ingenuity). Essa dimensão do americanismo enaltece o homem energético e livre, capaz de transformar o mundo natural. Graças a isso, o mercado podia oferecer em abundância vários produtos úteis e atraentes, criando uma nova 22 forma de prazer: o prazer de consumir.

Podemos, dessa forma, associar ao “progressivismo” o imaginário do mundo do trabalho, que, juntos, formam o ideal do self-made man, ou seja, aquele indivíduo que, por esforço próprio e dedicação intensiva ao trabalho, conseguiu erguer-se na vida e superar os obstáculos encontrados. São inúmeros os casos relatados em revistas brasileiras do período, na maioria das vezes matérias pagas pelo OCIAA para serem veiculadas aqui. Assim, eram muito recorrentes as histórias de homens que saíram da mendicância e conseguiram chegar a cargos de destaque em grandes empresas.

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 Congregando esses conceitos, pode-se ver que o americanismo foi uma ideologia bem acabada e estruturada: contando com a liberdade e os direitos individuais, qualquer homem, mesmo que inicialmente desfavorecido pela vida, poderia obter como resultado do seu próprio suor e trabalho árduo, a sua mobilidade social ou a recompensa por seu esforço. Recompensa esta vista em termos materiais. No entanto, a divulgação, o entendimento e a aceitação no Brasil desses conceitos e princípios deram-se de forma diferenciada, de acordo com a situação sociopolítica do país. Com o início dos trabalhos da agência cultural de Rockfeller, as negociações para conseguir tratados formais de cooperação com os países da América Latina pelos EUA ganharam novo alento em termos não apenas ideológicos, mas também financeiros e de poder de negociação. Assim, o desejo do governo brasileiro de obter equipamentos para modernizar seu exército e o financiamento para a construção da Usina Siderúrgica de Volta Redonda concretizou-se depois de longas negociações.23 Em troca, além da assinatura de tratados de cooperação com os EUA e do rompimento das relações diplomáticas do Brasil com as potências do Eixo, foram cedidas bases aéreas e campos de pouso e abastecimento espalhados pelo país ao exército estadunidense – destaque para as bases de Natal, Fernando de Noronha, Recife e Belém – e também a permissão para o estacionamento e atividades de tropas nesses locais. Ao Nordeste foi dada a preferência na alocação das bases e no envio de tropas devido a sua posição estratégica: acreditava-se que, por sua proximidade com o continente africano, era preciso estabelecer uma proteção contra possíveis ataques aéreos do Eixo na região, além de poder funcionar como campo de pouso para os aviões que iriam aos campos de batalha naquele continente.24

II.

Um Brasil para além do Wilderness25

Em fins da década de 1930, pesquisas de opinião realizadas nos EUA mostravam que grande parte do público estadunidense não concordava com um apoio mais incisivo de seu país ao Brasil. A pergunta era se os Estados Unidos deveriam ajudar o Brasil em caso de ameaça de uma potência inimiga. Em 1939, menos de 30% dos entrevistados declararam apoio a tal proposição e, em 1940, com a guerra já em andamento, apesar de uma leve mudança de opinião, os simpatizantes a essa ajuda ainda somavam menos de 40%.26 Essas pesquisas serviram para demonstrar, mais que a insegurança dos estadunidenses em face às novas metas governamentais, um desconhecimento em relação àquela nação ao sul de seu país. Para que a Política da Boa Vizinhança de Roosevelt rendesse frutos, seria então necessário um processo de construção de um imaginário positivo, em seu próprio território, dos países que se queria conquistar, para suplantar a 10

Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 imagem negativa – construída, em muitos casos, pelo cinema. Convém ressaltar que a Política da Boa Vizinhança, em tese, compreendia um intercâmbio entre as nações, e, por isso, as ideias de amizade, cooperação e complementaridade entre as nações deveriam reinar em ambos os lados, ainda que, do lado estadunidense estivesse presente certo ar de superioridade, o que pode ser percebido a partir da leitura das produções do período. Veja-se esse artigo de Waldo Frank, especialista em assuntos latino-americanos, autor de vários trabalhos elogiosos ao povo e cultura das “outras” Américas e que era defensor da união continental. (...) [Entre os intelectuais estadunidenses], a maioria não sabe sobre a América Latina. O povo não pode formar um juízo exato porque não sabe bastante para isso. Tem a intuição. O mais seria tudo novo para ele. E confessa: - Há vinte anos, acreditava-se que a América Latina apenas se compunha de povos onde havia revoluções. Aparecia nos jornais só quando havia guerras internas. E revelando intenso jubilo: - Isso, hoje, não é mais assim. Felizmente. Devo dizer ainda que os nossos artistas, entre eles pintores, sentiram principalmente a influência do México. Esse interesse caminha vertiginosamente para o Sul, porque a nossa mentalidade é bastante lenta para tomar conhecimento de fatos fora do país. E conclui: - É natural que assim seja. Apesar da intuição do destino comum das Américas, há entre elas profundas diferenças. É muito difícil aos norte-americanos, anglo-saxões, conhecer perfeita e rapidamente um Continente tão potencial como a América 27 Latina.

