Aparecida: espaços, imagens e sentidos

July 6, 2017 | Autor: Adriano Godoy | Categoria: Social Anthropology, Anthropology of Religion
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ADRIANO SANTOS GODOY

Aparecida: espaços, imagens e sentidos

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ADRIANO SANTOS GODOY

Aparecida: espaços, imagens e sentidos

Orientador: Professor Doutor Ronaldo Rômulo Machado de Almeida

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do Título de Mestre em Antropologia Social.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO ADRIANO SANTOS GODOY, E ORIENTADA PELO PROF. DR. RONALDO RÔMULO MACHADO DE ALMEIDA.

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Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Godoy, Adriano Santos, 1989G548a G Aparecida : espaços, imagens e sentidos / Adriano Santos Godoy. – Campinas, SP : [s.n.], 2015. Orientador: Ronaldo Rômulo Machado de Almeida. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. God1. Basílica Nossa Senhora Aparecida. 2. Santuários. 3. Catolicismo. 4. Peregrinos e peregrinações . 5. Consumo (Economia) . 6. Cultura material. I. Almeida, Ronaldo Rômulo Machado de,1966-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Aparecida : spaces, images and meanings Palavras-chave em inglês: Sanctuary Catholicism Pilgrims and pilgrimages Consumption (Economics) Material culture Área de concentração: Antropologia Social Titulação: Mestre em Antropologia Social Banca examinadora: Ronaldo Rômulo Machado de Almeida [Orientador] Renata de Castro Menezes Maria Suely Kofes Data de defesa: 25-03-2015 Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social

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Resumo Aparecida/SP é uma cidade-santuário conhecida por sediar a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, e por ser um centro comercial. A Imagem Aparecida, em todos os casos, é o seu grande referencial. Etnograficamente ela não pode ser definida apenas pela religião, pela economia ou pela política porque as três categorias lhes são insuficientes. Aparecida é um nome polivalente e essa dissertação tem por objetivo explorar as potências antropológicas de seus espaços, suas imagens e seus sentidos. Palavras-chave: Santuários - Catolicismo – Romarias – Turismo - Consumo – Cultura Material.

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Abstract Located in the state of São Paulo – Brazil, the city of Aparecida is famous not only for its catholic Basilic of Our Lady Aparecida, but also for its great commercial importance. In any case, the main reference to the city remains the “Aparecida Image” – a famous clay sculpture found in a river. On an ethnographic point of view, it is insufficient to define it based only on religion, economics or politics. Aparecida has a multivalent name, and therefore this dissertation has the objective to explore all the anthropological potencies of this spaces, images and meanings. Key-words: Brazilian Catholicism – Pilgrimage – - Sanctuary - Consumption – Material Culture

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Sumário PREÂMBULO

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APARECIDA E FRANCISCO

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INTRODUÇÃO

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APARECIDA, SÃO PAULO, BRASIL: A CIDADE-SANTUÁRIO

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Romeiros e Aparecidenses

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O Centro de Aparecida

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Árabes e Mineiros

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O Vale do Paraíba

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Os Centros de Eventos

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A Cidade-Santuário

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PRIMEIRO CADERNO DE FOTOGRAFIAS

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NOSSA SENHORA APARECIDA: A SANTA, A IMAGEM, A MARCA

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Consagração

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Cerimônia do Manto

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Sala das Promessas

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A materialidade da religião

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As imagens de Aparecida

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SEGUNDO CADERNO DE FOTOGRAFIAS

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APARECIDA EM DISPUTAS E DISCURSOS

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Os feirantes

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Os comerciantes

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Os padres

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Polivalências de Aparecida

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Dedico às minhas avós Mathilde e Nenê, devotas de Aparecida.

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AGRADECIMENTOS Os agradecimentos de uma dissertação em antropologia, diferente de outras áreas do conhecimento, adquire mais importância porque ela só se realiza justamente através dos encontros que mantemos com outras pessoas. É este o presente caso, fruto de uma trajetória de três anos, e aqui quero agradecer todos àqueles que estiveram envolvidos, direta e indiretamente, e foram responsáveis por torná-la possível. Durante todo esse período, minha família esteve muito presente, chegando mesmo a atuarem como assistentes na pesquisa de campo, por livre e espontânea vontade. Agradeço todo carinho e disposição das minhas irmãs, Déborah e Andressa, principalmente pelas ajudas em campo. E agradeço aos meus pais, Darcy e Adriana, que desde o início deram apoio incondicional às minhas escolhas: amo vocês. Aos amigos de longa data, Vinícius Souza, Mirela Ferraz, Marcella Abboud e Mário Resende, eu agradeço pelo companheirismo nesse período, resistente à distância imposta muitas vezes pelas obrigações da própria pesquisa. Aos amigos e colegas desde a graduação, Bruna Calux, Flávia Paniz, Paulo Pinto, Rafael Marangoni e Raquel Modolo agradeço pelas vezes que me convenceram a sair da reclusão da escrita, garantindo assim a minha sanidade mental. À Fernanda Sampaio agradeço a amizade e o apoio nesse período, e por ter sido a primeira pessoa a me visitar em Aparecida. À Janaína Gomes agradeço todo o interesse pelo desenvolvimento desta pesquisa, inclusive nas terras baixas, e também pelas suas contribuições teóricas, lúdicas e etílicas. Ao Enrico Bueno da Silva agradeço a contínua camaradagem, que vem desde o início da vida universitária, pelos questionamentos sociológicos e pela assessoria em assuntos religiosos para essa pesquisa. Agradeço ainda por propiciar aquela experiência angolana em Aparecida.

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Ao Dalton Yatabe e à Adriane Bagdonas agradeço pelas vezes que me receberam em casa, assim como por suas onipresenças baronenses, que nunca me deixaram desinformado sobre quando e onde ir. À Marina Serva agradeço aos questionamentos que fez deste texto, pelas suas assessorias astrológicas, e pela companhia em tantos finais de semana campineiros, que ratificaram empiricamente a maravilha da autoestima. Ao Hugo Ciavatta agradeço pelas tantas leituras, irônicas e minuciosas, e por encorajar meu jeito de escrever. Agradeço toda hospitalidade ao me receber em terras baronenses, durante a pesquisa de campo, e por ter sempre a tirinha certa para a hora certa. Aos membros do Laboratório de Antropologia da Religião, cujos encontros vêm de muito antes, mas felizmente foi oficializado no decorrer dessa pesquisa, agradeço pela formação adquirida nessa área específica. Ana Carolina Rigoni, Anaxsuell Fernando da Silva, Asher Brum, Carlos Gutierrez, Deive Leal, Eduardo Oliveira, Everton de Oliveira, Hellen da Fonseca, Hugo Soares, Livan Chiroma, Lucas Braga, Milton Santos e Thuany Figueiredo: obrigado por compartilharem seus conhecimentos comigo. Ao Bernardo Curvelano Freire agradeço pelo acompanhamento e interesse, desde o projeto de pesquisa até a redação final dessa dissertação, através das suas leituras críticas e sinceras, que foram esclarecedoras ao me causarem confusão. Do mesmo modo, agradeço aos alunos do PPGAS, em especial àqueles das turmas de 2012, com os quais dividi tantos momentos de formação, informação e descontração, dentro e fora da universidade. Agradeço por cada um de vocês me inspirarem um modo específico de se fazer antropologia. Ao Guilherme Christol, ao David Reichhardt e ao Lucas Krasucki por demonstrarem que o engajamento e a pesquisa podem e devem andar juntos. À Mariana Marques pela determinação e seriedade. À Ana Piu pela arte. À Rebecca Slenes e ao Thiago Da Hora pela delicadeza e pela sensibilidade, inspiradoras sobre o humano e o religioso. Ao Liniker Giamarim Batista pela cooperação mútua que

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estabelecemos no decorrer da pesquisa, na qual subestimamos apenas o Açú e aquela tempestade em Carmo. À Catarina Casimiro Trindade agradeço pelas tardes na biblioteca, nas quais transmitiu alegria e brownies, principalmente quando conseguia dividir a atenção entre o celular e o forró. Agradeço ainda por me introduzir no xitiki, imprescindível no pós-bolsa. À Ana Elisa de Figueiredo Bersani agradeço por ser a companhia infalível, de todas as horas, mesmo questionando a sua percepção das horas. Por ter sido uma leitora assídua dessa dissertação, em todas as suas versões, e pela cooperação ativa na escrita, durante tantas manhãs e tardes, na biblioteca, e noites no Vila. Agradeço ainda por inspirar o título final dessa dissertação. À Lis Furlani Blanco agradeço por tudo, já que os superlativos seriam insuficientes. Por ser o exemplo maior de organização e objetividade, com a paciência de me auxiliar nesses quesitos várias vezes, sem nunca dispensar o bullying. Pelas conversas tão abstratas quanto inspiradoras, pelas viagens “totalmente demais”, e pelas inúmeras leituras, questionamentos, estímulos, piadas e críticas que fez para essa pesquisa. Ao Raphael Concli, ao Fernando Bee e ao Felipe Durante agradeço pelo compartilhamento de tantas jarras de café, garrafas de cerveja, mega pizzas e bandeijadas filosóficas. Dividir o mesmo teto com vocês e a Ofélia, em um momento crucial da escrita, foi vital. Agradeço a todos os funcionários do IFCH, em especial ao Alexandre D’Ávila, à Maria José Rizola e à Márcia Goulart, por me ajudarem tantas vezes, e conseguirem fazer que na burocracia o impossível se tornasse possível. Agradeço também os funcionários da Biblioteca Octávio Ianni, local onde quase tudo o que está aqui foi escrito. Do mesmo modo, agradeço à CNPq e à FAPESP por fornecerem os recursos materiais e financeiros, através do financiamento público estatal, sem o qual essa e tantas pesquisas seriam inviáveis.

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Agradeço a todos os alunos da disciplina de Antropologia da Religião de 2013, com os quais tive o privilégio de desenvolver o Estágio Docente. Principalmente pelas contribuições para essa dissertação, através dos questionamentos persistentes e efetivos que fizeram durante a nossa viagem de campo à Aparecida. À Professora Dra. Mariana Françozo agradeço pelo diálogo que mantivemos desde o início da pesquisa, e toda a disponibilidade ao me supervisionar durante a Bolsa de Estágio e Pesquisa no Exterior, desenvolvida na Universidade de Leiden. Agradeço ainda pelas reuniões de orientação que inspiraram o capítulo dois. Ao Professor Dr. Willem Hofstee agradeço o seu interesse e disposição nas reuniões que discutimos essa pesquisa, cujas referências bibliográficas foram fundamentais para desenvolver o primeiro capítulo. Agradeço a Sara Brandellero e a Tecia Vailati, pelos almoços tertulianos, e a oportunidade de expor e discutir o andamento dessa pesquisa. À Monique van der Geest agradeço por intermediar os tão numerosos e penosos trâmites burocráticos, sem os quais a viagem para Holanda não seria possível. À Professora Dra. Heloísa Pontes, ao Professor Dr. Omar Ribeiro Thomaz, à Professora Dra. Nádia Farage e ao Professor Dr. Mauro Almeida agradeço pelas excelentes disciplinas que ofereceram e que foram decisivas tanto para minha formação como para essa pesquisa. Ao Professor Dr. Christiano Key Tambascia agradeço pela atenção na banca de qualificação, e pela generosidade nos comentários, cujas sugestões reestruturaram todos os três capítulos, além dos cadernos de fotografia, para essa versão final. À Professora Dra. Renata Menezes agradeço pela arguição na banca de defesa, e todas as sugestões feitas tanto para essa versão final quanto para as minhas futuras pesquisas. À Professora Dra. Suely Kofes agradeço por tantas aulas inspiradoras e por toda a atenção minuciosamente concedida nas bancas de qualificação e de defesa. Agradeço também por me convencer pelo uso das fotografias.

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Ao Professor Dr. Ronaldo de Almeida agradeço pela formação e a parceria desde a graduação, marcadas sempre pela confiança mútua. Aos seus comentários precisos e preciosos, capazes de estimular e orientar o desenvolvimento da pesquisa, respeitando sempre a minha autoria. Agradeço ainda por aquela sopa, divinamente providencial, durante a fila papista. Por fim, agradeço a todas as pessoas que tive oportunidade de conviver durante minha estadia na cidade de Aparecida, e que são nomeadas durante a dissertação. Ela é fruto de nossos encontros, desencontros e questionamentos.

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No fundo são misturas. Misturam-se as almas nas coisas; misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e é assim que as pessoas e as coisas, misturadas, saem cada qual de sua esfera e se misturam. (Marcel Mauss, Ensaio sobre a Dádiva)

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Frente e verso do panfleto da visita do Papa distribuído pela Prefeitura Municipal. Figura 2 – Tabela de expectativa de movimento, distribuída pela Prefeitura Municipal. Figura 3 – Capas das programações de dois eventos. Figura 4 – Logotipo da Rede Aparecida de Comunicação.

LISTA DE MAPAS Mapa 1 – Região central da cidade de Aparecida/SP com destaque para a Avenida Rio Branco (SP-062). Fonte: Google Maps. Mapa 2 – Região central da cidade de Aparecida/SP com destaque para a região entre a Rodoviária Municipal e o Santuário Nacional. Fonte: Google Maps. Mapa 3 – O território municipal de Aparecida destacado no estado de São Paulo. Mapa 4 – Guia turístico distribuído pela Prefeitura Municipal. Mapa 5 - Região central da cidade de Aparecida/SP, com destaque para o perímetro no qual ocorre a Feira. Fonte: Google Maps.

LISTA DE FOTOGRAFIAS Fotografia 1 – Papa Francisco incensa uma imagem de Aparecida no altar da Basílica. Fotografia 2 – Pessoas fotografam missa celebrada por Papa Francisco. Fotografia 3 – Pessoas aguardam no corredor antes de entrar na Basílica para missa do Papa Francisco. Fotografia 4 – Fila do lado externo do Santuário Nacional para a missa do Papa Francisco. Fotografia 5 – Vista interna das cabanas improvisadas na fila para missa do Papa Francisco.

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Fotografia 6 – Vista externa das cabanas improvisadas na fila para missa do Papa .Francisco. Fotografia 7 – Agentes de segurança montam os raios-X e o detector de metal no corredor externo da Basílica. Soldados passam ao fundo. Fotografia 8 – Trator retira lombada em frente ao Seminário Bom Jesus, para passagem do papamóvel. Fotografia 9 – Vista da cidade de Aparecida/SP desde o Morro do Cruzeiro. Fotografia 10 – Igreja Matriz de Nossa Senhora Aparecida, conhecida como Basílica Velha. Em primeiro plano, a praça Nossa Senhora Aparecida. Fotografia 11 – Detalhe da Sala dos Milagres, com uma maquete da Igreja Matriz e das fotografias do teto. Fotografia 12 – Procissão noturna de Corpus Christi passa em frente a Igreja de São Benedito. Fotografia 13 – Três homens, em situação de rua, que pedem dinheiro próximo ao Terminal Rodoviário. Fotografia 14 – Procissão noturna da semana santa, portando velas, pela Passarela da Fé em direção a Basílica. Fotografia 15 – Vendedor ambulante na ladeira de Monte Carmelo. Fotografia 16 – Romeiros atravessam tapetes da procissão de Corpus Christi para entrar em hotel da ladeira Monte Carmelo. Fotografia 17 – Feirante expõe seus produtos à venda. Fotografia 18 – Vista da Feira aberta, e de parte do bairro central, desde a cobertura da Torre Brasília. Fotografia 19 – Desfile do Encontro Nacional das Congadas 2013 pela Avenida Rio Branco. Fotografia 20 – Levantamento do Mastro durante a Festa de São Benedito. Fotografia 21 – Romeiros escolhem bolsas em uma loja da ladeira Monte Carmelo. Fotografia 22 – Vista do Mirante da Santa entre bandeiras juninas.

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Fotografia 23 – Rainhas Congas durante Encontro Nacional das Congadas 2013. Fotografia 24 – Filas no corredor em frente ao Nicho da Imagem Aparecida. Fotografia 25 – Família em frente ao Nicho da Imagem Aparecida. Fotografia 26 – Nicho da Imagem Aparecida. Fotografia 27 – Contraste entre uma imagem Aparecida e o Mirante da Santa. Fotografia 28 – Padre Redentorista conduz a Consagração a Nossa Senhora Aparecida. Fotografia 29 – Detalhe do Mirante das Pedras. Fotografia 30 – Detalhe de um ex-voto na Capela das Velas. Fotografia 31 – Feirante discursa durante manifestação na Câmara dos Vereadores. Fotografia 32 – Romeiros na Capela das Velas. Fotografia 33 – Cardeal Dom Raimundo Damasceno, em pé, e Dom Darci Nicioli, sentado, durante celebração na Basílica de Aparecida. Fotografia 34 – Assembleia de feirantes na Rua João Paulo II. Fotografia 35 – Detalhe de dados de pelúcia à venda. Fotografia 36 – Fieis acendem velas na Capela das Velas. Fotografia 37 – Dom Darci Nicioli concede entrevista próximo ao altar da Igreja Matriz. Fotografia 38 – Vista da Feira desde as escadarias da ala norte da Basílica. Fotografia 39 – Vista da Basílica por entre as lonas da Feira.

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PREÂMBULO Aparecida e Francisco A pequena Imagem de Nossa Senhora Aparecida fica em um nicho dourado, e pode ser vista através do vidro blindado que a protege, com posição de destaque em sua Basílica, situada em Aparecida/SP, cidade localizada no Vale do Paraíba. Usualmente voltada para o corredor, no qual passam todos os dias multidões de pessoas interessadas em vê-la de perto. Porém, no dia 24 de julho de 2013 ela está voltada para o lado oposto, onde fica a Capela dos Apóstolos. Nesse local reservado é Papa Francisco quem a contempla com os olhos cheios de lágrimas. Após a oração pela Jornada Mundial da Juventude1 (JMJ), feita com voz embargada, em profundo silêncio, ele dá alguns passos adiante e, visivelmente emocionado, oferta um ramo de flores, toca aquele vidro, faz o sinal da cruz e logo em seguida uma reverência à Imagem. Aplaudido pelos padres da Arquidiocese de Aparecida, acompanhado por alguns cinegrafistas, o tão esperado e anunciado “encontro íntimo”, entre Francisco e Aparecida, foi transmitido por diversos meios de comunicação pelo mundo. A serenidade do olhar do Papa e da Imagem, focalizados por vários telões, contudo, contrastava com os sons que vinham de fora da igreja: o grito uníssono da multidão - “queremos respeito” – devido à longa espera e dificuldade para entrar no templo, reverberava nos vitrais e dificultava que eu entendesse o que era dito pelos altofalantes. Chovia torrencialmente, o que fez com que a chegada do Papa atrasasse, mas não intimidou as centenas de milhares de pessoas, que acompanharam o papamóvel do lado de fora, nem as dezenas de milhares que, assim como eu, estavam do lado de dentro do templo. Soldados do exército brasileiro, fardados, formavam uma corrente humana para conter aquelas pessoas. Tentando acalmá-los, um padre propôs pelas caixas de som que rezassem uma ave-maria, mas teve que a interromper, devido à vaia coletiva que recebeu. O 1

Como o nome indica, trata-se de um encontro mundial da juventude católica com o Papa. O evento acontece desde 1985, a cada dois ou três anos, em um país diferente.

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clima era de tensão, resultado da longa jornada anterior de sacrifício para presenciar aquele megaevento. Esse encontro era anunciado desde o fim do Conclave histórico, ocorrido em março de 2013, para a sucessão do Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger), o primeiro Pontífice a renunciar ao cargo desde o ano 1415. Com a eleição do argentino Cardeal Bergoglio, que saiu da Capela Sistina de ônibus, a sua fotografia dividindo o assento com o brasileiro Cardeal Damasceno, arcebispo de Aparecida, trouxe a confirmação da notícia: ele seria o terceiro Papa a visitar Nossa Senhora Aparecida. Sendo o primeiro Papa latinoamericano, além do primeiro Papa Jesuíta, a viagem evocava ainda mais importância. Se já era certa a ida ao Rio de Janeiro, para a Jornada Mundial da Juventude, a surpresa se deu porque a opção de visita à Aparecida já tinha sido rejeitada pelo seu antecessor. João Paulo II foi o primeiro Papa a ir até Aparecida, em 1980, quando inaugurou a nova Basílica. Já o Papa Bento XVI foi em 2007, para a abertura da Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, na qual Dom Jorge Bergoglio participou2 ainda como Arcebispo de Buenos Aires. Já intitulado Papa Francisco, ele manifestou a vontade de refazer a viagem como um romeiro, isto é, no intuito de um encontro íntimo e pessoal com a Imagem Aparecida, perante a qual consagraria a juventude católica. Resumida a esse encontro em Aparecida, a viagem não teria espaço para uma missa pública. Entretanto, o Santuário Nacional requisitava uma celebração a céu aberto, dado o grande número de pessoas esperadas. Assim, desde o anúncio até o dia efetivo da sua vinda, foram feitas várias viagens de comissões de Aparecida/SP para o Vaticano, e vice-versa, para preparação dos últimos detalhes. Em todo esse período, por ser a primeira viagem internacional do novo Papa, Aparecida tornou-se um dos alvos da imprensa, aparecendo em meios de comunicação nacionais e internacionais. O Santuário Nacional, por meio de seus próprios meios de comunicação, informava diariamente sobre os preparativos em andamento.

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Cardeal Bergoglio presidiu a comissão que redigiu o texto conclusivo do encontro, intitulado “Documento de Aparecida”.

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Uma das entrevistas, mais significativas, ocorreu no dia da confirmação definitiva da visita, em maio de 2013, pela Rede Aparecida de Televisão. Nessa ocasião, em tom informal, Dom Raimundo Damasceno (DRD) e Dom Darci Nicioli (DDN) falavam do início dos preparativos. (DDN) O Papa parece que teria manifestado o seu desejo de um encontro mais íntimo com a virgem, e gostaria então de uma celebração não tão aberta ao público, né? Parece que, em um primeiro momento, ele teria manifestado essa sua intenção. Porém, vai ser quase que impossível que o Santo Padre celebre somente dentro da Basílica. Pelo menos é aquilo que Dom Raimundo Damasceno insistiu com a equipe que organiza essa viagem, mas devemos, é claro, respeitar o desejo do Santo Padre, e esperaremos uma resposta de Roma e estamos torcendo pra que seja sim: uma missa campal, exatamente naquele local onde Bento XVI celebrou a sua missa. O Santo Padre esteja celebrando também até para um maior contato, mais largo com todo o povo brasileiro, já que ele estará só no Rio e só em Aparecida, então é oportuno que seja uma missa campal, não é verdade Dom Damasceno? (DRD) Perfeitamente, porque nós esperamos aqui cerca de trezentos, quatrocentos mil fiéis, devotos de Nossa Senhora. Como colocar esse pessoal dentro da Basílica? Ou então, como distinguir, né? O credenciamento para ver quem entra na Basílica, quem fica fora participando através dos telões que poderão ser colocados aqui na praça, né, da Basílica. Então tudo isso é muito difícil, vamos ver se a gente consegue do Santo Padre que ele atenda esse nosso desejo, mas caso não seja possível, evidentemente que nós os acolheremos da mesma maneira, com todo o afeto, com todo carinho, e a decisão é claro cabe a ele, que é o que nos visita e nós os acolhemos como anfitrião, mas temos que respeitar os desejos, é claro, do visitante sobretudo que é ele quem vai presidir a eucaristia. Então nós estamos aguardando e vamos ver que definição teremos daqui para frente. (...) (DRD) Bom, é claro que é uma visita mais breve, né? Como já anunciamos aqui, apenas um dia e... claro que o Papa vai vir ao Santuário, irá ao Seminário Bom Jesus, a Pousada do Bom Jesus, e fará esse percurso no papamóvel, portanto, vai percorrer o centro da cidade e não mais... não fará aquele percurso que o Papa Bento XVI fez. Ele fará o percurso pelo centro mesmo, tanto na ida como na volta, também para tomar novamente o helicóptero de regresso ao Rio de Janeiro. Então é claro que a cidade terá que fazer alguma coisa é... costuma-se dizer popularmente que o Papa, em suas visitas a algumas cidades, é sempre o melhor prefeito daquela cidade [risos] é... porque em pouco tempo, e poucos dias de sua presença, muitas vezes a cidade se movimenta... (Jornalista) Se faz o que não se faz em quatro anos, não é Dom Damasceno?

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(DRD) É... se movimenta na preparação. E é claro que virão muitos romeiros, e Aparecida tem que se preparar. Está habituada a receber, é claro, números grandes de romeiros: duzentos mil romeiros. É... acontece isso aqui, em Aparecida. Agora será maior o número de romeiros, né, na visita do Papa, embora seja de um dia só, então a cidade tem que se preparar. Segurança, alimentação, saúde. (DDN) Os hotéis! (DRD) Os hotéis, é claro, temos que trabalhar agora pra dar uma acolhida melhor aos romeiros. É claro, em primeiro lugar, que são os nossos fregueses. É, vamos dizer assim, clientes permanentes aqui, que vem sempre por causa de Nossa Senhora. Mas agora, vamos ter uma visita ilustre também, que é do Papa Francisco. Então precisamos acolhê-lo, também com dignidade, com simplicidade como é o estilo do Papa Francisco, mas com todo o respeito, e com toda a dignidade também que ele merece. (J) Aí nós temos imagens ao vivo da cidade de Aparecida, câmeras exclusivas da Rede Aparecida de Comunicação, com o Santuário Nacional ao fundo, hoje um dia muito bonito, um dia de sol aqui na cidade de Aparecida. Agora, Dom Darci, eu falava da estrutura, justamente, porque não consiste somente na vinda do Papa em sua visita ao Santuário. O Santuário já demonstrou que é muito competente, na organização de grandes eventos, só que a cidade precisará receber em torno de trezentas a quatrocentas mil pessoas, e esses peregrinos, que virão até Aparecida, querem estar tranquilos, né? Da sua estadia, da sua permanência na cidade de Aparecida. O que precisava ser feito, urgentemente, pra garantir essa tranquilidade ao peregrino? (DDN) Nós estaremos contando, com certeza, com as forças militares e todas as forças de ordem pública, mas a prefeitura de Aparecida vai ter que se esmerar, também, para apresentar não só ao santo padre, mas aos peregrinos, ao Brasil e ao mundo inteiro, porque será notícia no mundo inteiro, uma cidade mais bonita, esteticamente melhor organizada, especialmente aquele centro da cidade, vindo ali do Bom Jesus, e certamente, o Santo Padre virá na contramão do atual fluxo, passando pela Praça de São Benedito. Nós temos ali, aquela, uma praça, uma praça tão bonitinha, tão carinhosa, mas tão atulhada! (J) Não bem cuidada... (DDN) Não bem cuidada! Agora temos, também, um esforço bastante grande do prefeito Márcio que, aliás, agora sofre uma intervenção, e assume o... o atual vice prefeito, o Sargento Ernaldo, e temos uma relação muito boa com o poder público municipal. E nós estamos na expectativa, também daquelas barracas da feira, que contorna o... que contorna o Santuário Nacional, já está em processo de organização da grande avenida, onde ali serão colocadas as barracas, até porque a feira, que é uma instituição que devemos prezar, que devemos proteger, que

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devemos incentivar, esteja melhor postada naquele... naquele espaço, que tá ficando um espaço muito bonito, um espaço aberto. Então se melhor organizado, todos vão ganhar: tanto os feirantes, como aqueles que visitam e gostam de ir comprar na... na feira, como a própria cidade de Aparecida, e os... os transeuntes, os nossos queridos romeiros, que merecem uma cidade melhor organizada.

