AÇÕES COLETIVAS NA DEFESA DOS ANIMAIS E CONTRA A CRUELDADE EM UMA SOCIEDADE JUSTA

June 13, 2017 | Autor: Gustavo Nogueira | Categoria: Animal Law, Class Actions, Processo Coletivo
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AÇÕES

COLETIVAS

NA

DEFESA

DOS

ANIMAIS

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CONTRA

A

CRUELDADE EM UMA SOCIEDADE JUSTA Gustavo Santana Nogueira1 e Suzane Pimentel Nogueira2 Resumo: o presente trabalho pretende analisar a teoria da justiça de John Rawls e a sua limitação em relação aos animais, pela ausência de capacidade para personalidade moral, bem como a sua aplicação limitada a uma determinada sociedade, confrontandoa com as críticas levantadas por Pablo de Lora, Tom Regan e Jesus Mosterín, que refutam aspectos importantes da teoria da justiça do filósofo norte-americano. Posteriormente será analisada a incipiência de normas de proteção aos animais, tanto no Brasil como na Espanha, baseadas em práticas supostamente culturais e tradicionais, bem como a impossibilidade de tais argumentos justificarem a prática de maus tratos aos animais. Ao final a proposta é permitir o uso das ações coletivas como forma de proteção, suprindo a deficiência estatal no campo legislativo e executivo. Palavras-chave: justiça – animais – proteção deficiente – cultura – ações coletivas. Abstract: this paper aims to examine the theory of justice of John Rawls and its limitation in relation to animals, because of their lack of capacity for moral personality, as well as its limited application to a given society, confronting it with the criticism raised by Pablo de Lora, Tom Regan and Jesus Mosterín, that refute important aspects of the theory of justice of the american philosopher. After that it will be analyzed incipient of the animal protection standards, both in Brazil and in Spain, based on supposed cultural and traditional practices as well as the impossibility of such arguments justify the practice of mistreatment of animals. At the end the proposal is to allow the use of class actions as a form of protection, providing state deficiency in the legislative and executive field.

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Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá – UNESA, na linha de pesquisa do Acesso à Justiça. Doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, na linha de pesquisa em Direito Processual Civil. Professor da Pós-Graduação da Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNOESC. 2

Advogada. Mestranda em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá – UNESA, na linha de pesquisa dos Novos Direitos. Membro da Comissão de Proteção ao Direito dos Animais – CPDA da OAB/RJ. Integrante do Grupo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso da UNESA/Universidade Federal Fluminense – UFF.

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Key words: justice – animals – faulty protection – culture – class actions. Introdução O presente ensaio busca esclarecer algumas visões que ainda permanecem resistentes nas ilusões humanas, tais como o antropocentrismo, comparando a visão de justiça de John Rawls, cuja concepção excluía, por natureza, os animais do acordo originário que ele imaginou como sendo essencial para a concepção de justiça e a formação de uma sociedade. Entretanto ideias novas vêm surgindo, refutando a concepção de que a justiça é um valor destinado exclusivamente ao homem e delimitada a uma determinada sociedade, e nesse sentido as lições de Pablo de Lora, Tom Regan Jesus Mosterin trazem uma contribuição fundamental ao debate do papel do animal na sociedade, e de como devem os seres humanos conferir-lhe especial proteção. Para tal é essencial que o Estado, através do legislativo, executivo e judiciário, proporcione uma proteção efetiva para os animais, impedindo que tradições e valores culturais sejam usados como argumentos hábeis a justificar determinadas situações que, data venia, são totalmente inadmissíveis. Entretanto o que se observa é uma proteção deficiente do direito dos animais, em especial na Espanha e no Brasil, e para tal é preciso fazer uso de mecanismos mais eficientes. A proposta do trabalho é admitir o uso das ações coletivas como forma de proteção aos animais, e para tal propor que sejam removidas as barreiras, principalmente na Espanha, que impedem a utilização delas como mecanismo de tutela de direitos que até os dias de hoje não foram adequadamente protegidos. O antropocentrismo da teoria de justiça de John Rawls em contraposição às teorias de Pablo de Lora, Tom Regan e Jesus Mosterin A teoria da justiça de John Rawls, bastante conhecida entre os filósofos e juristas, a define como equidade, a partir do momento em que pessoas “livres e racionais, interessadas em promover seus próprios interesses, aceitariam em situação inicial de igualdade como definidores das condições fundamentais de sua associação” (RAWLS, 2008, p. 14). Para Rawls a equidade está no momento inicial em que as pessoas definem as premissas onde se basearão as estruturas da sociedade, quando elas se reúnem para definir como devem regular suas reivindicações mútuas, seus direitos e deveres e qual deve ser a carta fundacional da sociedade. Porém para que haja uma verdadeira igualdade é preciso que ninguém seja conhecedor do seu lugar na sociedade,

