Ao Amor!

June 16, 2017 | Autor: M. Machado | Categoria: Gilles Deleuze, Capitalismo, Filosofia Da Arte
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AO AMOR! Boi*, Juniokio**, Marucs***

Alea jacta est!

ORESTES YMCA: Eu tava pensando em cortar o conceito da masturbação. Ou, por falar em jacta, eu posso introduzir o assunto da masturbação na roda… ALLAN MCTODD: Na roda? Mas masturbação na roda já não é mais masturbação… já é sexo. É que nem cu com acento.

*Boi, Bon of Ox, Ox Axe, Obelix, Faustão,

PITONISA DE DYONISUS ENGRAVATADO: O cu não tem assento fixo… ele vai tendo assentos e acentos, à medida que as coisas passam por ele e ele passa pelas coisas...

Boiadeiro, comment vous voulez...

** Juniokio acredita que somente ele é

JOLOLÓBILAS: Teria sido mais elegante ter começado citando Heráclito: “A mais bela harmonia cósmica é semelhante a um monte de coisas atiradas”.

real e os outros são criações de sua mente. Nasceu em 10.820 a.C. na Atlântida, em Heferonapolitae.

*** Marucs (nascido em Telaviv, 1989) é

terrorista sem atentados, coadjuvante dono da bola, conhecido como revoltadinho.

PICANHA: A masturbação é uma espécie de mentalidade. Ela não é um ato no pinto. Qual é a ilusão do masturbador? É a ilusão de que ele obtém qualidade a partir da quantidade. O cara bate punheta e pensa “quanto mais eu bato punheta, mais prazer eu sinto”. Associa-se o movimento periódico à obtenção do prazer, tanto que a ejaculação vem depois de certa quantidade de movimentos. Isso é uma mentalidade tecnocrática, a tecnocracia pensa assim. O que o masturbador não percebe é que, a cada mexida no pinto,

81 ele está reinjetando qualidade no sistema quantitativo. Quando o sujeito começa a bater punheta ele faz a primeira fricção, essa fricção gera um prazer, e esse prazer, por sua vez, gera uma imagem mental que o excita. É isso que acumula, já é qualitativo no princípio. Se fosse possível ao sujeito desligar sua imaginação, não interessa a quantidade de repetidas fricções, ele jamais ejacularia. THEONUNZIUS: Existe, como exemplo ilustrativo, uma série de filmes pornográficos onde duas mulheres aproximam suas faces de um falo e beijam o membro e/ou passam a língua levemente pela glande sem, entretanto, realizar nenhuma fricção ou movimento intenso; isso dura alguns minutos até que o ator alcança o orgasmo. Como isso foi possível? O masturbador pensa que quanto mais ele mexe no pinto, mais ele vai ter prazer, mas não é isso. A fricção é só um modo de introjeção de qualidade. GAROTÃO 27: A mentalidade dos masturbadores está impregnada em todo lugar. Entenda-se também na esfera dos metedores, engenheiros, artistas, donas de casa, estocadores, esportistas, tântricos e yogues; está nas instituições: igrejas, botecos e puteiros. CAVALO AZUCRINADO: Seria, entretanto, da ordem do mistério esse salto do quantitativo para o qualitativo? Mistério ou não, me parece importante observar que existem e podem ser inventados outros modos de injetar qualidade num sistema quantitativo. FILHO DA CACOFONIA: Percebemos que, na linguagem, há uma grande confusão na maneira como as pessoas usam os termos “qualidade” e “quantidade”. Ouvimos coisas como “melhorou muito a qualidade” em determinado setor, produto. A qualidade, porém, não melhora nem piora: o que melhora é a quantidade, que aumenta ou diminui. Em música, o timbre é qualidade, não aumenta nem diminui. Não é possível dizer que o timbre do violino é maior ou menor que o da clarineta. Já o número de notas por segundo, a intensidade dos ataques são eventos da ordem da quantidade, portanto, mensuráveis.

82 ABATE 22CENTÍMETROS_NACAN sai da sala. TRAJANNO: É comum ouvir comentaristas de futebol falando frases como: “agora que o Ganso entrou no meio campo do São Paulo, aumentou muito a qualidade do passe”. Mas não aumentou a qualidade, aumentou a quantidade. O meio de campo ficou maior porque esse jogador tem mais quantidades de jogadas. Um meio campista ordinário não consegue ver aquela infiltração, aquela virada de jogo, aquela linha burra de impedimento… o Ganso, então, teria uma série de quantidades de jogadas a mais a realizar. Isso aumentaria a quantidade do meio campo do São Paulo e não a qualidade. Porque o Ganso tem uma diferença de qualidade para com o Denílson que não é mensurável. O Ganso é de uma qualidade e o Denílson é de outra. Entretanto, a quantidade do Ganso é maior que a quantidade do Denílson, por exemplo… POPULARMENTE SE DIZ: “para mim não importa a quantidade e sim a qualidade”. Esse jargão é um completo contrassenso, já que, quando a pessoa fala isso, ela está falando novamente em termos de quantidade. Não há uma oposição entre qualidade e quantidade. Não são lados opostos da mesma moeda. São duas séries heterogêneas. Seria como dizer: “eu gosto de branco, prefiro o branco ao cheiro de almíscar”, “eu gosto de Beethoven, não gosto de estudar pela manhã”. Quando alguém diz que prefere qualidade à quantidade, posiciona a primeira acima da segunda, colocando, portanto, os dois conceitos em uma relação quantitativa. Se gostasse mesmo de qualidade iria gostar dos dois, já que qualidade é diferença. BARBARELLA: Voltando ao místico, já que citamos yoga, tantra… recentemente fui a um evento de uma escola mística a convite de uma amiga. Seria uma aula introdutória na Rosa-Cruz, uma espécie de maçonaria cristã. O clima da conferência foi sempre muito ameno e os palestrantes (eram dois) buscavam sempre ser carismáticos e simpáticos. A temática ressaltada era de como nós desperdiçávamos nosso tempo, força, nossa vida, em vez de utilizarmos inteligentemente as energias para produzir uma vida mais significativa, de um nível espiritual mais elevado. Essa é basicamente a tônica de