De fato, ouvi mais de uma vez que “o Papa é o melhor prefeito que a cidade já teve”: as duas visitas papais anteriores foram responsáveis por diversas obras estruturais em Aparecida/SP, como calçamento padronizado de toda a região central além da instalação de luminárias e lixeiras públicas estilizadas, em forma de sinos. O que as falas dos dois bispos aparecidenses deixam claras é a cobrança feita à prefeitura pelo clero para que tal empreitada se repetisse. Do mesmo modo, no encerramento do programa televisivo, o bispo faz um apelo aos romeiros: (DDN) Agora é preciso também que o fiel que virá a Aparecida, que sempre vem a Aparecida, colabore no sentido de que, por exemplo, não abra seu carro para aceitar convites na entrada de Aparecida. Sempre tem vendedor de fitinhas e a gente não consegue organizar isso. Agora, aquele a que aqui vem tem que saber também: não abra o seu carro para receber qualquer proposta, entre dentro dos estacionamentos do Santuário Nacional ali você tem toda segurança, todo o acompanhamento necessário. Depois, não cabe mais, Eduardo, barracas com... com... fogareiro a gás, por exemplo, no meio de uma multidão de gente. Então, não compre comida e lanches em, em, em barracas, mas em estabelecimentos constituídos. Quer dizer, o fiel também deve se educar nesse sentido, é nessa oportunidade que educa a cidade como um todo para sair desse improviso. E saber que é uma cidade hoje de nível internacional! E se melhores apresentarmos os nossos trabalhos para o acolhimento dos fieis, certamente todo mundo ganha e Aparecida e vende uma outra imagem: que a sua vocação é acolher. Não é? Então vamos crescer todos nós: a cidade tem o seu dever de casa pra fazer, mas o fiel que nos visita também.

Passado o momento de euforia daquela primeira semana, o que mais chamou minha atenção foi perceber certa naturalidade, isto é, para os aparecidenses, a visita do Papa operava mais no nível do ordinário que do extraordinário. “Na semana do papa, vai ter gente limpando as luminárias da rua com cotonete, você vai ver” - disse-me uma senhora – “mas depois vai voltar a ser essa porcaria aí”, complementou. De maneira hegemônica, os residentes não mostravam entusiasmo com as promessas de estrutura na cidade. “Aqui tá todo mundo vacinado com o

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papa” - explicou um lojista - “agora a gente já sabe que é só como um domingo a mais no mês”. Devido às experiências anteriores, que foram um fracasso para as expectativas dos comerciantes, eles não esperavam retorno econômico relevante. Se nas visitas de João Paulo II e Bento XVI foram feitos grandes estoques e disponibilizados diversos produtos personalizados, que não foram vendidos, com a vinda de Francisco isso se mostrava diferente. Poucas lojas se prestaram a essa empreitada, e as que a fizeram foram cautelosas. Como fica evidente, essa notícia coincidiu com um momento peculiar na cidade. Por um lado, o prefeito municipal havia sido afastado por suspeitas de corrupção e, por outro, havia uma batalha política em andamento, entre os feirantes e o poder público. Como um forte catalisador, a visita papal fez com que esses impasses se pautassem concomitantemente. “Esse papa tá mudando tudo, chegou a ver que ele dispensou limusine e a corrente de ouro? Dá até esperança de ver gente boa e humilde assim, na Igreja, porque a gente tá acostumado com os padres daqui, que são tudo mercenário”, afirmou um feirante, logo após uma das assembleias que acompanhei. Com discursos calorosos tanto contra o Santuário Nacional quanto contra a Prefeitura Municipal, a reação dessas pessoas à visita papal era dúbia: enquanto ela se mostrava uma boa oportunidade para atingirem seus objetivos de regularização das bancas da feira, ao mesmo tempo, eles eram céticos quanto às reais intenções da mudança, que poderia acentuar ainda mais os problemas. Contudo, mesmo com ceticismo quanto aos efeitos práticos, não escondiam o entusiasmo com o carisma de Francisco. Na mesma assembleia, parte dos feirantes optou por não abrir as suas bancas no dia da visita, para poder acompanhar a missa dentro do Santuário. Boa parte dos feirantes também estava preocupada com atos de vandalismo, temendo que se repetissem as cenas que acompanharam nas manifestações ocorridas em junho de 2013, que se espalharam com vigor por todo o país, inclusive naquela cidade. Aliás, essa preocupação não foi exclusiva deles. Nessa mesma semana, um lojista apreensivo, chamou-me: “hoje teve um general aqui perguntando se tinha visto gente suspeita pela cidade, e a descrição que ele fez é de gente jovem e com barba, com cara de universitário, assim que nem você: é bom ficar esperto!”. Uma semana antes do

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evento, milhares de militares do exército e da aeronáutica chegaram ao município, fazendo mapeamentos das ruas e estabelecendo diálogos com os moradores, realizando a operação padrão para chefes de estado. Uma escola vizinha à minha casa foi transformada em Quartel General de Operações Rápidas e, parte do estacionamento do Santuário, em um acampamento e hospital militar. Todos os dias, pontualmente às seis horas da manhã, havia hasteamento da bandeira e canto do hino nacional, no pátio da escola, seguidos de uma corrida pelas ruas da cidade. Durante os sete dias, dia e noite, todo o quarteirão do Seminário Bom Jesus, onde Papa Francisco almoçaria, foi cercado por soldados armados com rifles a cada dois metros. Com posicionamentos que iam para além da rota oficial, como soldados em coberturas de hotéis próximos à igreja matriz, boatos passaram a surgir sobre o percurso de Francisco. Alguns diziam que, na realidade, ele faria o caminho a pé, e outros que atravessaria a passarela, descalço e portando a Imagem Aparecida.

Figura 1. Frente e verso do panfleto distribuído pela Prefeitura Municipal.

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Foi nessa mesma semana que a Prefeitura Municipal efetuou as obras de estrutura, que se restringiram exclusivamente ao percurso a ser feito: grades foram fixadas, separando as vias das calçadas, cartazes de boas vindas pendurados e as luminárias devidamente limpas. As respectivas ruas foram recapeadas, e as lombadas existentes foram retiradas, exigências para a circulação do papamóvel. Já próximo da data da visita, chegou-se ao consenso: uma missa no interior da Basílica, na quarta-feira, dia 24 de julho de 2013. No dia anterior, contudo, incertezas continuavam. Oficialmente, só poderiam entrar na igreja quinze mil pessoas: três mil vagas eram para convidados especiais, já os outros doze mil seriam selecionados por ordem de chegada. Foi marcante a presença maciça de pessoas uniformizadas, fossem os soldados do exército e das polícias, agindo de maneira ostensória, como os funcionários da prefeitura e das empresas terceirizadas que cuidavam da manutenção das vias. Do mesmo modo, diversos grupos de romeiros vestiam camisetas idênticas, que indicavam sua cidade de origem e o rosto de algum santo ao lado do rosto do Papa. Durante todo o dia que precedeu à visita, em companhia do Professor Ronaldo de Almeida, pudemos acompanhar os preparativos finais, fossem pelas ruas, nas lojas, nas praças, nas celebrações na Igreja Matriz e mesmo dentro do Santuário Nacional. Dada a grande quantidade de coisas acontecendo simultaneamente, e em locais distintos, optamos pela separação, no intuito de conseguirmos abranger melhor aquela pluralidade. Enquanto ele se responsabilizou por acompanhar a visita papal pela parte externa da Basílica, eu fui me informar de como conseguir acompanhar do lado de dentro da igreja, visando uma abordagem comparativa. Desde cedo, emissoras de televisão já entrevistavam aqueles que formavam uma fila improvisada, para conseguir assistir à missa do lado de dentro. E foi até lá que me dirigi. Os portões do Santuário Nacional seriam fechados durante a noite, o que não costuma ocorrer, por questão de segurança. Descobri isso por volta das 17 horas, quando, sem mais informações disponíveis, fui para o meu respectivo lugar na fila, em companhia da minha irmã, interessada em ver o Papa e em me ajudar.

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Todos seguiam a mesma fila na calçada, que terminava no portão principal, e contornava os muros do Santuário pelo lado exterior. Ninguém tinha ideia de como proceder. Durante as primeiras duas horas, as dúvidas foram o tema das conversas. Quando chegaria o Papa? Quando abririam os portões? Haveria espaço para todos na igreja? Como controlariam a fila? Nenhum meio oficial de comunicação pôde responder. Um casal alertava, de acordo com a experiência de terem visto ali os outros dois papas, que a noite seria difícil. Garantidos os lugares, os grupos de pessoas que se formaram passaram então a planejar como passariam a noite naquela calçada, localizada em um espaço em que usualmente ocorria a Feira, a Avenida Júlio Prestes. Foi nesse dia de véspera que os feirantes entraram em acordo com a Prefeitura Municipal e usaram apenas a Avenida João Paulo II. Dito de outro modo, a fila começava no espaço em que a feira acabava. No cair da tarde, passaram a surgir diversas pessoas, entre elas os próprios feirantes, incluindo alguns que conhecia previamente, empurrando carrinhos de mão cheios de papelão, vendidos por um real a peça. Cada qual com seu papelão forrando o chão, os grupos passaram então a delimitar o espaço com as mochilas e demais objetos portados. Havendo mais pessoas juntas, tanto à minha frente como atrás, eu que tinha somente a companhia da minha irmã, fiquei com um espaço menor. Com o tempo nublado, não tardou em começar uma garoa que passou a comprometer os papelões postos. Do mesmo modo, os vendedores de papelão passaram a vender capas de chuva. Assim, o segundo movimento foi o de buscar alguma proteção: enquanto uma pessoa guardava o respectivo local da fila, outra ficava responsável pela busca. O grupo de trás na fila comprou duas barracas de camping em uma loja próxima, que vendia cada uma por quinhentos reais. Eu vaguei pela chuva sem encontrar nada acessível. Quando voltei, o grupo da frente havia conseguido uma grande lona preta e usaram os ganchos na parede, outrora usados pelas bancas da feira, para estender a lona até a guia da calçada usando pedras como peso. Protegido apenas pela capa, na chuva que aumentava, passei a negociar um espaço para duas pessoas embaixo da lona. Porém, sem muito sucesso: um senhor, acompanhado de seu filho, era estritamente contra, pois o

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número de pessoas já era muito alto. Já outro rapaz, que depois descobri ser seminarista, defendia que poderíamos ficar ali. O veredito final foi que tínhamos direito a apenas um espaço, o qual eu e minha irmã revezamos durante a noite. Nos momentos intercalados sob a lona, pude conhecer um pouco daquelas pessoas, dezoito no total. Na realidade não se tratava de um grupo fechado, mas pequenos grupos que ali se encontraram. O pai e filho mencionados eram da cidade de Taubaté/SP, e ali chegaram juntos. Por estarem contrariados com minha presença sob a lona, não dialogamos muito. Com quem mais falei foi o seminarista, que advogou a meu favor. Nativo de Pernambuco, há pouco mais de um ano ele estava vinculado à Comunidade Canção Nova3, local em que cursava filosofia. Acompanhado de outros dois seminaristas, na mesma situação, narraram as dificuldades que encontravam em viver em comunidade e dividir alojamentos, fazendo paralelos com aquela situação em que nos encontrávamos. Esses seminaristas chegaram ali acompanhados de uma mulher com seus quatro filhos, todos residentes em Cachoeira Paulista/SP, coincidentemente minha cidade natal, o que nos rendeu assuntos em comum. Essas pessoas, por três vezes, entoaram o Terço da Divina Providência 4, característico da Renovação Carismática Católica 5 (RCC), linha da qual eram adeptos. A primeira delas teve de ser interrompida, com as questões evocadas por outro rapaz, que ali chegou sozinho. Identificando-se como estudante de agronomia, exadepto das Testemunhas de Jeová e ateu, o jovem interrogava como os seminaristas lidavam com questões como a “ascensão gay”, “a dominação maçom das universidades” e “a influência illuminatti na guerra do Iraque”. Afirmou estar ali por curiosidade, “queria ver de perto como católicos lidam com o papa”. Todos os tópicos foram debatidos calorosamente. Portando um termômetro, ele ainda narrara a queda de temperatura, que

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Canção Nova é uma comunidade brasileira, adepta da Renovação Carismática Católica, fundada em 1978, com sede em Cachoeira Paulista/SP. Ela é conhecida principalmente pelo seu sistema internacional de rádio e televisão. 4 É uma maneira específica de se rezar o terço católico, no qual a oração da Ave-Maria nas contas pequenas é substituída pela oração “Deus provê, Deus proverá, sua misericórdia não faltará”. Assim como nas contas grandes a oração do Pai-Nosso é substituída pela oração “Mãe da Divina Providência, Providenciai!”. 5 É um movimento da Igreja Católica Apostólica Romana que teve início durante dos anos 1960, nos Estados Unidos da América. Defende uma renovação dos ritos tradicionais, baseando-se no carisma e nos dons do Espírito Santo.

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chegou a cinco graus Celsius de madrugada. Posteriormente, pude confirmar ter sido a noite mais fria do ano. A segunda tentativa do terço fluiu ininterruptamente, após o rapaz ateu ter dormido. A única dificuldade era a de competir com o tom de voz dos ambulantes que passavam pela rua gritando os produtos à venda: “olha o papelão, a capa, a água, o salgado e a sopa!”. Por fim, por volta da uma hora, a última tentativa do terço fluía bem até que a lona rasgou, pelo vento forte e peso da chuva. Enquanto tentávamos prender a lona novamente na parede, outro senhor, vinculado à Sociedade São Vicente de Paulo, afirmava que aquela era uma ótima lição de humildade vinda de Deus, para todos aprendermos como “os irmãos mendigos passavam todas as noites” ou ainda “valorizar mais a luta dos irmãos do MST” [Movimento Sem Terra]. Após o restabelecimento do espaço, e o fim do choro das crianças, todos devidamente acomodados e em silêncio, pudemos dormir. O sono, contudo, não durou muito: fomos todos acordados por volta das quatro horas com gritos de “Abriu! Abriu!”. A fila toda foi se levantando, os abrigos sendo desmontados e os pertences guardados. Chovia bastante, quem tinha capa de chuva a vestia e quem não tinha colocava os papelões sobre a cabeça. Nesse meio tempo, algumas pessoas aproveitando a confusão passaram a furar a fila, o que resultou em discussões e empurrões que se repetiram em diversos pontos: “É pra dar a mão! É pra todo mundo ficar de mãos dadas, assim ninguém fura fila”, gritam dois rapazes ao passar pela rua. Todos concordam e a fila se tornou uma grande corrente de pessoas de mãos dadas, sob o escuro, o frio e a chuva. Minha irmã e eu demos as mãos para pessoas desconhecidas, já que perdemos de vista aqueles com quem passamos a noite. Os portões estavam fechados. Os boatos de abertura se repetiam inúmeras vezes, como quando os sinos da Basílica soaram às cinco horas da manhã. Nessa posição, por toda a hora seguinte, houve orações do terço a Nossa Senhora Aparecida, variados cânticos de louvor e principalmente reclamações contra o Santuário Nacional: “o que irrita é pensar que o Papa nem acordou ainda e a gente aqui”. Junto com o raiar do sol, passaram a chegar dezenas de ônibus, que paravam pela rua. Os recém-chegados tentavam entrar na fila, mas eram vaiados e contidos pela corrente humana. Logo em seguida, centenas de policiais fardados começaram a passar, em

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grandes grupos: gritos de “até que enfim!” e “resolveram trabalhar é?” eram ouvidos. “Vocês tem que organizar a fila” – gritou um homem – “não temos nada a ver com isso”, ouviu como resposta de um policial rodoviário. “A gente tá sozinho mesmo, a polícia joga a culpa pro Santuário que joga de volta”, comentou um senhor a sua esposa. Ainda com a tensão dos eventuais fura-filas, uma nova tática foi criada, com o uso de barbantes amarrados nos postes e árvores que separavam a calçada da via. Devidamente em seus postos, ainda de mãos dadas e com a pausa na chuva, passamos então a ser abordados por vendedores, que ressurgiram com novos produtos: binóculos, pedaços de bolos e café. “Esse povo de Aparecida vende até a mãe, parece turco” - exclamou uma senhora - “fosse futebol podia fazer o que quiser, mas aqui é igreja”. Outro senhor, concordando, complementou dizendo que “brasileiro não tem jeito”. Logo após os grupos de policiais, o que se via eram outros grupos de dezenas de religiosos: freis e freiras das mais variadas ordens passavam, secos, pela rua em direção ao portão. A comoção da fila foi ainda maior, uma grande e longa vaia era escutada em todo o percurso. Ironicamente, referindo às batinas das irmãs franciscanas, uma mulher gritou “capa de chuva marrom pode furar fila, é? furar fila é pecado, hein?”. Não tardou para que toda a fila, massivamente, gritasse em conjunto: “Excomunga! Excomunga! Excomunga!” para todos aqueles religiosos que passavam secos. Essas cenas se repetiram até às sete horas da manhã quando, de fato, os portões foram abertos. Coincidindo com uma tempestade, a desordem foi grande. Os barbantes foram rompidos pelas pessoas na rua, todos corriam em direção ao portão, alguns eram empurrados e outros caíam ao escorregar nos papelões enlameados. Próximo ao portão a tensão era grande, com ônibus estacionando naquele momento e os passageiros entrando diretamente no Santuário. Do lado de dentro, alguns soldados da Polícia Rodoviária Federal organizavam outra fila: “só vai entrar na Basílica quem estiver com a pulseira”, falavam pelos megafones. Após receber a pulseira que trazia uma reprodução da Imagem Aparecida ao lado do logotipo da JMJ, era possível dirigir-se até a Basílica. Agora protegidos da chuva, nos corredores externos, formamos outro conglomerado de pessoas. Pela norma de segurança, todos deveriam passar pelos detectores de metal, pelos raios-X e serem

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revistados individualmente. Guarda-chuvas, objetos pontiagudos e arremessáveis eram proibidos. Assim, as 12 mil pessoas que pegaram as pulseiras aguardaram a sua vez. Contudo, foram disponibilizados seis aparelhos no total, dois em cada porta, o que resultou em certa demora. Se para os soldados do Exército, que faziam a triagem, era a pulseira o diferencial, para os demais era a umidade das roupas: sempre que era identificado alguém com roupas secas, o que comprovava que não tinha ficado na fila noturna, o sujeito era alvo de vaias, acusações de pecado e os mais diversos xingamentos. Um casal com seus dois filhos, após serem identificados e vaiados, pediram escolta para um dos soldados, que os levou diretamente para dentro da igreja. Sem espaço para me mover, isto é, nem mesmo abrir os braços, estava levando e sendo levado pela multidão em direção à porta. Quatro pessoas que estavam próximas a nós não aguentaram a situação e desmaiaram. Já outra senhora, de baixa estatura, conseguiu chegar rapidamente à porta, através de cotoveladas abdominais. A chegada do helicóptero papal acirrou ainda mais os ânimos. Diversas tentativas de rebelião, com empurrões e gritos coletivos de “Cadê a Organização?” não obtiveram sucesso na agilidade. Um soldado anunciou, pelo megafone, que caso insistissem, a entrada por aquela porta seria cancelada. Após chegar de helicóptero diretamente do Rio de Janeiro, e ser recebido pelas autoridades eclesiais e políticas, o pontífice atravessou de papamóvel a multidão de pessoas que o aguardava do lado de fora do templo, parando para beijar alguns bebês que lhe eram oferecidos. Consegui entrar no templo às dez horas da manhã, momento que acompanhei pelo telão o “encontro íntimo de Francisco e Aparecida”, já narrado. Após a oração feita em frente à Imagem Aparecida, Papa Francisco já paramentado caminhou até a nave central da Basílica, para dar início à missa. Nesse percurso, acompanhado de dezenas de bispos, passou pelo corredor da nave sul da Basílica, onde centenas de padres, esticando suas câmeras fotográficas e celulares, assistiriam à celebração. O primeiro ato da missa foi a saudação, feita pelo Cardeal Damasceno, que afirmando ser o porta-voz de todos os brasileiros lhe ofereceu um presente:

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Quando o bispo de Roma se faz também um romeiro de Nossa Senhora, todos eles se sentem confirmados na verdade da fé. No início dessa celebração solene, em nome dos devotos de Nossa Senhora Aparecida, em nome de todos os presentes, em nome dessa Arquidiocese e de todo o Brasil, entregarei à Vossa Santidade uma réplica da Imagem de Nossa Senhora Aparecida, esculpida em madeira por um artista da região. A cor negra dessa Imagem, santo padre, segundo estudiosos foi causada pelo lodo do rio e da fumaça das velas. Ela tem sido interpretada como uma referencia ao sofrimento dos pobres e excluídos, especialmente do povo negro ao longo da história do Brasil. O rosto, da imaculada mãe de nosso senhor, desperta nossa Igreja para que seja comprometida com os pobres, e seja pobre também ela para evangelizar. Assim livre, pode servir a nosso senhor e ao evangelho. Por meio da imagem que será dada a Vossa Santidade, peço a Nossa Senhora, em nome do povo brasileiro, que acompanhe e abençoe vosso ministério.

A imagem é entregue em mãos pelo Cardeal ao Papa, que a beija e ergue com aplausos calorosos da multidão. Em retribuição, o Papa presenteia o Cardeal com um cálice dourado que também é erguido. A celebração segue os preceitos canônicos de missa solene, com o uso de incenso e da cor dourada. Além de 50 bispos, há 1.100 padres presentes. Presidida pelo pontífice que faz todo o ritual em português, através da leitura até mesmo na homilia. A homilia não durou mais de dez minutos, o Papa falou sobre a importância de Maria na teologia católica, sem relacionar a nenhuma denominação específica, a não ser em um trecho: A história deste Santuário serve de exemplo: três pescadores, depois de um dia sem conseguir apanhar peixes, nas águas do Rio Parnaíba, encontram algo inesperado: uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Quem poderia imaginar que o lugar de uma pesca infrutífera, tornar-se-ia o lugar onde todos os brasileiros podem se sentir filhos de uma mesma Mãe? Deus sempre surpreende, como o vinho novo, no Evangelho que ouvimos. Deus sempre nos reserva o melhor.

Lendo o discurso do púlpito, o enquadramento das câmeras tinha a Imagem Aparecida como plano de fundo. O Papa era intercalado por closes de algumas personalidades presentes, como o governador estadual Geraldo Alckmin, o Padre Antonio Maria e ainda os cantores Jair Rodrigues e Elba Ramalho. Na televisão e nos telões era mostrada principalmente a ala sul, local onde estavam as pessoas convidadas, em sua maioria sacerdotes, freiras e políticos. Eu estava na ala norte da Basílica, com aqueles que supostamente passaram a noite na fila. Em sua

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maioria molhados e com feições de cansaço, buscavam o local mais próximo possível do altar. Os braços erguidos com câmeras fotográficas e celulares tentavam registrar pelo menos o vulto papal. Enquanto isso, muitos outros dormiam nos bancos, encostados nas paredes e pelo chão. No momento das oferendas, foram levadas até o altar as bandeiras de todos os estados brasileiros assim como uma relíquia do manto da Imagem Aparecida, outro presente para Francisco. Contudo, nenhum momento causou mais interesse do que as partes finais: após fazer o ritual de consagração, o Papa fez um grande sinal da cruz no ar, utilizando a imagem que ganhou, para a benção final. Ao fim, caminhou até o lado de fora para repetir a benção no palco externo da Basílica para cerca de 200 mil pessoas, as quais acompanhavam a missa pelos telões. Foi quando anunciou que voltaria em 2017, para o jubileu de 300 anos da Imagem Aparecida. “Se eu soubesse que a benção final ia ser lá fora nem tinha entrado”, confidenciou-me uma senhora envolta em um cobertor ainda encharcado. ***

A visita do Papa Francisco à Aparecida aconteceu coincidentemente na última semana da minha pesquisa de campo na cidade. Escolhi a sua descrição pormenorizada neste preâmbulo por conseguir condensar, de maneira abrangente, os aspectos antropológicos que serão discutidos no decorrer dessa dissertação.

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INTRODUÇÃO “Quem é você? O que quer aqui?”, disse-me um dos três homens de boné, chinelos de dedo e sem camisa que me cercaram, com braços cruzados e olhares intimadores. Sentado há poucos instantes, em uma sombra no meio-fio para tomar água, e não entendendo a situação, cheguei a olhar pros lados para verificar se falavam comigo mesmo. “O que você quer?”, repetiu. Gaguejei algumas sílabas e fui interrompido “é repórter? polícia?” - “Não! Sou universitário e estou fazendo uma pesquisa” foi a resposta genérica, quase automática, que lhe dei. Até então, eu não havia percebido o senhor Eliseu, um idoso que estava mais atrás, e que tomou proximidade do grupo - “pode deixar comigo”- sentando em seguida, ao meu lado, e gesticulando para que os três homens saíssem do entorno - “tá todo mundo da feira comentando de você, acharam muito suspeito tirar fotos: sabe como é, aqui é tudo na ilegalidade”. Expliquei prontamente que não tinha a intenção de divulgar as imagens e ele respondeu - “Não! Divulga sim! A gente quer que isso seja divulgado. Essa é a primeira coisa que você tem que pôr na sua pesquisa: que tudo nessa cidade tá na ilegalidade”. Era o meu primeiro sábado na cidade de Aparecida/SP, o quarto dia desde minha mudança, e logo após percorrer todos os corredores da feira, registrando com uma câmera fotográfica a multidão de pessoas e coisas em circulação, eu também me perguntava o que queria ali, sem ter ainda uma resposta. Tendo feito uma série de viagens pontuais ao Santuário Nacional de Aparecida, desde 2009, meu interesse de pesquisa passou a se direcionar principalmente para a relação estabelecida entre a devoção à Nossa Senhora Aparecida e o comércio local. Se esse interesse pode ser justificado pela evidente constatação empírica do grande número de estabelecimentos comerciais ao redor da igreja, a minha motivação também veio do que ouvia. A evocação das “lojinhas” de Aparecida/SP era uma constante nos diálogos, direta e indiretamente, e sempre acompanhada de uma posição firme de apreço ou desprezo por elas, mas raramente de indiferença. Por si só, esses diálogos evidenciavam certa tensão na existência daquelas lojas naqueles espaços, e era sobre isso que queria me aprofundar.

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Nessas viagens, contudo, um incômodo metodológico surgiu da restrição da minha abordagem, tanto temporal como espacial, já que ela estava sempre circunscrita aos dias de maior movimento e ao entorno dos muros do Santuário. Foi por isso que, de fevereiro até agosto de 2013, residi na cidade de Aparecida/SP, tendo como intuito tentar entender a relação lá estabelecida entre devoção e comércio. O propósito de fixar residência na cidade por seis meses foi, antes de tudo, expandir esse enfoque anterior, vivenciando a dinâmica local cotidianamente e em localidades distintas, no intuito tanto de observar como essa relação era posta em prática, quanto de ouvir o que as pessoas diretamente envolvidas pensavam a respeito. Residindo na cidade, e com esse objetivo em mente, o desenvolvimento prático tomou outras direções. Guiado pelas palavras-chave do título de meu projeto de pesquisa, isto é, consumo e devoção, e tendo consciência de uma mútua dependência entre ambas, que já notara antes, não sabia bem como as abordar empiricamente e de maneira distinta. Para desenvolver esse movimento de ajuste para enfoque, minha escolha metodológica inicial foi a de vagar pelas ruas de Aparecida/SP, sem um roteiro definido, explorando lugares desconhecidos e dialogando com as pessoas que encontrava no caminho, sempre acompanhado de um caderno de anotações, no qual fiz longas e detalhadas descrições do que encontrava, em um esforço de incluir também aquilo que me parecia irrelevante. Do mesmo modo, às vezes portava uma câmera fotográfica: no início, visava um mero registro instrumental, em que a fotografia auxiliasse tanto na descrição como na memória etnográfica, para posterior escrita. Contudo, no decorrer do tempo, a fotografia demonstrou ser um fim em si mesmo, capaz de apresentar o que encontrava de maneira discursivamente distinta. Dito de outro modo, realizando uma espécie de reconhecimento do campo, nesse primeiro momento eu busquei propositalmente abrir o máximo possível minha perspectiva, antes de determinar de que modo conduziria a abordagem. Não tendo como pressuposto o simples acaso, foi a minha inquietação inicial que pautou a todo momento, definindo voluntária e involuntariamente, por onde eu vagava. Isso resultou, por exemplo, em mais tempo passado nas ruas centrais da cidade, pelas quais encontrava os comerciantes e devotos, do que nas áreas mais periféricas e exclusivamente residenciais.