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bem como da sua classe ou mesmo o status social, de modo que os princípios fundamentais de justiça sejam escolhidos através de um hipotético véu de ignorância (RAWLS, 2008, p. 15). As premissas básicas da formulação da teoria da justiça de Rawls incluem tão somente os seres humanos, dotados de racionalidade, notadamente quando afirma o filósofo que “a capacidade para a personalidade moral é uma condição suficiente para ter o direito à justiça igual” (RAWLS, 2008, p. 624), mesmo quando mais adiante afirma que a referida capacidade não pode ser rigorosa, o faz assim apenas para inserir as pessoas sem potencialidades necessárias, seja de nascimento ou por acidente, vendo isso como defeito ou privação. Reforça a percepção de que Rawls apenas inclui os seres humanos em sua ideia de justiça a afirmação categórica no sentido de que “não existe raça nem grupo reconhecido de seres humanos aos quais falte esse atributo”, qual seja, a capacidade para a personalidade moral (RAWLS, 2008, p. 625). Considerando que os animais não possuem a referida capacidade, seria regra entre eles essa ausência, enquanto que seria exceção entre os humanos essa mesma ausência, de modo que apenas os humanos estão abarcados pela teoria de justiça de Rawls. O máximo de proteção aos animais que a teoria rawlsiana possibilita decorre apenas indiretamente da sua afirmação de que os indivíduos possuem deveres naturais, dentre os quais o “dever de não provocar sofrimento desnecessário” (RAWLS, 2008, p. 137), o que é confirmado por Pablo de Lora “Ahora bien, de todo ello no se sigue, indica Rawls, que a una persona a la que no se debe justicia se la pueda tratar de cualquier modo: así ocurriría con los animales. El hecho de que sufran y tengan experiencias placenteras nos impone un deber de compasión y humanidad con la conseguiente proscripción de la crueldad en nuestro comportamiento hacia ellos” (DE LORA, 2003, p. 127).

Os deveres naturais para Rawls sequer estariam entre os princípios aptos a ser escolhidos, e segundo se infere os animais não participariam do processo de escolha dos princípios de justiça, mas eles seriam objeto de proteção em decorrência de um dever natural. Surge assim a distinção entre os agentes morais – os animais humanos – que seriam os capazes de compreender suas ações e escolhas morais e os pacientes morais – os animais não-humanos e, excepcionalmente, alguns animais humanos – que não teriam essa mesma capacidade. E mesmo assim Tom Regan critica Rawls pela exclusão dos animais, já que Rawls “[...] nega sistematicamente que temos deveres diretos para os seres humanos que não têm um senso de justiça”, como as crianças e os incapazes. E

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parece de razoável certeza que, caso se torture uma criança ou uma pessoa incapaz, estar-se-ia fazendo algo que injusto com a criança ou o incapaz torturado, mas para Rawls “não algo que seria errado se (e somente se) outros seres humanos com um senso de justiça fosse contrariados. E uma vez que isto é verdadeiro no caso de esses seres humanos, que não pode negar racionalmente o mesmo no caso de animais.” (REGAN, 1985, p. 15). Tom Regan considera, portanto inaceitável que a teoria rawlsiana não reconheça que nós humanos temos deveres diretos com os animais, não bastando a indireta e vaga referência ao dever natural de não provocar sofrimento, ainda mais se baseado em nosso senso de justiça, e não no sujeito – humano ou não humano – torturado. Outra importante limitação da teoria da justiça de Rawls é a sua aplicabilidade a um espaço determinado, o que se dá quando o filósofo diz que ficaria satisfeito se fosse possível formular uma concepção razoável de justiça “para a estrutura básica da sociedade, concebida, por ora, como um sistema fechado, isolado das outras sociedades” (RAWLS, 2008, p. 9). Em que pese Rawls afirmar que “por ora” contentava-se com um sistema de justiça fechado em determinada sociedade, não houve a definição de um sistema de justiça que se pretendesse universal, no sentido de não ficar limitado apenas a uma determinada sociedade. E a limitação espacial do conceito de justiça hoje não tem mais lugar. Para Jesus Mosterin El orden político mundial basado en estados independientes y soberanos es obsoleto, anacrônico e inadecuado para resolver los problemas o aprovechar las oportunidades de nuestro tiempo. El diseño e invención de um sistema político global más racional a nivel mundial, que asegure la paz y la libertad y la protección medioambiental en todo el planeta, es uma tarea que todavia está completamente por hacer. (MOSTERIN, 2014, p. 82).

Portanto quando se está diante de questões que transcendem aos limites dos Estados, torna-se inadequada a invocação da soberania como forma de proteção desse mesmo Estado contra as responsabilidades inerentes.3 El avanço del conocimiento trae consigo um punto de vista más objetivo y universal. Ya vimos como el pensamento occidental tradicional había sido incapaz de salir de la trampa antropocêntrica, mientras que el piensamiento científico avanzado (de raís ocidental, pero ahora ya universal) había 3

Mireille Delmas-Marty, jurista francesa, defende um direito comum aos diversos estados, buscando em sua tese as condições favoráveis para o seu advento, que não signifique “a dominação de um sistema sobre o outro, mas se esforçaria em integrar – deixando-as compatíveis – as contribuições de cada família jurídica” (DELMAS-MARTY, 2004, p. 306).

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ligrado superar los prejuízos antropocéntricos y adoptar uma actitude objetiva y universal. (MOSTERIN, 2014, p.83).