Ao amor! quase todos os grupos espiritualistas, espíritas, gnósticos, ligados à astrologia, ao yoga etc. Sempre coisas como “não sabemos viver de maneira inteligente, nosso nível mental, anímico, espiritual, nosso estado de consciência é inferior, temos que evoluir nosso estado de consciência para fazer um uso melhor de nossas energias, para desperdiçar menos e nos transformar em alguma coisa superior”. Isso aqui é uma coisa muito séria. Depois da palestra, indaguei aos instrutores: “vocês não percebem o quão capitalistas vocês são, ou a doutrina que pregam?”. Essa quantificação das energias humanas, um projeto mercantil de vida, é uma das coisas mais capitalistas que eu já ouvi: a ideia de acúmulo de nível de consciência; fora o fato de estar completamente imbuída no dogma evolucionista. Isso também está no tantra, no sentido em que o yogue não desperdiça suas energias sexuais; ao contrário ele as acumula para despertar o kundalini (serpente ígnea) e colocar em reto funcionamento os chacras, então ser mais útil, mais. O grande laço deleuziano se vê aqui totalmente presente. A ideia do surgimento da moeda como laço, nexum, aparelho de captura para desqualificar o valor e propiciar a garantia do lucro e do imposto influencia largamente todo misticismo pós-Blavatsky. Para Deleuze e Guattari, o sistema do capital e a própria moeda surgem como um grande estratagema de enganação e encantamento, que operam como um grande laço que tudo envolve para dar, então, nexum ao escambo primitivo. O valor do produto em si está em sua qualidade; ao desqualificar, o sistema monetário passa a poder quantificá-lo. O valor que uma maçã tem é intrínseco e da ordem da qualidade; é, portanto, determinado por seu valor nutricional, alimentício, sabor, aroma... únicos, singulares. Mas o sistema monetário vem e desqualifica o valor da maçã e passa a determinar que ela “vale” agora dois dinheiros. Dois dinheiros que é o mesmo valor que quinze minutos numa lan house, um pão de queijo, uma olhadinha no carro, meia hora da zona azul... Assim é formada a máquina de captura do Estado (imposto), pois de outro modo ele não conseguiria subtrair seus vassalos. Imagine o Estado recebendo maçãs do agricultor, o pedaço de um carro de uma montadora, crédito em horas no futebol society, ou uma série de acordes de um músico... não, ele recebe tudo em moeda, quantidade:

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84 ABATE O capitalismo se forma quando o fluxo de riqueza não qualificado encontra o fluxo de trabalho não qualificado e se conjuga com ele. (DELEUZE; GUATTARI, Mil Platôs – 7.000 a.C. – Aparelho de Captura)

SOZINHO NO APÊ: Acredito que, recentemente, me ocorreu algo que tem a ver com isso. Fiz o lançamento do meu livro no Castelinho do Flamengo, no Rio de Janeiro. Coloquei vinte reais como contribuição voluntária e mencionei que era esse o preço de custo do livro. Mas disse também que, se alguém não pudesse pagar e tivesse real interesse em realmente ler o livro, podia levá-lo. Na minha imaginação, era algo como um potlatch, uma oferenda, um ebó, um gasto exuberante para marcar um rito de passagem. Nesse meio tempo, perguntei para uma garota que tinha demonstrado interesse: “Você pegou?”, e ela respondeu: “Peguei não. Te dei vinte reais”, e continuou: “você deveria valorizar o seu trabalho!”. Sem dúvida, a moça tinha como pressuposto que desmonetarizar é igual a desvalorizar. Nesse império em que nos fazem identificar valor e dinheiro, é difícil para a maior parte das pessoas entender que, em determinados tipos de troca, não importa apenas a quantidade de dinheiro recebido por algo. Isso é crucial. Para mim, acredito que o livro será mais valorizado sendo lido, comentado, passado para outras pessoas, do que apenas sendo trocado por uma quantia de dinheiro. E, de maneira geral, a desmonetarização por meio do escambo pode propiciar modos de vida desviantes, que fogem desse aparelho de captura. RUY DO MOTOR entra na sala. BARBARELLA: Voltando ao místico mais uma vez, onde prolifera a imagem do super guru, mestre pop que vive na floresta... Recentemente, me ocorreu algo curioso numa comunidade em Paraty (Rio de Janeiro). É uma comunidade incrível, aberta, em que se vive, na floresta, de modo coletivo, em torno de princípios como permacultura, bioconstrução etc. Nessa ocasião, havia muitas pessoas, entre elas um casal de artistas. Como eles estavam com pouco dinheiro, pegaram sobras de comida em bares e restaurantes, e disponibilizaram