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Foi nesse contexto que ocorreu o diálogo inicial com Eliseu, conhecido como Zulu pela cor da sua pele. Por volta dos 70 anos de idade, calvo e portando óculos de lentes grossas, ele atua na feira desde os primórdios, e afirma ser um profundo entendedor do seu funcionamento. Puxando-me pelo braço, ele então se levanta do meio-fio e pede para seguilo. Tento não me perder na multidão, enquanto ando entre os corredores labirínticos, até chegarmos a uma banca de roupas infantis, cuja proprietária, chamada Rosângela, fora candidata a vereadora nas eleições de 2012. Após sermos apresentados, ela me submete a uma série de perguntas, como: de onde sou, qual minha faculdade, onde estou morando, quanto tempo estarei na cidade e o que exatamente eu queria saber. Toda a desconfiança, a qual eu fora submetido até então, tinha um motivo: a Feira estava ameaçada de acabar, pelo menos do modo como ela era concebida. Alguns meses antes, em novembro de 2012, os comerciantes foram pegos de surpresa por uma liminar judicial que proibia a montagem de bancas fora da Avenida Monumental. A razão, eles descobririam logo depois: uma denúncia ao Ministério Público, feita pela administração do Santuário Nacional, alegando ser ilegal a prática desse tipo de comércio em rodovias, o que é o caso de todas as vias que dão acesso ao espaço do Santuário. Profundamente interessado pela situação, acompanhei sistematicamente os desdobramentos desses acontecimentos, que se estenderam por toda a minha estadia, e detalharei mais à frente nessa dissertação. Optei por manter a proposta de registro. Porém, ao mesmo tempo, sentia-me incomodado por tudo aquilo dizer pouco a respeito da devoção, dentro das minhas referências iniciais. Com conversas que sempre remetiam às esferas econômica e política (Weber, 1997), sentia falta justamente da esfera religiosa. A meu ver, aquilo era pano de fundo, mas não minha discussão principal. Esse incômodo foi levando a uma aproximação contínua do território do Santuário Nacional, já que ele era minha referência principal acerca da devoção. Passei a assistir a contínuas missas, acompanhar as homilias, observar a movimentação em diversos pontos do templo, do subsolo na sala das promessas, as capelas laterais, os pátios e o nicho da Imagem. Contudo, de maneira inversa, ali o que eu encontrava era a plena realização da esfera religiosa, pela devoção, com referências pontuais ao consumo.

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Nesse meio tempo, enquanto fazia essa busca, acontece um fato inesperado: a renúncia do Papa Bento XVI e o posterior conclave. O Cardeal e Arcebispo de Aparecida, Dom Raimundo Damasceno, logo em seguida dirigiu-se à Roma, já que além de votar, era um dos candidatos a novo Papa. A rede de televisão, sob sua supervisão, estava sempre a par das últimas atualizações, assim como os aparecidenses que, com os olhares voltados para a tela, nesses dias, tinham esse tema exclusivo de conversa. Acompanhando os dois eventos, a reforma da Feira e a visita do Papa – que depois acabaram se fundindo em um só – , busquei ainda manter o meu planejamento inicial de pesquisa. Desse modo, a minha busca se direcionou para o Centro de Apoio aos Romeiros (CAR), uma galeria de lojas conhecida também como “Shopping da Fé”, que poderia ser o local ideal para encontrar a relação que eu problematizava: um grande estabelecimento comercial, nas dependências do Santuário Nacional. Diferente da Feira, em que fui imediatamente recebido como pesquisador, no espaço do CAR o processo foi mais lento. Com o mesmo tipo de abordagem que fiz em outros espaços, foram vários os dias e horas em que vaguei pelo prédio, sem sucesso na interação. Se na Feira as pessoas são constantemente abordadas pelos vendedores, no CAR eles se restringem a atender apenas os interessados em comprar algo. Como fui saber depois, há uma norma contratual em que eles não podem atuar fora do espaço de suas lojas, seja abordando os transeuntes ou expondo mercadorias nos corredores. Cheguei mesmo a comprar produtos pelos quais não estava interessado, para forçar interações, mas nenhum diálogo foi além da superficialidade. Nas vezes em que me apresentei como pesquisador, os vendedores disseram que não poderiam ajudar. Assim, busquei recorrer aos contatos já estabelecidos na cidade. Consegui abertura ao ser apresentado a alguns comerciantes que, por sua vez, apresentaram outros. De todo modo, os diálogos estabelecidos nesse tempo foram fundamentais. Por fim, depois de alguns meses, fui proibido pela segurança local de dar continuidade à pesquisa. Tive que requerer uma permissão para a administração, que nunca foi concedida. Dada essa formalidade, requerida para minha aproximação, no primeiro contato com as pessoas tive que explicar qual era meu objeto de pesquisa. Na medida do possível fui cuidadoso nas palavras, no intuito de evitar induções desproporcionais. No entanto,

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quando falava minhas palavras-chave a reação era imediata: “o tema consumo e religião é muito interessante, discutimos bastante isso aqui”, como disse Renato, lojista aparecidense, no nosso primeiro contato. De fato, a impressão era que aquelas pessoas já tinham uma resposta pronta, assim como as soluções apresentadas, resultantes de uma longa reflexão prévia. Daquelas pessoas que conheci, aquela com posições mais contundentes foi Reginaldo, outro lojista. Em uma de nossas conversas, ele foi enfático: “Olha, a verdade que você tá procurando é uma só: aqui o comércio e a religião se uniram, são uma coisa só. A diferença é que o comércio usa o nome de religião”. Influenciado e refletindo continuamente sobre essa afirmação, foquei por certo tempo na segunda frase, isto é, passei a procurar em que medida o comércio se apropriava da religião. Passei a observar, mais atentamente, a ambiguidade dos produtos comercializados e como, dificilmente, poderiam ser classificados como meramente comerciais ou estritamente religiosos. Questionava a funcionalidade de um relógio ou uma caneca, por exemplo, se trazia estampada a figura de Aparecida. Esforçando para acreditar no que me fora dito, porém, pelo que observava desde o início, não conseguia enxergar a questão de apropriação e sim uma relação mútua, que foi eixo central do meu projeto de pesquisa, já que santuários, festas e peregrinações estabelecem ligações diretas entre as esferas da religião, da economia e da política, alterando o fluxo de pessoas e de bens, reconfigurando a geografia, estabelecendo calendários (Menezes, 2011a: 26).

Após certo tempo, relendo as anotações, dei-me conta de que a principal afirmação de Reginaldo era simples e direta: “são uma coisa só”. A afirmação seguinte era a sua interpretação dessa nebulosidade. É aí que está a chave da abordagem: trazendo novamente a análise weberiana das esferas, o que eu procurava inicialmente era a intersecção entre a econômica e a religiosa, não percebendo que ali elas eram indistintas, para além dos tipos ideais e formas geométricas. Compreendia que, assim como eu, os aparecidenses não só estavam à procura dessa diferenciação como tinham teses muito bem elaboradas sobre ela. Porém, ela não se expressava exclusivamente no campo discursivo; isto é, quando evocavam verbalmente

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esses termos, envolvidos em alguma disputa ou instigados por mim, ela se expressava em diversos níveis, sobretudo materiais. Aceitando o fato de serem indistintas, o meu primeiro passo foi abdicar dos termos que antes me guiavam, “consumo” e “devoção” deixaram de ser os referentes. Essas duas atividades evidenciavam, ao mesmo tempo, uma mútua dependência agregadora como uma tensão repelente. Contudo, no desenvolver da pesquisa de campo, a abordagem pautada por esses dois referenciais mostrou-se incompleta, na medida em que, mantendo uma oposição dicotômica simplista, não explicitava a complexidade das relações que produzem e são produzidas naquele contexto. Essa quebra de referentes, por sua vez, resultou em uma nova interpretação das minhas próprias anotações, já que aquilo que percebia como figurante virou protagonista: as coisas que circulam naquele espaço poderiam ser entendidas através delas mesmas. Desde o início, pude observar o conflito muito presente no cotidiano local. Os Feirantes e os lojistas do CAR traziam sempre à tona suas tensões frente a outros grupos, como o clero e o poder público, os quais também tinham as suas. A meu ver, é justamente nessa tensão que são delineados discursivamente os limites de atuação de ambas as partes. Porém, ter como referência simplesmente os termos e coisas usadas nessa disputa se mostrava perigoso, sem uma contextualização prévia. Concordando com a premissa weberiana de que toda ação supõe interesse, mas que há uma “opacidade essencial do sujeito frente a si mesmo” (Favret-Saada, 2005: 161) busquei entender em relação a que se davam os interesses, e de que modo os sujeitos se firmavam através deles. Como é de se esperar, a palavra que mais escutei, li e escrevi durante a pesquisa foi “Aparecida”. É esse o nome de uma interlocutora, da cidade, da rede de televisão, da rádio e, claro, da santa. A confusão posta me obrigou à conformação de um glossário, para explicar sobre qual Aparecida estava me referindo, enquanto escrevia. Nessa dissertação, o uso de “Aparecida/SP” indica que me refiro à cidade, localizada no Estado de São Paulo. Já no uso da “Imagem Aparecida”, em letras maiúsculas, a referência é à Imagem original, encontrada no Rio Paraíba, e disposta com exclusividade na Basílica. O uso em minúsculo da “imagem Aparecida” diz respeito às suas reproduções, seja em réplicas como estampas. Do mesmo modo, “aparecida” em minúsculas remete ao verbo aparecer.

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Por fim, “Aparecida” em maiúscula e sem nenhum outro referente indica justamente uma indistinção sobre qual aspecto, dentre os anteriores, a palavra está se referindo: ela remete a um campo que abarca todos esses referenciais. Percebi que o uso indistinto desse nome era fundamental e a chave da pesquisa era abordar essa nebulosidade. Desta forma, nessa dissertação, optou-se metodologicamente pela abordagem etnográfica de um único referencial, capaz de sintetizar essas especificidades: Aparecida. Essa mesma palavra diz respeito a inúmeras coisas, e a sua evocação indiscriminada não remete a uma mera ambiguidade semântica, mas, sim, a uma polivalência fundamental da sua caracterização. Uma Imagem aparecida no rio começou a atrair pessoas, por variados motivos, o que resultou na construção de um templo e na ampliação da vila, que no decorrer do tempo deu origem a uma cidade, que na sua fundação recebeu o mesmo nome. Hoje, além de ser central na bandeira dessa cidade, a mesma imagem multiplicou-se em milhares de réplicas que estampam todo tipo de produtos, encontrados principalmente naquele território, e é central para o desenvolvimento daquele que é considerado o maior santuário católico do mundo. Aparecida é indistinta: é a santa e é a cidade, é a Imagem e é o território, é o ente e é o espaço. Em última instância, é esse nome que está em disputa e é necessário abordar suas manifestações e sentidos. Dessa forma, a dissertação foi dividida em três capítulos que, ao dialogar as descrições etnográficas com teorias antropológicas específicas, conseguem abranger essa proposta. Os cadernos de fotografia visam uma narrativa imagética, que aborde a problemática trazida entre os dois capítulos em que estão inseridos. Porém, de maneira discursivamente distinta da escrita, o que justifica a ausência das legendas. O primeiro capítulo aborda a especificidade de Aparecida através do espaço que a caracteriza: a intenção é compreendê-la ultrapassando os limites dos muros do Santuário Nacional e abarcando também o município que o rodeia, considerando ambos como parte do mesmo fenômeno. O fato de essa localidade receber um fluxo tão grande de pessoas faz com que suas funções sejam também múltiplas. Expondo algumas estórias de vida de residentes da cidade, discuti as suas configurações econômicas e políticas. Aparecida atrai

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também pessoas em busca de emprego, seja no ramo do turismo religioso, de prestação de serviços, do comércio, das indústrias e da rede hoteleira. Do mesmo modo, pela sua relevância nacional, autoridades políticas, desde a presidência da república até autoridades eclesiais como o Papa, são cotidianamente recebidas. Indo muito além de um centro de peregrinações, Aparecida também é um centro econômico e político. Já no segundo capítulo a abordagem etnográfica é da Imagem Aparecida, ao retomar alguns casos da sua trajetória e mitologia, até a venda de suas réplicas na contemporaneidade. Ela evidencia ser o referencial mais concreto, por se tratar de uma peça muito bem delimitada, em sua forma de barro. Essa mesma imagem, contudo, é capaz de agenciar relações sociais das mais variadas. A mais evidente é a religiosa: intitulada Nossa Senhora Aparecida, ela faz parte da teologia católica à medida que evoca a figura bíblica de Maria. Dessa forma, o clero local direciona a sua devoção, administrando os rituais específicos a esse tipo de culto. Os devotos, por sua vez, com ela se relacionam, mas trazendo suas religiosidades específicas. Há também as relações econômicas: reproduções da Imagem são vendidas nos mais variados formatos, desde estampas a réplicas idênticas, agindo como uma “marca” local. Assim, os aparecidenses tem nela sua fonte de renda, seja através da venda ou da produção. Do mesmo modo, as relações políticas: a imagem é central na bandeira e no brasão da cidade, além de ter posição de destaque em prédios da administração pública, como a prefeitura, o fórum e a câmara de vereadores. A Imagem é uma santa, é um símbolo nacional e é uma marca. Se a constatação mais evidente se dá através da interpretação teológica, a etnografia indica suas interpretações econômicas e políticas: a Imagem é autorreferente. Por fim, o terceiro capítulo trata dos sentidos dessa ambiguidade, entre imagens e espaços, que constituem Aparecida. Para isso a abordagem etnográfica é da disputa entorno desse referencial. Durante toda a pesquisa de campo, deparei-me com acusações envolvendo os vários grupos locais. O que todos eles apontam é uma tensão entre os limites de atuação uns dos outros. Essa situação cotidiana revela uma fronteira nebulosa entre a religião, a economia e a política. Isso implica, por exemplo, na atuação concomitante de integrantes do clero e do comércio local tanto em assuntos ditos religiosos, como nos ditos econômicos. Característica mais que evidente, os conflitos trazem considerações

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discursivas relevantes para entender como esses sujeitos pensam, constroem e são influenciados, cotidianamente, sobre, com, por e em Aparecida. Essas pessoas não são apenas agentes, mas também teóricos sobre o assunto. Em suma, o que se pretende nessa dissertação não é explorar o que a economia, a política e a religião dizem sobre Aparecida. Partindo do pressuposto de que em Aparecida há uma indistinção nessa divisão, a intenção é uma abordagem etnográfica em que esses termos sejam transpassados nas descrições, em prol de uma análise antropológica capaz de contemplar Aparecida em sua composição específica.

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APARECIDA, SÃO PAULO, BRASIL: A CIDADE-SANTUÁRIO

Dos teus santuários célebres. dos teus centros de romaria, existe algum mais humilde do que este aqui? Em Lourdes, tu mesma falaste a Bernadete. Em Fátima, conversaste, em pessoa, com os pastorinhos. (...) Na minha terra, apareceu uma imagem tua - pequenina e feia, humilde e sem esplendor. Não foi preciso mais para que de longe acorressem peregrinos, pois não basta a tua sombra, comove-nos a tua imagem. (Dom Helder Câmara, Nossa Senhora no meu caminho)

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Dona Aparecida mantém acesa uma vela ao lado da imagem de Nossa Senhora Aparecida, da qual ela é devota, na sala de sua casa em Aparecida/SP. Ouvinte assídua da Rádio Aparecida, contudo, não é aparecidense de nascença. Originária do interior de Minas Gerais, ainda na infância ela se mudou para lá, constituiu família e hoje, viúva e com mais de 70 anos de idade, sua renda provém do aluguel de imóveis. Um pequeno portão preto, ao lado de uma loja de roupas de grife, dá acesso a um extenso corredor que atravessa todo o quarteirão até a rua paralela. Nesse espaço, 25 quartos são alugados pela proprietária, que mora na primeira das portas. Esses quartos remetem a um passado recente, mas em vias de superação. Dona Cida é conhecida, como escutei mais de uma vez, por ser a última a manter esse tipo de hospedagem, antes muito comum na cidade, e que alguns chamam de cortiço. Tive planos de morar nesse espaço, contudo, eles nunca se concretizaram. Mesmo tendo fechado contrato verbal com Dona Cida, mais de uma vez, nosso acordo foi desfeito por insistência dos filhos, segundo ela, que a desencorajam a aceitar novos inquilinos. O motivo é que eles pretendem construir ali uma pousada, voltada exclusivamente para romeiros. Sua localização é na Rua Barão do Rio Branco (SP-062) 6 , que é uma das principais da cidade. Em uma ponta, ela dá acesso a duas entradas, através da Rodovia Presidente Dutra (BR-116) e da Avenida Padroeira do Brasil (SP-062). Na sua outra ponta, está a Rodoviária Municipal. A rua é formada majoritariamente de estabelecimentos comerciais, como lanchonetes, lojas de departamento, supermercados e padarias. Todas elas, invariavelmente, têm em seu interior uma réplica da imagem de Nossa Senhora Aparecida, seja sobre o balcão ou em um altar na parede dos fundos. Destoando das demais ruas do centro, o comércio dessa via privilegia mais os residentes que os romeiros, por oferecer produtos e serviços de uso doméstico e cotidiano. Além disso, é lá que fica o único hospital da cidade, além do Seminário Bom Jesus7 e um colégio particular.

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Ao atravessar o município, a estrada estadual SP-062 é nomeada de maneiras diferentes em cada trecho. Conhecido como “Colegião”, a arquitetura do prédio de 1894 teve inspiração no Palácio de Versalhes francês. Atualmente é a sede da Arquidiocese de Aparecida, mantém a função de seminário, com salas de 7

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Mapa 1. Parcial do centro da cidade com destaque à Avenida Rio Branco (SP-062). Fonte: Google Maps.

Aparecida/SP tem uma população fixa de 35 mil habitantes, sendo 85,5% católicos8. A maior fonte de economia é a prestação de serviços, formal e informalmente, e a cidade conta com aproximadamente 40 mil leitos para hospedagem. Mesmo assim, como única opção para minha estadia 9 , aluguei por seis meses uma suíte, que futuramente integraria uma pousada ainda em construção, na Rua Alfredo Penido. Não sem motivo, esses detalhes foram trazidos por serem fundamentais na análise feita no presente capítulo. Ao residir nesse espaço, foi por ele e através dele que as incursões etnográficas se desenvolveram.

aula, e mais recentemente também é uma Pousada, oferecendo aluguel de quartos para pernoite. Além disso, o prédio hospedou os três papas que visitaram a cidade. 8 A população de evangélicos é de 12,04% enquanto a de espíritas é de 0,46%. Fonte: Censo Demográfico 2010/ IBGE. Disponível em: . Acesso em 15/01/2015. 9 Por mais de um mês, busquei sem sucesso o aluguel de quartos de hotel. A justificativa foi econômica: muitos deles já estavam reservados para os meses seguintes e, além disso, os proprietários não trabalhavam com valores mensais, apenas diárias. As casas disponíveis para locação eram escassas, e com contrato mínimo de dois anos, justamente para evitar locação de romeiros.

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Romeiros e Aparecidenses Devido ao meu contato inicial com Dona Cida, e a, enfim, residir próximo a sua casa, nosso diálogo foi constante, assim como com seus inquilinos. Dentre todos eles, minha principal interlocutora foi dona Ana, uma simpática senhora por volta dos 80 anos de idade, que está sempre sentada na calçada, com uma tiara vermelha na cabeça, observando o movimento da rua enquanto conversa com os comerciantes locais. Devota de longo tempo, também dona Ana costuma acender velas para a imagem de Nossa Senhora Aparecida no seu quarto, que é o segundo do corredor. Ela é natural de Minas Gerais e durante a vida residiu em diversas cidades, pelo sudeste brasileiro. Aquela que mais evoca é Campinas/SP, onde trabalhou, inicialmente, como atendente de uma lanchonete e depois como empregada doméstica para um professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Dada essa coincidência, já que sou estudante da mesma universidade, pudemos ter inúmeras conversas que, invariavelmente, incluíam o distrito de Barão Geraldo, do qual ela sentia saudade. Frequentando romarias há muitos anos, dona Ana conhece Aparecida/SP desde a juventude, e contou com saudosismo das inúmeras romarias que pôde fazer, às vezes, a única viagem que conseguia pagar no ano, e a alegria que sentia ao chegar lá. Foi a última romaria que fez, enquanto residia São Paulo/SP, que determinou a sua mudança para a cidade: “apaixonei de vez, fechei meu comércio e mudei logo em seguida pra cá, já tem nove anos”. Ao chegar à cidade, trabalhou vendendo água como ambulante, mas desistiu devido à alta concorrência. Logo em seguida, começou a trabalhar de passadeira para famílias e hotéis. Porém, como “pagavam miseraveza”, achou melhor manter trabalhos temporários, na alta temporada, para complementar o dinheiro da aposentadoria. Com discursos enfaticamente críticos, o descontentamento de dona Ana com a cidade ficou evidente: “Aparecida é isso aí que você tá vendo: dinheiro, ganância e exploração. Arrependi de vir pra cá, sabia? É bom pra rezar, mas só pra quem vem de romaria. Pra quem fica aqui só é bom de ganhar dinheiro”, afirmou certa vez, com os braços abertos, evidenciando as lojas ao redor da sua casa. Mesmo estando fisicamente 34

mais próxima da Imagem de Nossa Senhora Aparecida, sentia-se menos propensa a praticar sua religiosidade. Estava determinada a ir embora dali, o mais rápido possível, e voltar a ser uma romeira. A residência de Cida e Ana fica muito próxima ao Terminal Rodoviário municipal, lugar de intenso movimento, porque é através dele que diariamente chegam milhares de pessoas até a cidade. O Terminal está localizado em frente à Capela de São Benedito e a Praça Doutor Benedito Meirelles, de um lado, e tem acesso pela Avenida João Paulo II, por outro. Ele chega a ser um marcador espacial, já que delimita o local de maior circulação dos romeiros, isto é, que acontece dali até o Santuário Nacional.

O Centro de Aparecida “O que me der, Aparecida te dá em dobro”, grita diariamente um senhor deitado de bruços, na calçada que circunda o terminal, levantando seu chapéu para pedir dinheiro. Cena comum em centros urbanos brasileiros, infelizmente, a região do Terminal Rodoviário e da Praça Doutor Benedito Meirelles se destaca pela alta concentração de pessoas em situação de rua, desproporcional para o tamanho da cidade10. São dezenas de homens e mulheres, vestidos em farrapos, alguns locomovendo-se com muletas ou ainda cadeiras de rodas, abordando os transeuntes. Há um albergue na cidade, mantido por uma associação 11 local de moradores, que recebe essas pessoas, oferecendo leito, banho e uma refeição durante a noite. Segundo Nilcéa, assistente social responsável, a capacidade máxima da casa é de 15 pessoas diariamente, com uma média de atendimento de 400 pessoas diferentes por mês: “Eles sempre comentam que aqui se recebe mais de esmola. A quantidade grande é pela religião

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Steil descreve situação semelhante no Santuário de Bom Jesus da Lapa, na Bahia. No caso da Bahia, observa-se paralelo direto com a devoção, o que não ocorre no caso de Aparecida: “A esmola está integrada no sistema de ritos do culto ao Bom Jesus, quer seja ela destinada aos mendigos, quer aos santos” (1996:72). 11 A associação é mantida por doações, de pessoas e instituições, e fica localizada na Rua Padre Vítor Coelho de Almeida. Além do pernoite, oferecem também passagens para Pindamonhangaba/SP ou Cachoeira Paulista/SP, que são as cidades mais próximas que contam com albergues semelhantes. A passagem é oferecida uma única vez ao ano, mediante cadastro.

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e o movimento dos romeiros. São muitos e eles já vêm com disposição a ajudar, pela religiosidade”, teoriza12.

Mapa 2. Parcial do centro da cidade, da Rodoviária até o Santuário Nacional. Fonte: Google Maps.

Como há proibição de mendicância dentro das dependências do Santuário 13 , eles se concentram nessa região central. Isso, por outro lado, cria uma tensão com os comerciantes locais, que expulsam aqueles que param na frente de suas lojas, afugentando 12

Ela afirma existir também grupos de pessoas, residentes das cidades vizinhas, que vão até lá e se passam por mendigos aos finais de semana, para complementar a renda do trabalho ou da aposentadoria. 13 O Santuário Nacional não conta com serviço social para esse público específico, mas é um dos principais doadores de recursos para esse albergue.

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os potenciais clientes. As lojas encontram-se em local estratégico no fluxo de pessoas, paralelas à Praça Doutor Benedito Meirelles, ficam as ruas Monte Carmelo e a Oliveira Braga (SP-062), extremamente íngremes, que dão acesso à igreja Matriz no alto do morro. É comum encontrar construções em andamento: algumas com mais de dez andares, o que resulta em andaimes, tapumes e grandes caçambas tomando as calçadas estreitas, bloqueando a visão do horizonte em todos os ângulos. Os prédios, nessas ruas, são todos voltados para hospedagem e/ou lojas. Estas últimas, ocupando o andar térreo. Assim, os mendigos não são os únicos a abordarem as pessoas que por ali passam: há os distribuidores de panfletos que anunciam desde shows de funk e bailes de forró, à venda de marmitas ou promoções de hotéis. Do mesmo modo, os ambulantes têm suas mercadorias expostas em algumas calçadas. Longe de ser exceção, a grande quantidade de lojas, hotéis, restaurantes e pousadas, é algo impossível de passar despercebido. “Aqui todo prédio que vaga é automaticamente transformado em hotel”, explicou um corretor imobiliário, dono de uma das duas imobiliárias locais. Segundo ele, na última década, tem ocorrido uma crescente procura por hospedagem, o que ocasionou uma grande expansão do ramo hoteleiro, em detrimento de outros tipos de imóveis, o que fez com que os moradores trocassem o centro pelos bairros mais periféricos. Essa característica geográfica implica em uma peculiaridade, de ordem espacial e temporal, que envolve multidões e vazios. O movimento costuma ser alto durante todo ano, com exceção da quaresma, e com maior concentração de outubro a dezembro. Os dias de folga e descanso são as segundas e terças-feiras, devido ao pouco movimento, quando a maior parte dos prédios está com as portas fechadas, assim como as ruas completamente vazias. De quarta e quinta-feira o expediente costuma respeitar o horário comercial, funcionando das 9 às 18 horas. Como a região central é majoritariamente voltada para os romeiros, que vêm em grande quantidade aos finais de semana, os dias de movimento e trabalho são intensos nos feriados e de sexta-feira a domingo. O horário varia, mas nesses dias é comum encontrar lojas abertas às 6 horas e fechando depois das 23 horas.