No campo do direito ambiental esse argumento já é bem aceito, ou seja, a invocação da soberania como forma de descumprimento de determinados cuidados com o meio ambiente não é mais legítima no mundo moderno. A degradação do meio ambiente, seja quem for o seu responsável, não conhece as fronteiras entre os países. Essas foram criadas pelo homem, mas as crises de direito não as conhecem, razão pela qual a poluição, por exemplo, produzida em um país, não será impedida de ingressar em países vizinhos. A partir daí nasce a responsabilidade dos Estados pelo meio ambiente saudável em âmbito transnacional, questão essa expressamente enfrentada por Malcolm Shaw, nos seguintes termos: Os princípios de responsabilidade dos Estados rezam que os Estados devem responder por suas violações do direito internacional. Qualquer violação de um tratado ou do direito internacional consuetudinário permite ao Estado prejudicado apresentar uma reclamação contra o Estado que cometeu o delito. Tal reclamação pode dar-se quer por meio de ação diplomática, quer por meio de recurso a mecanismos internacionais, quando estes se aplicam à matéria em questão. Também é possível recorrer à arbitragem internacional ou à Corte Internacional de Justiça, desde que haja os necessários fundamentos jurisdicionais. (SHAW, 2010, pp. 627-628)

As afirmações do jurista inglês levam a concluir na linha do que se afirma acima, que se existe o direito material (meio ambiente saudável), se existem crises relacionadas a esse direito (danos ambientais), e se essas crises ultrapassam os limites geográficos criados pelo homem (as fronteiras), forçoso é reconhecer a necessidade de um mecanismo processual que venha a assegurar que tais crises sejam evitadas ou, se não for possível evitá-las, que sejam solucionadas. O direito dos animais é um excelente exemplo de direito que não pode ficar limitado à soberania dos Estados. Quando Charles Darwin escreveu seu livro denominado “A expressão das emoções no homem e nos animais”, em que pese chamar os animais de “inferiores”, em relação ao homem, reconheceu que eles são capazes de expressar as suas emoções (DARWIN, 2013). Porém ainda não se alcançou um estágio de evolução – essa sim, uma verdadeira evolução – para que se reconheça de forma pacífica o animal como sujeito de direitos, ainda que incapaz de exercê-los livremente,

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como os humanos, porém o tema é amplamente debatido na comunidade acadêmica internacional.4 Mesmo que não exista um consenso acerca da possibilidade dos animais serem ou não sujeitos de direitos, o fato é que eles são ao menos objeto de proteção pelo direito, e é através do direito que se desenvolve uma série de mecanismos para a real e efetiva tutela dos animais. A par da discussão que se estabeleceu sobre a real fonte do direito dos animais, se é o direito, ou a ética animal, tem-se como consenso que não se admite mais, no mundo moderno em que se vive, que animais sejam objeto de maus tratos e negligência, por parte de quem quer que seja. Não é crível que, em nome de uma “tradição”, se matem e/ou maltratem os animais para divertir os seres humanos, e em assim sendo é preciso que haja algum mecanismo administrativo, penal ou civil para outorgar aos animais a devida proteção, porque os animais sentem, como os humanos, dor.5 E a dor que os animais sofrem, quando provocada pela ação ou omissão intencional do homem, é mais do que dor física, é dor moral. Segundo os ensinamentos de Mosterin No todo dolor, ni siquiera todo dolor evitable, constituye un mal moral. El mal moral es el dolor positivamente provocado, el dolor debido a la interferencia de un agente humano y que no se habría producido sin esa interferencia, el dolor del que hay un culpable. (MOSTERIN, 2014, p. 36)

Portanto é absolutamente necessário superar a ideia de que o homem é o centro do universo, do cosmos, e que tudo e todos devem servi-lo, o conhecido “antropocentrismo”, considerado ingênuo, arrogante, morto e enterrado para Jesus Mosterin, porque não se pode mais pretender que toda a criação esteja a serviço do homem.6 No mesmo sentido são os ensinamentos de Peter Singer, que se refere ao especismo, como uma atitude parcial favorável aos interesses dos membros da nossa própria espécie e contra as outras (SINGER, 2011, p. 22). Somado a isso se tem que o intenso e desnecessário sofrimento imposto pelos humanos aos animais não humanos,

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A título de exemplo: SUNSTEIN, Cass R. e NUSSBAUM, Martha C. Animal rights – current debates and new directions. Oxford: Oxford University Press, 2004. 5

“A agonia da dor é expressa pelos cães quase da mesma maneira que por muitos outros animais, ou seja, uivando, estremecendo e se contorcendo” (DARWIN, 2013 p. 108). 6

“Criação” aqui segundo o mito judaico-cristão. Gênesis 1:1: “No princípio criou Deus o céu e a terra.”