O documento acima apresenta alguns altos e baixos, revelando que os estadunidenses pouco sabiam a respeito dos vizinhos ao sul. Contudo, o ponto-chave está em que, após comemorar que essa “ignorância” estava mudando, o autor ressalta as diferenças entre as várias partes do continente americano, afirmando advir dessa multiplicidade a dificuldade dos estadunidenses, “anglo-saxões”, em conhecer perfeita e rapidamente

um

continente

tão

potencial.

Primeiro

o

autor

desculpa-se

pelo

desconhecimento de seu povo, mas logo depois justifica tal fato e mostra-se, ele mesmo, carregado de juízos valorativos para dizer o que era preciso ser desenvolvido: potencial, possuía em si o valor, mas que ainda não era... Havia questões que ainda precisavam ser despertadas e desenvolvidas. Quem sabe com um pouco de ajuda?! Coube, então, à recém-criada agência de Rockfeller o dever de mudar essa imagem inadequada dos países da América Latina nos Estados Unidos, objetivando um efetivo sucesso das estratégias do governo Roosevelt. Para tanto, fez-se uso de diversas estratégias discursivas: uma delas foi a filosofia da ameaça iminente do inimigo europeu, que representava um perigo à sobrevivência das democracias liberais e à fantástica vida de excessos que elas proporcionavam. (Essa diplomacia do medo talvez não esteja tão longe de 11

Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 nós, em tempos atuais.) No entanto, o esforço não se limitou às estratégias do “mundo das ideias”; atacou-se também no campo do apoio prático com vistas a atingir o objetivo mais palpável, apoio este conseguido do governo brasileiro e também do capital privado estadunidense, incluindo a indústria cinematográfica de Hollywood. Os funcionários do Office tinham a tarefa de analisar e corrigir todo o material a respeito dos países latinos em circulação nos Estados Unidos – e também no sentido inverso – para que se pudessem eliminar os entraves à maior aproximação dos países latinoamericanos ocasionados por imagens e visões equivocadas a respeito destes por parte dos estadunidenses. Neste sentido, o Coordenador solicitou ao Conselho de Educação de seu escritório que analisasse “as afirmações incorretas ou descuidadas sobre os países latinoamericanos nos materiais educativos usados nas escolas e colégios americanos”28. Esse conselho, depois de longo trabalho, apresentou um conjunto de quatorze recomendações a serem seguidas pelas escolas, editoras e bibliotecas com vistas a diminuir os equívocos e assim contribuir para a prosperidade da boa vizinhança. Partes dessas recomendações seguem transcritas. 1)

As escolas e colégios deverão manter em suas bibliotecas e salas de trabalho uma grande quantidade de livros, coleções de material gráfico e de películas cinematográficas referentes à vida e à história dos países latino-americanos.

2)

Esse material educativo deve desempenhar na vida escolar um papel importante, que vise a (sic) formação de um conhecimento extenso da América Latina. Assuntos latino-americanos devem ser incluídos em todas as fases do ensino, salientando-se sua importância em relação à vida nacional dos Estados Unidos e o interesse cultural que neles reside.

3)

Os editores de livros de leitura escolar e de outros materiais básicos educativos deverão reexaminar os livros e os materiais que hajam editado até agora, sob o critério que o relatório recomenda, afim de que seus textos sejam escoimados de incorreções.

4)

Os manuscritos e originais de trabalhos que se relacionem com a América Latina, ora em vias de publicação, deverão ser submetidos pelos editores a educadores e intelectuais que sejam especialistas em assuntos latinoamericanos.

8)

Especial cuidado deverá dispensar-se quanto ao trato de costumes e tendências culturais que possam contribuir para uma visão errônea da América Latina.

9)

(...) Importância fundamental deverá ser sempre dada aos aspectos sociais e culturais, preferindo-se os fenômenos típicos aos acontecimentos excepcionais.

10) As semelhanças entre os povos da América Latina e o povo dos Estados Unidos deverão ser apontadas, não com o objetivo de se ocultarem diferenças porventura existentes, mas com a idéia de se indicarem bases para julgamento dos estudantes para a formação de conceitos relativos aos alicerces que criaram e manteem (sic) o entendimento entre os povos americanos. 11) Em numerosos graus do ensino, deverá ser aumentado o tempo dedicado aos assuntos inter-americanos, principalmente no que toca à sua conexão cultural. Há obras de caráter geral, como livros de leitura e antologias, que podem fornecer base sólida para o desenvolvimento dessa política pedagógica. Livros desse gênero contribuem para que o estudante tenha uma visão ampla do setor 29 que estuda.