Ao amor! o alimento para todos. No entanto, uma “iluminada” do veganismo, que tinha dado um workshop de comida viva, começou a esbravejar: “gente, tem um cadáver em nossa cozinha! Tem um cadáver na nossa cozinha!”, se referindo ao frango que estava no meio da comida trazida pelo casal de artistas de rua. Numa cena patética, essa pitonisa do veganismo disse que ia fazer o enterro do cadáver. Compactuo com várias das ideias que ela professa; no entanto, o modo como tenta resistir ao poder dominante, como tenta disseminar suas ideias causa asco. Sinto que é cada vez mais comum formas de resistência progressistas assumirem essa postura de evangelismo e opressão. Essa mesma garota – que parecia se sentir como um guru new age – protagonizou outra situação que aponta para isso.  Nessa mesma comunidade, é comum a prática do naturalismo, nudismo etc. Entretanto, o local é ao lado de uma cachoeira movimentada que abriga também um restaurante sempre cheio de visitantes, além de casas da população local. Ainda assim, a moça queria a todo custo fazer topless por todo o terreno, inclusive na proximidade da cerca. Diante dos primeiros conflitos com os vizinhos quanto ao nudismo, os responsáveis pela comunidade conseguiram a autorização para fazermos nudismo em uma cachoeira próxima, porém mais escondida e afastada do circuito turístico. Mesmo assim, essa garota insistia em fazer topless ali mesmo. Isso incomodou tanto a vizinhança que ela foi atacada, lançaram-lhe pedras, e até foi ameaçada de morte por um cidadão do local que tem histórico criminal. Apesar de tudo isso, ela continuava segura e convicta de que devia fazer o topless daquele modo naquele horário e naquele lugar. Não tenho nada contra o naturalismo, muito pelo contrário, e nada também contra o veganismo. Mas é o modo de operar dessa moça que realmente chama a atenção… BUMBUM GULOSO: Fala-se muito do empoderamento das minorias. Tal discurso de empoderamento é traiçoeiro e leva sempre à proto-direita, que é a vivência de certa parcela da esquerda que se limita à reação dialética ao poder e que, eventualmente, pode vir a se tornar, pelo viés do empoderamento, uma nova forma de opressão. Devemos falar, portanto, de desempoderamento da maioria. Temos aí a dualidade entre poder e potência. Essa é uma dicotomia muito complexa: a potência articula-se com um segundo

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86 ABATE termo, que é a vontade. Quando falo de potência, falo também da vontade que a energiza, e estamos, de fato, muito próximos de Nietzsche, aqui. O poder é a vontade de potência que, ao articular-se na matéria, oprime. É, portanto, uma falsa dicotomia, no sentido do recorte conceitual: o poder é uma extrapolação ética da potência. A diferença entre os dois conceitos está na relação entre os elementos dos quais são instâncias; normalmente, essa relação torna-se socialmente polarizada, e daí vem a percepção dicotômica. Nesse exemplo da moça vegana do topless: é difícil identificar o que é potência e o que é poder. Quando a moça quer mostrar os peitos ela é movida pelo desejo, portanto é potência. Porém, quando ela impõe isso às pessoas e elas se sentem constrangidas, há uma extrapolação ética da potência, uma extrapolação que oprime e torna-se poder. A potência do cidadão que deseja viver segundo seus costumes, que não envolvem práticas de nudismo, converte-se em poder no momento em que ele lança a pedra contra a menina. Isso faz com que a moça cubra os peitos, cerceando sua vontade, ensejando uma nova extrapolação ética, uma nova opressão que é poder também. CAVALO AZUCRINADO: Será que nunca vamos poder distinguir de forma absoluta poder de potência? BUMBUM GULOSO: Acho que não, pois as distinções sempre estarão apoiadas sobre uma visão relacional, frequentemente polarizada, das situações. Podemos entender potência como tudo aquilo que permite a você multiplicar suas possibilidades sem subtrair as dos outros; portanto, sem que haja uma extrapolação ética. Claro que isso é imprevisível e está completamente condicionado pelo contexto e pela trama complexa de relações. EX-CULÁPIO: Observe o seguinte exemplo: em São Paulo, recentemente houve um alvoroço por conta de uma peça chamada “A mulher do Trem”, do grupo Os Fofos Encenam, uma peça que particularmente não me agrada, sobretudo se comparada a outros trabalhos fabulosos desse mesmo grupo. Mas então rolou que uma ativista do movimento negro viu um trecho da peça no youtube e escreveu uma carta de repúdio em que pedia a interrupção