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seja como manifestação “cultural”, seja para o seu deleite, não tem mais lugar no mundo de hoje. Para Paul Waldau é essencial perceber que quando [...] os seres humanos experimentam outros [...], não importa se estes „outros‟ são humanos ou membros de algumas outras espécies - paradoxalmente essa experiência de ir além de si próprio permite que os seres humanos se tornem plenamente humanos, como nós podemos ser, isto é, humano no contexto de um mundo biologicamente rico cheio de outros seres vivos interessantes. (WALDAU, 2011, xv)

A superação do antropocentrismo é, portanto um passo muito importante para uma nova concepção dos animais, inobstante, cabe ao Estado tomar providências efetivas, seja no campo legislativo, administrativo ou judicial, para tutelar os animais não-humanos, não porque essa proteção é benéfica para o homem, mas sim pelos animais em si próprios.7 A incipiência das normas de proteção na Espanha e no Brasil Já advertia Pablo de Lora que a Espanha tem a reputação, que a seu sentir é merecida, de ser um dos países mais cruéis e insensíveis com os animais (LORA, 2003, p. 12). E muito dessa reputação deriva da prática espanhola nas Corridas de Touros (Touradas), onde se sacrificam, com requintes de crueldades, touros, para o deleite do público que lota as praças para assistir a esse “espetáculo”. Segundo de Lora Un espetáculo cuya circunstancia más llamativa a los ojos de cualquier espectador mínimamente sensible es la crueldad despiadada hacia el animal es sin embargo descrito en los siguientes términos por el gran humanista español Pedro Laín Entralgo: „En su esencia, el toreo es un encuentro entre el hombre y el toro bajo forma de Lidia, en el cual hay desafio, juego, ostentación del poderío humano y murte real (la del toro) o muerte posible (la del torero); por tanto, drama. [...]‟ (DE LORA, 2003, p. 281)

As touradas espanholas são mais conhecidas no mundo inteiro, porém no Brasil também há uma forma de “espetáculo” que impõe ao animal, geralmente touros, um tratamento cruel, imensamente doloroso, também para satisfazer os “desejos” do animal não humano, que são os rodeios ou vaquejadas. Geralmente não há a morte dos animais, porém um animal humano monta em um animal não humano, e ambos são soltos na 7

“[...] nesta concepção antropocêntrica, o meio ambiente é protegido somente dentro do limite de proteção do homem e seu bem estar, havendo uma visão utilitária do direito ambiental e dos animais; e todas as suas necessidades, interesses e valores são subjugados em favor dos interesses humanos. Na proteção contra a degradação ambiental e das espécies, as vítimas serão sempre o homem.” (CHALFUN, 2010, p. 214).

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arena, de modo a que o touro fique pulando desesperadamente. Ganha aquele que consegue ficar mais tempo em cima do animal. Entretanto nada disso se faz sem a imposição de sofrimento: A produção de efeitos de dor e crueldade durante os rodeios ou vaquejadas é potencial, provável e verossímil. Provado está que para o animal pular e saltar, o peão de boiadeiro faz uso de equipamentos, como o sedém, esporas, peiteiras, e não raras vezes chega-se ao choque elétrico para atiçar os animais mais dóceis. O sedém consiste em uma tira de crina animal, fortemente amarrada no flanco inguinal (virilha) do animal, que comprime os ureteres (canais que ligam os rins à bexiga) e aperta o prepúcio e o pênis ao escroto, tornando o animal bravio e desesperado. Ao serem soltos na arena recebem um forte puxão, uma forte compressão, fazendo com que reaja com coices, enquanto estiver correndo. (AGUIAR, 2015, p. 172)

O que justifica tamanha crueldade, além de um apego a uma filosofia ultrapassada e injustificável hoje em dia, como o antropocentrismo, é a tradição. Tanto na Espanha quanto no Brasil são invocadas razões culturais, entretanto Mosterin alerta que Lo que nunca constituye justificación ética de una regla o costumbre es su carácter tradicional. La tradición puede explicar sociológicamente la existencia de ciertas normas morales o costumbres (mores) en un grupo social determinado, pero la tradición tiene valor nulo como justificación ética de nada. (MOSTERIN, 2014, p. 231)

Tradições, inventadas ou não (HOBSBAWM, 2007, p. 19), não podem ser meios legítimos de defesa de práticas tão cruéis contra os animais. Tradições culturais vêm e vão, de acordo com os valores éticos de cada momento histórico. Já foi outrora “tradição” não reconhecer as mulheres como sujeitos de direitos, não podiam trabalhar, não podiam votar, não podiam fazer nada que seus maridos não permitissem. Já foi culturalmente aceita a exploração do trabalho escravo, assim como o reconhecimento de um status jurídico de coisa. Todas essas práticas, inconcebíveis no mundo de hoje, já foram eticamente aceitas e juridicamente legítimas, entretanto não há como se sustentar a manutenção de tais práticas sob o manto da “tradição”.8 Se não pode o ser humano subjugar seus semelhantes com argumentos pseudolegitimadores, ancorados em “tradições”, não há razão ética para permitir a matança e a crueldade contra os animais não humanos. Outro fator que merece consideração: em um passado não muito distante

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“[...] certas tradições milenares já foram extintas, sem maiores problemas às populações que as praticavam. Não queimamos mais bruxas em praça pública. Outras tradições têm grandes batalhas para sua extinção, como as touradas espanholas.” MARANHÃO, Renata. Dilemas do século XXI. Avianca em revista. São Paulo, ano VIII, p. 30, jul. 2015.