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Uma dessas lojas é a Papelaria Castro, propriedade do senhor Guido, que afirma ser o único residente de toda Rua Monte Carmelo. Localizado na esquina com a Rua Pedro Natalício14, o estabelecimento foi fundado pelos seus pais, em 1930. Guido nasceu em Aparecida/SP, no ano de 1935, mas como ele conta: “em 1955 tive que servir o exército e quando voltei em 1956 comecei a trabalhar no banco e comprei uma casinha em Guará [Guaratinguetá/SP]”. Foi em 1958 que seu pai ficou muito doente e ele começou a ajuda-lo, fazendo turno que intercalava com seu horário no banco. Com o desenvolver da doença e da idade do pai, como era o único filho solteiro, assumiu a papelaria. Foi quando se demitiu do banco: “É, não gostava não, ficar aguentando cara feia dos outros. Fui pedir demissão e ficaram tudo espantado, falaram que eu podia ser gerente mais pra frente, mas eu não quis não!”. Pouco tempo depois seus pais faleceram e ele mudou para aquele prédio: “a loja era até aqui no balcão onde tinha uma parede aí fiz um quartinho com banheiro e cozinha tudo aqui pra trás, sustentando-me com a papelaria. Vendi a casinha em Guará e comecei a reformar aqui, tudo muito simples, parede no reboco mesmo. A casa era muito antiga com forro caindo. Vieram então os filhos e eu fiz a parte de cima”. – além do térreo, o prédio tem mais dois andares – “Criei meus filhos aí. Minha filha até casar morou aqui, outra que pegamos pra criar também, já é até avó hoje. Eu fiz dois empréstimos pra reformar lá em cima, fazer a escada, no começo no reboco sem pintar, as telhas velhas que eram um perigo, chovia eu corria lá em cima pra ver se estavam todos bem. E paguei todo empréstimo com dinheiro aqui da papelaria”. Devoto de Nossa Senhora Aparecida, Guido frequenta semanalmente as missas da igreja Matriz, e mantém um altar com uma imagem na parede dos fundos do balcão, ao lado do pequeno televisor. Ao seu redor, os produtos de papelaria, como cartolinas, canetas, cartões postais e tesouras. Já no espaço da frente, são dispostas para venda as imagens de santos, canecas de times de futebol, mochilas e malas. Segundo ele, a adaptação é necessária: “o segredo aqui é ver o que o romeiro tá querendo”. O uso do termo “romeiro” 15, vale ressaltar, é uma categoria nativa usada por todos que dialoguei. Comum no contexto brasileiro e latino-americano, esse termo é 14

Ver Mapa 2.

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habitualmente tratado como sinônimo do termo “peregrino” 16, mais comum no contexto europeu. Em última instância, ambos os termos referem-se a uma viagem de cunho religioso, o que os torna alvo também de discussões em pesquisas sobre turismo (Santana, 2009; Gabrurn, 2009). Seu uso aqui precisa ser delimitado antropologicamente: divergindo de quem hierarquiza e opõe17 essas duas formas de manifestação religiosa, defendo uma abordagem de Aparecida em que turismo religioso e romaria não sejam tidos como parâmetros analíticos já que, empiricamente, eles se sobrepõem nas práticas, individuais e coletivas, em diversos aspectos. Outros procuram fazer a distinção entre ambas argumentando que peregrinação envolve uma viagem com motivo religioso para um centro espiritual do mundo interior, ao passo que o turismo é lúdico e envolve movimento para a periferia do mundo. Mas os sentimentos que motivam os viajantes ou surgem nas destinações são frequentemente flexíveis, reveladores e muito pessoais. De fato, considerações etnográficas recentes sobre a relação entre turismo e peregrinação demonstram que não é nem possível nem aconselhável fazer uma distinção abstrata ente eles (Graburn, 2009: 31).

Aproximando das abordagens de Steil (2003; 2009)18 e de Stausberg (2011)19, já evidenciada desde Turner & Turner (1978)20, aqui será considerada a figura do romeiro contemporâneo que, ao mesmo tempo em que tem práticas classificadas como turísticas, mantém as demandas religiosas ditas tradicionais. Opor essas duas características, como se fossem excludentes, se mostra desnecessário. Assim, escolho usar o termo romeiro em seu significado nativo entre os aparecidenses: romeiro é aquele que não reside nem trabalha em Aparecida/SP, mas está lá. 15

A etimologia da palavra tem como referência a ida a Roma, sede da Igreja Católica Apostólica Romana. É usado em Portugal, mas refiro especificamente ao termo “pilgrim” em inglês, além de “pelerin” em francês ou mesmo “pellegrino” em italiano, entre outros. 17 A tese, preponderante, é a de que a lógica turística e comercial foi dominando, aos poucos, os discursos e práticas dos romeiros, que teriam perdido sua genuinidade propriamente religiosa: “Há um esvaziamento da dimensão simbólica. A peregrinação religiosa se transformou em turismo religioso, salvo a ação pastoral no próprio santuário” (Wernet, 2000: 89). 18 “Portanto, não se trata de traçar uma linha divisória entre romeiros e turistas. Mesmo porque, quando observamos as pessoas que acorrem ao santuário no período da romaria, nos damos conta de que romeiros e turistas se confundem tanto em relação às suas motivações quanto aos seus comportamentos” (Steil, 2003: 250). 19 “Instead of stressing the phenomenological or ideal-typical opposition between tourism and pilgrimage, while still building on the same binary classification, some scholars have pointed towards their deeper, structural convergence” (Stausberg, 2011: 20). 20 “a tourist is half a pilgrim, if the pilgrim is half a tourist” (Turner; Turner, 1978: 20). 16

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Independentemente das motivações, ou de costumes e práticas, esse termo diz respeito apenas à origem das pessoas. Portanto, romeiro é quem é de fora; romeiros são todos aqueles que passam pela cidade. A estória de seu José, que conheci em um ônibus circular entre Guaratinguetá/SP e Aparecida/SP, exemplifica bem essa constatação. O tráfego era intenso e lento, o que nos proporcionou uma longa conversa. Nosso diálogo partiu, justamente, dessa situação, e ele me contava como, desde que se mudou, a frota de veículos na cidade teria crescido. Questionada a sua origem, explicou que “morava na roça”, na divisa de Cunha/SP e Lorena/SP, região próxima. Sem que eu fizesse mais perguntas, disse que era católico e que junto com a família costumava, anualmente, ir à Aparecida/SP “pra pagar promessa e comprar coisa pra casa” - essas viagens se repetiram por toda infância, conta, até que quando jovem, teve uma ideia - “Peguei minha mala vazia, fui até São Paulo e enchi ela de bugiganga. Voltei pra cá e abri ela na rua: os romeiros compraram tudo! Analfabeto tem que se virar, né?”. Dando certo a empreitada, passou a repeti-la até que conseguiu comprar uma casa na cidade - “é que sou da raça dos hebreus” - para onde se mudou e reside até hoje. Com 82 anos de vida, conta orgulhoso que durante 60 anos trabalhou como ambulante em Aparecida/SP, carreira seguida pela filha, que conseguiu uma banca na feira. Seu José demonstra, claramente, que sua família sendo devota, e residente na mesma região, viajava para Aparecida/SP também para “comprar coisas pra casa”. Do mesmo modo, sua mudança se deu em função da oportunidade de trabalho que encontrou na venda dessas coisas. Na sua trajetória, Aparecida/SP foi e continua sendo tanto um local propício para viver sua religiosidade, como praticar seu trabalho. Em outras palavras, o que transformou o peregrino José em residente foi a oportunidade de emprego e renda. Evidentemente, isso não se aplica a todos. O caso de dona Alice é justamente oposto: pela falta de oportunidade de trabalho, ela deixou de ser residente para se tornar romeira. Natural de Aparecida/SP, Alice passou grande parte da vida fora, retornando depois de aposentada, exclusivamente por insistência dos filhos. Sua insatisfação com a cidade é categórica: “Ah, eu não gosto de Aparecida. Aqui todo mundo só pensa em

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dinheiro: é só lucro que importa. E todo mundo fofoqueiro! Sofri muito, aqui não tem lugar pra gente pobre não. O comércio é muito fechado: tem os donos e o resto fica tudo trabalhando pra eles. Eu já trabalhei pra restaurante, hotel e loja aqui. Era muito explorada, não recebia quase nada, tratavam eu que nem escrava. Aqui tem muito racista”. Órfã de pai ainda criança, dona Alice parou os estudos e trabalhou de faxineira em diversos hotéis, assim como cozinheira em restaurantes da cidade, no intuito de ajudar sua mãe na renda da casa. Já na juventude, engravidou de um namorado que a abandonou logo em seguida, o que resultou na sua expulsão da casa dos pais. Grávida, passou então a viver de favor na casa de amigos conhecidos, também trabalhadores da cidade. Nessa época, vivendo em uma vila, ela e a vizinha não se conformavam com a exploração dos romeiros, que percebiam onde trabalhavam. Assim, optaram por receber aqueles que visitavam o Santuário: “A gente nem conhecia, colocava tudo lá dentro, mas separava homem em uma casa e mulher em outra. Fazia isso pra ajudar eles, coitados, não cobrava nada. Ficavam de graça. Podia usar cozinha, banheiro... Eu saía cedo pra trabalhar e deixava eles lá. Eles que compravam comida e papel higiênico, não dava tudo também, né? Alguns deixavam gorjeta e comida, mas a maioria num dava nada não”. Conta que certa vez, um romeiro que foi para o forró de madrugada se envolveu em uma briga e foi esfaqueado. A sua vizinha o manteve em casa, fazendo curativos, até que se recuperasse. Com o passar do tempo, longe de passar despercebida, diz que o preconceito com a sua condição de mãe solteira virou um problema maior, posto que seus empregos passaram a ser negados. Só conseguia se manter com a ajuda de uma grande amiga também faxineira. “Graças a Deus tem gente humilde, com coração em Deus que faz o bem pros outros. Isso que falta no mundo, não acha?”. Ela argumenta em diversos momentos sobre a importância da conversa e fraternidade entre as pessoas, e esse seria um dos problemas que vê na cidade “Em Aparecida só vem conversar com você gente interessada em vender coisas, com intenção outra que não a bondade com os outros. Aqui não é brincadeira não, ainda bem que fui pra São Paulo”. Foi na capital do estado que conseguiu renda para criar os filhos.

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Durante o caminho que percorremos, apontou uma casa que seria do seu filho “ele hoje tem vários imóveis que aluga na cidade e já é avô”. A filha fez graduação em pedagogia, morando e trabalhando em Taubaté/SP. Dona Alice, por sua vez, trabalha esporadicamente como vendedora para alguns feirantes “Hoje nem faço por dinheiro, sabe? Já tenho minha aposentadoria e uma casa boa. É porque não consigo ficar parada dentro de casa sozinha. Fico batendo pé o dia todo pra rua”.

Árabes e Mineiros Aos finais de semana, o número de romeiros é até quatro vezes maior do que o de aparecidenses fixos. De origem, gênero, etnia, idade e classe das mais variadas, eles formam grandes grupos, que trafegam incessantemente pelas calçadas e ruas, usualmente portando sacolas cheias. São senhores de botina e chapéu de palha, mulheres de óculos de sol e salto alto, adolescentes de calça jeans e camisetas de banda. Os comerciantes, nas portas das lojas, têm como objetivo os convencer a entrar: os romeiros são um dos alvos da sua disputa. Sempre com uma pochete na cintura, cheia de cartões de visita, Tato aborda todos que passam dos dois lados da esquina onde está o seu ponto comercial, exclusivo de vestuários, com um “ô irmã (o), vem dar uma olhadinha aqui” oferecendo roupas de acordo com o clima do dia. Com uma funcionária fixa, conta com ajuda ora da esposa, ora de um de seus dois filhos. Sua mãe é dona de um hotel e o outro filho é estudante de direito. Sempre informado das romarias hospedadas nos hotéis próximos, também arrisca dizer de onde as pessoas seriam, e consegue arrancar sorrisos, e caras de espanto, quando acerta. Tato tem 45 anos, é aparecidense, e cursou dois anos de medicina no Rio de Janeiro, mas acabou trocando o curso para economia. Já formado, trabalhou nove anos em um banco, até que pediu demissão: “Era muito estressante, pensei que ficando aqui na loja poderia tirar o mesmo dinheiro, mas usando bermuda e fazendo o meu horário. Que engano! Só a bermuda que deu certo: to aqui de segunda a segunda, sem descanso”. De fato, não houve um único dia em que não o encontrei em sua loja, fosse às nove da manhã

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ou às dez da noite. Católico, nos dias de menor movimento o encontrava lendo a Bíblia no balcão. Devoto de Nossa Senhora Aparecida, conta que mantém um altar em casa, onde reza todas as quartas-feiras pela alma dos seus antepassados e pela vitória do Corinthians, seu time de futebol. “Aqui tem modas e as pessoas correm atrás do que tá vendendo. Por exemplo, atualmente Paraguai tá em baixa, agora tá bom roupa. Tempo atrás era perfume, um amigo comprava por três e cinquenta e vendia por dez, mas aí parou as vendas. No shopping, se você ver, a moda é som de carro, um abre os outros vão atrás, dá pra tirar vinte mil no final de semana com isso. Só precisa de uns vinte clientes, o mais barato é oitocentos. Aqui é assim, pessoal corre pro que tá vendendo, maioria não especializa, não é igual São Paulo que um chinês vende tudo igual”, explicou-me certa vez. Sendo uma das primeiras pessoas que conheci na cidade, Tato se tornou uma das pessoas com a qual mais mantive contato. Em razão de seu pai ser historiador, ele também me informou muito sobre a história de Aparecida. De presente me deu um exemplar de uma revista, lançada em comemoração ao centenário da migração na cidade, que já afirma: “a ladeira e a praça eram territórios deles, os sírios e libaneses, mais ricos que os outros e de usos e costumes diferentes dos nossos” 21. O prédio em que está localizada a sua loja, ele conta orgulhoso, foi de seu bisavô libanês que morava na parte de cima da construção. Assim, desde 1890, a família mantém uma loja naquele mesmo lugar. E longe de ser exceção, a maior parte das lojas daquela região tem história semelhante. Os primeiros imigrantes árabes fugiam do Império Turco-Otomano, devido aos massacres de cristãos, e ali chegaram ao final do século XIX. A publicação diz que a escolha, da então Vila de Aparecida em Guaratinguetá/SP, deu-se pela liberdade de culto e a oportunidade de trabalho que ali encontraram. Esses sírio-libaneses, então, passaram a trabalhar como mascates na cidade. Diferente da população local, majoritariamente rural, eles encontraram no comércio ambulante sua fonte de renda. Pode-se constatar, através das propagandas do início do século, que os produtos oferecidos no comércio local eram joias, em prata e ouro, chapéus, tecidos, artigos religiosos, capas de chuva, gravatas (...) Ana Nehri Boueri, libanesa de 21

O libanês visto por um Aparecidense. Revista Maktub, Aparecida, Editora Santuário: 18. 1990.

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Bouer, preparou uma pequena caixa com artigos religiosos para oferecer a visitantes ilustres, assim despertando a atenção dos romeiros, que passaram a comprar seus artigos, dando surgimento às “caixinhas”, no início da década de 30. O aparecimento das “banquinhas”, comércio com artigos religiosos e armarinhos e miudezas, foi resultado evolutivo das primeiras caixinhas. 22

Inventaram e passaram a vender as chamadas “caixinhas”: feitas de madeira, continham uma espécie de kit de produtos religiosos, como terços e santinhos, com orações e estampas de Nossa Senhora Aparecida. Empreendimentos de sucesso, pelo fluxo considerável de pessoas, conseguiram comprar as propriedades ao redor da Igreja Matriz, onde abriram as primeiras lojas e hotéis com esse objetivo. Desse modo, ainda hoje, grande parte das propriedades ao redor da Igreja, localizada no alto do Morro dos Coqueiros, pertence a famílias de ascendência árabe. Sua influência, no entanto, se faz sentir de forma clara e expressiva, estabelecendo um comércio peculiar: mercadorias dependuradas nos toldos ou dispostas no chão, artigos com visual atrativo, mas de baixa qualidade, sem durabilidade, com preços acessíveis, que satisfazem o freguês de baixo poder aquisito. 23

Uma dessas personalidades é o senhor Adi, com 92 anos de idade, que trabalha há 70 anos na loja que foi fundada pelos seus pais, que vieram do Líbano. Por conta disso, afirma ser o único libanês autêntico vivo. Referência na cidade, várias pessoas recomendaram que eu falasse com ele, já que seria o comerciante há mais tempo na ativa, e um profundo conhecedor da história do município, que é mais novo que ele. A Casa Ferreira se localiza ao lado da Igreja Matriz, coincidindo a sua fachada com a porta lateral do templo. O nome tem uma explicação: Ferreira seria a tradução de Haddad, o sobrenome original, que foi trocado para integração ao país. Adi conta que, antigamente, o movimento ali era muito maior, sendo a Praça Nossa Senhora Aparecida, em frente à Igreja Matriz, o grande centro da cidade, com a diferença de que não está sob controle do clero. Ou como me disse um dos comerciantes árabes, eles chegaram ali antes dos padres.

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MURAD, José Felício Goussain. Com o Comércio nas Veias. Revista Maktub, Aparecida, Editora Santuário: 09. 1990. 23 MURAD, José Felício Goussain. Com o Comércio nas Veias. Revista Maktub, Aparecida, Editora Santuário: 10. 1990.

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De fato, mesmo que na simplicidade, a Praça evoca importância histórica nesse contexto. A praça parece ser pequena comparada à quantidade de coisas que acontecem e de pessoas que transitam por ela. Em um sábado comum é possível encontrar um homem em pé, de jaleco azul e boné vermelho, que faz algodão doce enquanto escuta um rádio de pilha que toca músicas de John Lennon. O público é de crianças que chegam com uma moeda e são surpreendidas quando o vendedor abaixa e mede o tamanho do algodão doce com a da cabeça delas, que é sempre menor. Uma Kombi para na rua lateral e dela saem dois homens que carregam fardos e mais fardos de cerveja, em garrafa e em lata, que distribuem nos comércios da praça. A grande atração, que resulta em aglomerado maior de pessoas, é um senhor que toca teclado enquanto canta a canção “Guantanamera”. Sentadas nos bancos, idosas cantam junto, sacudindo as pernas e o pescoço no ritmo. A estátua de Nossa Senhora da Conceição, erguida em 1904 em uma de suas pontas, traz a mensagem do Papa Pio X em homenagem à coroação da Imagem Aparecida, ali ocorrida com pompa24. Ao seu redor, além das pombas, estão dezenas de fotógrafos que produzem lembranças personalizadas, em que usualmente a Igreja Matriz aparece em segundo plano ao romeiro. Se os adultos permanecem em pé, para crianças existe a possibilidade de subir em cavalos de brinquedo e tirar fotografias. Essa prática remonta desde pelo menos o final do século XIX, quando Aparecida era o único local, na região, a contar com serviços fotográficos25. Um desses fotógrafos, ali trabalhando há mais de 50 anos, afirmou que na última década os romeiros têm usado cada vez menos esses serviços, já que fazem suas próprias fotografias com câmeras e celulares. Junto aos fotógrafos, devidamente uniformizados de amarelo, estão uniformizados de azul os ambulantes. Eles vendem água, sorvete, algodão doce, maçã do amor, pipocas e refrigerantes. Também junto deles, homens com uniformes variados abordam todas as pessoas que lá chegam, através da Passarela da Fé: os chamados 24

No Museu de Aparecida, localizado na Torre Brasília da Basílica, é possível ver a pintura em tela que retrata esse evento. Padre Brustoloni, historiador oficial, o aborda em detalhes: “A festa da Coroação projetou o Santuário de Aparecida para todo o Brasil. Aquele dia 8 de setembro de 1904 foi um marco na história do desenvolvimento do Santuário” (1998: 336). 25 Não raro os antigos álbuns de fotografia de famílias vale-paraibanas, como de meus antepassados, têm justamente essa praça como cenário.

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agenciadores26 são pagos pelos restaurantes e hotéis locais para atrair novos clientes com abordagem direta dos transeuntes com piadas, cardápio do dia e promoções sendo repetidas incessantemente. Se à primeira vista pode parecer desordenado, por conta do grande fluxo de romeiros, na realidade a posição e o alvará de cada um dos comerciantes são controlados sistematicamente pelos fiscais da prefeitura municipal, que atentamente observam tudo do quiosque de informações, no meio da Praça. Fernando tem 43 anos de idade e é agente de fiscalização há 20 anos: com muitos números e estatísticas decorados, explica que eles são 15 funcionários pagos pela prefeitura, através da Secretaria de Comércio, e têm como função fiscalizar e coibir, tanto o comércio irregular como os batedores de carteira27 em toda a cidade. Do mesmo modo, os bombeiros delegaram a eles a função de fiscalizar o cumprimento das regras de segurança dos bares, restaurantes, da feira aberta e principalmente dos hotéis. Ele afirma, inclusive, que o movimento do começo do ano depende muito do resultado da safra do café, já que essa seria a fonte dos romeiros mineiros, de origem rural. Enquanto os paulistas viriam mais durante a semana, em visita de um dia e de carro, os mineiros viriam mais aos finais de semana e de ônibus: justamente por pernoitarem, acabam sendo o maior público dos hotéis e pousadas. Esse fluxo constante resultou, a partir da década de 1980, em uma migração de mineiros que conseguiram abrir restaurantes e hotéis, agenciados através de contatos prévios de seu estado natal. Isso teria formado uma grande disputa com o monopólio síriolibanês existente. Como me disse um comerciante: “eles vieram da zona rural onde recebiam quinze reais por dia e gastavam tudo no boteco com bilhar, cachaça e mortadela.

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Acontece principalmente aos finais de semana, essa função de baixa remuneração é executada por funcionários fixos dos hotéis, que intercalam as atividades, ou então por homens e mulheres de baixa renda em caráter temporário na alta temporada. 27 Ele afirma que em média são 200 carteiras roubadas, por fim de semana, que costumam ser devolvidas aos donos pelos correios. Já os ambulantes irregulares são chamados de “paraquedistas”, porque “caem” na cidade aos finais de semana, sem autorização prévia.

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Hoje eles têm o carro do ano e casa nova: os mineiros têm o mesmo jeito quieto dos libaneses de guardar dinheiro” – finalizando – “os mineiros são os novos turcos”. 28 Segundo Adi, todo esse movimento na Praça é muito pouco se comparado ao que foi outrora: o que fez com que caísse drasticamente o número de romeiros que ali circulam foi a mudança da Imagem Aparecida, trocada de templo depois de mais de 200 anos no mesmo lugar. Como exemplo, ele mencionou o caos instaurado na cidade, quando o Santuário Nacional promoveu uma viagem da Imagem Aparecida por todo o país. A abordagem histórico-jornalística de Alvarez (2014) descreve esse momento: Achava-se que, ainda que a exposição da santinha pelo país fosse uma ótima propaganda em longo prazo, na ausência dela, os romeiros temporariamente deixariam de viajar até lá. (...) O povo, nas palavras do padre que naquele momento escrevia o diário de Aparecida, eram os comerciantes locais, que dependiam da fé alheia e do turismo que ela gerava para sobreviver. E a situação realmente ficou tensa. Num telefonema anônimo, algum representante do povo ameaçou incendiar tudo o que pertencia aos padres e à Igreja caso a imagem fosse tirada de Aparecida. O delegado da cidade mandou seus policiais cercarem os prédios do santuário e garantiu, em 3 de maio de 1965, a primeira viagem da santa nos tempos da ditadura (Alvarez, 2014: 204).

Construído justamente para abrigar a Imagem Aparecida, foi na Igreja Matriz que ela permaneceu de 1745 até 1982, fora os curtos períodos de suas viagens. Inicialmente de taipa, essa estrutura simples foi sendo modificada no decorrer do tempo, para atender o fluxo de visitantes. Foi assim que a atual disposição de estilo barroco 29 da Igreja Matriz30, também conhecida como Basílica31 Velha, foi inaugurada em 188832. Situada entre dois polos – político e administrativo – do Rio e de São Paulo, a Capela era visitada por pessoas ilustres, que junto dela passavam. Muitos subiam a ladeira não para rezar, mas apenas para conhecer a afamada Capela da ‘Senhora Aparecida’ (Brustoloni, 1998: 79).

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Em Aparecida/SP o termo “turco” é usado para se referir a todos de ascendência árabe, mas também se estende à elite econômica da cidade. Também é usado como sinônimo de “avarento”. 29 Em 2004, por iniciativa do CONDEPHAAT, começou uma minuciosa restauração do prédio, tombado como patrimônio histórico. 30 É chamada assim por ser a sede da Paróquia de Nossa Senhora Aparecida de Aparecida/SP. 31 O título de Basílica Menor é concedido pelo Vaticano, em reconhecimento à importância histórica de certos templos: “A dignidade foi concedida por Pio X, a 29 de abril de 1908, e executada com a sagração do templo por Dom Duarte, a 5 de setembro de 1909” (Brustonoli, 1998: 352). 32 Frei Monte Carmelo, que também dá nome à rua que dá acesso ao templo, foi o responsável por essa última reforma, ao final do regime monárquico do padroado, um momento de transição e tensão. Os detalhes reveladores dessa empreitada podem ser vistos em Alvarez (2014: 147-154) e em Brustoloni (1998: 196-199).

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Turner (1973) destaca a importância da localização geográfica dos santuários, afirmando que ela é invariavelmente periférica, ou seja, não coincide com capitais políticas nem econômicas do país

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, característica fundamental para a consolidação das

peregrinações. Contudo, o caso do Santuário merece mais atenção.

O Vale do Paraíba

Para falar da cidade é importante ter consciência da importância da sua localização: se a periferia de Aparecida é evidente, já que não se trata de uma capital propriamente dita, por outro lado, é notório que ela se encontre entre as duas maiores capitais do país. Além da grande concentração de pessoas nessa região, historicamente o Vale do Paraíba foi, e continua34 sendo, grande estratégia política e econômica. A localização de Aparecida é bem ajustada aos papéis a que foi chamada desempenhar. Situa-se no cruzamento entre São Paulo e Rio de Janeiro, em um eixo, e o litoral e Minas Gerais, num segundo eixo. Tem assistido, portanto, a um tráfico expressivo ao longo de toda a sua história (Fernandes, 1988: 88).

O território de Aparecida/SP é predominantemente de relevo montanhoso, tendo como fronteiras a Serra da Bocaina, de um lado, e de outro o Rio Paraíba do Sul, onde a Imagem apareceu e cujas margens planas concentram o perímetro urbano. É vizinho dos municípios paulistas: Guaratinguetá, a leste; Roseira, a oeste; Lagoinha, a sul; e Potim, a norte.

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Essa constatação é rechaçada, posteriormente, por pesquisadores de religiões orientais. Cohen (1992) critica a intenção de padronizar as características de todos os santuários, independentemente da religião professada, e através de uma pesquisa empírica sobre santuários budistas, afirma que essa característica periférica seria exclusiva do catolicismo. 34 A lei complementar estadual 1166, de 09 de janeiro de 2012, criou a Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte. Formada por 39 municípios é a terceira maior metrópole do estado.

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Mapa 3. Guia turístico distribuído pela Prefeitura Municipal de Aparecida.

Mapa 4. O território municipal de Aparecida destacado no estado de São Paulo.

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De nome homônimo ao da santa 35 , a cidade tem sua história intimamente vinculada a essa devoção, estampando a Imagem Aparecida em sua bandeira. É possível ainda encontrar réplicas da imagem Aparecida em prédios públicos, como da Câmara de Vereadores, da Prefeitura Municipal, do Terminal Rodoviário ou a Santa Casa, entre outros. Ela não é apenas um símbolo religioso nesse contexto, mas também político. Por outro lado, Turner (1973) realça que se santuários nascem em regiões periféricas, as peregrinações são capazes de transformar completamente o seu entorno, através do desenvolvimento econômico 36 . Situação semelhante, nesse caso, é inevitável creditar à Imagem, a construção do templo, as romarias e o fortalecimento da urbanização, que contribuiu para fundação do município, emancipado no ano de 1928. a pequena basílica do bairro de Aparecida criou uma cidade-estado independente, um vaticano muito peculiar e afinado com os apelos do catolicismo popular brasileiro e com as necessidades de construção de uma religião mais adequada à identidade nacional e ao crescimento urbano-industrial (Oliveira, 2000: 93).