12

Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 A conquista do capital simbólico como apoio às suas políticas garantiu ao OCIAA a parceria de empresas - como a NBC e a CBS, então as duas maiores referências no ramo de radiodifusão nas Américas - parceria esta estratégica, uma vez que o rádio era o meio de comunicação de massa mais eficaz naquele momento. No entanto, de acordo com o princípio liberal, não caberia ao Office a intervenção ou determinação do que seria veiculado, restando-lhe apenas sugerir programas e mudanças na programação. A propaganda da boa vizinhança teria de ser adaptada ao que o público estadunidense estivesse acostumado a ouvir. Com o apoio do governo brasileiro e também de algumas radiodifusoras nacionais, alguns programas nacionais passaram a ser transmitidos para a central da NBC ou da CBS nos Estados Unidos e, de lá, retransmitidos para todo o território do Tio Sam. Exemplo desse intercâmbio está na reportagem abaixo. Esteve, ontem, em trânsito por esta cidade, acompanhado de sua família, o Sr. Roberto Pompeu de Souza Brasil que acaba de ser convidado pelo Sr. Nelson Rockfeller, diretor do Escritório de Coordenação de Assuntos Inter-americanos (sic!), para colaborar nesse departamento à maneira do que sucedeu com os Srs. Júlio Barata Orígenes Lessa e Raimundo Magalhães Júnior, que recentemente estiveram também de passagem pelo Recife. (...) Diz-nos o Sr. Pompeu de Souza que essa oportunidade dada aos jornalistas brasileiros de conhecer os Estados Unidos, e mais ainda ali permanecerem um a dois anos vêm como viagem-prêmio. Coube-lhe a sorte de ser escolhido entre numerosos colegas da imprensa carioca. - Há muito o que aprender na América – diz-nos. Em matéria de rádio-difusão, então, é de maior interesse essa viagem, porque nenhum jornal moderno pode dispensar uma estação emissora, haja visto o caso dos “Diários Associados”, que 30 mantém duas estações no Rio e em São Paulo. (...)

Diante da pressão crescente por uma decisão, e sem alternativas diante do cenário da guerra na Europa, Vargas optou por cortar relações com os países do Eixo e pelo alinhamento à Política da Boa Vizinhança. A partir daí, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) passa não só a veicular a propaganda dos Estados Unidos em rede nacional, mas também a fornecer programas e ideias de imagens positivas nacionais às rádios yankees. O governo brasileiro chegou mesmo a veicular anúncios de alguns dos produtos nacionais, a exemplo do café, durante a programação das rádios nos EUA.31 Um importante passo no processo de construção da imagem do Brazil foi dado em Nova Iorque ainda em fins da década de 30. Em abril de 1939 era inaugurada a New York’s World Fair, evento que buscava mostrar ao mundo ainda abalado com a Crise de 1929 e indeciso quanto ao futuro – tendo em vista as tensões internacionais – uma dose das maravilhas de que eram capazes de produzir as democracias liberais. Exibindo as últimas novidades em tecnologia, a feira buscava dar uma suave amostra do que seria o futuro,

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 como já explicitava em seu tema: Building the World of Tomorrow, ou, em português literal, “Construindo o Mundo de Amanhã”. Quanto ao público que foi visitar a feira, o sentimento era de encanto e, acima de tudo, de esperança. De acordo com o testemunho de um visitante, To go to this fair was to have your life changed forever. It was there that I was amazed by a device that measured the thickness of my hair, by a General Motors vision of 1960 (I asked my parents whether I'd still be alive at that distant time in the future), by mighty Railroads on Parade and Railroads at Work, by climbing up to look into the cockpit of a real airplane, by witnessing for the first time something called television; and I was chilled by the sight of a gas mask, as if I realized that here was a sign of what soon would dash or delay many of the hopes that THE FAIR 32 expressed. (destaque no original)

Nesse ambiente de sonhos e esperanças, onde “podia-se sonhar com o futuro, mas vendia-se o presente”33, o Brasil montou um pavilhão para expor os seus “apetrechos”, por mais estranho que parecesse, uma vez que possuía ainda muito pouco da tecnologia do “estilo de vida americano” para vender. Nossos produtos foram mostrados, fibras têxteis, resinas vegetais, madeiras das mais variadas (...), minérios (...), borracha (...), latas de palmito, peles de cabra e cabrito fabricados pelo Curtume Carioca Franco-Brasileiro, corned beef enlatado, goiabada em lata, roupas manufaturadas por indígenas, algodão, babaçu, oiticica, soja, sisal, castanha-do-pará e de caju. Era o que tínhamos para oferecer. Os americanos o futuro, e nós, o presente, nu e cru, sem nenhum complexo de 34 inferioridade.

A Feira foi um passo importante na divulgação da imagem do Brasil para o estadunidense ver. O pavilhão do Brasil funcionou como um pequeno Brasil dentro da maior cidade das Américas. No lançamento da pedra fundamental, em 16 de abril de 1939, ouviuse o Hino Nacional Brasileiro seguido de um discurso do ministro da Indústria, Comércio e Trabalho, Waldemar Falcão, elogiando a Política da Boa Vizinhança. O evento foi transmitido para todo o Brasil e também nos Estados Unidos. A inauguração oficial do pavilhão, talvez por acaso, dar-se-ia no dia 07 de setembro de 1939. A partir daí, notícias e músicas do Brasil seriam mais frequentes aos ouvidos estadunidenses. Dessa forma, a música brasileira e alguns de seus maiores expoentes do período seriam conhecidos no território do Tio Sam, em transmissões quase sempre precedidas por breve introdução de aspectos da cultura ou de fatos históricos brasileiros, ou ainda com o enaltecimento da amizade entre as duas nações. Foi através do rádio que a música de Heitor Villa-Lobos e Francisco Mignone ecoou ao norte do Rio Grande, além de Romeu Silva e de Elsie Houston, a brasileira filha de pais estadunidenses, entre outros, que levariam a música brasileira para os EUA. O pavilhão do Brasil na Feira de New York pode ser considerado uma vitrina do Brasil moderno, inclusive com três painéis de Portinari: Noites de São João, Jangadas do Nordeste e Cena Gaúcha. Além da estética do moderno que compunha o pavilhão, não 14

Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 pode faltar a estética do exótico: a fauna e a flora vindas da região amazônica, cedidas pelo Museu Emílio Goeldi, de Belém do Pará, compuseram os jardins da mostra brasileira. No entanto, a maior atração brasileira nas terras anglo-americanas foi, sem dúvida, Carmem Miranda: já conhecida por aqui devido a sua música e participações em filmes nacionais, Carmem seria convidada para a Broadway após um show realizado no Cassino da Urca em 1939. Ao chegar aos EUA, a “embaixadora da Boa Vizinhança”, como alguns a chamariam posteriormente, iniciou suas apresentações com o espetáculo Streets of Paris. No entanto, passou a ser mais conhecida ao participar de famosos programas de auditório nas rádios estadunidenses, divulgando a música e a sensualidade da mulher brasileira. A audição não bastou ao público estadunidense. A sensualidade que Carmem Miranda deixava transparecer em suas apresentações nos programas de rádio despertou em seu público o desejo de ver a mulher a quem todos estavam acostumados a ouvir. Foi assim que a atriz iniciou sua carreira internacional de garota propaganda do Brasil, que em “Serenata Tropical” protagonizou seu estrelato. A figura de Carmem Miranda e a sua participação na Política da Boa Vizinhança permite vislumbrar a imagem que os Estados Unidos tinham da América Latina. Por mais que o discurso da boa vizinhança pregasse uma imagem de complementaridade dos Estados Unidos com a América Latina, a participação de Carmem Miranda em filmes que davam pouco destaque às culturas dos países vizinhos mostra que a divulgação imagética de uma “latinidade” homogênea denota certo deslize, reproduzindo no discurso em formação alguns aspectos do imaginário já consolidados, como a aceitação tácita de que as nações latino-americanas acreditavam na prerrogativa da superioridade estadunidense. É bem verdade que o escritório de Rockfeller, a exemplo do que fez na área da educação/editoração, buscou, também na arte cinematográfica, minimizar ao máximo esses deslizes, enviando em viagens de reconhecimento pelas Américas vários colaboradores, entre eles cientistas, jornalistas e cineastas, e dando claras recomendações de que fossem observadas as particularidades das culturas locais dos países para se evitarem conflitos e casos como o ocorrido na Argentina por ocasião da exibição de “Serenata Tropical”35. No entanto, nem sempre o inconsciente dos produtores conseguiu ser convencido ou mesmo mascarado. De qualquer forma, a sétima arte cumpriu seu papel de informar ao público estadunidense quem eram seus vizinhos do sul. Para os idealizadores e executores da Política da Boa Vizinhança, não importava a autenticidade da „cultura‟ das „outras Américas‟ difundida pelas duas maiores redes

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 e pelos estúdios de Hollywood. O importante era que isso contribuía para obter o 36 alinhamento do Brasil com o esforço de guerra dos Estados Unidos.

Essa frente havia feito sensíveis avanços, e os estadunidenses estavam convencidos de sua boa vizinhança ao sul.

III.

O Outro lado da moeda

As elites políticas e intelectuais brasileiras sempre tiveram como paradigma a cultura estrangeira: até a primeira metade do século XX estiveram à frente as matrizes europeias, especialmente a francesa, e depois da Segunda Guerra Mundial foi a vez dos Estados Unidos. Isso denota que na construção cultural brasileira sofremos do “mal de Nabuco”. Antes da independência, países da Europa em destaque no cenário internacional fascinavam o imaginário das elites. Da Inglaterra vitoriana e sua corte requintada, com o costume do chá da tarde, passou-se a admirar a França com a sua elegante e impecável moda, sua música e literatura. Nos jornais em circulação na cidade do Recife percebem-se muitos desses mimetismos dos costumes. Por exemplo, no Jornal do Commercio, até o mês de maio de 1940, em um suplemento dominical, havia uma coluna intitulada Moda de Paris, mostrando as vanguardas do ramo naquela cidade. Contudo, a partir do final de maio do mesmo ano, sem aviso ou explicação, a coluna passa a se chamar Moda em Hollywood.37 Conforme já explicitei anteriormente, a visão da Europa como lugar da modernidade e espaço de espelhamento passa a ser questionada já durante a segunda década do século XX. Além da Primeira Guerra, outro fator importante para esse questionamento foi o pouco conhecimento e certo desprezo pelas coisas brasileiras e sul-americanas expressas pelos franceses, imbuídos de um sentimento de superioridade cultural, o que fez surgir o paradigma estadunidense no campo econômico e militar já nesse período38. Em termos culturais, o caminho das mudanças seria mais sinuoso. Ainda em fins da década 1930, a cultura francesa era a referência par excellence das elites brasileiras. O francês, a língua estrangeira mais falada nos eventos da haute societé; a literatura e a cultura daquele país eram, em geral, mais admiradas e consumidas; e Paris, o destino preferido. Foi para um público marcado por esses costumes e visões de mundo que, em seu retorno ao Brasil, Carmem Miranda apresentou-se no Cassino da Urca. Após saudar em língua inglesa pouco formal o público presente, com um good night, people, ao qual não obteve resposta, Carmem seguiu o seu show cantando The South American Way, uma rumba, de autoria estrangeira, que soou estranhamente aos ouvidos da exigente plateia. Ao