Ao amor! das apresentações. Havia um ator, nessa cena vista no youtube, com o rosto pintado de negro, fazendo o papel de uma empregada que era ridicularizada. Diante do pedido dessa ativista do movimento negro, a apresentação da peça foi cancelada e, no seu lugar, foi realizado um debate no Itaú Cultural, onde a peça estava em cartaz. De início, é um sério problema a interrupção de algo dessa forma, pois vivemos num país de mentalidade autoritária e com uma larguíssima tradição de censura prévia. Mas igualmente acredito que o fato desse debate ter acontecido mostra que não dá mais para negligenciar a questão racial do negro hoje no Brasil. A emergência de uma voz e de uma busca por reconhecimento são muito importantes, e envolvem trilhar um caminho nesse sentido de mobilizar forças de maneira mais potente. O referido debate no Itaú Cultural teve como tema gerador “Arte e sociedade – a Representação do Negro” e contou com falas muito lúcidas. No entanto, esse enfoque na “representação” me parece um problema: a ativista ligava a cena em questão à tradição do black-face de origem estadunidense, enquanto o grupo argumentava que sua pesquisa dizia respeito a uma tradição de máscara-tipo no circo-teatro, de origem ibérica e remontando à commedia dell’arte. Se fosse seguir esse tipo de argumento, poderia dizer, ainda, que o ator que usava a tal máscara negra – de quem fui colega na universidade – não era negro, mas também não era branco: ele tem uma feição que, fenotipicamente, remete mais para um índio. Esse tipo de argumento, porém, está baseado na ideia de representação como tendo um lastro com o real. Parece-me necessário entender que identidade não tem lastro é algo que se compõe, sempre mutante e incompleta. E representação muito menos teria um lastro, uma correspondência com o “real”. Assim, não acredito que lutar pela “representação” do negro nas telenovelas, por exemplo, seja uma luta que valha a pena. Primeiro, a novela é integralmente baseada em valores hegemônicos, não teria como “dar uma melhorada.” No Rio, existem propagandas (que vinculam uma causa ao seu produto) em que a chamada principal é: “Beijo Gay na novela é progresso.” Não sei. Não se trata de dizer que a representação não é política, mas sim pensar na performatividade da questão: acredito que seria progresso gays não serem atacados na rua, como hoje são, e não tenho dúvida de que é possível o Beijo Gay ser algo muito comum na novela e ainda assim gays continuarem sofrendo com esse tipo de violência. Ou o negro, que pode ser muito bem

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88 ABATE representado em telenovelas e peças teatrais e continuar cotidianamente sendo perseguido à distância pelos seguranças dentro do supermercado etc. A luta focada na “representação” parte de um princípio equivocado. A luta precisa ser por reconhecimento, reconhecimento pela diferença. Não faz sentido, também, lutar por igualdade: políticas afirmativas, como as cotas, têm a ver com o reconhecimento pela diferença. As condições sócio-históricas não colocam, hoje, negros e brancos na mesma condição para entrarem nas universidades. Reconhecer essa diferença exige, hoje, reconhecer a necessidade das cotas. Lutar por “igualdade” é o que faz o discurso da meritocracia. O mesmo acontece com o feminismo. É crucial a desconstrução do Patriarcado, mas isso não passa por tornar mulheres “iguais” aos homens, e sim com igualdade de direitos, onde sejam reconhecidas pela diferença. Ter a dimensão disso é necessário para não tornar nossas ações de resistência a uma opressão elas mesmas opressoras. A vítima, muitas vezes, acaba internalizando os métodos do feitor e reage à opressão por meio dos seus métodos, únicos que aprendeu. Nesse caso da peça, dizer se o uso de uma máscara negra é racismo ou não pode ser um debate interessante, mas, de todo modo, me parece muito claro que o racismo contra o negro atravessa nossa sociedade de cabo a rabo. Um debate ou uma carta de repúdio não pode determinar a permanência ou não de uma peça em cartaz. No Brasil, existe uma lei contra o racismo, a Lei Afonso Arinos. Acho que uma luta de valor seria mobilizar forças para que essa lei seja aplicada da melhor maneira possível, para além de uma instância personalista. A questão, para mim, não é perguntar se uma cara negra no teatro é ou não racismo. É muito recente o fim da escravidão; o racismo atravessa nossa sociedade totalmente. A questão é como vamos lidar com isso: ater a luta contra o racismo à tarefa de cuidar do modo de representação do negro é como tratar apenas os sintomas de uma doença, dando menos atenção ao que os origina. BARBARELLA: Isso é equivalente àquela vegana que defende ideias incríveis, mas de uma maneira equivocada e autoritária.

Ao amor! “É preciso não confundir ‘minoritário’ enquanto devir ou processo, e ‘minoria’ como conjunto ou estado. Os judeus, os ciganos etc. podem formar minorias nessas ou naquelas condições; ainda não é o suficiente para fazer delas devires. Reterritorializamo-nos, ou nos deixamos reterritorializar numa minoria como estado; mas desterritorializamo-nos num devir. Até os negros, diziam os Black Panthers, terão que devir-negro. Até as mulheres terão que devir-mulher. Mesmo os judeus terão que devir-judeu (não basta, certamente, um estado). Mas, se é assim, o devir-judeu afeta necessariamente o não-judeu tanto quanto o judeu... etc. O devir-mulher afeta necessariamente os homens tanto quanto as mulheres.” (DELEUZE; GUATARRI. Mil Platôs.)