Se a cidade ficou independente de Guaratinguetá/SP, o mesmo não ocorreu em relação à santa. Em grande medida, foi a devoção à Nossa Senhora Aparecida a responsável pela recente emancipação do município, e ela continua sendo, direta e indiretamente, o seu grande referencial37. Não há dúvida que a mobilidade desse grande fluxo de romeiros que no ano de 2013 superaram as 11 milhões de pessoas, só foi possível devido ao sistema viário e de transporte fortalecido dessa região. A implementação da Estrada de Ferro 38 , com a construção da Estação de Aparecida, foi uma das responsáveis pelo crescimento exponencial do número de visitantes, tornando-se a principal via de acesso dos romeiros e

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O município emancipado recebeu o nome da santa, situação que difere de outras grandes devoções marianas, como a de Fátima/Portugal e Lourdes/França, nas quais foi a santa quem recebeu o nome da cidade em que apareceu. 36 “If we take this view that pilgrimages sometimes generate cities and consolidate regions, we need not abandon the view that they are sometimes also the ritualized vestiges of former sociopolitical systems” (Turner, 1973: 229). 37 Esse tema será desenvolvido no segundo capítulo. 38 Inicialmente Estrada de Ferro do Norte, depois Estrada de Ferro Dom Pedro II e por fim Estrada de Ferro Central do Brasil. Hoje é voltada exclusivamente para transporte de mercadorias, sem trens de passageiros.

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também pelo nome popularmente conhecido, que até hoje muitos acreditam ser o correto: Aparecida do Norte39. Atualmente, com a superação das ferrovias40, praticamente todo acesso à cidade se dá através da Rodovia Presidente Dutra41 (BR-116), a mais movimentada do país. Não por coincidência, boa parte das ruas42 da região central é na verdade uma rodovia estadual. No planejamento urbano, Aparecida/SP é tida como parte de um caminho, um lugar de passagem e de tráfego de quem vai visitar a Imagem Aparecida.

Os Centros de Eventos

A Imagem Aparecida tem um lugar bem delimitado: a Basílica, uma das construções do Complexo Turístico-Religioso do Santuário Nacional. Trata-se um conjunto de espaços voltados para o acolhimento dos romeiros, sendo os principais o Centro de Apoio aos Romeiros (CAR) e o Centro de Eventos Padre Vitor Coelho, todos administrados pelo clero católico. Esse complexo é usualmente descrito através dos números, devido à sua imponência: A grandiosidade do maior Santuário Mariano do mundo está presente em cada detalhe de sua estrutura: a Torre Brasília mede 109 metros de altura, incluindo a Cruz; a Cúpula Central possui 70 metros de altura; as naves medem 40 metros cada. A suntuosa Passarela da Fé que liga o Santuário à Matriz Basílica tem 392,2 metros de comprimento, e sua parte mais alta está a 35,52 metros do chão. Bondinhos Aéreos interligam a Basílica ao Morro do Cruzeiro numa extensão de 1.100 metros. A acolhida aos peregrinos que chegam de todas as partes do mundo é possível porque o Santuário Nacional possui o maior estacionamento da América Latina, com capacidade para mais de 6 mil veículos e extensão de 285.000 m² e um Heliponto. O Complexo abriga, ainda, o Centro de Apoio ao Romeiro, com 380 lojas, incluindo ampla Praça de Alimentação, um 39

“Em 1887, com a inauguração da estrada de ferro, os romeiros, que antes vinham a pé, a cavalo ou de carro de boi, passaram a viajar de trem. Embarcavam na Estação Norte, em São Paulo. E diziam que seu destino era Aparecida da Estação Norte. Com o tempo, por um processo linguístico coletivo, chamado braquilogia, eliminaram a palavra Estação e fizeram a concordância, restando Aparecida do Norte, cantada em prosa e verso” (Ribeiro, 1998: 15). 40 É planejada pelo governo federal a implementação do Trem de Alta Velocidade (TAV), que ligará a cidade de Campinas/SP ao Rio de Janeiro/RJ. Uma das exigências do edital público é a construção de uma Estação em Aparecida/SP (DIAS; PUPO, 2012). 41 A Rodovia é majoritariamente reta, mas na região de Aparecida conta com uma série de curvas. Escutei, mais de uma vez, o boato que isso se deu no planejamento para evitar que transpassasse o território da Igreja. 42 Ver Mapas 1 e 2. As rodovias são destacadas em amarelo.

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total de 874 sanitários, sendo 55 adaptados para pessoas com deficiência e a Cidade do Romeiro - onde está localizado o Hotel Rainha do Brasil. Toda esta estrutura é mantida pelos 1.798 colaboradores, além das centenas de voluntários, que recebem a cada dia os peregrinos de Nossa Senhora Aparecida e ajudam a sustentar sete projetos sociais que beneficiam a comunidade. 43

Aos finais de semana a movimentação no Santuário Nacional é mais intensa durante a manhã, desde a missa das seis horas, período no qual há mais pessoas transitando tanto pela Basílica quanto pelo CAR. Esse movimento vai diminuindo no decorrer do dia, até que no final da tarde atinge seu mínimo, entre 15 e 16 horas, que é quando a maior parte das romarias vai embora, esvaziando os estacionamentos. Aliás, o estacionamento é um dos referenciais dos comerciantes do centro da cidade que observam, desde a Passarela da Fé, a quantidade de carros e de ônibus para confirmar a movimentação do dia. Não só nos mapas, mas visivelmente na cidade e nos seus arredores, o Santuário Nacional se destaca mais que qualquer outro espaço, o que causa a impressão de que tudo na cidade está ao seu redor e em sua função, mas não é bem assim. Conversando com romeiros que frequentam Aparecida há décadas, ouvi de uma senhora que a lembrança mais forte que tinha era do piquenique que fazia com os pais, no antigo gramado onde agora é o estacionamento. Outro homem me disse que o picolé napolitano, vendido em abundância pelo comércio ambulante, era sua maior referência da infância. Já um casal me confidenciou que se conheceu em um baile de forró na cidade. O esvaziamento de pessoas do Santuário Nacional, com o cair da tarde e início da noite, implica em uma nova dinâmica em toda a cidade. Se os romeiros durante o dia transitam pelas ruas para fazer compras, a noite a busca dos visitantes é por diversão.

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BETTONI, Tatiana. Santuário em números. Santuário Nacional Aparecida, Aparecida, s/d. Disponível em: . Acesso em 15/01/2015.

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Figura 2. Tabela da expectativa de movimento, distribuída pela Prefeitura Municipal de Aparecida.

As ruas Monte Carmelo e Oliveira Braga, ainda com suas lojas em pleno funcionamento, passam a ser ocupadas também pelos hóspedes dos hotéis e pousadas. Estes estabelecimentos, em sua maioria, não oferecem grandes espaços de convívio para os hóspedes, restringindo-se ao salão de jantar. Isso faz com que os romeiros utilizem as portas e calçadas do local em que estão hospedados. Cadeiras de plástico são utilizadas pelos mais velhos, enquanto os mais jovens utilizam os canteiros das árvores e o meio-fio da calçada para se sentar. A mesma cena se repete em diversos bares ali existentes: com cabelos ainda molhados, perfumados e usando roupas novas, o contraste do vestuário usado durante o dia é evidente. Como bem salienta Steil (1996: 133-134), os bailes e bares são parte constitutiva das romarias brasileiras, que não podem ser compreendidas sem eles. Após cumprir as obrigações do dia, essas pessoas costumam interagir pela madrugada adentro, com rodas de samba ou então com o som emitido pelos celulares, que costuma ser o funk

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carioca. Aliás, sem dúvidas, o funk carioca é o preferido na cidade: seja entre os romeiros ou entre os aparecidenses44, esse ritmo musical é ecoado constantemente em automóveis e estabelecimentos comerciais. Muitos deles passando em seus televisores uma coletânea dos últimos videoclipes lançados. Ao final das ladeiras e atrás da Igreja de São Benedito, na Praça Benedito Meirelles, é em que ocorre a maior aglomeração. Nas noites de sábado acontece o já tradicional baile de Forró45, promovido pela prefeitura municipal, com uma banda tocando no pequeno palco enquanto dezenas de casais dançam. Todas as músicas são de artistas seculares, nos quais Deus só é evocado em refrãos como “Eu já fiz uma promessa e Deus vai me ajudar, eu só vou beber mais hoje, amanhã vou parar” ou então “Que, que eu fiz ontem a noite? Não é de ver, meu Deus, eu casei sem perceber” 46. As pizzarias ao redor da praça são concorridas, com todas as mesas ocupadas logo no começo da noite. Os que conseguem se sentar observam a festa, enquanto dividem suas torres de chopp. Os demais compram a cerveja em lata e bebidas destiladas dos ambulantes. A rua com pouca iluminação na lateral da é para onde vão alguns dos casais, entre uma música e outra. Se durante a noite a praça é usada para bailes, e de dia por ambulantes, periodicamente essa mesma praça é palco de diversos outros eventos. Característica comum a outras praças, a especificidade da de Aparecida/SP está nesse distintivo de “centro de eventos” estender-se por todas as vias do bairro central, e, às vezes, para além dele. O fato das ruas centrais serem rodovias não impede que constantemente tenham seu fluxo fechado para sediar alguma coisa, usualmente de grande porte. Toda região central de Aparecida/SP, incluindo as praças, as igrejas e o Santuário Nacional, é um grande centro de eventos. Durante os seis meses de pesquisa de campo foram muitos os eventos que acompanhei. Todos os finais de semana a cidade costuma ser sede de algum evento 44

Na cidade existe uma casa de eventos chamada “Luxúria” que faz parte do circuito do funk carioca, com shows de músicos famosos. Ela funciona nas noites de domingo, justamente para a participação dos aparecidenses, que não trabalham na segunda-feira. 45 Não sendo exclusivo, a cidade conta com outros bailes de forró, normalmente pagos. 46 “Só vou beber mais hoje” de Humberto e Ronaldo e “O que fiz ontem” de Zé Ricardo e Thiago, respectivamente.

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diferente, recebendo um público específico de romeiros além do habitual: como o encontro anual dos vicentinos, dos salesianos e das Equipes de Nossa Senhora. Devido à riqueza que presenciei, preciosa principalmente nos detalhes, cada um desses encontros seria digno de uma pesquisa e uma análise à parte. Porém, não é esse o objetivo desse capítulo, e sim compreender a sua dinâmica em relação à Aparecida. Em 2013, destacaram-se três que escolhi para expor aqui. Um deles é a Festa de São Benedito, que acontece na semana após a páscoa, marcando o fim da quaresma e da baixa temporada na cidade. Centenária, essa festa envolve a população aparecidense, com suas comissões específicas de organização, e não tem um vinculo direto com o Santuário Nacional, mas sim com a Capela de São Benedito. O ápice da Festa e Novena é no final de semana, no qual sedia o Encontro Nacional das Congadas. Neste evento, Aparecida/SP recebe grupos de congadas e moçambiques47, de todo o país, promovendo um verdadeiro espetáculo: cada grupo com uma roupa, uma música e uma dança diferente desfilam juntos pelas principais avenidas da cidade, seguidos por multidões de pessoas que tomam as calçadas. No sábado, o principal momento do dia é a procissão e o erguimento do mastro de São Benedito: um tronco de árvore, completamente ornado, que é transportado em procissão desde a Avenida Padroeira do Brasil e a Rua Barão do Rio Branco, para ser erguido em frente à capela. Com as vias fechadas para automóveis, um palco é montado na calçada do Terminal Rodoviário e lá é celebrada a Missa Afro48, que é seguida de uma procissão em cavalaria. Contudo, o dia oficial da festa é o domingo, que começa às 5 horas da manhã com a saudação ao mastro, seguida da missa solene presidida pelo arcebispo no palco e, por fim, a procissão de duas horas de duração que encerra as festividades. Sendo um dos maiores eventos, ele não é, contudo, o único. O 1º Hallel Internacional de Aparecida foi um evento de música cristã, com ritmos como o pop, o rap, o axé e o rock. As bandas se denominam cristãs e vão além das

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Mais informações sobre essas manifestações artístico-religiosas podem ser encontradas em Brandão (1985). Não as desenvolvo aqui por fugir ao tema do capítulo. 48 Organizada pela Associação de Bispos, Padres e Diáconos Negros do Brasil, todos no altar têm essa cor de pele e estão devidamente caracterizados com motivos africanos, assim como o palco. A liturgia conta com danças performáticas e uso de tambores.

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católicas, que se apresentam durante todo o final de semana em diversos palcos espalhados pela cidade, como um na Praça Nossa Senhora Aparecida, em frente à Igreja Matriz, e outro no pátio em frente à igreja Basílica. O público contou com um acampamento no próprio estacionamento do Santuário. Os músicos, no intervalo dos shows, fazem palestras com testemunhos de vida e oração em diversas tendas temáticas. Os temas incluem consumo de drogas e vida afetiva, com um grande apelo contra a legalização do aborto. Por recomendação da CNBB, o Santuário Nacional substituiu a chamada Romaria da Juventude por esse formato49 que, no balanço final, foi tido como um grande sucesso de público.

Figura 3. Capas das programações dos dois eventos.

Outro evento, exclusivo de 2013, foi a chamada Semana Missionária, conhecida também como Pré-JMJ. Organizada pela Arquidiocese de Aparecida, foi uma 49

O formato “Hallel”, que acontece em diversas cidades, teve origem em 1988 na cidade de Franca/SP. É uma iniciativa da Renovação Carismática Católica brasileira.

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acolhida aos estrangeiros que vinham participar da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro. Essa atividade foi desenvolvida em todo o país, na semana anterior ao evento, no qual jovens de diversos países ficam hospedados na casa de voluntários, no intuito de promover uma imersão na cultura e religiosidade local. No caso de Aparecida/SP o público escolhido foi o latino-americano de língua espanhola, principalmente vindos da Colômbia. Contudo, dada a importância conferida ao Santuário Nacional, os dias que antecederam ao evento foram marcados pela visita contínua de estrangeiros de todos os continentes, como parada obrigatória no trajeto para o Rio de Janeiro.

A Cidade-Santuário Dentro da tradição católica, o título de santuário é dado a determinados espaços de devoção, caracterizados principalmente por se tornarem centro de peregrinações, visitado sistematicamente por pessoas vindas de outras localidades. Dessa maneira, o uso do termo santuário muitas vezes passa a ser usado como sinônimo de centro de peregrinações, assim condensando e vinculando a centralidade, exclusivamente, ao templo principal. No caso de Aparecida, indo mais além, há a especificidade de que o título de santuário é acoplado a outros dois, já citados. O primeiro é o de maior santuário mariano do mundo 50 , pelo número de romeiros que por lá passam anualmente. O segundo, o de Santuário Nacional, o que indica que ele seria o santuário de maior referência em todo território brasileiro. Sem motivos nem meios para contestar os títulos quantitativos da sua grandeza é necessário analisar qualitativamente o segundo. Em uma crítica enfática, Fernandes (1988) questiona justamente a ideia de uma “devoção nacional”. Constatando a segmentação do catolicismo brasileiro, ele demonstra 50

“Mariano” diz respeito ao principal santo de devoção, no caso, Santa Maria. Porém, os levantamentos indicam que se trata também do maior santuário católico do mundo, independente da devoção. O número oficial de visitantes foi de 11.856.705 pessoas em 2013. Para fins de comparação, a Basílica de São Pedro, no Vaticano, recebeu 6.600.000 pessoas no mesmo período, pouco mais da metade, segundo o “Official Vatican Network” Disponível em: Acesso em: 07/12/2013.

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que, em todo território do país, existe uma rede de centros de peregrinações regionais, que não abre espaço para apenas uma centralidade em nível nacional. O caso de Aparecida/SP não seria diferente. Em suma, a maioria dos romeiros não parece se comover com o fato de pisarem “a capital religiosa do Brasil”. Sabem que é assim, mas não é isto que os põe em movimento (Fernandes, 1988: 87).

De fato, mesmo com a multiplicidade de origens daqueles que chegam à Capital da Fé51, o que se pode perceber é que a maioria dos romeiros são advindos, principalmente, da região sudeste e sul do país, sendo suas maiores “áreas de captação” 52 os estados de São Paulo e de Minas Gerais. O autor defende que a sua escolha, como referência nacional, seria política: uma sede escolhida pela hierarquia da Igreja que não representa a pluralidade do território nacional. Contudo, é preciso salientar que esse movimento de tornar o Santuário uma referência Nacional tem surtido efeito. Se essa centralidade ainda não é plena, ela é mais consolidada atualmente do que no contexto abordado por Fernandes (1988). Essa escolha política e religiosa de Aparecida/SP, como sede da Igreja Católica no Brasil, pode ser exemplificada pela sua escolha para sediar anualmente a Assembleia Geral da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)53, além da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em 2007, a visita do Papa Francisco em 2013 ou ainda mesmo ter sediado um debate entre os candidatos à presidência da república, na eleição de 2014. Essa projeção, nacional e internacional, consequentemente tem feito com que a origem das pessoas seja mais variada, e que a identificação seja mais ratificada. A antropologia que aborda esse campo específico de estudos conta com uma vasta produção, desde os anos 1970. Para citar apenas alguns exemplos, há a obra de Turner & Turner (1978) na qual fazem um levantamento e abordagem direta de uma série de santuários pelo mundo. No mesmo período há o historiador Ralph Della Cava (1976), 51

Este título é exposto em uma grande placa na entrada da cidade. “But if one can speak of a "catchment area" as a metaphor for the geographical area from which the majority of pilgrims are drawn to a particular shrine” (Turner, 1973: 201). 53 Todos os bispos do país são recebidos, durante dez dias, para discutir e planejar os caminhos a serem tomados pela Igreja Católica no Brasil. Em 2013 pude acompanhar a 51ª reunião. Nessa conferência o arcebispo de Aparecida, Dom Raimundo Damasceno Assis, iniciava o terceiro ano do seu mandato de presidente da CNBB (2011-2015). 52

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além de Rubem César Fernandes (1981; 1994) e as publicações de Carlos Rodrigues Brandão (1978; 1985; 1986). Mais recentemente, as pesquisas de Carlos Alberto Steil (1996) e Renata Menezes (2004). Mesmo que de maneira distinta, o que há em comum em vários destes autores é a proposta de uma etnografia de todo o percurso da romaria. Assim, evidentemente, é esse movimento de peregrinação que determina a abordagem e a nomeação do seu ponto de chegada54: o centro de peregrinações. Como já foi dito, metodologicamente, as minhas observações etnográficas aconteceram no período em que residi na cidade. Essa opção, evidentemente, acarretou em uma análise distinta: a abordagem não se deu somente através dos romeiros, mas principalmente através dos residentes fixos. Nas “estórias de vida” 55 (Kofes, 1994) deste capítulo, o que se vê são pessoas que não podem ser categorizadas como romeiras por residirem na cidade: é esse o primeiro ponto em que a tradição turneriana tem a maior divergência em relação a presente pesquisa. Longe de pretender uma investida estática, nem buscar um sistema fechado, as estórias de vida dos aparecidenses, ao invés de delimitar, potencializam a abordagem do movimento. Essa escolha se dá também pela concepção de que a prática religiosa não se restringe as práticas devocionais, mas é parte constitutiva dessas estórias de vida. A razão, sem dúvida, é que não é apenas a devoção, mas as instituições sociais, políticas e econômicas em geral, no interior das quais as biografias individuais são vividas, que conferem estabilidade ao fluxo de atividades de um cristão e à qualidade de sua experiência (Asad, 2010: 266).

Indo além de um ponto de chegada, a circulação incessante de coisas e pessoas, em uma mesma paisagem, torna evidente que a peregrinação propriamente dita é apenas um dos vetores que levam à Aparecida.

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“At major pilgrim centers, the quality and degree of the emotional impact of the devotions (which are often continuously performed, night and day), derive from the union of the separate but similar emotional dispositions of the pilgrims converging from all parts of a huge sociogeographical catchment area” (Turner; Turner: 1978: 13). 55 “Sintetizando, as estórias de vida estarão sendo consideradas como: fontes de informação (falam de uma experiência que ultrapassa o sujeito que relata); como evocação (transmitem a dimensão subjetiva e interpretativa do sujeito); como reflexão (contêm uma análise sobre a experiência vivida)” (Kofes, 1994: 120).

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Sendo a principal fonte econômica da cidade a prestação de serviços, ela depende, evidentemente, do fluxo de pessoas que passa pelo Santuário. Apesar de trajetórias distintas, percebe-se que as estórias se convergem. Cada qual a sua maneira, esses devotos tem nos visitantes da cidade a sua fonte de renda. De maneira extrema, como escutei de um lojista: “Tenho um amigo dentista que fala que não depende de romeiro, claro que depende! Sem romeiro na cidade, de onde o pessoal vai tirar grana pra arrumar o dente?”. Os romeiros são sim a especificidade, mas não o único parâmetro analítico. É evidente que Aparecida/SP se caracteriza, principalmente, por ser um centro de peregrinações, mas longe de querer negar essa qualidade, os apontamentos etnográficos mostram que não é possível se limitar a ela. Essa divergência não é pautada na negação, e sim na complementação etnográfica. Com consciência disso, Turner & Turner (1978) esboçam essa extrapolação do Centro, em relação às peregrinações, mas não se interessam em aprofundar. Centros de peregrinação, de fato, geram um “campo” socioeconômico; eles têm um tipo de “enteléquia” social. Pode ser que eles tenham reproduzido, pelo menos, um papel tão importante no crescimento de cidades, sistemas de mercado e estradas, quanto os fatores econômicos e políticos “puros”. 56

Guiando-se muitas vezes por questões semelhantes, a diferença dessa pesquisa está principalmente na metodologia. É justamente o que os autores chamam de “campo” que interessa aqui, isto é, como o centro de peregrinação não é autossuficiente, e está diretamente envolvido, política e socioeconomicamente, na região. Mesmo a abordagem weberiana, no movimento de desencantamento do mundo, chega a apontar o mesmo sentido às transformações desse espaço, ao afirmar que “Templos e mosteiros, em toda parte, tornaram-se os próprios centros de economias racionais” (Weber, 1997: 165). No caso de Aparecida, compreende-se o centro como não restrito ao Santuário, ainda que o englobe. Nesse sentido, ocultar a locução adjetiva “de peregrinação” não seria uma atitude de omissão em relação às atividades realizadas no centro, mas um esforço de 56

Minha tradução da seguinte citação: “Pilgrimage centers in fact generate a socioeconomic “field”; they have a kind of social “entelechy”. It may be that they have played at least as important role in the growth of cities, marketing systems, and roads, as “pure” economic and political factors have” (Turner; Turner, 1978: 234). Essa citação é semelhante à outra, feita anteriormente: “Pilgrimage centers, in fact, generate a "field." I am tempted to speculate whether they have played at least as important a role in the growth of cities, markets, and roads as economic and political factors” (Turner, 1973: 228).

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ampliar o ponto de vista que, não raro, fica comprometido e demasiadamente preso às restrições semânticas trazidas pelo adjunto em questão. No afastamento da tradição turneriana, a coletânea de Eade & Sallnow (1991) também rejeita a uniformidade, ou padronização, dos centros de peregrinação. Chamandoos de centros sagrados, defendem que, pelo contrário, a abordagem deve se dar tanto pelas peculiaridades como pelas diferentes instâncias em que elas se manifestam. Assim, aproxima-se da presente proposta: O centro sagrado, então, pode assumir muitas formas diferentes. O impulso do nosso esforço analítico não deve ser para formulação de generalizações, cada vez mais inclusivas e consequentemente mais vagas, mas sim para o exame das peculiaridades específicas, de sua construção em cada instância. 57

Concordando com eles, contudo, o exame das peculiaridades específicas de Aparecida indica ser necessário mais um movimento: o termo centro sagrado é insuficiente, já que deixaria de lado a economia e política locais, fundamentais no contexto descrito. O problema dessa limitação estaria em aplicar premissas tidas como religiosas, tanto para além como aquém do seu alcance. Aqui não se busca os padrões de Aparecida/SP como um centro de peregrinação, nem suas especificidades religiosas como centro sagrado, mas a sim sua especificidade como centro. Ocorre que a função religiosa de Aparecida é tão sistêmica, permanente e explosiva quanto ao papel metropolitano desempenhado, no Brasil, pela Grande São Paulo. E neste sentido, Aparecida se diferencia da maior parte dos 85 santuários católicos brasileiros (Oliveira, 2000: 98).

Ao utilizar apenas a palavra centro, o propósito é o de não padronizar suas características dentro de um mesmo referencial, para dar conta da função explosiva e diferenciada desse contexto. Principalmente por seus referenciais serem o alvo constante de dúvidas, interpretações variadas, disputas58 e conflitos entre os envolvidos. Nesse sentido, mesmo que a palavra centro denote uma qualidade desse lugar, que inclusive é continuamente repetida em outros espaços59, ela é insuficiente se não for contextualizada. 57

Minha tradução da seguinte citação: “The sacred centre, then, can assume many different forms. The thrust of our analytic endeavour should be not towards the formulation of ever more inclusive, and consequently ever more vacuous, generalizations, but instead towards the examination of the specific peculiarities of its construction in each instance” (Eade; Sallnow, 1991: 9). 58 Esse tema será tratado no terceiro capítulo. 59 Além do mais óbvio bairro Centro há também, por exemplo, o Centro de Apoio aos Romeiros e o Centro de Eventos.

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Em primeira instância, essa expressão se refere a um local ao qual pessoas se dirigem, com certa frequência, atraídas por algum motivo específico. Com função aglutinante, seria capaz de centralizar e agregar a todos em um mesmo espaço. Mas sem a especificidade, o problema se inverte, e o termo se torna vago: é um centro religioso, um centro econômico e um centro político? Com mais cautela, deve-se evitar uma relação determinista ou de polarização: entende-se que isso deve se dar pela combinação conjuntural dos fatores expostos. Para além de um centro sagrado ou de peregrinações, Aparecida tem uma urbanidade própria, como mostra a abordagem geográfica de Oliveira: Aparecida é um caso exemplar de cidade-santuário. A combinação de sua função religiosa e de seu desenvolvimento urbanístico sustenta essa afirmação (Oliveira, 2001: 57).

As descrições etnográficas demonstram que se o próprio Santuário Nacional opera quase como uma cidade, com uma grande infraestrutura e um padre com a função de prefeito, a cidade que o rodeia também está intrinsecamente relacionada a ele, o que não significa estar subserviente. Institucionalmente, essa distinção é clara, já que o espaço do Santuário Nacional é administrado pelo clero e a cidade pelos poderes públicos, como a Prefeitura Municipal. Porém, cotidianamente, essas fronteiras burocráticas se sobrepõem já que os espaços são usados, quase com indistinção, pelos romeiros. Ao fazer o uso do termo geográfico, a intenção não é apenas a de explicar a influência de um espaço em relação ao outro, mas de salientar que são intrínsecos. A abordagem etnográfica descrita só pode ser expressa pela noção de cidade-santuário, dada a referência a esse duplo sentido do espaço. Não há uma estrutura fixa, mas sua especificidade está na construção constante. O Santuário Nacional e a cidade de Aparecida/SP são administrados de maneira distinta, mas dividem o mesmo mito fundador, que é materializado na Imagem Aparecida. Em última instância, se há um centro propriamente dito, ele é a Imagem: ela materializa o conceito político-religioso-econômico que organiza, realiza e se confunde com a cidadesantuário.