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 final de sua apresentação, nenhum aplauso sequer. A apresentação não agradou ao público; diziam que a artista havia voltado “americanizada” demais.39 Assim como a pesquisa de opinião realizada em fins dos anos 30, nos Estados Unidos, havia informado ao Tio Sam os obstáculos para engendrar a Política da Boa Vizinhança, a reação do público brasileiro também soou como um alerta de que aquele país precisava de uns conselhos do bom vizinho do Norte. E o exemplo francês de arrogância e etnocentrismo teria de servir de exemplo de como “não agir”. Havia, no entanto, uma parcela da população brasileira que já admirava o style estadunidense para além dos assuntos econômicos e militares. Já em 1935 existiam sociedades culturais que buscavam “promover o maior intercâmbio entre os povos dos Estados Unidos da América do Norte e do Brasil”40, como era o caso do Instituto Brasil– Estados Unidos (IBEU), localizado no Rio de Janeiro. Ainda naquele momento, essas sociedades eram de iniciativa particular e não contavam com apoios do governo ou de instituições estadunidenses. A partir de 1940, não por acaso, o governo dos Estados Unidos começou a “compreender a importância dos centros culturais estabelecidos em países estrangeiros para a disseminação de informes fidedignos sobre a cultura norte-americana”41. Esse repentino interesse estadunidense estava relacionado à possibilidade de sua entrada na guerra e à necessidade de se tomar uma ação rápida e eficaz em busca do apoio não só do governo, mas dos brasileiros como um todo no esforço de guerra daquele país. Sendo assim, o OCIAA viu nessas sociedades culturais mais uma arma na disseminação de aspectos da cultura yankee no Brasil. Caberia agora ao Office apenas um trabalho de orientá-las. Mas, claramente, isso só não bastaria. Precisar-se-ia “atacar” em outras frentes. E o plano já estava traçado. O irresistível american way of life seria o foco principal: era necessário mostrar aos brasileiros o que esse estilo de vida tinha a oferecer. A feira de Nova Iorque deu o primeiro passo, mas tinha-se que adentrar no espaço abaixo da linha do equador; então a radiodifusão, em menor escala, e a propaganda escrita e o cinema, em maiores proporções, seriam chamadas a colaborar. No setor da radiodifusão, o Escritório enfrentou algumas dificuldades. As emissoras estadunidenses não se interessavam em divulgar sua programação para além de suas fronteiras, pois não viam vantagens econômicas para investir na expansão de sua rede. Utilizando-se da prerrogativa da ameaça inimiga e mostrando as vantagens comerciais que poderiam ter no mercado sul-americano, a equipe da agência de Rockfeller conseguiu convencê-las da importância de seu apoio ao esforço de guerra. Quando finalmente entraram em ação no Brasil, ainda nos anos 40, as emissoras alinhadas à Política da Boa Vizinhança passaram a contar com o apoio não só do OCIAA, 17

Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 mas também do DIP. Na programação, o enfoque principal era dado às notícias da guerra, que contavam sempre com uma sonoplastia envolvente e realista. O ouvinte, ao escutar a vinheta dos programas, corria para próximo do aparelho de rádio para melhor escutar o noticiário da guerra na Europa e, diante da intensa dramaticidade com que eram transmitidas as notícias, sentia-se no próprio campo de batalha. As vitórias aliadas eram sempre recheadas de heroísmo e enaltecidas como sendo o passo decisivo para a vitória final. Também constavam na grade de transmissão programas que visavam a mostrar os avanços tecnológicos dos Estados Unidos, não apenas relativos ao setor bélico, mas a diversos setores. Enfim, os programas ajudavam a “mostrar” ao público ouvinte brasileiro que a potência do Norte, além de poderosa, conquistava vitórias também no dia-dia, facilitando, com suas técnicas avançadas, a vida dos seus cidadãos. Os muitos programas referiam-se a temas invariavelmente relacionados aos avanços técnicos dos Estados Unidos. Esses avanços, não raro, eram apresentados como verdadeiros feitos heróicos do povo, da nação, mas, ao mesmo tempo, como 42 resultado natural do estilo de vida dos americanos .

Da mesma forma que nas rádios, as notícias impressas também traziam “as últimas” da guerra e propagandeavam a máquina de guerra dos EUA. Eram frequentes matérias demonstrando o vigor do exército “americano”, a tecnologia bélica daquele país e as vitórias dos aliados nas frentes de batalha europeias. Todavia, o enfoque principal da imprensa escrita era a publicidade de produtos e serviços, buscando sempre transmitir o “estilo de vida americano” como a melhor forma de ver, entender e viver no mundo já conhecido. Revistas como a Seleções – até hoje, com algumas modificações, ainda comercializada no Brasil – apesar de não estar diretamente relacionada à política do Escritório Interamericano, ajudavam a desenvolver no imaginário dos brasileiros o paradigma estadunidense.43 Também as revistas e jornais brasileiros de grande circulação eram infestados de propagandas de multinacionais estadunidenses. Matérias inteiras eram compradas pelas empresas dos EUA para divulgar não apenas seus produtos, mas o ideal de liberdade, progresso, democracia, trabalho etc. atrelados àqueles produtos. Com isso, tentava-se convencer o consumidor brasileiro de que não era apenas o objeto que se consumia, mas que ele proporcionava, também, um acesso ao “glorioso” estilo de vida estadunidense. Com o aumento e popularização de medicamentos analgésicos modernos, por exemplo, a própria relação com a dor muda, tornando-a mais insuportável. Não se passa um dia sem que a biologia e a medicina descubram alguma coisa para acalmar os nossos sofrimentos. Há tantos lenitivos e analgésicos no mundo 44 moderno que cada vez a dor nos parece mais incômoda e terrível.