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a opressão sobre as mulheres e os escravos gerava enormes ganhos financeiros para aqueles que se beneficiavam dessa prática, e atualmente não se pode negar que a exploração animal, ancorada em “tradições”, também proporciona lucros àqueles que delas se valem, a tal ponto que David Nibert sustenta que “a opressão de seres humanos e outros animais é enredada e que tal exploração é motivada principalmente por interesses econômicos.” (NIBERT, 2002, p. 15). Daí ser necessário que o Estado assuma a sua responsabilidade e concretize políticas públicas, criando leis mais protetivas, fiscalizando o seu cumprimento, e punindo aqueles que eventualmente teimem em continuar subjugando os animais, sendo inaceitável a sua omissão diante do sofrimento, absolutamente desnecessário, imposto aos animais para o entretenimento do homem. Com efeito, a exclusão dos animais da esfera da moralidade parte do princípio de que eles são destituídos de espírito, isto é, de atividades mentais como o querer, o pensar e o julgar, ou de atributos como a fala, a linguagem simbólica, o livre arbítrio, o raciocínio lógico, a intuição, a consciência de si, o “eu” ou a produção de cultura. Embora as ciências empíricas já tenham provado que estes argumentos são inconsistentes, eles ainda se encontram arraigados tanto no senso comum quanto na tradição filosófica e religiosa [...]. (GORDILHO, 2006, p. 38).

Para o filosófo Peter Singer, obviamente existem diferenças marcantes entre os seres humanos e os animais, inobstante esse fato evidente aos animais é devido o princípio básico da igual consideração de interesses. Extender de um grupo a outro el príncipio básico de la igualdade no implica que tengamos que tratar a los dos grupos exatamente del mismo modo, ni tampoco garantizar los mismos derechos a ambos. Que debamos hacerlo no o depederá de la naturezade los membros tratamento igual o idêntico, sino uma misma consideración. Considerar de la miesma manera a seres diferentes puede llevar a diferentes tratamentos y diferentes derechos. (SINGER, 2011, p. 18)

Se os animais estão na esfera da moralidade, é dever do Estado protegê-los, e o que Jesus Mosterin observa é uma falha do Estado nessa tutela, com escassas medidas legislativas sendo tomadas em alguns países na seara dos direitos dos animais, o que inclusive abriu espaço para que algumas pessoas pressionassem políticos mundo afora para conseguir alguma proteção legal aos animais indefesos diante da crueldade humana (MOSTERIN, 2014, p. 94). A lei já não representa mais a vontade da maioria, resultado, no mais das vezes, de pressões de determinados grupos – empresários financiadores de campanha eleitoras, ruralistas, religiosos, sindicalistas, servidores

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públicos, etc. (CAMBI, 2009, p. 182).

A Diretiva 93/119 do Conselho da União

Europeia, de 1993, após adotar uma visão totalmente antropocêntrica e capitalista, ao considerar que “as legislações nacionais relativas à protecção dos animais no abate ou occisão afectam as condições de concorrência e, consequentemente, o funcionamento do mercado comum dos produtos agrícolas”, resolve impor algumas regras que, em tese, protegem os animais no momento do abate, porém excluem expressamente da diretiva os animais mortos em manifestações culturais ou desportivas.9 Nos Estados Unidos da América a situação não é diferente, chegando ao ponto de as fazendas industriais organizarem-se em poderosos lobbies e acabar por restringir, ou mesmo eliminar, as liberdades democráticas na área rural. Não é possível, por exemplo, em alguns estados, que se tirem fotos dos complexos de criação e abate dos animais, por ser proibido por lei (LOURENÇO e OLIVEIRA, 2012, p. 229). Entretanto Cass Sunstein vê avanços nesse campo com a aprovação do Animal Welfare Act (AWA), em vigor desde 1966, e “se aplicado com rigor, [...] ao lado de outros decretos, impediria uma ampla gama de práticas abusivas. No entanto há uma grande diferença entre o texto legal e a implementação no mundo real.” (SUNSTEIN, 1999, p. 1). No Brasil a deficiência na proteção é a mesma. As políticas públicas essenciais aos seres humanos são objeto de um descaso histórico, ao ponto do Judiciário ser constantemente chamado para compelir o Estado a adotar essas políticas garantidoras de direitos fundamentais, transformando o Judiciário em verdadeiro ator principal na implementação dessas políticas. O ativismo judicial ganha força exatamente porque há, por outro lado, um “omissivismo” legislativo e executivo, e a partir do momento em que o Judiciário toma ciência de uma omissão estatal na implementação de uma política pública, manter-se omisso – ao lado do legislativo e do executivo – significa violar também os direitos fundamentais e deixar o cidadão sem a devida proteção. De acordo com Jaime Araújo Rentería “los derechos hay que asegurarlos frente a todos aquéllos que puden cercenalos; el legislador, el ejecutivo o los mismos jueces, todos por igual, pueden vulnerarlos” (RENTERÍA, 2009, p. 3). As ações coletivas como instrumento efetivo de proteção 9

Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:31993L0119&from=PT. Acesso em: 27 jun 2015.