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NOSSA SENHORA APARECIDA: A SANTA, A IMAGEM, A MARCA Atravessar a passarela como se desafiássemos o maior perigo existente no mundo até chegar ao carrinho que vendia picolé de duas cores. Enorme; ícone que representava para o meu coração o mesmo que a imagenzinha negra representava para o meu pai. Eu só não podia confessar esse absurdo. Caso contrário levaria um tapa bem dado na boca, e então não mais saborearia a minha devoção. As ruas eram estreitas, eu me recordo. As lojas minúsculas, muitas, todas iguais. Os terços pendurados, assim como nossas esperanças. (...) O picolé de Aparecida era cor de creme e cor-de-rosa. O fascínio estava no contraste. A imagem da Virgem também. Uma escrava vestida de rainha. O povo reverencia o conflito. Mas a imagem resolve ou estabelece o conflito? Depende. Há quem enxergue a escrava, e só. Há quem só tenha olhos pro manto garboso. (Padre Fábio de Melo, Memórias)

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Para se aproximar da Imagem Aparecida é preciso escolher uma das cinco filas paralelas que começam no corredor, que circunda a Basílica do lado de fora, e são divididas por longos corrimões de inox. As três filas do meio são as mais rápidas, nas quais estão as pessoas interessadas em um olhar breve e uma fotografia sorridente. Os que levam mais tempo acabam empurrados, diferente da última das filas em que ficam aqueles que levam terços para rezar, ora em pé encostados à parede e ora ajoelhados: ali quem quer passar é freado por quem fica. Já a primeira das filas é a mais longa, disputada e demorada: aos finais de semana é necessário esperar nela por mais de uma hora. São famílias inteiras, grupos de amigos, casais de namorados, freiras, idosas solitárias, homens de muleta ou empurrados em cadeira de rodas. Muitos ajoelham-se assim que entram no templo, mesmo aqueles com o joelho sangrando após atravessar a passarela, movendo-se com a assistência do corrimão. O silêncio predomina. Há aqueles que esticam as mãos o mais alto possível, tocando os ladrilhos da parede ou a proteção de vidro, alguns rezam completamente prostrados ao chão, enquanto outros passam com um olhar breve, mas com muitas lágrimas. Todos querem estar o mais perto possível daquela Imagem, disposta em um imponente nicho dourado60 a mais de dois metros de altura, com posição de destaque na Basílica. Trata-se de uma Imagem de Nossa Senhora da Conceição, feita de barro, com cerca de 40 centímetros, que aparecera quebrada nas redes de três pescadores que buscavam alimento no rio Paraíba do Sul. O ano era 1717, na região de Guaratinguetá/SP, e a Imagem aparecida das águas, daí o seu nome, teria feito o primeiro milagre logo em seguida, concedendo uma pesca abundante. É assim que começou a devoção a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, como ficou conhecida com o decorrer do tempo. Essa história é contada de diversas maneiras, e com poucas alterações aparece em jornais, revistas, web sites, filmes e livros. A escolha de expô-la aqui, em um único parágrafo, tem por objetivo condensar o núcleo comum a todas elas: o momento da aparição da Imagem. Essa narrativa oficial não é só contada e recontada constantemente nas missas do Santuário Nacional, como é representada através de pinturas, esculturas e 60

Pela internet é possível vê-lo, ao vivo e imóvel. Santuário ao vivo. Santuário Nacional Aparecida, Aparecida, s/d. Disponível em:< http://www.a12.com/santuarioaovivo>. Acesso em 07/12/14

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monumentos pela cidade. As representações dos três pescadores em um barco, em geral, apresentam certa diferença quanto à disposição dos pescadores, mas uma característica fundamental se repete: a centralidade da Imagem Aparecida. O ofuscamento é tanto, que geralmente não é possível identificar os pescadores, assim como seus nomes são pouco conhecidos. Ora erguida pelas seis mãos e ora nas mãos do pescador do meio, não resta dúvida que é ela o motivo central das representações. Vale frisar que a questão da materialidade cristã não é nenhuma novidade, isto é, a presença de imagens e relíquias no culto católico, mesmo que remeta a uma temporalidade anterior, tem proliferação intensa desde a Idade Média (Ginzburg, 2001). Nesse período crucial, foi submetida a várias interpretações e alvo de disputas sobre legitimidade, de cunho litúrgico, teológico e mesmo filosófico. Segundo Bynum (2011), a grande questão girava em torno da sacralidade das imagens estarem em si mesmas, ou seja, a devoção era voltada para própria materialidade, e não somente em relação daquilo que representavam, como defendiam alguns teólogos da época. As coisas não representavam, mas eram elas mesmas: Esses objetos devocionais não eram apenas enfeites decorativos, de igreja e capela, ou dispositivos para dirigir a atenção para o invisível. As pessoas se comportavam como se as imagens fossem o que elas representavam. Materializar era animar. Por vezes, quanto mais físicos tais objetos devocionais tornaram-se, mais eles pareciam ganhar vida. (...) O entusiasmo e ansiedade que tais objetos produziram tinha tudo a ver com a sua materialidade. 61

Essa questão foi fundamental no contexto da reforma protestante, que no movimento iconoclasta classificou a devoção a imagens como idolatria, e por isso proibida. Já a Igreja Católica Apostólica Romana, no movimento de contrarreforma, teve como argumento teológico que as imagens, diferente dos ídolos, são uma mera representação de algo importante. O resultado foi uma regulamentação, feita pelo Concílio de Trento62, que reafirmou essa posição institucionalmente.

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Minha tradução da seguinte citação: “These devotional objects were not just decorative embellishments of church and chapel or devices to direct attention to the invisible. People behaved as if images were what they represented. To materialize was to animate. The more physical such devotional objects became, the more they were thought sometimes to come alive (…) The enthusiasm and anxiety such objects produced had everything to do with their materiality” (Bynum, 2011: 125). 62 Ocorrendo de 1545 a 1563, dentre as várias novas normas estabelecidas, foi o responsável pela institucionalização do culto com imagens em resposta a proibição protestante.

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Assim, o padrão estético e simbólico na fabricação de suas imagens, pelas congregações religiosas, passou a ser submetido a essas orientações. No caso dos missionários nas Américas, elas eram voltadas para fins catequéticos das populações nativas. É esse o caso das imagens feitas pelos beneditinos, “artistas eruditos” (Etzel, 1975), que seguiam a risca essas regras, recentes na época, o que resultou em detalhes muito ricos, mesmo na simplicidade do material. Na tradição católica, Nossa Senhora da Conceição 63 é o título dado à representação de Maria64, personagem bíblica, grávida de Jesus Cristo. Dentre os mais de 1000 títulos65 de Maria existentes, esse seria o mais popular na península ibérica (Justino, 2006), declarada padroeira de Portugal desde 1646. Através da colonização portuguesa é creditada a sua popularidade no Brasil. Nessas representações, que também incluem pinturas, Maria está ladeada por alguns anjos aos seus pés, trajando longo manto, usualmente com os cabelos soltos e com a barriga levemente saliente pela gravidez: ela é a representação católica da maternidade, por excelência. Não fugindo do padrão, a Imagem pescada no rio Paraíba do Sul tem essas características. Ela faz parte da primeira geração de imagens católicas, fabricadas em território brasileiro: as imagens seiscentistas, produzidas nas oficinas monásticas, por congregações religiosas. Analisada por alguns especialistas, como Neto (1970), o barro utilizado confirma sua procedência do Estado de São Paulo, e a análise comparativa das

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A Imaculada Conceição de Maria é a ideia que Maria teria nascido, vivido e gerado Jesus sem nunca ter pecado. Ela é celebrada pelo menos desde o século XV, mas só foi instituída como dogma da Igreja Católica Apostólica Romana pelo Papa Pio IX em 1854, ou seja, mais de um século após a aparição e culto da Imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. 64 O corredor, em que está localizado o Nicho, tem as paredes estampadas com todas as mulheres bíblicas, em ladrilhos, com a Imagem Aparecida justamente no local de Maria. Na parede sobre ela, estampados os três arcanjos: Miguel, Gabriel e Rafael. 65 Os títulos dizem respeito a alguma característica de Maria, que varia consideravelmente. Por exemplo, pode se referir a uma passagem bíblica como “Nossa Senhora das Dores” que representa Maria ao ver Jesus crucificado, ou então “Nossa Senhora do Amparo” que representa Maria cuidando do corpo de Jesus após a crucificação. Mas os títulos podem se referir também ao local de uma aparição de Maria, como Lourdes, Fátima, Salete e Czestochwa. Ou, ainda, o título pode fazer referência a alguma graça de sua especialidade como “da Boa Morte”, “da Boa Viagem” ou “do Bom Conselho”.

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feições indica que teria sido esculpida pelo Frei Agostinho de Jesus, monge da Ordem Beneditina, na primeira metade do século XVII66. Tendo em vista esse panorama, Padre Júlio Brustoloni (1998), historiador oficial do Santuário Nacional, explora os detalhes da Imagem de maneira minuciosa, e sua interpretação final é a de que eles teriam sido fundamentais para a devoção, desde o primeiro momento. Os três pescadores ficaram surpresos diante do achado e guardaram carinhosamente as duas partes daquela imagem enrolada num pano e continuaram a pesca. Quebrada como estava, eles poderiam tê-la atirado novamente na água, sem nenhum desrespeito. – E porque não fizeram? Certamente porque viram na pesca milagrosa, que se seguiu, um sinal da proteção da Mãe de Deus; mas, creio, antes de tudo, porque descobriam que o semblante daquela imagem quebrada inspirava confiança e devoção (Brustoloni, 1998: 50).

Na análise do autor, não foi apenas a pesca milagrosa que deu origem a devoção, mas inicialmente a Imagem em si mesma que, em suas próprias características físicas e estéticas, gerou fascínio67. Exposta na casa dos pescadores, ela continuou a atrair pessoas de regiões cada vez mais distantes, até que, tendo conhecimento do fenômeno, o pároco local fez a primeira capela. A Imagem Aparecida foi transferida para o templo, que pelo fluxo de pessoas foi sendo ampliado, dando origem a Igreja Matriz, a Basílica e a própria cidade de Aparecida/SP68. Ou em outras palavras, como afirma o historiador: “Ela mesma seria a primeira construtora e foi sempre desde o começo. Os outros, inclusive o Senhor Cardeal, todos foram instrumentos” (Brustoloni, 1998: 224). Saiu poucas vezes dali, como quando em 1931 foi para o Rio de Janeiro “mostrando ao Presidente Vargas todo o poder que uma pequenina imagem de barro é

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Essa autoria é constantemente mencionada, porém Alvarez (2014) ressalta que estudos mais recentes indicam que não pode ser confirmada. Há a tese de que foi algum dos alunos anônimos do Frei Agostinho, e não ele próprio, quem a esculpiu. 67 No decorrer do livro isso é ressaltado diversas vezes (Brustoloni, 1998: 75-79). 68 Temática desenvolvida no primeiro capítulo.

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capaz de emanar” (Fernandes, 1988: 90). Em uma grande cerimônia69, com um milhão de pessoas na capital do país, Nossa Senhora Aparecida foi declarada Padroeira do Brasil70. As motivações políticas e clericais, que teriam tornado essa uma devoção nacional, são exploradas por Souza (1996). Considerando Aparecida um símbolo, a autora evoca uma influência do poder público, isto é, o Estado brasileiro no começo do século XX, que nela encontrou o referencial identitário nacional que procurava. Nossa Senhora Aparecida seria esse símbolo. A Virgem parece combinar, afortunadamente, memória, tradição e modernidade, apresentando-se como uma alternativa viável para representar a Igreja e materializar seu projeto de construção institucional e de uma identidade católica brasileira (Souza, 1996: 88).

Nesse sentido, as semelhanças entre as características identitárias da Imagem e dos devotos foram fundamentais. Como é evidente, a Imagem apresenta uma coloração escura, que especialistas conferem tanto ao lodo acumulado, durante o período sob as águas, quanto à fuligem das velas as quais ficou exposta. Tendo sido pintada originalmente, poucos vestígios restaram das cores, que outrora cobriam o corpo de barro. Assim, a ideia da mãe da nação é vinculada com a sua aparência, que evoca uma mestiçagem similar a dos brasileiros, ou seja, “Uma Virgem quase negra para um povo quase branco” (Souza, 1996: 99). Porém, ao que tudo indica, essa percepção é recente. Pode ser facilmente constatado tanto no Museu de Aparecida, como no levantamento feito por Etzel (1979) das representações de Nossa Senhora Aparecida, que ela era retratada com tez branca até o final do século XIX71. Em 1869 os franceses Robin & Favreau vendiam, no largo da Capela, “os verdadeiros retratos de Nossa Senhora da Conceição Aparecida”. Por que “verdadeiros”? Porque antes desses fotógrafos, as estampas encontradas traziam 69

“Três horas e meia depois de sair da igreja de São Francisco de Paula, no centro, a padroeira chegou à Esplanada do Castelo, às margens da Baía de Guanabara. E lá, aos pés da escadaria, foi recebida pelo chefe do Governo Provisório, o presidente Getúlio Vargas. (...) Aparecida foi colocada num palco, no alto da escadaria. E o cardeal Leme ajoelhou-se: Senhora Aparecida, o Brasil é vosso!” (Alvarez, 2014: 192). 70 No ano seguinte, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, os soldados paulistas também viram na Imagem Aparecida seu símbolo político anti-Vargas: “Nos pátios do santuário, formou-se um pelotão de aproximadamente cinquenta homens que recebeu o nome de Batalhão de Nossa Senhora. Para apoiar os soldados de Aparecida, e também os de outros pelotões, mandou-se confeccionar medalhinhas juntando a bandeira de São Paulo com a imagem da santinha” (Alvarez, 2014: 196). 71 Um romeiro me disse que já encontrou réplicas de Aparecida, de pele branca, para comprar. Questionando o vendedor, ouviu que “tem gente que prefere ela assim”. Porém, durante minha pesquisa de campo, nunca encontrei.

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Nossa Senhora Aparecida com traços diferentes da verdadeira. Sua cútis era branca e vestia-se à moda do Império. Nota-se que foram desenhadas e confeccionadas em Paris, e certamente por alguém que não teve a ventura de conhecê-la (Ribeiro, 1998: 47).

Assim como a cor, não sendo meros detalhes, a coroa e o manto azul são os grandes referenciais estéticos que caracterizam Nossa Senhora Aparecida que, sem eles, ainda seria Nossa Senhora da Conceição. Se o nome Aparecida diz respeito à origem da Imagem de barro, aparecida das águas, ao se falar da Imagem Aparecida aqui a referência é todo o conjunto. Sem precisão quanto à data, o uso do manto teria começado ainda quando estava exposta na casa dos pescadores, por iniciativa dos devotos. No decorrer do tempo foi sendo alterado e recebeu como detalhe, além dos fios dourados, as bandeiras do Brasil e do Vaticano. Já a coroa foi um presente de Princesa Isabel, que afirmava ser sua devota, no ano de 1884 (Brustoloni, 1998: 79; Alvarez, 2014: 177). No artigo de Fernandes (1988), através de seus referenciais identitários, explora alguns dos títulos de Aparecida (Senhora, Rainha e Mãe) e como, cada um deles, opera em uma lógica relacional distinta. Em um trabalho de fôlego, através de uma retomada histórica, o autor elenca as tentativas por parte do clero, para romanização72 do catolicismo brasileiro e como elas foram apropriadas pelos poderes políticos, da monarquia até a nova república73, incluindo a ditadura militar74. Fernandes (1988) também faz um apontamento, pouco aprofundado, sobre a extrapolação da religiosidade estritamente católica: identificada como Oxum, Aparecida pode ser encontrada em terreiros de Umbanda do sudeste brasileiro. Se, na religiosidade afro-brasileira, Aparecida estabelece uma relação positiva, por ser um Orixá, e na religiosidade católica por ser Nossa Senhora, ao mesmo tempo em uma religiosidade 72

“Romanização” é o termo pelo qual ficou conhecido o movimento de reapropriação e centralização da Igreja Católica no Brasil, por parte do Vaticano, no final do século XIX e início da República. No regime de Padroado, vigente na Monarquia, a Igreja era submetida ao Imperador e ao Estado brasileiro. 73 Além da Princesa Isabel e do Presidente Getúlio Vargas, o Presidente Juscelino Kubitschek também teve uma relação próxima com Aparecida e foi o doador da chamada Torre Brasília, em que atualmente funciona a administração do Santuário Nacional. Já a Passarela da Fé foi uma doação dos ditadores Arthur da Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici. 74 A Imagem Aparecida foi um dos símbolos das “Marchas da Família com Deus pela liberdade”, ocorridas em 1964, que precederam o golpe militar. Depois, durante a ditadura, o governo militar estimulou uma peregrinação da Imagem por todo o país.

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protestante essa relação é marcada pela negatividade, à medida que representa um mal a ser combatido. Isso fica evidente em um dos momentos mais trágicos da sua trajetória: o atentado 75 de 1978. A Imagem Aparecida foi quebrada, ao ser jogada ao chão, por um iconoclasta. Identificado como evangélico e posteriormente diagnosticado como louco, o autor do atentado afirmava cumprir ordens divinas. Partindo-se em cerca de duzentos pedaços, as únicas partes intactas foram a cabeça e o dorso, na região em que as mãos estão postas. Dentre os efeitos imediatos ocorridos, e a comoção gerada, é significativa a interpretação material oferecida dois anos depois pelo Papa João Paulo II, na sua visita à Aparecida/SP: Contaram-me que entre os mil fragmentos foram encontradas intactas as duas mãos da Virgem unida em oração. As mãos postas de Maria no meio das ruínas são um convite a seus filhos a darem espaço em suas vidas à oração (Alvarez, 2014: 217).

Além dessa interpretação, repetida ainda hoje por padres em homilias, também o depoimento de Maria Helena Chartuni é constantemente presente: “Enquanto ela era reconstituída fisicamente por mim, eu era reconstituída espiritualmente por ela, foi uma relação profunda e inexplicável, que eu chamo de milagre”76. Funcionária do Museu de Arte de São Paulo (MASP), ela foi a responsável pela restauração77 da Imagem Aparecida, o que resultou em sua conversão ao catolicismo. Desde então, ela é a pessoa diretamente responsável pela manutenção e conservação da Imagem, indo à Aparecida pelo menos uma vez ao ano, durante a Festa da Padroeira, na qual sempre tem papel de destaque nas celebrações. O segundo grande caso, dessa relação conflituosa com as religiões evangélicas, ficou conhecido como “o chute na santa” 78. Famoso episódio de 1995 em que um pastor,

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Em uma pesquisa anterior, de iniciação científica, desenvolvo os desdobramentos desse caso. Entrevista concedida para: MENDES, Luciana. O dia em que a imagem da Padroeira quebrou. Jornal Valeparaibano, São José dos Campos, s/d. 77 Alvarez (2014: 31) conta em detalhes o processo de restauração. Vale ressaltar que foi a restauradora quem defendeu que a Imagem permanecesse escura, na sua cor original, mesmo com apelo de padres para que fosse clareada. 78 Esse evento pode ser assistido na plataforma Youtube. Pastor Sergio Von Helder O chute na santa. Postado por Antonio Rosa, abr. 2009. Disponível em: . Acesso em 22/01/2015. 76

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da Igreja Universal do Reino de Deus, chutou uma imagem réplica de Aparecida em rede nacional de televisão, justamente no dia de seu feriado. Questionando a laicidade do estado brasileiro, o pastor usa dessa imagem justamente como símbolo do catolicismo brasileiro, transportando o atrito para além da esfera religiosa ao envolver duas emissoras de televisão, como deixam claros os artigos de Flávio Pierucci (1996) e de Ronaldo de Almeida (2007), que tratam dos desdobramentos desse caso de intolerância. Não é pretensão, da presente pesquisa, desvendar todos os pormenores históricos. Contudo, o interesse em trazer esses casos foi para ressaltar, na vida social (Appadurai, 2008) da Imagem Aparecida, como a sua materialidade é fundamental políticoreligiosamente. Muito além de uma representação de Nossa Senhora da Conceição, uma entre tantas, pelos sucessivos acontecimentos na sua trajetória, a Imagem passou a se referenciar por si mesma. Em outro plano, considerando-se a materialidade da imagem, o corpo da santa é feito, como todos sabem, de barro. A imagem de barro não apenas representa, mas também é a própria santa (Dawsey, 2006: 138).

Nessa outra abordagem antropológica, mais contemporânea, análise semelhante pode ser encontrada. Acompanhando uma romaria até o Santuário Nacional, Dawsey tece considerações muito sensíveis, sobre as relações estabelecidas entre os romeiros e a Imagem. Na volta, depois de a verem de perto “com reverência, contaram da santa. Alguns mencionaram o seu olhar. Viam-se sendo vistos por ela. Na verdade, não se avalia a santa. É a santa que avalia” (2006: 145). De fato, pude observar que logo após passar pela Imagem Aparecida, ainda no corredor, as pessoas começam a partilhar suas experiências. Uma vez fui repreendido por uma senhora por não ter me ajoelhado, já outra vez uma mulher me alertou que “para alcançar o milagre tem que fazer valer os mandamentos e fazer sua parte, aí a mão curadora dela nos atinge. Esse é o segredo”. Contudo, de todos que acompanhei, nenhum foi mais expressivo que a reação de uma família formada por um casal idoso, um casal mais jovem e duas meninas. Uma delas por volta de dez anos de idade, de calça jeans e camiseta rosa, e que chamava a atenção por estar com a cabeça careca, coberta por um boné também rosa. Após passarem pela Imagem e é ela quem é questionada pela mulher mais velha: “Rezou para a mãezinha? 79

Pediu pra ser curada?” - “Não, eu pedi pra ser forte e aguentar o tratamento”. Os seis se abraçam juntos, chorando, assim como as demais pessoas ao redor. A emoção é latente, mesmo entre os mais contidos.

Consagração

Para além das milhares de pessoas que passam nesse corredor, todos os dias, há uma única celebração diária do Santuário Nacional que a envolve diretamente, mas, ainda assim, de longe: a chamada “Consagração a Nossa Senhora Aparecida”, transmitida pela Rede Católica de Rádio (RCR) 79 além da internet. Nessa celebração curta, o padre responsável começa cumprimentando os presentes e fazendo os oferecimentos: às crianças, aos adolescentes, aos jovens, aos casais, aos doentes, aos idosos, entre outros, finalizando sempre pela “paz no Brasil” e pelos aniversariantes do dia. O celebrante, no altar central da Basílica, entoa orações que são completadas pelos fiéis, em pé ao seu redor: “O anjo anunciou a Maria”, “e ela concebeu do Espírito Santo”, “Eis a serva do senhor”, “faça-se em mim segundo a vossa palavra”, “o verbo se fez carne”, “e habitou entre nós”. Após a oração em conjunto da Ave-Maria80, os fieis sentam para que o padre faça uma pequena homilia, que não ultrapassa os cinco minutos. Normalmente diz respeito ao evangelho do dia, relacionado a algum evento recente. Então os fiéis presentes levantam suas garrafas cheias, muitas delas vendidas no próprio Santuário, e os que acompanham pela rádio são convidados a fazerem o mesmo em casa, para a benção da água: “que Deus abençoe essa água, criatura dele, fonte de vida, para que todos que a tomarem ou forem aspergidos recebam suas graças”. Um som de teclado começa a ser tocado logo após essa benção, indicando o ápice da celebração, que é a consagração propriamente dita. O padre convida todos os

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Com cinco geradoras, entre elas a Rádio Aparecida, e 120 afiliadas, a RCR é uma associação das emissoras de rádio vinculadas a instituições católicas, transmitindo alguns de seus programas em conjunto. 80 Oração: “Ave-Maria, cheia de graça, o senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém”.

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presentes: “agora, olhando no trono da Senhora Aparecida, estenda sua mão e vamos rezar a consagração”. Os olhares e os braços são direcionados para o Nicho da Imagem, e a oração oficial é feita unissonamente por todos os presentes, alguns acompanhando pelo santinho81 e outros de memória. Ó Maria Santíssima, que em vossa querida imagem de Aparecida espalhais inúmeros benefícios sobre todo o Brasil, eu, cheio (a) do desejo de participar dos benefícios de vossa misericórdia, prostrado (a) a vossos pés consagro-vos meu entendimento, para que sempre pense no amor que mereceis. Consagro-vos minha língua, para que sempre vos louve e propague vossa devoção. Consagro-vos meu coração, para que, depois de Deus, vos ame sobre todas as coisas. Recebei-me, ó Rainha incomparável, no ditoso número de vossos filhos e filhas. Acolhei-me debaixo de vossa proteção. Socorrei-me em todas as minhas necessidades espirituais e temporais e, sobretudo, na hora de minha morte. Abençoaime, ó Mãe Celestial, e com vossa poderosa intercessão fortalecei-me em minha fraqueza, a fim de que, servindo-vos fielmente nesta vida, possa louvar-vos, amar-vos e dar-vos graças no céu, por toda a eternidade.

Logo em seguida, ainda com braços direcionados, os músicos entoam a música oficial: “Dai-nos a benção, ó mãe querida, Nossa Senhora Aparecida”. O padre celebrante convida todos a olharem novamente para o altar central, para a benção final pela intercessão da “Senhora Aparecida, mãe de Deus e nossa mãe, rainha e padroeira do Brasil”. Como fica evidente, a consagração é um pedido de benção e proteção que os fiéis fazem a Nossa Senhora Aparecida: ela ocorre na medida em que os seus corpos e sentidos são oferecidos à Imagem. Contudo, mesmo sendo proferida diariamente há um longo tempo 82 , ao visitar o Santuário Nacional e conduzir esse mesmo ritual de consagração, Papa Francisco83 alterou a oração acrescentando as frases: “pelos méritos do

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“Os santinhos são geralmente pequenos folhetos impressos em off-set, em pedaços de papel couchê 150 g de cerca de 10 cm de altura por 5 cm de largura, compostos, de um lado, pela imagem colorida de um santo ou santa, e, do outro, por um texto, ambos arranjados mais comumente de maneira vertical” (Menezes, 2011: 46). Muito comum no catolicismo brasileiro, o santinho é parte fundamental da devoção a alguns santos, através da interação que promovem. 82 Sem uma data definida na origem, calcula-se que esse ritual seja barroco e de origem popular. 83 Detalhes dessa visita foram descritos no preâmbulo.

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Senhor Jesus Cristo” e “que nosso Cristo crucificado deu-nos por mãe”. Depois, enviou um ofício pedindo a sua mudança84 definitiva, por considerá-la muito centrada em Maria. “A sugestão do papa Francisco reorienta o foco da consagração. Maria, na oração, fica referida a Jesus, de quem é mãe e, ao mesmo tempo, discípula. É pelos méritos de Jesus que podemos recorrer a Maria como modelo de fé e intercessora”, afirma padre Marcial. 85

Sendo uma das funções de um Papa ser o maior representante da ortodoxia, essa atitude não surpreende. Principalmente, por ser esse movimento de institucionalização um dos que caracteriza a Igreja Católica no decorrer da história, na qual repetidamente normatiza e formaliza práticas e iniciativas de origem popular e alheias à hierarquia. Nesse movimento de institucionalização é interessante ressaltar que se na primeira oração a submissão de Maria a Deus é evocada uma vez, na modificação requerida pelo pontífice essa submissão passa a ser evocada três vezes. Do mesmo modo, se a Imagem Aparecida era tida como um meio de expressão do ente metafísico de Maria, com a mudança ela é uma intercessora e o mérito dessa expressão é de Jesus Cristo, seu filho. Com teor altamente mariológico 86 , a especificidade da denominação de Aparecida na oração só se dá na evocação do Brasil e da Imagem, diferentemente da cerimônia mensal.

Cerimônia do Manto

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A nova oração, desde agosto de 2013, é essa: “Oh Maria Santíssima, pelos méritos do Senhor Jesus Cristo, que em vossa querida Imagem de Aparecida espalhais inúmeros benefícios sobre todo o Brasil, eu, embora indigno de pertencer ao número de vossos filhos e filhas, mas cheio do desejo de participar dos benefícios de vossa misericórdia, prostrado a vossos pés, consagro-vos meu entendimento, para que sempre pense no amor que mereceis. Consagro-vos minha língua, para que sempre vos louve e propague vossa devoção. Consagrovos meu coração, para que, depois de Deus, vos ame sobre todas as coisas. Recebei-me, ó Rainha incomparável, que nosso Cristo Crucificado deu-nos por Mãe, no ditoso número de vossos filhos e filhas. Acolhei-me debaixo de vossa proteção. Socorrei-me em todas as minhas necessidades espirituais e temporais e, sobretudo, na hora de minha morte. Abençoai-me, ó Mãe Celestial, e com vossa poderosa intercessão fortalecei-me em minha fraqueza, a fim de que, servindo-vos fielmente nesta vida, possa louvar-vos, amar-vos e dar-vos graças no céu, por toda a eternidade”. 85 Trecho da reportagem A pedido do Papa, Igreja muda oração à Padroeira (Campelo, 2013). Disponível em: . Acesso em 07/02/15 86 É conhecida como Mariologia o conjunto de estudos teológicos sobre Maria, a mãe de Jesus Cristo.