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 Fato similar acontecia com outros bens de consumo, cujas peças publicitárias ajudavam a criar novas formas de ver, sentir, perceber, sonhar. E nenhum outro meio de comunicação foi mais eficaz na disseminação desse novo estilo de vida do que o cinema. As produções hollywoodianas, apesar de não serem as preferidas, já estavam presentes no Brasil desde a década de 20 e encantavam plateias nas grandes cidades. Há referências em um periódico de circulação na cidade do Recife, por exemplo, de que o público, ao se deparar pessoalmente com atores de cinema, não conseguia conceber como eles conseguiam sair da tela e andar pelas ruas como pessoas comuns. Os encantos da modernidade fascinavam as pessoas comuns45. Sabendo dessa força expressiva do cinema, o OCIAA tratou de dedicar especial atenção a esse setor, firmando parcerias com estúdios de Hollywood e traçando políticas específicas para convencer os brasileiros da importância da Política da Boa Vizinhança. Neste sentido, o Office enviou ao Brasil (e a diversos outros países da América Latina) equipes de produtores e diretores para conhecerem o local para onde desenvolveriam seus filmes. Devido a certas gafes cometidas em filmes estadunidenses veiculados aqui, a agência passou a pedir que fosse dada preferência às filmagens in loco. Foi a serviço dessa agência que o já conhecido diretor Orson Welles veio ao Brasil para fazer um filme. O projeto de uma película sobre o Brasil era do interesse dos apologistas da boa vizinhança e também de autoridades brasileiras, que indicaram o carnaval como tema. Em 1942, o cineasta chegava ao país para iniciar as filmagens de It’s All True. Os jornais locais acompanharam de perto o processo de filmagem, registrando todos os momentos da estada do visitante. Contudo, durante as filmagens do dia-a-dia de uma vila de pescadores no Ceará, aconteceu um acidente envolvendo o jangadeiro Manuel Olímpio Moura, o Jacaré, que morreu afogado, fato que pôs por terra a produção do filme. Sendo acusado pela morte do jangadeiro, Welles teria sua popularidade abalada. Ao Office, não interessava um filme associado a uma imagem desastrosa. O filme foi abandonado e nunca concluído. Uma produção do cinema estadunidense que vingaria e tornar-se-ia sucesso, não só nas bilheterias mas também na divulgação da amizade entre os países, seria o personagem do Zé Carioca. Fruto da parceria do afamado Walt Disney – inventor dos personagens Pato Donald e Mickey e produtor do sucesso de bilheterias “Fantasia” – o papagaio verde e amarelo tornar-se-ia símbolo máximo da união entre Brasil e EUA. Zé Carioca é apresentado ao público no filme “Alô, Amigos”. Nada mais simbólico: um papagaio amistoso, símbolo da brasilidade, malandro em seus trejeitos, após um

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Revista Tempo Histórico ISSN: 2178-1850 caloroso abraço no “amigo”, apresenta o Brasil ao Pato Donald. No filme não há personagens negros e todos são muito alegres e vitoriosos. Ao final, o que fica é a imagem da bondade do bom vizinho. Neste filme, assim como em todos aqueles filmes da Disney veiculados no Brasil no período em questão, nota-se também uma quase inexistência de figuras femininas ou afeminadas, sendo o sexo representado, nas poucas vezes em que é mostrado, através de cores e nomes femininos. Percebe-se, com isso, a força da ausência (ou do indizível) na construção discursiva dessas produções: por um lado, procurou-se mostrar o que se queria construir e os valores julgados importantes e convenientes à divulgação; por outro lado, ignoravam-se ou omitiam-se aqueles valores que não faziam parte do arsenal moral entendido como crucial para a propaganda. Como não poderia deixar de ser, havia ainda os filmes de guerra. Para não me repetir aqui, basta dizer que, após escutar e ler a respeito do poderio do exército “americano”, o público poderia ver suas façanhas agora em movimento. As películas de Walt Disney fascinaram o público de todas as idades com as suas personagens e suas animações. Da mesma forma, nos filmes de guerra ou até mesmo em romances com belos atores e atrizes, o cinema yankee alegrava o público ávido por um happy end. A batalha do dia-a-dia, as injustiças sociais e a “feiúra de seus rostos” eram, por algumas horas, substituídas por momentos sublimes de prazer. Não havendo dissociação entre o mundo do cinema e o mundo cotidiano, a imagética dos sonhos estadunidenses representada ali pelo cinema - era, ainda que inconscientemente, associada à vida maravilhosa dos vizinhos do norte. Nesses filmes, tanto quanto nos de Walt Disney, as imagens e valores considerados menores eram retirados de cena ou, quando apareciam, eram associados à comédia ou ao terror para serem motivos de piada ou medo. Com isso, os EUA não apenas derrotaram a ameaça inimiga nas Américas, mas também conquistaram a confiança e simpatia dos povos ao sul do equador para si. Mais do que isso, conquistaram mercados para seus produtos e, a partir de seus produtos, o seu estilo de vida. Essa era a fórmula secreta da fantástica fábrica de sonhos. A ação interativa do cinema fixava no imaginário brasileiro a imagem dos heróis americanos. O processo de americanização pelo cinema efetivava-se no mercado. Nos objetos anunciados na imprensa, seria possível identificar uma relação perfeita entre a noção concreta do próprio objeto e sua representação. O americanismo no significado e no significante. Anúncios ou reportagens pareciam muitas vezes 46 reproduzir, tanto na propaganda ilustrada como no próprio texto, cenas de filmes .