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Considerando a ineficácia das normas de natureza penal e administrativa na proteção do direito dos animais, que continuam sendo submetidos à crueldade, seja pelas touradas espanholas, seja pelos rodeios brasileiros, considera-se necessário ampliar o espectro de proteção, através das ações coletivas, que uma vez ajuizadas formam um processo igualmente coletivo. Segundo a doutrina [...] conceitua-se processo coletivo como aquele instaurado por ou em face de um legitimado autônomo, em que se postula um direito coletivo lato sensu ou se afirma a existência de uma situação jurídica coletiva passiva, com o fito de obter um provimento jurisdicional que atingirá uma coletividade, um grupo ou um determinado número de pessoas. (DIDIER e ZANETI, 2010, p. 43)

Outra parte da doutrina prefere conceituar a ação coletiva, e não o processo coletivo, podendo ela ser definida [...] como direito apto a ser legítima e autonomamente exercido por pessoas naturais, jurídicas ou formais, conforme previsão legal, de modo extraordinário, a fim de exigir a prestação jurisdicional, com o objetivo de tutelar interesses coletivos, assim entendidos os difusos, os coletivos em sentido estrito e os individuais homogêneos. (MENDES, 2009, p. 24)

Já a Recomendação 2013/396 da União Europeia conceitua a tutela coletiva, nos seguintes termos Tutela coletiva, i) um mecanismo jurídico que garanta a possibilidade de duas ou mais pessoas singulares ou coletivas, ou uma entidade com legitimidade para intentar uma ação representativa, pedirem coletivamente a cessação de um comportamento ilegal (tutela coletiva inibitória), ii) um mecanismo jurídico que assegure a possibilidade de duas ou mais pessoas singulares ou coletivas que aleguem terem sofrido danos numa situação de dano em massa, ou uma entidade com legitimidade para intentar uma ação representativa, pedirem coletivamente uma indemnização (tutela coletiva indemnizatória).10

Em que pese a divergência acerca do conceito e de alguns elementos determinantes da ação coletiva, tem-se como consenso o fato delas se prestarem a proteger direitos não individuais, não importando se o país que a adota irá definir ou não o que sejam os direitos coletivos, porque no Brasil, por exemplo, é feita uma divisão tripartida entre os direitos coletivos lato sensu em: difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos. Já o direito norte-americano, o mais citado e estudado quando se trata de analisar as ações coletivas estrangeiras, não adota a referida distinção. 10

Disponível em: http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2013:201:0060:0065:PT:PDF. Acesso em: 25 jun. 2015.

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Portanto o que efetivamente importa para os fins desse estudo é se definir a efetiva proteção dos abusos cometidos contra os animais, através do cabimento das ações coletivas pela sua aptidão para proteger direitos e princípios, tais como da moralidade e legalidade, e que, ademais, não pertencem a um único indivíduo, mas sim a uma coletividade ou grupo de pessoas. É que há direitos que ultrapassam a esfera do indivíduo, e várias Constituições mundo afora os consagram, acompanhando a evolução do tema entre os juristas de todo o mundo, em especial após a clássica obra de Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, onde os direitos fundamentais são divididos em “gerações”. Segundo o jurista: Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. Mas já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo. (BOBBIO, 2004, p. 9).

A Constituição da República Federativa do Brasil é repleta de direitos metaindividuais, como o direito dos consumidores, ao meio ambiente saudável, direitos relacionados ao trabalho, à previdência social, e muitos outros. Igualmente a Constituição do Reino da Espanha, que consagra, de forma exemplificativa, o direito à liberdade religiosa, ideológica e de culto, de indivíduos e comunidades, bem como o direito de todos ao acesso à justiça, exatamente como a Lei Maior brasileira: “Todas las personas tienen derecho a obtener la tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejercicio de sus derechos e intereses legítimos, sin que, en ningún caso, pueda producirse indefensión.” Se existem direitos coletivos, bem como o direito de protegê-los em juízo, assegurados pelas Constituições da Espanha (art. 24.1) e do Brasil (art. 5º, XXXV), é preciso reconhecer o cabimento das ações coletivas como forma de proteção desses direitos. Segundo Pedro Lenza A profunda transformação estrutural da sociedade e do Estado, inevitavelmente, atinge a ciência jurídica. O direito, entendido aqui em sua significação mais extensa possível, adequa-se à metamorfose social e não o contrário. A transformação antecipa-se. O direito busca acompanhá-la e jurisdicionalizá-la, moldando-se à nova realidade. (LENZA, 2003, p. 25)