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Não por acaso, a Imagem só sai publicamente de seu nicho uma vez ao mês, para a chamada “Cerimônia do Manto” 87. Transmitida pela Rede Aparecida de Televisão88 todo dia doze, a celebração ocorre na Capela dos Apóstolos, com um número restrito de pessoas. Gravada previamente, a cerimônia é feita com muita solenidade e pompa, com a presença de músicos com uma pequena orquestra, com violinos, flautas, saxofones e tenores, usando roupa de gala e cantando diversas músicas em latim. O celebrante principal costuma ser de alto escalão, como o bispo ou o reitor, que usa uma batina coberta por uma casula romana89 dourada. Ele é assessorado por vários padres, de batina branca e estola90 dourada, que traz Aparecida estampada, e tem como plateia apenas pessoas previamente selecionadas, em sua maioria freiras, freis, padres e seminaristas. A celebração começa com uma exortação de grande teor mariano, com elogios a vocação da maternidade de Maria, tentando não perder de vista, a todo o momento, a centralidade em Jesus Cristo, que vai sendo evocado. Nós que aqui estamos tão próximos, deste grande sinal de amor que é a imagem da mãe Aparecida, nos deixemos nos tocar pelo mais belo amor, Jesus, filho de Maria e nosso redentor. Em vossa querida imagem, ó mãe, o povo brasileiro encontra alento nas tribulações, força nos momentos difíceis da vida, diante de vossa pequenina imagem pedimos hoje a graça da perseverança na fé. Mãe Aparecida, dirigi o vosso olhar sereno sobre nós. Vinde a nós com vosso sorriso meigo, e ensinai-nos a ser perseverantes no caminho de vosso filho, Jesus.

Nessa capela, atrás do altar, fica o Nicho da Imagem usualmente voltado para o lado oposto, em que fica o corredor. No momento da entronização da Imagem, a proteção do Nicho é aberta e ele gira, de maneira automatizada, para aquele lado. As câmeras intercalam imagens do Nicho, em movimento, e dos presentes, em prantos.

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Essa celebração acontece desde Janeiro de 2012. Aqui, refiro-me mais especificamente à celebração de agosto de 2013, a última que acompanhei durante a pesquisa de campo. A emissora mantém um canal na plataforma Youtube, onde disponibiliza toda a programação, logo após ser transmitida pela televisão. TV APARECIDA. Graça e Luz - Cerimônia do Manto de Nossa Senhora, ago. 2013. Disponível em: . Acesso em 22/01/2015. 89 É uma veste litúrgica, usada sobre a batina, em forma de capa. 90 É uma faixa de pano que padres usam pendurada no pescoço, com as pontas caindo sobre ombros, até a altura do quadril. 88

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Um dos padres assistentes, com o auxílio de uma escada, retira primeiro a coroa que é entregue a outro padre, que a coloca sobre o altar. Depois retira o manto, que é posto ao lado da coroa. Por fim, retira a Imagem e, estendendo-a nos braços, mostra aos presentes, antes de colocá-la também no altar, entre as outras duas peças. Todos, inclusive o celebrante, ficam de frente para a Imagem e o altar. Um padre assistente faz a leitura do Evangelho91 da anunciação, em que o anjo aparece a Maria e a comunica de sua gravidez. Durante a homilia, em que o padre explica o sentido da vocação cristã, a Imagem Aparecida é focada pela câmera em diversos ângulos, desde os cabelos, as mãos postas, a face e os detalhes dos pés e do manto. Em certo momento, o padre passa a dialogar diretamente com a Imagem, olhando e gesticulando para ela: “Abraçamos a vocação de fazer parte dessa sua nova família, a família Campanha dos Devotos. Com o sim da senhora, o que Deus fez para nós? Deus fez tudo. Com o sim dessa família, a senhora está podendo chegar a muitos filhos e filhas”. Após a homilia, um coroinha92 entra com uma almofada em que traz um manto: “O manto que será abençoado, será um sinal do carinho e da proteção de Nossa Senhora, aí na sua casa, em seu lar”. Ele é colocado também no altar, ao lado do outro manto, e todas as peças são incensadas pelo padre celebrante que, em seguida, também as asperge com água benta. Um padre assistente coloca um incensário, que tem formato similar à Imagem, aos pés do altar. “Agora queremos colocar o Brasil sobre vosso manto de Mãe”: um padre, dois freis e uma freira, ficam postos cada um de um lado do altar. A benção do país se dá por quatro partes e a cada região mencionada - “Sob vosso manto colocamos todos os estados que estão ao norte/sul/leste/oeste de Aparecida” 93 - o religioso ergue a ponta da toalha equivalente, e a leva até a Imagem Aparecida. “Ó mãe Aparecida, recebei agora o novo manto como sinal de nosso carinho e confiança em vós”: o manto abençoado substitui então o anterior, que servia de forro para o manto visível durante o último mês. O padre assistente faz a troca, enquanto é tocada a 91

Evangelho de Lucas, capítulo 01, versículos 26-38. Coroinhas são crianças e adolescentes que auxiliam os sacerdotes em celebrações. 93 Aqui, como em inúmeros casos, é mantida a ambiguidade do nome Aparecida: a referência é à Imagem e ao município. 92

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música oficial, e veste novamente a Imagem com o manto e a coroa, seguidos da oração conjunta da Ave-Maria. O padre celebrante, ainda olhando nos olhos da Imagem Aparecida, faz a oração: Mãe Aparecida, senhora humilde de Nazaré, Jerusalém e do mundo inteiro, que apareceste nas redes dos pobres pescadores, ensinai-nos a sermos sempre como fizeste vós, a serva do senhor. Mãe Aparecida de cor morena, cor que nos traz a memória a realidade da triste escravidão, libertai também os oprimidos e escravizados de nosso tempo pelas drogas, pela violência, pelos atentados a dignidade humana e a vida. Mãe Aparecida, ao revestirmos com o novo manto, revestimos também vós em vosso manto mais perfeito da fé inquebrantável do amor que vosso filho derramou em vosso coração e da esperança que vós vivestes toda vida. Mãe Aparecida, sois nosso amparo e nossa intercessora. Amém.

A música Ave Regina Caelorum é cantada acapela, até que o padre celebrante entrega o manto anterior para uma das irmãs carmelitas descalças 94 , que assistem a celebração. Esse manto, por ter ficado um mês em contato com a Imagem Aparecida, tornase uma relíquia. Cortado em vários pequenos pedaços, pelas freiras, estes são acoplados ao chamado oratório: uma fotografia da nave central da Basílica, impressa em papelão. Esses oratórios, agora com as relíquias, são destinados aos contribuintes da Campanha dos Devotos. Tradicionalmente, contudo, são os devotos que encaminham suas relíquias ao Santuário, através das promessas feitas.

Sala das Promessas

Localizada no subsolo da Basílica de Aparecida, a Sala das Promessas é o segundo lugar mais visitados do Santuário Nacional e, sem dúvidas, um dos espaços que mais chama atenção dos romeiros. Conhecida há séculos como Sala dos Milagres95, é lá

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Essas freiras são do Carmelo de Santa Terezinha do Menino Jesus, situado em Aparecida/SP desde 1952. Obedecendo a uma norma institucional do Vaticano, durante o pontificado de Bento XVI, as Salas dos Milagres tiveram que passar a ser chamadas de Salas das Promessas porque “milagre” é um conceito muito específico da instituição romana. Curiosamente, não há nenhum milagre de Aparecida reconhecido pelo Vaticano. Esse conceito não se aplica a esses relatos, que são institucionalmente classificados como “graças”. 95

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onde é exposta parte dos mais de 19.000 ex-votos96 trazidos mensalmente pelos fiéis, que entregam-no a Nossa Senhora Aparecida, como prova concreta de uma graça alcançada através dela. Em uma das portas pode-se ver, pendurados por todo o teto, pedaços do corpo humano em cera: são pernas, braços, cabeças, espinhas dorsais, rins, fígados, ovários, seios, olhos e narizes, que indicam qual parte do corpo humano foi curada, o mesmo motivo das cadeiras de roda e muletas expostas ao lado. Mas se os fiéis quiserem membros e órgãos de cera para colocar na Sala dos Milagres, terão de pagar. Não é muito. Na lojinha do subsolo o coração sai por 2 reais. A orelha, por 1 real. Fígado, 2 reais. A Sala dos Milagres poderia estar tanto num filme de Pedro Almodóvar como de Zé do Caixão: pernas mecânicas ao lado de manequins vestidas de noiva; roupas de bebês e órgãos de cera; pranchas de surfe; um troféu do Clube Hípico de São Bernardo; relógios; colares; um exemplar do Código Civil; bolas de futebol; uma canoa de quatro metros; panelas de pressão deformadas por explosões; uma faixa de Campeão Paulista de 1997 do Corinthians; violões, um teclado eletrônico, tambores, reco-recos (que milagre pode ter feito Nossa Senhora envolvendo um reco-reco?), muitos outros objetos e fotos. 97

Como bem salienta o cronista, há uma infinidade de objetos e não há recursos discursivos que a sintetize. Um dos locais de maior aglomeração é a estante que agrupa os ex-votos de famosos, como o capacete do Ayrton Senna, o joelho de cera do jogador Ronaldo Fenômeno, o uniforma das Paquitas e ainda discos autografados de duplas sertanejas. Um costume é o de entregar uma maquete da Basílica de Aparecida, feita dos mais diversos materiais, como palitos de dente, palitos de sorvete ou ainda latinhas de alumínio. Do mesmo modo, há uma seção apenas de imagens de Aparecida feitas pelos seus devotos. Alguns romeiros ainda deixam o meio de transporte pelo qual chegaram a cidade, como bicicletas e motocicletas. Todo o teto dessa sala é forrado por cerca de setenta mil fotografias, cujos retratados foram agraciados por Aparecida. Elas são sistematicamente organizadas na

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É conhecido como ex-voto tudo aquilo que sinalize materialmente alguma graça alcançada. A palavra vem da expressão latina ‘ex-voto suscepto’, que significa ‘por um voto alcançado’ ou ‘por uma promessa feita’. 97 PRATA, Antonio. How do you do, Dutra? Revista piauí, São Paulo, nov. 2006. Disponível em: . Acesso em 28/02/2015.

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distribuição, como uma parte exclusiva de fotos de formatura, outra de famílias e outra ainda de bebês, entre tantas. Essa organização sistemática não se restringe as fotografias, e se estende a todos os demais ex-votos, das garrafas de bebidas às teses de doutorado. Os responsáveis direitos são dois Missionários Redentoristas, que agem com uma equipe de voluntários e funcionários fixos do Santuário Nacional. Evidentemente essa seleção não é feita ao acaso, e toda a seleção, desde o recebimento e descarte até o acervo e a exposição, tem uma razão específica que é digna de uma pesquisa exclusiva. É isso o que fazem Souza & Murguia (2013) ao acompanharem a trajetória que transforma as mercadorias, vendidas em abundância na cidade, em um exvoto propriamente dito. Acabam por assumir, dessa maneira, uma função múltipla: para o devoto que o doou, o objeto votivo é prova de uma relação de fé e de alcance de uma graça; para o visitante, esse mesmo objeto é um referente, um incentivo, uma maneira de se aproximar da santa de devoção. Para a comunidade católica e para outros grupos que se ligam ao espaço – Igreja Católica, devotos, ordens religiosas – os ex-votos são objetos sociais que representam uma memória, reforçam a fé em torno da pequena estatueta de Maria, agenciam outras pessoas que acabam por tomarem contato com essa realidade da sala das promessas – sendo motivados, a reconhecerem na santa sua santidade, seu poder de cura e de atenção para com aqueles que nela crerem (2013: 09).

É justamente esta relação, entre os artefatos e a Imagem Aparecida, que nos interessa neste capítulo. Mais que um museu, a Sala das Promessas é o local em que são expostos os presentes recebidos, e que são parte fundamental daquela composição. Eles são tanto provas concretas das graças, como um documento memorial, ou ainda agenciadores religiosos. Ao serem selecionados pelos devotos, e depois ao integrarem esse espaço, esses artefatos tornam-se extensões de Aparecida. À medida que integram toda a engrenagem que dá vida e formato àqueles espaços, os artefatos também são Aparecida.

A materialidade da religião

As informações, até aqui, contextualizam a origem histórica e as particularidades da “biografia social” (Kopytoff, 2008) da Imagem Aparecida. A conversão das narrativas anteriores se dá, na medida em que ressaltam a reação imediata das pessoas e

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dos artefatos, no passado e no presente, que mantém um contato direto com a Imagem Aparecida. As duas celebrações, a primeira diária e a segunda mensal, foram trazidas tanto por sua especificidade na liturgia de Aparecida, como por serem as principais a envolver diretamente seu nome. É notável que em ambas a materialidade da Imagem é fundamental, já que é através dela, e em relação a ela, que os rituais são dirigidos. A capacidade de condensação de determinados objetos – que concentram ações e significados – torna-os pontos estratégicos para a análise de expressões religiosas (Menezes, 2011b: 46).

Ainda que esteja dada a sua forma física de barro – o que a categorizaria como um objeto, por ser não humana –, nas suas interações sociais se revela o sujeito: seja no fascínio que provoca, na benção que promove ou mesmo nos diálogos que estabelece com os fieis. Pois bem, Gell (1998) defende uma abordagem metodológica que leve em consideração justamente aquilo que é chamado de “agência dos objetos”, isto é, questionar a capacidade que algumas coisas têm em estimular reações, das mais variadas. Com uma definição bastante ampla de artefatos, que incluem imagens de santos e obras de arte, o autor reivindica a sua posição de sujeito na análise antropológica, através das relações sociais estabelecidas. Rechaçando a abordagem simbólica, o autor defende que nas teorias antropológicas, já existentes, esses artefatos sejam tidos como sujeitos. um ídolo em um templo, que se acredita ser o corpo da divindade, e um médium espírita, que também fornece a divindade com um corpo temporário, são tratados teoricamente em pé de igualdade, apesar do fato de que o primeiro é um artefato e o último é um ser humano.98

É essa característica que defendo na presente pesquisa, para uma análise antropológica do fenômeno descrito: a Imagem Aparecida deve ser o principal sujeito a ser abordado etnograficamente. Longe de ser mero detalhe, a religião praticada é inextricável a ela, e não o contrário: Materializar o estudo da religião significa perguntar como a religião acontece materialmente, o que não deve ser confundida com a pergunta, muito menos útil, de como a religião se expressa na forma material. Um estudo materializado da religião começa com a suposição de que as coisas, a sua utilização, a sua

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Minha tradução da seguinte citação: “an idol in a temple believed to be the body of the divinity, and a spirit-medium, who likewise provides the divinity with a temporary body, are treated as theoretically on a par, despite the fact that the former is an artifact and the latter is a human being” (Gell, 1998: 07).

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valorização, e seu apelo não são algo acrescentado a uma religião, mas sim inextricável dela. 99

A “Celebração do Manto”, descrita acima, é o exemplo mais enfático de uma relação que acontece em diversos níveis. Se o próprio nome do rito diz respeito ao manto, a oração proferida pelo padre, enquanto dialoga diretamente com a Imagem, realça outras características físicas: o olhar adjetivado como sereno, o sorriso tido como meigo, o manto que é acolhedor, e a cor morena acompanhada de uma reinterpretação da escravidão. Nos discursos descritos, o que se nota é uma interpretação das características materiais da Imagem, tida como sagrada e feminina, pelo clero. Contudo, como bem salientou Fernandes, “o povo e o clero, no Brasil, nunca rezaram exatamente para a mesma imagem” (1988: 91). A todo o momento foram constatadas tensões, porque mesmo que Nossa Senhora Aparecida possa ser resumida a Imagem, essa Imagem nunca é tida da mesma maneira. Essa constatação remete a uma discussão tradicional na antropologia da religião brasileira: os conflitos entre religião erudita e popular, como analisado por Brandão (1986). Essa abordagem trata das disputas de maneira eficaz, ao demonstrar as relações de poder em torno da crença, mas não é a intenção do presente capítulo. Tendo em vista as situações descritas, mostra-se crucial uma abordagem que não seja guiada pelos parâmetros teológicos de crença, ou seja, que a religião não seja compreendida unicamente por esse viés. O refinamento da teoria teológica frente a prática religiosa, implica em uma distinção de pouco sentido para quem não é teólogo. Colocado de outro modo, o discurso teológico não é idêntico nem a atitudes morais, nem a discursos litúrgicos – a respeito dos quais, entre outras coisas, a teologia se pronuncia. Cristãos cuidadosos admitiriam que, apesar da teologia ter uma função essencial, o discurso teológico não necessariamente induz disposições religiosas, e que, inversamente, ter disposições religiosas não necessariamente depende de uma concepção cristalina do arcabouço cósmico por parte do ator religioso. Discurso envolvido em prática não se confunde com discurso envolvido em falar sobre a prática. É uma ideia moderna a de que um praticante não sabe como viver religiosamente sem ser capaz de articular esse saber (Asad, 2010: 268). 99

Minha tradução da seguinte citação: “Materializing the study of religion means asking how religion happens materially, which is not to be confused with asking the much less helpful question of how religion is expressed in material form. A materialized study of religion begins with the assumption that things, their use, their valuation, and their appeal are not something added to a religion, but rather inextricable from it” (Houtman; Meyer, 2012: 7).

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Concordo com a distinção que Asad faz, entre teoria e prática religiosa, e com os casos etnográficos expostos até aqui, evidencio que aquelas materialidades são constituintes da religião praticada em Aparecida, e não agregada a ela. O que tenho em mente é uma abordagem da religião que trata a crença como uma epistemologia encarnada, as rotinas sensoriais e materiais que produzem uma sensação integrada (e culturalmente particular) do self, da comunidade e do cosmos. Não é apenas a teologia sistemática ou a filosofia sagrada que temos de olhar para aprender isso, mas sim para o mundo vivido da crença. Em particular, para as formas de materialidade que organizam o mundo. 100

A religião organiza o mundo, e é organizada por ele, através de materialidades específicas. Indo nesse mesmo sentido, e partilhando de muitos pressupostos da obra de Gell (1998), a coletânea “Thinking Through Things” 101 recomenda uma abordagem, para as pesquisas em cultura material, que também se mostra muito propícia para o presente caso. Os autores negam uma epistemologia das coisas e propõem um passo além: as coisas são os conceitos, em si mesmas, e devem ser o cerne da investida antropológica. O projeto, então, é primariamente metodológico. Ele encoraja os antropólogos a prestarem atenção às ‘coisas’ à medida que surgem em diversos contextos etnográficos, e a começar tais investigações com o que, para o etnógrafo, pode parecer uma lógica reversa: em vez de fornecer dados aos quais a teoria é aplicada, revelando os pontos fortes e as falhas de um modelo teórico existente, as coisas encontradas no trabalho de campo estão autorizados a ditar os termos da sua própria análise - incluindo novas premissas para a teoria.102

Trazendo essa premissa para o presente caso, pode-se afirmar que Aparecida é um nome em disputa e em constante construção. Sua forma mínima é a Imagem de barro que se estende aos ex-votos, o Santuário e até ao município que o cerca. A intenção do presente capítulo é a entender em sua forma mais conhecida e difundida: a Imagem, composta pela estátua de barro portando o manto de veludo e a coroa dourada.

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Minha tradução da seguinte citação: “What I have in mind is an approach to religion that attends to belief as an embodied epistemology, the sensuous and material routines that produce an integrated (and culturally particular) sense of self, community, and cosmos. It is not only to systematic theology or sacred philosophy that we look to learn this, but to the lived world of belief. In particular, to the forms of materiality which organize the world” (Morgan, 2011: 8-9). 101 Henare; Holbraad; Watell, 2007. 102 Minha tradução da seguinte citação: “The project, then, is primarily methodological. It encourages anthropologists to attend to ‘things’ as they emerge in diverse ethnographic settings, and to begin such investigations with what, for the ethnographer, may appear as a logical reverse: rather than providing data to which theory is applied, revealing the strengths and flaws of an existing theoretical model, the things encountered in fieldwork are allowed to dictate the terms of their own analysis – including new premises altogether for theory” (Henare; Holbraad; Wastell, 2007: 04).

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As imagens de Aparecida A Congregação do Santíssimo Redentor 103 , que administra o Santuário Nacional, é conhecida justamente por ser especialista em santuários. Denominados Missionários Redentoristas, os padres e freis dessa ordem atuam com o objetivo de missão, isto é, levar o evangelho e preceitos católicos àqueles que estariam na ignorância. Dessa forma, com caráter pedagógico, buscam ensinar as pessoas que passam pelos seus santuários o modo que consideram o correto de se praticar a religião católica. Aparecida seria um dos meios do clero, formado pelos Redentoristas em parceria com a Arquidiocese104, de alcançarem esse fim. Oficialmente, isto é, de acordo com os pressupostos católicos, a Imagem Aparecida é sagrada, à medida que media materialmente uma relação com o ente metafísico de Maria. Essa característica, por outro lado, proporciona abertura também para outros tipos de apropriações. Sobretudo em um discurso teológico, Nossa Senhora Aparecida não se restringe ao plano material. Ela, por sua vez, seria a maior mediadora em relação a Jesus, seu filho, ele sim a divindade suprema: a sacralidade da Imagem está em ser mediadora material de uma mediadora transcendental de Deus. Conduzidas pelo clero local, como indicado nas descrições, as celebrações da Basílica buscam seguir a risca os preceitos teológicos marianos. Em termos práticos, a missão dos Redentoristas é vincular a devoção a Imagem Aparecida à devoção mariana tradicional. Contudo, mesmo tendo consciência desse cálculo, não se pode afirmar que haja uma manipulação da Imagem Aparecida, e nem que o objetivo final seja alcançado. A todo o momento os missionários transitam na fronteira do religioso, justamente por estarem em uma linha de frente da institucionalização, ou seja, são aqueles que têm poder para defini-la (Certeau, 2007). Evidentemente, esse movimento não é em sentido único: a doxa devocional é construída através das devoções específicas.

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Fundada na Itália, em 1732, por Santo Afonso de Ligório. Arquidiocese é um título dado a uma Diocese especial. Já Diocese é a denominação das divisões territoriais e administrativas da Igreja Católica, sob responsabilidade do Bispo ou Arcebispo. O território administrativo dessa Arquidiocese diz respeito às cidades paulistas de Aparecida, Guaratinguetá, Lagoinha, Potim e Roseira. 104

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Essa relação dúbia entre missionários e imagens, que cai na tensão estabelecida nas acusações de fetiche, é abordada por Latour (2002). Na análise desenvolvida, os missionários105 operam pela distinção que fazem entre o seu “saber”, mais refinado, em oposição à “crença” ingênua dos outros. Isso ocorre pela insistência na distinção feita, entre teoria e prática. A crença não tem por objetivo nem explicar o estado mental dos fetichistas nem a ingenuidade dos antifetichistas. Ela está ligada a algo inteiramente diverso: a distinção do saber e da ilusão, ou antes, como veremos mais a diante, a separação entre uma forma de vida prática que não faz essa distinção e uma forma de vida teórica que a mantém (Latour, 2002: 31).

A forma de vida teórica, dos missionários e dos “modernos”, mesmo não operando com distinção e afastamento da prática, acredita que sim106. Já a forma de vida prática, daqueles que são acusados de ingênuos, aceita operar na indistinção com a teoria. É notório que parte considerável do clero tem vasta formação, com títulos acadêmicos nas mais diversas áreas, alguns inclusive com passagem pela docência universitária. Eles mantêm, em parceria com leigos107, a Academia Marial de Aparecida108: um centro de estudos, específico sobre o tema, que funciona no próprio Santuário. Se essa “forma de vida teórica” é mais evidente na teologia, propriamente dita, não se restringe a ela. No ano de 2012, através do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), o governo paulista anunciou que a Imagem Aparecida era Patrimônio do Estado de São Paulo. Com isso, o Santuário Nacional teve que se submeter aos trâmites burocráticos estatais, o que gerou desconforto. “A igreja não é dona da imagem. Ela é a sua protetora. A diferença é que agora, além de estar sob os cuidados da Arquidiocese de Aparecida, a imagem conta também com o olhar do Estado”, afirmou Percival Tirapeli, professor do Instituto de Artes da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo estudo que culminou no tombamento. As pesquisas do Condephaat acerca da imagem 105

Ele tem como referência os missionários portugueses nas colônias africanas. “Eles têm um culto, o mais estranho de todos: eles negam às coisas que fabricam a autonomia que conferem às mesmas, ou negam aqueles que as fabricam, a autonomia que estas conferem aos mesmos. Eles pretendem não ser superados pelos acontecimentos” (Latour, 2002: 101). 107 Segundo o Concílio Vaticano II, pelo nome de leigos são compreendidos todos os cristãos, exceto os membros de ordem sacra e do estado religioso aprovado na Igreja. É interessante ressaltar o uso da palavra “leigos”, que indica ignorância, a todos aqueles que não são sacerdotes. 108 A Academia “tem por objetivo o cultivo e o desenvolvimento teórico e prático da devoção à Padroeira do Brasil, por meio do conhecimento teológico, evangelizador e pastoral, auxiliado por outros instrumentos de pesquisa e de desenvolvimento sobre Nossa Senhora”. ACADEMIA MARIAL. Institucional. Disponível em: Acesso em 22/01/2015. 106

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começaram em 2009. Durante o estudo foram adotados os seguintes critérios: antiguidade e valor artístico do objeto, imaterialidade e necessidade de proteção. 109

Ora, em ambos os casos o movimento para evocar proteção é similar: se o Santuário Nacional teoriza Aparecida nos parâmetros teológicos, o CONDEPHATT teoriza Aparecida nos parâmetros artísticos e imateriais. Indo mais além, ressalta o movimento do Estado de São Paulo em apropriar politicamente de Aparecida. Retomando a proposta metodológica de Henare & Holbraad & Wastell (2007), mesmo que a Imagem Aparecida seja a mesma, pode-se afirmar que no primeiro caso a ela é tida como um conceito religioso enquanto no segundo ela é um conceito artístico. Tais teorizações não são excludentes uma da outra, mas revelam uma disputa entre Igreja e Estado para justificar seus fins práticos: quem é “dona”, quem a “protege”, quem “cuida” e quem “olha”. Pelo seu valor inestimável, ratificado pelo tombamento estatal, a Imagem original não deve ser manuseada com tanta frequência. Nas missas diárias, um fac-símile é que a substitui: localizado em um pedestal próximo ao altar, é com ele que se interage, cotidianamente. É ele que é incensado, é para ele que os padres celebrantes direcionam as orações, é ele que é beijado e erguido na benção final das missas. Como é de se supor, esse tipo de imagem tem a intenção de ser uma cópia fiel da original, em seus mínimos detalhes. Embora o barro tenha sido substituído por rezina, essa traz em sua forma todas as minudências do esculpimento, sendo o manto e a coroa artefatos independentes a ela acoplados. Não sendo restrito ao altar, o fac-símile pode ser encontrado em diversos outros lugares, como no próprio subsolo da Basílica. Ali o Santuário Nacional também vende, com exclusividade, o seu fac-símile oficial. Introduzido pela Loja Oficial, e hoje encontrado em diversas outras, um fac-símile tem, como pressuposto, que sua genuinidade esteja vinculada a similitude detalhada com a original. Administrada pela mesma instituição responsável pelo Santuário Nacional, a Loja Oficial disponibiliza toda uma sorte de produtos relacionados diretamente àquele

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Trecho da reportagem “Tombamento de imagem de Nossa Senhora gera polêmica” (Prado, 2012).