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Mestre em História pela UFSC, orientado pela Profa. Dra. Maria de Fátima F. Piazza.

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Aqui, utilizo o termo de acordo com a acepção mais corriqueira e vulgar, ou seja, a cultura produzida para um grande público, não necessariamente mal informado, mas que possui pouco acesso à cultura letrada. 3 MENEZES, Albene Miriam F. Alemanha e Brasil: o comércio de compensação nos anos 30. In: BRANCATO, Sandra Maria Lubisco; MENEZES, Albene Miriam F. (Orgs.). Anais do simpósio cone sul no contexto internacional. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. 4 Essa é uma ideia que vem sendo defendida por muitos pensadores na área das ciências humanas. Para mais informações, o seguinte artigo é bastante elucidativo sobre a atualidade desse pensamento dentro dos Estados Unidos: Sem autor. Manifest Desteny warmed up? Disponível para consulta em: http://www.why-war.com/news/2003/08/14/manifest.html. Último acesso: 20/03/2009. Além desse artigo, vide também: Haynes, Sam W. and Christopher Morris, eds. Manifest Destiny and Empire: American Antebellum Expansionism. College Station, Texas: Texas A&M University Press, 1997. McDougall, Walter A. Promised Land, Crusader State: The American Encounter with the World Since 1776. New York: Houghton Mifflin, 1997. 5 Segundo Mary Anne Junqueira, essa ideia é bem presente no imaginário social estadunidense. Para ela, “a imagem mais usual do wilderness é a do homem num meio ambiente estranho, onde a civilização que normalmente ordena e controla a sua vida está ausente, tornando-se, assim, uma incógnita. Quer dizer, um lugar oposto aos lugares civilizados”. E assim era o imaginário do Oeste daquele país: um lugar abandonado e repleto de selvagens que, no entanto, com o trabalho e esforço dos pioneiros seria civilizado e daria nova vida à estagnada economia dos Estados Unidos no momento da expansão. Cf. JUNQUEIRA, Mary Anne. Ao Sul do Rio Grande – imaginando a América Latina em Seleções: Oeste, wilderness e fronteira (1942-1970). Bragança Paulista: EDUSF, 2000. 6 TOTA, Antônio Pedro. O Imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 7 DE 40.04.19 – CPDOC/FGV. The military situation on the east coast of South America. Submitted by the military attaché, Rio de Janeiro, Brazil – April, 23, 1940. Transcrição de parte do documento. Os grifos são meus. Tradução: A posição geográfica dos países da costa leste sul-americana praticamente elimina probabilidades de guerra com países de outros continentes, exceto pequeno trecho (Corrientes Missiones Corridor). Argentina é fisicamente desligada de seu vizinho e potencial inimigo, o Brasil, pelos Estados próximos de Bolívia, Paraguai e Uruguai. O Brasil é sujeito a invasões por essas mesmas áreas. (…) Um provável teatro de Guerra – o Corrientes Missiones Corridor – e o seu adjacente Estado brasileiro do Rio Grande do Sul possui um clima deveras saudável, mas em muitos lugares é densamente pantanoso e de mata fechada, particularmente ao longo dos rios e durante a estação chuvosa. Nesta área, a província de Corrientes é o setor mais provável por onde lançar uma invasão do Brasil. 8 TOTA, op. cit., p 51. 9 Idem, Ibidem, p 53. 10 MOURA, Op. Cit, p 23. 11 RAC, Record group 4, series 4, Box 9, folder 73. Apud: TOTA, Op. Cit. Destaque meu. 12 ROLLAND, Denis. A modernidade perdida da França. IN: REIS, Daniel Aarão; ROLLAND, Denis. Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. 13 MAUAD, Ana Maria. Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem (Brasil, 1941-1942). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, n° 49, 2005, p. 49. 14 SOUZA, Alan Rodrigues de. A atualidade do americanismo e fordismo em Gramsci. Revista Urutágua, N 9, Maringá, 2006. Disponível em http://www.urutagua.uem.br/009/09souza.htm. Acesso em 16 de março de 2009. 15 Tota, Op. Cit., p 19. 16 Utilizo o conceito de apropriação na acepção de Roger Chartier. Cf. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Brasília, Ed. UNB, 1994. CHARTIER, Roger. Formas e Sentido. Cultura Escrita: entre distinção e apropriação. Campinas: Mercado de Letras/ALB, 2003. 17 Trata-se de grande empresário pernambucano, proprietário de empresas no ramo têxtil, açucareiro e hoteleiro, este último o que lhe rendeu grande prestígio e reconhecimento em todo o país, após a fundação da rede Hotéis Othon S. A., em 1943. 18 MELLO, Othon L. Bezerra. Nós e os americanos. DP, 05/05/1942. Grifos do autor. 19 Tota, op. cit., p 20. 20 Idem, ibidem, p 19. 21 DP, 21/03/1942. A propaganda nazista no sul do país, por Lindolfo Collor. 22 Tota, Op. Cit., p 19-20.