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Desta feita não se pode ignorar o cabimento das ações coletivas como instrumento de proteção dos direitos dos animais. Limitar a proteção dos animais à tutela penal e administrativa revela-se insuficiente, posto que ainda subsistem casos de tratamentos cruéis e degradantes com os seres não-humanos, de modo que para se conferir uma real e efetiva proteção, as ações coletivas são admissíveis. No Brasil não há maiores problemas quanto ao cabimento, porque a legislação brasileira é, pelo menos do ponto de vista teórico, bastante avançada na proteção jurisdicional coletiva, admitindo-se a proteção dos animais. Inclusive porque a Constituição consagra expressamente que um dos deveres do Poder Público é proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (art. 225, § 1º, VII). Se os animais são merecedores de proteção constitucional, não seria mesmo admissível que o direito infraconstitucional impedisse que a proteção fosse judicializada, sob pena de afronta ao texto da Lei Maior. Entretanto não se pode dizer o mesmo em relação à Espanha, basicamente por dois motivos. O primeiro deles é que a Constituição espanhola não protege os animais, mas apenas o meio ambiente11, e conforme se verificou neste trabalho, não se pode mais considerar os direitos dos animais como meramente ambientais. Ademais, ainda que os direitos dos animais fossem considerados como ramo do direito ambiental, a Constituição somente autoriza, pelo menos expressamente, as tutelas penais e administrativas. E assim chega-se ao segundo motivo: a limitação das ações coletivas no direito espanhol. No XIII Congresso Mundial de Direito Processual Civil, realizado em 2007, a jurista brasileira Ada Pellegrini Grinover, após receber de diversos juristas 25 (vinte e

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Artículo 45

1. Todos tienen el derecho a disfrutar de un medio ambiente adecuado para el desarrollo de la persona, así como el deber de conservarlo. 2. Los poderes públicos velarán por la utilización racional de todos los recursos naturales, con el fin de proteger y mejorar la calidad de la vida y defender y restaurar el medio ambiente, apoyándose en la indispensable solidaridad colectiva. 3. Para quienes violen lo dispuesto en el apartado anterior, en los términos que la ley fije se establecerán sanciones penales o, en su caso, administrativas, así como la obligación de reparar el daño causado.

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cinco) relatórios nacionais e 2 (dois) transnacionais, elaborou um relatório geral, alocando a Espanha dentre os países que apresentam leis setoriais em matéria de processos coletivos. O relatório, subsidiado pelas informações prestadas por José Luis Vázques Sotelo observa que En España la legislación, tanto la material como la procesal, solo contempla la acción que puede ser ejercitada por consumidores o usuarios para proteger sus derechos. No se contempla en absoluto una acción que pueda ser ejercitada para proteger otros intereses comunes a grupos o sectores de la ciudadania, como los transindividuales o los de bienes de uso general, como el médio ambiente. (SOTELO, 2011, pp. 153-154).

E prossegue o jurista sustentando uma defesa efetiva para meio ambiente através das ações punitivas: Se entiende que la tutela de estos intereses corresponde y es ejercida por las Administraciones públicas (la del Estado, o Administración central, las Autonómicas y las de los Municipios), sometidas a la crítica política de los grupos o partidos políticos y a la de los medios de comunicación de masas. También se considera que las infracciones graves al medio ambiente o a los intereses generales tienen su sanción más eficaz em el Código Penal, por lo que la tutela de esos intereses se encomienda al proceso penal, que se considera el arma más eficaz. (SOTELO, 2011, pp. 153-154).

Entretanto o direito espanhol está acompanhando a tendência restritiva para as ações coletivas, adotada no continente europeu por diversos países, e que não é benquista pela doutrina. Tratando especificamente da Recomendação 2013/396/EU, já citada, onde “[...] recomenda-se que todos os Estados-Membros disponham de mecanismos de tutela coletiva ao nível nacional que sigam os mesmos princípios básicos em toda a União, tendo em conta as tradições jurídicas dos Estados-Membros e a proteção contra os abusos,”12 Burkhard Hess observa que há, no caso, uma contradição do nome “recomendação” com seu conteúdo, já que em momento algum prevê princípios gerais de tutela coletiva, mas contém uma espécie de caixa de ferramentas legais destinada a ajudar os Estados membros na implementação de procedimentos nacionais de tutela coletiva (HESS, 2014, p. 7). Mais incisivos são V. Harsági e C. H. van Rhee, que não se mostram muito otimistas. Dizem que a história das ações coletivas na Europa13 pode ser qualificada 12 13

Recomendação 2013/396/EU. Fonte já citada.

Ressaltamos que os autores se referem às collective redresses, que seria apenas as ações coletivas para reparação de danos igualmente coletivos.

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como uma história de oportunidades perdidas e poucos progressos, devido a uma abordagem cautelosa demais do tema em âmbito nacional e continental, devido também, ao medo do American-style e, principalmente, ao lobby exercido por parte daqueles que um dia podem se tornar réus nessas ações (HARSÁGI e VAN RHEE, 2014, xix).14 Harbour, Evans, Poisson e Fléchet, por sua vez, ponderam que Embora a União Europeia tenha aprovado várias diretivas que impactam a disponibilidade das ações representativas, a União Europeia tem poder apenas limitado de legislar na área da justiça civil. A legislação implementando as diretivas da UE reflete as diferentes tradições do sistema judicial dos estados membros individualmente, bem como a legislação nacional em vigor e regras jurídicas relativas ações representativas. (HARBOUR et al, 2013, p. 144)