VAMO BRINCÁ DE RODÁ?: Hoje em dia há uma grande questão no Brasil. Refirome à ascensão evangélica. De cerca de vinte anos para cá, a população evangélica têm crescido muito no país. E é tradicional na atuação evangélica colocar para fora suas ideias e leis. Evangelho significa “boa nova”, e o compromisso de anunciá-la está na base do cristianismo de um modo geral. No entanto, é mais comum, hoje em dia, a maioria dos católicos não se importar tanto com a sexualidade do outro como fazem os evangélicos – excetuando a ala católica conhecida como renovação carismática, que são como “católicosprotestantes”. Evidentemente que se fulano é homossexual, por exemplo, isso não implica nenhuma influência ou perturbação na vida de sicrano. Nesse caso, explorar a sexualidade livremente, conforme se deseja, é potência. Entretanto, o cristão poderá argumentar: “os textos sagrados dizem que Deus julgou Sodoma e Gomorra e, condenados por sodomia, as cidades foram destruídas em uma só noite. Então, quando estou negando o direito das pessoas explorarem sua sexualidade conforme queiram, estou na verdade protegendo minha família e eu mesmo de um cataclismo.” Quando nos deparamos com esse tipo de argumento, é difícil reagir de outra maneira que não a do uso de poder, retrucando coisa como “vai para o raio que o parta, seu burro!” É claro que esses textos sagrados são norteados por regras e costumes que tinham, talvez, algum sentido em seus tempos históricos e condições geográficas específicas. Para os gregos era diferente, para os sumérios outra coisa... Qual deus é melhor? Qual texto é maior?

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90 ABATE FORA DILMA: Alguém de Miami quer teclar? OJOS NEGROS: Foi falado agora um lance interessante no qual quero me deter mais. Geografia. Um pensamento despótico, centralizador de um teomegalogos, um deus central e transcendente, é crucial para entendermos tudo que temos vivido ao longo da história, como a ascensão dos impérios, o capitalismo... proponho, aqui, chamar a teologia por trás de tudo isso de papai-piru: intersecção entre as esferas do patriarcado, do falicismo, da maioria (em um recorte deleuziano) e do poder, mantendo devires minoritários sob controle. Mais além dos eventos da história, podemos ver que o próprio materialismo histórico é repositório desse papai-piru; o modo como muita gente encara o materialismo histórico de Marx é teológico, no sentido do dogma e da religiosidade como mera consequência da aceitação de um discurso portador da Verdade. De certo modo, é justamente por sermos adoradores do historicismo teológico que, por exemplo, escritos de Moisés ainda têm tanta força nos dias de hoje. Será que não seria diferente se déssemos um peso maior à Geografia em detrimento da História (falando, agora, enquanto Disciplinas)? Que valor haveria de ter o que disse um homem que viveu entre os rios Tigre e o Eufrates, em clima árido, para mim, que vivo entre o Paraíba do Sul e a Serra da Mantiqueira, em clima subtropical de altitude úmido? Deleuze e Guattari falam sobre o surgimento do império arcaico nos Mil Platôs. E falam que o surgimento se deu no Oriente. Por que não foi na Europa? Foi uma questão histórica? Biológica? Não, foi uma questão geográfica. O império deveio do estoque. O território laçado se torna propriedade, a atividade (cultivo) laçada se torna trabalho. É, portanto, o estoque que cria o império. Nunca haveria império na Grécia, tanto que nunca houve, lá onde o solo é pedregoso e o terreno irregular. Não que tenham faltado tentativas. Muitos tentaram lançar o laço sobre toda Grécia e imperar, afinal, o que Agamenon queria? Mas ele nunca conseguiria, porque a geografia era uma barreira intransponível, nesse caso. PEDRO DE LARA RISES: Uma pessoa realmente contra impérios (hoje capitalista) não teria geladeira, talvez o maior símbolo do estoque, já que preserva o que rapidamente apodreceria. E, em caso de solidão, ainda dá para dormir de conchinha com seu motor quentinho...

Ao amor!

CORIFEU: Se me permitem, quero trazer algumas ideias do Adorno. Na Dialética do Esclarecimento, ele com Horkheimer escrevem sobre Ulisses e colocam Ulisses como o primeiro capitalista, trabalhando com uma noção trans-histórica. O esquema historicista de análise do capitalismo desenvolvido em A ideologia Alemã, de Marx, por exemplo, cai por terra se é possível pensar Ulisses como o primeiro capitalista. Está em jogo, para Adorno, o fato de que toda racionalidade e dominação da natureza pelo homem envolvem um processo regressivo, o iluminismo acaba se convertendo em seu contrário. A dominação da natureza pelo homem acaba condicionando a dominação de si mesmo. É o homem dominado pela técnica que, de início, foi criada para fazer dele o senhor do espaço e do tempo. O próprio mito já é uma forma de dominação da natureza, e essa dominação da natureza seria o fundamento de um “capitalismo” que é trans-histórico e não diz respeito apenas ao desenvolvimento histórico da burguesia. O exemplo de Ulisses como primeiro capitalista aponta para isso. Depois de colocar cera no ouvido dos remadores, mantendo os seus desobstruídos, o que Ulisses faz para poder ouvir o canto das sereias? M@G@NO: Sabemos que a sereia introduz o Edugair1 na pessoa... “As sociedades ditas sem história colocam-se fora da história, não porque se contentariam em reproduzir modelos imutáveis ou porque seriam regidas por uma estrutura fixa, mas sim porque são sociedades de devir (sociedades de guerra, sociedades secretas etc.). Só há história de maioria, ou de minorias definidas em relação à maioria. Mas “como conquistar a maioria” é um problema inteiramente secundário em relação aos caminhos do imperceptível.” (DELEUZE; GUATARRI. Mil Platôs.)