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Sobre todo o caminhar das negociações desde os primeiros passos até sua efetivação, vide: MOURA, Gérson. O Aliado Fiel. A natureza do alinhamento brasileiro aos Estados Unidos durante e após a Segunda Guerra Mundial, no contexto das relações internacionais. Londres, University College, Tese de Doutorado, 1982. 24 Essa era a explicação dada pelo comando do exército estadunidense durante as negociações para obter a autorização do governo brasileiro para tal. No entanto, como ficou evidente pouco tempo depois, a autonomia dos aviões da época não permitiam o voo de ida e volta da travessia do atlântico sem reabastecimento, o que era ainda mais agravado pela necessidade de carregamento de armamentos e suprimentos. Nesse sentido, muitos historiadores questionam se tal informação já não era do conhecimento dos estrategistas estadunidenses, que buscavam nesse estacionamento de tropas outros interesses para além daquele divulgado. Cabe notar que a assinatura da cessão de bases aos Estados Unidos não estabelecia um prazo para término do acordo e subsequente retirada das tropas bem como dava total autonomia para operação daquele exército nessas localidades, tornando-se mesmo uma extensão do território estadunidense em terras brasileiras. 25 O OCIAA buscava desfazer as imagens presentes nos Estados Unidos de um Brasil pouco desenvolvido e de natureza selvagem. Contudo, essa ideia ainda se fazia presente mesmo na imaginação daqueles que deveriam construir uma nova vizi-dizibilidade do país vizinho. Tal fato fica explícito, como se verá a seguir, nos filmes que eram produzidos para a Boa Vizinhança, nos quais, quando se trata de Brasil, a natureza é o cenário de destaque. 26 Tota, Op. Cit., p 110. 27 DP, 21/04/1942. Entrevista concedida por Waldo Frank, durante passagem pelo Recife. Este autor ficou conhecido como “o americano intranqüilo” devido à sua defesa da latinidade. 28 PA. Rio de Janeiro: A Manhã, 28 mai. 1944. Textos escolares estadunidenses sobre a América Latina. 29 Idem. 30 DP, 13/03/1942. 31 Tota, op. cit. 32 “Ir a essa feira era ter sua vida mudada para sempre. Foi lá que eu fiquei encantado por dispositivo que media a fraqueza do meu cabelo; por uma visão dos anos 1960 proporcionada pela General Motors (eu perguntei aos meus pais se eu ainda estaria vivo naquele distante tempo futuro); por fantásticas ferrovias; em subir para olhar a cabine de um avião de verdade; em testemunhar pela primeira vez algo chamado televisão; e eu “gelei” ao ver uma máscara de gás, como se eu me desse conta de que ali estava um sinal do que logo iria acabar ou atrasar muitas das esperanças que A FEIRA expressava”. Testemunho anônimo. New York World’s Fair 1939-1940. Disponível para consulta em: http://www.websyte.com/alan/nywf.htm. Último acesso em 16/10/2008. 33 Tota, Op. cit., p 96. 34 Idem, ibidem, p 98. 35 Durante a exibição do filme, houve um quebra-quebra nos cinemas devido ao descuido em relação à cultura de seu país, a qual foi referenciada com o uso de castanholas. 36 Tota, Op. cit., p 118. 37 JC, 1939-1945. 38 Cf. Rollan, Denis. Op. Cit. 39 Para maiores informações sobre esse episódio, vide: Tota, Op. cit. 40 Noticiário da Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos. Recife: Nº 2, agosto de 1949. 41 Idem. 42 Tota, Op. cit. p 150. 43 A Seleções do Reader’s Digest entra em circulação no Brasil em 1942, com apoio e parceria do OCIAA. Essa publicação era, como o próprio nome indica, o resultado de uma seleção e resumo para a “fácil digestão do leitor” de matérias veiculadas em outros periódicos em circulação nos Estados Unidos. Através dessa compilação, as ideias e valores que se queriam divulgados eram mais focados e as indesejadas retiradas das matérias. Foi um importante veículo na divulgação do american way of life e dos valores a ele acoplados. Para uma história mais detalhada dessa revista e de sua vinculação ideológica vide Mary Anne Junqueira, Op. Cit. 44 PN, 12/1944, p. 27. 45 Referência à revista A Pilhéria, de circulação no Recife nos anos 20 e 30. O convívio com os atores de cinema na cidade referido aqui diz respeito aos atores locais/nacionais, uma vez que o Recife possuía, nesse período, um importante ciclo de produção cinematográfica, sendo um dos principais pólos nacionais do ramo nos anos 20. 46 Tota, Op. cit. p 132. 22

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