Portanto observa-se que o panorama das ações coletivas na Europa para a proteção dos direitos dos animais é nebuloso, não havendo atualmente, inclusive na Espanha, a possibilidade de se utilizar desse importante instrumento como forma de proteção aos seres não humanos. Sem força de lei, portanto sem poder ser invocado em uma ação coletiva como fundamento legítimo, tem-se ainda o Código Modelo de Processos Coletivos Iberoamericano, onde uma plêiade de juristas elaborou aquilo que considerava ideal, inclusive para o Brasil e a Espanha. O art. 1º do referido Código não faz qualquer limitação ao cabimento das ações coletivas, estatuindo a sua admissibilidade para interesses difusos ou individuais homogêneos, além de consagrar, no art. 4º, a efetividade da tutela jurisdicional, possibilitando a propositura de todas as espécies de ações capazes de outorgar uma proteção adequada e efetiva aos direitos supraindividuais.15 Assim sendo chega-se a um paradoxo: como superar a limitação imposta às ações coletivas na Espanha, pela omissão legislativa, como forma de proteger os animais, se há também uma omissão na tutela deles? Ou seja: é uma dupla omissão legislativa, a primeira em proteger os animais para que não sejam mais submetidos à 14

HARSÁGI, V. e van RHEE, C. H. Collective redress in the Europe Union – comparative perspectives. In: HARSÁGI, V. e van RHEE, C. H. Multi-party redress mechanisms in Europe: squeaking mice? Antwerp: Intersentia, 2014, p. xix. 15

Disponível em: http://www.pucsp.br/tutelacoletiva/download/codigomodelo_exposicaodemotivos_2_28_2_2005.pdf. Acesso em: 25 jun 2015.

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crueldade, e a segunda ao não se admitir a utilização das ações coletivas para proteção dos animais. No Brasil, como visto, as ações coletivas são admissíveis para a tutela dos direitos dos seres não humanos, inclusive pela atuação de um órgão público, o Ministério Público, que dispõe na lei brasileira de eficientes instrumentos. Segundo Laerte Levai [...] é possível exercer a tutela dos animais em plenitude, considerando que no âmbito cível os promotores têm ainda à sua disposição instrumentos importantíssimos para a defesa animal, como o inquérito civil, a recomendação, o termo de ajustamento de conduta e a ação civil pública. (LEVAI, 2012, p. 179).

Porém na Espanha as limitações são maiores, como visto, pela inexistência da ação coletiva no campo do direito dos animais, o que poderia, em tese, ser superado pela interpretação segundo a qual as ações coletivas são um fundamental mecanismo de acesso à justiça, e como se trata de um valor constitucional, não poderia a ausência de sua previsão em lei infraconstitucional justificar a inexistência da ação coletiva na defesa dos animais. Muitas obras já foram escritas a respeito do acesso à justiça, mas a clássica abordagem sobre o tema feita por Mauro Cappelletti e Bryant Garth é essencial, porque expressamente os autores colocam a tutela coletiva, ou alguma forma de proteção de direitos coletivos, como parte necessária do acesso à justiça. Com efeito, os juristas partem inicialmente da identificação dos obstáculos que impedem e/ou atrapalham o acesso à justiça, o que eles denominam de “barreiras”, para logo após proporem três ondas renovatórias capazes de, segundo eles, de proporcionar mais efetividade ao acesso. Podemos afirmar que a primeira solução para o acesso – a primeira „onda‟ desse movimento novo – foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses „difusos‟, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro – e mais recente – é o que nos propomos a chamar simplesmente „enfoque de acesso à justiça‟ porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representado, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo. (CAPPELLETTI e GARTH, 1998, p. 12).

Daí não ser absurda a ideia de que as ações coletivas, independentemente da eventual inércia legislativa, podem ser utilizadas para proteger os animais contra a crueldade imposta pelos homens. Conclusões

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Considerando que os direitos dos animais precisam ser objeto de uma efetiva proteção, e que a antiga noção de soberania não pode mais ser legitimamente invocada para justificar atos de crueldade contra os animais em nome da tradição e que há uma total incipiência nas normas protetivas dos animais por parte de vários Estados, incluindo a Espanha e o Brasil, é preciso que o Judiciário assuma um papel mais ativo. Para isso mostram-se adequadas as ações coletivas na proteção dos direitos dos animais, para que o Judiciário seja chamado a outorgar uma efetiva tutela àqueles que não podem, por conta própria, lutar pela sua vida. Obviamente que as ações coletivas também encontram barreiras, restringindo a sua admissibilidade, como ocorre no direito espanhol, de modo que se faz necessário superar tais barreiras, para que haja, de fato e de direito, uma efetiva proteção. Referências bibliográficas AGUIAR, Lucia Frota Pestana de. A tutela preventiva na proteção aos animais. São Paulo: Max Limonad, 2015. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo – direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: RT, 2009. CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução e revisão Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. CHALFUN, Mery. Paradigmas filosóficos – ambientais e o direito dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal. Vol. 5, n. 6, 2010. DARWIN, Charles. A expressão das emoções no homem e nos animais. Tradução de Leon de Souza Lobo Garcia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013. DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004. DIDIER JR., Fredie e ZANETI JR., Hermes. Curso de direito processual civil – processo coletivo. Volume 4, 5ª edição. Salvador: Jus Podivm, 2010. GORDILHO, Heron Santana. Espírito animal e o fundamento moral do especismo. Revista Brasileira de Direito Animal. Vol. 1, n. 1, 2006.

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