ZEZINHO DAS ORQUÍDEAS: Voltando a refletir sobre História e Geografia. Desde a infância, temos essas duas Disciplinas na grade curricular e podemos pensar que, sendo a carga horária delas semelhantes entre si, não há preponderância de uma sobre a outra. Mas

1 Conceito Edugair: dissonância social impossível de ser medida, mensurada ou quantificada; a loucura e a arte manifestam o fator Edugair em diferentes instâncias. (Associado ao debate, sugerimos que o leitor escute a peça “Odisseu e as Sirenas”, de Bruno Ishisaki, disponível no link: ).

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92 ABATE uma análise detalhada faz a gente lembrar que existe um olhar que subestima a Geografia, com comentários como: “ahh, geografia... pintar mapa”. Enquanto que em História há uma valorização: sempre ouvimos coisas como “temos que conhecer os erros do passado para não voltarmos a cometê-los” e etc. A própria palavra “história” se converteu em uma palavra de poder: “Isso é histórico”. ANTEDEGUEMON: Além do ensino fundamental e médio, há mais implicações. Em nível superior acaso existe a Geografia da Música? Existe História da Música, História da Arte, História da Comunicação, História da Filosofia... até História da Matemática, da Engenharia... Em minha experiência como professor universitário na cadeira de História da Música da Faculdade Gestual de Repertório, cheguei à conclusão de que se trata de uma matéria babaca. Ela é divertida, eu gosto de escutar o repertório e gosto de mostrá-lo aos alunos, mas é uma matéria babaca. Não constrói nada e não é essencial para a construção de nada. E é essa essencialidade necessária que os historiadores gostam de sentir que têm. Semelhante à essencialidade necessária de deus, do imperador, da moeda... O que eu vejo, de fato, é que a história é mesmo o cortejo do esquife dos poderosos, como falou Benjamin. Toda vez que replicamos um certo discurso histórico estamos enaltecendo os vencedores, os déspotas. Como que um cânone do pensamento, um mantra ritual aos deuses mortos-vivos. Aqui concordamos com Nietzsche novamente, que coloca, em sua Segunda Consideração Intempestiva, três posturas históricas, modos de ver a história. A primeira, chamada monumental, que tende a ver o passado como o conto dos grandes heróis da virtude e da sabedoria, colocando-os em patamares inalcançáveis. Esse modo apenas produz frustração e descontentamento por nunca, no presente, reconhecermos esses heróis. A segunda maneira seria o historicismo-antiquário, que olha para o passado como um construtor de valores e padrões a serem respeitados, portanto, um passado que produz tradição e cultura, ou seja, um passado engessador, duro, que não permite o devir. O terceiro modo é o modo que Nietzsche propõe: o modo crítico. Esse deveria conjugar ciência e arte, gerando produções artísticas da história. Isso, para Nietzsche,

Ao amor! seria fundamental para a instauração do estado dionisíaco. Essas criações deveriam ser plurais, múltiplas, e não narrativas da verdade, produtoras de ídolos e tradições. Em vez disso, ruínas, colagens, bricolagens, realterismo...2 SEDUTORA 42: Então, as sereias, que são o fator Edugair na história...?3. CORIFEU: O Ulisses vai lá, mete cera no ouvido da galera (galera é etimologicamente o lugar onde ficavam os remadores) e, em seguida, se amarra no mastro da embarcação para poder escutar o canto das sereias, sem se arruinar pela sedução desse canto. Eis o fator capitalista e protestante na história. PEREIRA REFLETE: Entendo, entretanto, que há uma cisão no homem, na idade do homem (antropoceno), que tem a ver com a cisão entre pensamento e fala, e que, de certo modo, guarda relação com todos os binarismos que atravessam as nossas ações e forma de pensamento hoje. Por exemplo, para o grego a mente (phrén) se localiza na altura do diafragma, e daí vêm palavras como frenesi ou frenético. M@G@NO: E essa maneira traz, de novo, o fator Edugair. O saci também tem a ver com o fator Edugair. PEREIRA REFLETE: Para o grego antigo, o falante é entusiasmado (ter o deus dentro); não havia separação entre a fala e o pensamento. Se você gagueja, você é um mau pensador... Tampouco existia a diferença substancial entre ação e intenção, entre enunciado e sentido. Mesmo a leitura silenciosa, que para gente é habitual, não tinha muito cabimento na antiguidade. Até, numa passagem das Confissões, Santo Agostinho aponta que a leitura silenciosa de um cardeal lhe provocava espanto. Isso porque a noção de interioridade, hoje ligada à ideia de indivíduo, não existia aí. O indivíduo é uma ideia moderna, tal como ideia de autor.

2 Sugestão: ver o filme/composição Ludwig van, de Mauricio Kagel. 3 O desenvolvimento de uma realidade que o mundo vive que é a arte – mas isso é só um agenciamento maquínico de corpos.

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94 ABATE JAMILA 40: Imagino que esse pensamento dualista chega ao seu ápice na oposição da filosofia moderna entre corpo e espírito. FRUTA GOGOIA: E tudo isso acaba por desembocar no capitalismo, que é onde queríamos chegar e de onde nunca conseguimos sair. O capitalismo nasce da conjugação de duas séries heterogêneas, a do valor real-qualitativo (alimento, por exemplo) e a do valor desqualificado-quantitativo (cinco reais, por exemplo). E as dicotomias se seguem: atividade-trabalho, território-propriedade, valor-preço, forma-conteúdo etc. No final das contas, capitalismo é uma palavra esotérica, pois atua na conjugação de séries heterogêneas. EDMUNDO PREFEITO 40: É claro que essa construção nos leva à arte, e é claro que um grande artista, no fundo, é um grande mago. É um conjugador de séries heterogêneas. Toda máquina desejante é conjugadora de séries heterogêneas, mas um artista é mestre no metiê, suas conjugações e conjurações são convincentes. Nesse ponto, surge a pergunta: qual é a diferença entre o capitalismo e a arte? O capitalismo é arte? E, aí, podemos chegar no Naji Nahas como um grande dançarino e coreógrafo… ARISTÓFENIS DOS REMÉDIOS: Refletindo sobre o capitalismo, percebo que o mundo contemporâneo vem presenciando o renascimento dos deuses. Por exemplo, a Puta. Puta é o nome de uma deusa romana, uma pequena deusa, digamos, conhecida na época como a deusa dos cômputos. Os agricultores, após a colheita, computavam tudo que havia sido colhido e, ao alcançar um número satisfatório, faziam uma oferenda à Puta. Nessas ocasiões, as sacerdotisas saíam às ruas copulando com todos. Nove meses depois ,nasciam os filhos-da-Puta. Onde a Puta está hoje em dia? Na internet, no computador. Os computadores são sacerdotes da deusa Puta. Todo usuário de xvideos.com é um fiel da deusa Puta. É sabido que grande parte do conteúdo surface da internet é pornografia. Seu rito é a computação, não só no sentido do uso de tecnologia informática, mas no sentido de sermos uma sociedade viciada na computação, nos dados, nas estatísticas, tecnocracias de toda sorte. Assim como na antiguidade romana, em queas sacerdotisas

Ao amor! da Puta permitiam aos homens realizar, durante aquela semana pós-colheita, coisas que não podiam fazer em outras épocas, do mesmo modo, hoje, a pornografia nos mostra e nos coloca frente a práticas que não só não experimentaremos, como não admitiríamos ter visto em vídeos. Ainda nessa linha do renascimento dos deuses: o que é o capitalismo? O capitalismo é Hades. Hades é aquele que acumula, e acumula morte e mortos. É a geladeira, é o estoque. Esse capitalismo trans-histórico não vive desde ou a partir de... não é algo que está lá fora. É algo que penetra e compenetra. Não existe fora. Ora, satanizar o capitalismo é um inocente vício da esquerda. FETICHISTA DO MERCADINHO entra na sala. BUMBUM GULOSO: A ciência descreve bem o mundo, mas não é capaz de habitar o mundo, é o que profetizava Merleau-Ponty. MUNRÁ SERTÃO: Bom, como estamos no mundo das palavras, é importante dedicar um pouco de tempo a elas. Entendemos aqui o filósofo como o inventor de conceitos, o grande operador dos processos do pensar... Mas o filósofo não pode ser associado ao que é chamado na atualidade de formador de opinião. Esse último está mais para a categoria dos sofistas. Os sofistas mercadejavam a sua capacidade de argumentar. Assim, eram contratados para defender certas opiniões e operar convencimento. Eles o faziam sem necessidade alguma de estarem de acordo com o pensamento professado, o faziam pela remuneração. É como opera, hoje em dia, o formador de opinião, que trabalha ligado aos meios de comunicação – podemos pensar no Datena – assoprando sortilégios na cabeça vazia dos telespectadores. E é nesse ponto que podemos diferenciar o capitalismo da arte. Pois ambos são conjugadores de séries heterogêneas, mas o capitalista (magnata -sofista-formador-de-opinião) prestidigita em favor do pagamento, do lucro, enquanto que o artista o faz pelo desejo, porque aquilo lhe causa febre, insônia, empolamento na pele. Enquanto o capitalista cria em função do medo, o artista cria em função do desejo. O primeiro orbita a reação, e o segundo, a ação não-utilitária.

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96 ABATE HAYDN DA RODOVIÁRIA: Mesmo no campo da arte, há uma série de personagens que produzem modelos despóticos, por exemplo, Pierre Boulez. Ele quer ser imitado, criar uma escola. Ainda assim, não se pode dizer que determinado artista apenas opera por despotismo e/ou apenas por invenção. Há sempre um misto... O que ocorre é que muitos artistas operam o laço, ou o nexum, no dizer deleuziano. Tentam, desse modo, criar uma unidade de pensamento ao redor de uma estrutura, fazendo com que outras pessoas acreditem que aquela é a maneira certa de se fazer, e deve, por isso, ser imitada. Importante frisar que não estou falando mal da obra de Boulez (em relação a ela não tenho nada a dizer), mas sim falando mal do exercício de poder em produzir hegemonia ao redor dela. ATIVO, 40, SJC: Mas o que está sendo feito de arte (ativa) em São José dos Campos hoje? M@G@NO sai da sala. HOMEM INFINITO: Tem que haver algum deslocamento para ser arte. O caso da canção guarda muito bem esse conflito. Ali há a conjugação de duas séries heterogêneas, o som e o texto, e é possível que a parte musical seja tradicional, tonal, convencional, ou seja, territorializada, e que o deslocamento se encontre no texto. Às vezes, o texto pode operar por ironia ou por humor: na canção “O Borboleto”, temos uma construção musical tradicional, mas o texto não opera nem por humor nem por ironia; há apenas uma construção em palavras esotéricas: O sol, o vento, suco de limão, Um pangaré, um azulejo. Seu picolé derrete o meu cata-vento. Um dia me chamei José no outro Bento. Ou talvez Bonifácio. Outra vez caramujo.

Ao amor! Roda a roda, a roda, a roda, roda. Anzol, momento, tinta, piscinão. Um pangaré, um borboleto.4

ALEC FULL: É como o caso de certo sujeito que se candidatou à presidência da Holanda e que falava assim: “eu não tenho nada contra os árabes aqui na Holanda, eu transo com os árabes... mas eu não quero eles aqui, eles atrapalham, roubam emprego, desajustam a economia etc. etc. etc.”. Ou seja, um neonazista gay que ama os árabes e é islamofóbico! Esse é um bom exemplo de figuras que usam um discurso que pode se apropriar de um devir minoritário para emplacar um poderoso discurso de opressão. Há ideais progressistas incrivelmente potentes, como o veganismo, o ecologismo, a causa GLBT, o feminismo, o movimento negro, que são devires. No entanto, há um limiar tênue onde esses ideais e movimentos se traduzem em ações “econazi”, “oshonazi” etc. etc. É preciso vigiar o papai-piru interno. DONA PREÇUDA: Não haverá mundo novo enquanto houver herança. Não que a herança seja o único elemento que estrutura esse mundo velho, mas é, sim, uma das suas âncoras. A monarquia, no passado, era uma espécie de ordem, mas ela se desenvolveu e se transmutou em uma espécie de guilda. Ela percebeu que ser uma ordem a enfraquecia, por troná-la visível e aparente. Então, preferiram manter a monarquia, mas sob a forma de guilda, uma confraria de ladrões. Já hoje em dia, não se sabe quem é que tem a grana, quais famílias, onde moram exatamente. Alguns deles são prestidigitadores, outros encantadores, e também os sedutores etc. O que eles têm em comum é que são todos acumuladores, nessa era pós-geladeira. Abandonaram a estrutura de ordem de cavaleiros para a de guilda de ladrões, abandonaram a classe de paladinos para a de apenas ladinos. Essa guilda penetra e compenetra o mundo inteiro, são esburacadores. CORIFEU: Na vida pirata, a maior derrocada é converte-se predominantemente num corsário, “pirata do rei”.

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98 ABATE VEGG NAIF: Existe um ditador estratificado no peito de cada um de nós. O grande problema é quando você não admite isso e isso continua existindo apenas à socapa, no obsceno... E voltando de debaixo do tapete, essa sombra age, assim, quando ninguém espera, como uma ressaca do mar revolto. Por isso, tenho um amigo que repete: “ao mal é preciso temperar, não rejeitá-lo”. CORAZÓN DE PIRATA: Interessante é aquilo que Zygmunt Bauman chamou de “a vingança dos nômades”. Existiu a ruptura que mudou os homens da condição nômade para a sedentária. Criamos a agricultura e daí toda a tecnologia que se seguiu. Hoje vivemos a ruptura desse paradigma, ou seja, o momento em que o homem, a partir de sua técnica, consegue readquirir uma existência nômade. A flexibilização das relações de trabalho, aumento do terceiro setor, expansão dos gozos e prazeres, flexibilidade da vida de maneira geral apontam para isso. Mas essa vingança dos nômades pertence a quem? É a uma elite que essa técnica pertence. É uma elite que alcança esses gozos, essa flexibilidade. É uma elite que consegue fazer uma reunião como essa aqui, onde estamos bebendo cervejas gourmet e debatendo livremente filosofias e pensamentos. E, sendo elite e agindo como elite, estamos celebrando a honra dos gloriosos, mesmo que estejamos falando contra eles. PAULINHO AZEVEDO 9FINGERS: O amor fati não é comodismo. Cada escravo tem, sim, responsabilidade sobre a escravidão. Se você amarrar um gato a uma coleira, é possível que ele se mate em vez de viver acorrentado. Não importa se o amor fati é suicídio: é entrega, é vertigem. O amor fati é a assunção da guerra. É se permitir à exuberância. O raro acontece, se você souber produzi-lo. O dó maior em uma peça serial integral é um esquecimento. Acontece... E se acontece uma vez, pode.

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