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espaço. Suas propagandas são vinculadas majoritariamente aos veículos de comunicação, também oficias, como a Rede Aparecida de Televisão, Rádio Aparecida, Jornal Santuário e a Revista de Aparecida. Na página virtual, em que é possível comprar essas imagens pela internet, a seguinte descrição é feita: A Imagem de Nossa Senhora Aparecida é produzida em resina maciça no molde original com as mesmas dimensões e características da imagem encontrada no Rio Paraíba, possui 38 cm e acompanha manto bordado a mão pela Casa do Pequeno, obra Social do Santuário Nacional de Aparecida. A coroa e o broche são banhados a ouro com lindas pedras brancas. A imagem acompanha certificado de autenticidade. 110

Não é difícil enxergar um paralelo com a discussão feita por Bourdieu (2001): o autor aponta, na produção da grife, uma lógica parecida com a da magia, à medida que os sujeitos envolvidos disputam o valor simbólico da assinatura. Em uma lógica similar, a Loja Oficial remete a uma grife, que constrói seu nome operando com essa categoria de “oficial” e “autêntica”, justamente, sua distinção das demais. Aliás, os logotipos dos meios de comunicação (site, televisão, rádio etc.) remetem justamente a uma abstração da Imagem Aparecida através de seu manto triangular na cor azul e dourada.

Figura 4. Logotipo da Rede Aparecida.

Assim, é possível afirmar, o mesmo Santuário Nacional parece estabelecer uma Figura 2 relação dúbia com o fac-símile, isto é, tanto horizontal quanto vertical. Se a verticalidade é

mais explícita na venda enquanto objeto na Loja Oficial, já a horizontalidade é evidenciada nos seus usos rituais como sujeito sagrado nas celebrações litúrgicas. Porém, levando em 110

Loja Oficial. Santuário Nacional Aparecida, Aparecida. Disponível em: Acesso em 14/01/2015.

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consideração os objetivos em comum das duas práticas, a relação se mostra na realidade a mesma. Satisfazendo um segmento específico, a expressão pelo fac-símile não comporta a expectativa de todos, nem mesmo da maioria. Como é de se esperar, dada a quantidade variada de reproduções encontradas da Imagem, o discurso da oficialidade não é suficiente. Sendo a Imagem Aparecida um sujeito dotado de vasto capital simbólico, qualquer tentativa de resumi-la seria em vão. O que se pretende aqui é a abordagem de algumas das suas conceitualizações. Com isso, antes de tudo, o que tanto a cerimônia, como o fac-símile evidenciam é a expressão institucionalmente estabelecida pelo Santuário Nacional sobre a Imagem Aparecida. Em uma entrevista para Rede Aparecida de Televisão, ao explicar a importância de Aparecida no catolicismo, o Cardeal Damasceno afirmou que “Isso faz com que Aparecida seja um nome conhecido. É uma marca, vamos dizer assim, entre aspas. [risos]. É uma marca hoje, no interior da Igreja, no mundo da Igreja”. Não por acaso, sendo o Cardeal a maior autoridade eclesial daquele espaço, ao usar a palavra “marca” para se referir ao nome Aparecida, ele não está usando uma metáfora, e sim evidenciando a relação estratégica com ela estabelecida. O Santuário Nacional atua de maneira semelhante tanto na missão eclesial como na Loja Oficial. Por um lado, com respeito a Imagem Aparecida como mediadora do sagrado, e por outro, com a responsabilidade de tornar esse nome conhecido. O que o Santuário Nacional reivindica é o monopólio da mediação, entre as pessoas e a Imagem. Entretanto, como é de se prever, a interpretação ortodoxa não é única. Os produtos oficiais ainda são minoria, já que réplicas são produzidas em grande escala. Sejam em pequenas fábricas locais, ou mesmo importadas, essas imagens passam longe dos referenciais defendidos pela ortodoxia e são capazes de revelar outras coisas. Pois se o interesse está na variabilidade de processos de simbolização e nos diversos níveis e formas de sociabilidade e de construção de significado, é preciso mapear a diversidade de concepções em torno dos santos e não apenas ater-se aos significados apregoados pela ortodoxia religiosa (Menezes, 2011b: 52).

“A diferença é a coroa e o manto, você percebe? O manto da Imagem é aberto e a coroa é essa aqui” – afirma Renato, enquanto mostra uma fotografia – “Só que dizem 95

que é patenteado pelo Santuário aí ninguém arrisca vender e prende o manto embaixo. Não sei se é mesmo, mas pode ver que ninguém vende aberto: só o Santuário. E fica muito mais bonito!”. A loja de Renato é exclusiva de imagens de santos e ocupa o espaço que seriam de dois pontos o que resulta em duas portas, uma para cada corredor do Centro de Apoio aos Romeiros. No balcão, localizado próximo a uma dessas portas, se vê fotos de Renato em diversos outros santuários católicos, sendo a fotografia maior e em destaque a que ele está em frente à Basílica de São Pedro, no Vaticano. Nas prateleiras próximas as portas, a maior parte das imagens é de Nossa Senhora Aparecida, enquanto as centrais trazem uma variada gama de santos. São diversos os tamanhos, estilos e preços das primeiras. Conforme ele me explica, trabalha ali com três tipos de imagem, as quais seriam as mais procuradas pelos romeiros. As que ele chama de “tradicionais”, são fabricadas e vendidas na cidade há mais de um século. Pintadas a mão, em pequenas fábricas do município, ela é frágil por ser toda feita de gesso, isto é, o que inclui o manto e a coroa em sua forma concreta, não como artefato manuseável. O segundo tipo, mais generalizado, se agrupa pela sua procedência “da China”: de diversos tamanhos são caracterizadas pelo baixo preço e qualidade. Feitas de plástico, a forma é semelhante a das tradicionais, na medida em que o manto e a cora são parte da mesma peça. Daquelas que o manto de pano é portátil, sua disposição é sobre o manto de plástico fixo. Por fim, a mais cara e de melhor qualidade é a fac-símile, que mesmo sendo fabricada também na China, é feita de rezina em moldes exclusivos, encomendada e revendida pela Itália 111 . Elas são todas diferentes, sem deixarem de ser réplicas da Imagem Aparecida vendidas em Aparecida/SP. As relações estabelecidas na venda e no consumo das réplicas, mais do que uma questão de produção (Gell, 2008), indica que a Imagem comporta uma polissemia ainda mais vasta. Se a religião em Aparecida é praticada e teorizada através de suas expressões 111

Vale ressaltar que não é a intenção aqui fazer um inventário, de todas as imagens fabricadas e vendidas, nem justificar ou generalizar as motivações de produção e compra. Os três tipos de imagens apresentados, não dão conta da pluralidade existente em outros espaços. O caso apresentado é de uma loja específica que, não representando o todo, vende também produtos específicos. As vendas nos estabelecimentos comerciais da cidade não se restringem às réplicas e também aparecem em forma de estampas, fotográficas e adesivas, nos mais variados artefatos, como canecas e camisetas.

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materiais, como defendido anteriormente, nessa pesquisa antropológica ela deve ser abordada pelos seus referenciais imagéticos. O interessado em religiões particulares, de um ponto de vista antropológico, deveria, portanto, partir deste ponto: abrir o conceito abrangente com o qual ele ou ela traduz “religião” em elementos heterogêneos de acordo com suas características históricas (Asad, 2010: 278).

No diálogo exposto, Renato chama a minha atenção para algo que até então não havia percebido: a disposição do manto, sobre as imagens que vende, em relação à disposição do manto sobre a Imagem Aparecida. Enquanto no fac-símile que vende o manto fecha sobre os pés, na original ele é aberto. Independentemente, de ser ou não patenteada, em nenhum local em Aparecida/SP pude encontrar o manto com a mesma disposição, a não ser no fac-símile vendido pela Loja Oficial do Santuário Nacional. Não por acaso, como descrito diversas vezes, o manto é de extrema importância para as celebrações ocorridas na Basílica: ele representa a proteção materna e ele da origem as relíquias. Isso faz com que seja imprescindível que nas réplicas seja reproduzido em detalhes. Antes de tudo, assim como nos rituais, o que o Santuário Nacional transmite com o fac-símile e dos demais produtos oficiais é o próprio conceito que desenvolve da Imagem Aparecida, e que considera a genuína. Na conversa que mantive com Renato, contudo, ele questionou justamente o que seria essa oficialidade. Para ele, o discurso da qualidade superior da produção não faz sentido algum, porque “o revendedor das imagens é o mesmo que aqui, só que lá eles metem um carimbo de produto oficial e sobem o preço”. Vendendo as mesmas imagens e com preço reduzido, Renato afirma que não é essa característica que atrai seus clientes. Ironizando o fato de a imagem oficial ser feita na China, ele conta que as mais procuradas na sua loja são as tradicionais, essas sim suas preferidas, fabricadas na própria cidade. A motivação, para compra, está muito além da qualidade do material. A sua tese é que, por serem as vendidas há mais tempo, as imagens de gesso fazem parte da memória dessas pessoas. Como dialoguei principalmente com os comerciantes, ouvi diversas vezes repetirem que um dos seus deveres ali é justamente “descobrir o que o romeiro tá querendo” para “satisfazer todos os gostos”. Isso faz com que seja comum encontrar,

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nessas lojas, produtos menos óbvios como pingômetros de Nossa Senhora, entre tantos outros, que surgem e desaparecem com a mesma rapidez, dependendo do sucesso nas vendas. Durante um período pude encontrar terços chamativos, cujas contas intercalam olhos gregos112 com estampas de Aparecida, mas que de repente desapareceram de todas as lojas e bancas. Questionando uma lojista do Centro de Apoio aos Romeiros, ela explicou que “teve que parar por causa das reclamações. Só que nem é pelos padres, eles não fiscalizam, são esses romeiros que são muito católico certinho, sabe? Eles veem essas coisas aqui e reclamam, escrevem até carta pros padres”. Em última instância, o limite do que pode ser vendido é ditado pelos consumidores. O problema não era exatamente o olho grego, já que eles continuam sendo vendidos em outros formatos, como pingentes e chaveiros. O motivo das reclamações estava justamente em usá-los nos terços, lado a lado com a estampa de Aparecida: o limite dos “católicos certinhos” tinha sido ultrapassado. O limite, toda via, não é só do catolicismo e nem só dos compradores. No shopping há também lojistas que professam religiões evangélicas, o que influencia diretamente nos produtos que comercializam. Aliás, um desses comerciantes é conhecido justamente por sempre evocar discursos contra o culto católico às imagens, principalmente no que diz respeito à Aparecida. Condizendo com seu discurso, em sua loja não é possível encontrar nada que remeta aos santos e às imagens, limitando seu estoque aos produtos com frases bíblicas, o que ratifica seu protestantismo. Se os evangélicos são minoria entre os aparecidenses, entre os romeiros eles tendem a zero. Assim, como é de se esperar, apenas esses produtos não satisfazem a busca dos clientes, o que fez com que ele abrangesse também o mercado de produtos eletrônicos. Há, inclusive, quem se especializa nisso: boa parte dos comerciantes de varejo locais tem como fornecedor atacados na própria cidade. Um desses comerciantes atacadistas afirma ser um caçador de novidades – “mas não qualquer novidade, quando

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É um amuleto de proteção contra a inveja, também chamado de Olho Turco. Seu formato é arredondado, parecendo um olho, em tons de azul e branco.

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viajo pro Paraguai e pra São Paulo tenho um olhar seletivo, daquilo que o romeiro de Aparecida gosta, e sempre acerto nas apostas”. Evidentemente, essa busca de consonância com o desejo dos clientes tem como objetivo o lucro, resultante das vendas, que é pressuposto de um estabelecimento comercial. Não há dúvidas que esse objetivo seja compartilhado pela Loja Oficial, mas a variedade dos produtos disponibilizados é um indicativo relevante já que existem fortes restrições no que pode ser comercializado. Isso não quer dizer que, nas outras lojas, esse limite seja irrestrito e, sim, mais amplo e dinâmico, por depender mais do gosto dos clientes do que da administração. Essa “distinção” (Bourdieu, 2001) dos produtos oficiais, além de dizer respeito à lógica econômica, também diz da religiosa. Como já foi dito, o Santuário Nacional centraliza toda administração daquele espaço: política, religiosa e econômica (isso inclui desde a Loja Oficial, a Basílica, a Casa do Pão, o Hotel Rainha do Brasil, todos os meios de comunicação, as editoras, a organização de eventos, a liturgia das missas diárias e de todos os ritos). Contando com um vasto pessoal empregado, em sua maioria leiga, os principais cargos de direção são ocupados pelos Missionários Redentoristas. Mesmo que em cada caso haja uma maneira diferente de ação, que passa por indivíduos específicos, não é possível ignorar que, em última instância, respondem todos a uma mesma instituição. Em outras palavras, as resoluções vêm do mesmo lugar e do mesmo núcleo de pessoas. Apesar disso, mesmo sendo referência, o discurso oficial não comporta todas as nuances na prática cotidiana. Como foi evidenciada na venda de réplicas, há também a venda de toda uma sorte de produtos relacionados à Imagem Aparecida: canecas, roupas, relógios e brinquedos. Muitos deles, destoando-se e contrapondo os limites pregados. O comércio é guiado pelas demandas de mercado e com isso está mais interessado no que os romeiros querem ver. Nesses desdobramentos é possível verificar como, em apenas uma loja, não só as imagens variam, mas também as nuances dessas diferenças, que são tão múltiplas quanto os sujeitos interessados. Dentre tantos exemplos possíveis, está a interpretação que ouvi de um fiel: “Eu acredito em energia. Se você for ver todas as religiões lidam com energia.

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Tava vendo na televisão o jongo, por exemplo, dizem que é dança só que tem ponto de umbanda. Você vê isso aqui na Festa de São Benedito. Ficar repetindo esse ponto é que dá energia: é como um mantra, igual dos Bizantinos. Sabia que o terço foi criado como mantra? Mesma coisa aqui a Imagem de Aparecida, ela tem energia boa também, que as pessoas vêm buscar”. Além de trazerem referenciais variados, de forma mútua, os romeiros estão propícios a estabelecerem novas relações com a réplica adquirida113. Porém, para a proposta da presente pesquisa, nenhuma abordagem parece ser viável, nem necessária, para compreender a pluralidade que resulta dos mais de 11 milhões de visitantes e potenciais consumidores daquele ano. O que a materialidade das réplicas indica é que mesmo sendo referência, o discurso oficial não comporta todas as nuances na prática cotidiana. Mesmo tendo consciência disso, buscam conciliar o sentido comercial com a missão religiosa. Já os comerciantes, guiados pelas demandas de mercado, têm mais abertura para o que o romeiro gosta e quer comprar, dependendo pouco dos parâmetros teológicos. Nesse sentido, pode-se afirmar que o Santuário Nacional mantém uma relação ambivalente com a Imagem Aparecida, já que a ortodoxia teórica que defende não condiz com a própria prática que desenvolve com seus fiéis. Os comerciantes, por outro lado, partindo justamente da ambiguidade conceitual das réplicas, são capazes de expressar materialmente com maior pluralidade as práticas religiosas de seus clientes. Evidentemente esse não é um movimento em direção única. A contínua polissemia em torno das réplicas tem influência direta na conceitualização da Imagem Aparecida. É através de disputas cotidianas, dos sujeitos que interagem com ela, que é constantemente formulada.

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A abordagem que Daniel Miller (2002) faz do ato de comprar seria proveitosa se acompanhados os percursos de romeiros específicos, no caminho de ida e volta da viagem. Contudo, a proposta metodológica é de se ater às materialidades e à interpretação dos aparecidenses.

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SEGUNDO CADERNO DE FOTOGRAFIAS

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DISPUTAS E DISCURSOS NA CONCEITUALIZAÇÃO DE APARECIDA APARECIDA EM DISPUTAS E DISCURSOS Já estive diversas vezes na Aparecida Onde há uma velha luta Que é uma antiga disputa Entre duas casas comerciais Que querem ao mesmo tempo ser Na ladeira do sol A Verdadeira Casa Verde (Oswald de Andrade, Poema do Santuário) A Capela recebe muitas esmolas pecuniárias, doadas por devoção e gratidão, lucrando todos os meses mais de cem mil réis. Aí, por especial patrocínio da Mãe de Deus, foi mais frutuosa a missão. Esse povoado se consumia em acirradas inimizades, que todos, porém, desfizeram reatando publicamente a amizade, após o sermão que fizemos sobre a concórdia com o próximo. (Trecho do relato dos Missionários Jesuítas que estiveram em Aparecida no ano de 1757)

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“A terra de Aparecida é abençoada por Deus, mas falta ao povo se unir e fazer valer a benção: a religião tem que ser vivida na prática e não subjetivamente” dizia Dom Darci, bispo auxiliar da Arquidiocese de Aparecida, de maneira exaltada em uma homilia. Era feriado de Corpus Christi e um palco foi montado em frente à Santa Casa, de onde sairia a procissão após a missa, pelos tapetes feitos com cascas de arroz coloridas, e que enfeitavam as ruas até a igreja Matriz. Voltada para os romeiros, a missa acompanhada acontecia de noite, após o bispo auxiliar celebrar missa na Basílica pela manhã, e com um público de maioria aparecidense, como ficou constatado quando pediu que levantassem as mãos. A homilia era um recado direto para essas pessoas. Sendo o evangelho114 do dia sobre o milagre da multiplicação dos peixes, o seu argumento principal foi de que, graças à fraternidade daqueles que acompanhavam Jesus, todos conseguiram se alimentar. Com um discurso sobre como o egoísmo se opunha ao cristianismo, não tardou para que falasse explicitamente da cidade: “aqui o individualismo é muito forte, falta união aos aparecidenses para alcançarem o bem comum”. Em dado momento se vira para o prédio do hospital, apontando com a mão, e cita como exemplo concreto: “estava prestes a fechar as portas e a população não fez nada, foi necessário nós do Santuário intervirmos para continuarem atendendo não só os romeiros, mas, sobretudo, a população aparecidense”. Ao terminar foi ampla e longamente aplaudido115. De fato, os atritos entre os diversos grupos da cidade é algo muito latente, e que me chamou atenção desde o início da pesquisa de campo. Se em um primeiro momento supus que era conjuntural, motivado pela reformulação da Feira, foi se tornando evidente que aquela tensão sustentava a dinâmica local.

114 115

Evangelho de Lucas, capítulo 9, versículos 11b-17. Vale ressaltar que essa foi a única vez em que presenciei tal manifestação.

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Os feirantes A chamada Avenida Monumental (Rua Papa João Paulo II) liga a rodoviária da cidade até o portão norte do Santuário Nacional. Dos dois lados prevalecem prédios de hotéis voltados para romarias, sendo o seu térreo ocupado por restaurantes e comércios variados. Com vias largas e um canteiro central arborizado, ela foi projetada para uma ampla visão do majestoso prédio da Basílica.

Mapa 5. Região da cidade na qual ocorre a Feira.

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Acontecendo aos finais de semana e feriados, a Feira começa a ter suas bancas montadas nesta região na sexta-feira pela manhã, para serem desmontadas somente na noite de domingo. As bancas de estendem por toda a Rua Papa João Paulo II, mas também à Rua Felipe Pedroso, João Alves e João Matuck, além de trechos da Avenida Júlio Prestes (SP062) e da Avenida Getúlio Vargas (BR-488). Para entrar nela é preciso antes ultrapassar um cordão humano de pessoas que te puxa pelo braço, pela a camisa ou pelos ombros. Primeiro é a distribuição de panfletos: hotéis, pousadas, restaurantes por quilo e bailes de forró. Seguidos dos gritos: “água, refrigerante, sorvete, cerveja” e “olha o marmitex”, que são os mais comuns. A grande atração é um homem com uma caixa de papelão, e um taco de basebol, que simula estar batendo em um gato para então vender o seu apito que simula o miado. Na lateral do prédio da rodoviária estão bancas de pastel, caldo de cana, sorvete e cocadas, até chegar aos seis corredores da feira que ocupam todo o perímetro que dá acesso à Basílica. Esses corredores são formados por bancas dos dois lados, cobertas com uma lona azul ou alaranjada, cada uma delas vão de dois a quatro metros quadrados. No momento em que se decide entrar, sobretudo nos horários de pico, dificilmente há facilidade na volta. Com pessoas na frente, atrás e dos lados, os corpos vão sendo compelidos para frente. Há senhores de botina e chapéu de palha, mulheres maquiadas de vestido e salto alto, adolescentes de óculos espelhados e boné, grupos uniformizados indicando a cidade e paróquia de origem, além dos carrinhos de bebê. A trilha sonora é o funk que ecoa uma música diferente pelo menos a cada dez metros percorridos. Há grandes gargalos resultados dos ambulantes que estacionam seus carrinhos de venda no meio desses corredores, já estreitos. Com os produtos à mostra, abordam todos aqueles que passam, lentamente, pela sua frente e, sem aviso prévio, alguns testam nas costas alheias os aparelhos massageadores à venda. A maioria das bancas não parece ter restrição quanto ao seu produto: são tênis importados, canecas do Botafogo, camisetas do Che Guevara, bonecos do Seu Madruga, quadros da Santa Ceia, celulares, aparelhos de som, sutiãs e relógios de Aparecida, dividindo as mesmas prateleiras. Há também um senhor com microfone acoplado ao pescoço que ensina a fazer massa de nhoque com suas ferramentas culinárias. É depois de

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atravessar 1 quilômetro de feira que se chega à entrada do Santuário. O tráfego de automóveis é fechado, assim como a visão da Basílica que só é possível com certo esforço por entre os vãos das lonas. O feirante Zulu me explicou que as bancas regularizadas têm uma permissão de funcionamento pagas diretamente com a prefeitura, e que variam de acordo com o produto comercializado. A mais cara seria a para comercialização de roupas, mas é a permissão para bancas de artesanato, a mais barata, que prevalece entre os feirantes mesmo que seja raro encontrar quem o venda. O valor pago em dobro ou mesmo triplo, dependendo da localização, se dá através da chamada sublocação, prática ilegal: cinco ou seis “caciques” seriam donos da maior parte da feira e através de “laranjas” cobrariam aluguel tanto de pontos regularizados como pontos “por fora” através do suborno dos agentes fiscais. Indo mais além, essas pessoas venderiam o ponto da banca116. Justamente na época em que me mudei para a cidade, como já foi descrito na introdução, ocorria uma grande crise em relação à Feira. Funcionando há mais de 50 anos no mesmo perímetro, no final do ano de 2012 o Santuário Nacional formalizou uma denúncia no Ministério Público para que parte dela, que ocorria no entorno dos seus portões, fosse removida. O argumento usado foi que a Avenida Júlio Prestes é uma rodovia estadual (SP-062), e a Avenida Getúlio Vargas é uma Rodovia Federal (BR-488) 117, por isso seu uso para comércio ambulante era ilegal. Acatada a decisão pela juíza foi dado um prazo muito curto para que a Prefeitura Municipal resolvesse o impasse. A solução apontada pelo prefeito foi a de retirar os canteiros centrais da Rua Papa João Paulo II, em que ocorre a maior parte da Feira, para que com mais espaço fosse possível acolher as demais bancas que estavam para fora dela. Por ser uma reforma demorada, foi conseguindo vários prazos de extensão desde janeiro até julho, e a visita do Papa marcou o prazo final definitivo. Desde a decisão judicial, uma série de pessoas vinculadas à Polícia Federal, aos bombeiros, ao sistema judiciário e à imprensa passou a ir até lá, e era a algum desses grupos que eles temiam que eu fosse vinculado. Somente após serem feitos os devidos 116

Em 2013 o aluguel variava de 200 a 800 reais e a compra seria em torno de 50.000 reais. Ligando a Rodovia Presidente Dutra ao Santuário Nacional, a BR-488 tem apenas 5,9 quilômetros de extensão, o que lhe confere o título de menor rodovia federal do país. 117

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esclarecimentos, uma série de dados e números relativos à Feira passaram a ser elencados, assim como o aprofundamento acerca da conjuntura política.

Mapa 6. Rodovias que dão acesso ao Santuário Nacional.

Esse cenário acirrou os ânimos, criando uma tensão por um lado dos feirantes com a prefeitura e de ambos com a administração do Santuário Nacional. Acirramento esse que já estava aflorado no último ano, com outra intervenção dos bombeiros, por parte “dos

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padres”, para que fosse respeitada uma série de normas de segurança nas bancas da feira. Nesses seis meses pude acompanhar reuniões, assembleias e protestos dessas pessoas, cujos detalhes e desdobramentos não serão tratados no presente texto. O momento mais relevante, sem dúvidas, foi a longa assembleia dos feirantes, na quarta-feira da semana anterior à visita do Papa. Nesse dia, centenas de pessoas reuniram-se em frente a um bar e restaurante, no térreo de um dos hotéis, para tentarem chegar a um acordo. A grande questão era que o Ministério Público havia dado um prazo definitivo, sem possibilidade de prorrogação, para que os feirantes saíssem das rodovias: o dia da visita de Papa Francisco. “A gente tem que aprender a pensar no coletivo. A gente sabe que a feira não vai ficar boa pra todos. A gente quer tentar que fique melhor pra maioria” – gritava Rosângela do microfone improvisado, sem conseguir atenção da maioria. Mesmo que a reformulação daquele espaço os afetasse diretamente, essa era a primeira vez que uma reunião que envolvesse a todos era planejada. Aliás, a assembleia deixou claro que a maior parte dos feirantes, mesmo trabalhando no mesmo espaço, mal se conhecia. Vários pequenos grupos de conhecidos eram formados, e as pessoas se apresentavam umas às outras através da localização: se eram de uma “ala” específica (A-B-C-D-E-F), se tinham carrinhos ambulantes, se eram “do muro” ou se eram de uma “rua” transversal. O grande objetivo dessa reunião era formar uma comissão, que levasse em consideração justamente essa pluralidade, que seria responsável de fazer um plano de reformulação a ser apresentado para a Prefeitura Municipal. Para isso, cada um desses grupos elegeu um representante. Uma das idealizadoras da comissão, Rosângela presidia a assembleia com esse fim. O temor dessas pessoas reunidas era que, na reformulação a ser apresentada antes da chegada do Papa, a nova localização da banca fosse inferior a anterior. Era estimado que aquelas localizadas mais próximas da Basílica lucravam mais que o dobro das mais distantes. O argumento, repetido exaustivamente, era o de que “Banca é família”. Ou seja, a localização daquelas bancas permitia a curto e longo prazo um planejamento

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econômico, de centenas famílias, que seriam extremamente prejudicadas se fossem trocadas de lugar, como discursou Rosângela: Porque hoje tudo o que eu tenho eu tirei aqui da Feira. tenho criança pequena que eu quero na faculdade. E isso só vai vir da Feira. Essa comissão aqui não tem vereador, não é da prefeitura, não é do sindicato, não é da associação: somos nós. O que temos em comum? Somos ambulantes. É quem trabalha no solo. Nós não estamos como a prefeitura fazendo politicagem. O que a gente tá fazendo aqui é política. É bem diferente. O que a gente tá fazendo aqui tá de parabéns todo mundo.

Os chamados “caciques”, que formariam uma máfia de controle da Feira, eram ligados aos agentes municipais e certamente beneficiariam seus contatos, monopolizando os pontos estratégicos na reformulação. Essa comissão visava uma resposta organizada para mostrar a “força política” deles. O conjunto dos representantes eleitos, das alas, ruas e carrinhos, tinha por objetivo fazer um projeto alternativo ao da Prefeitura a ser apresentado no prazo de dois dias, na reunião marcada com o prefeito. Após falas acaloradas, muitas desencontradas, a comissão de dez pessoas foi à frente do grupo para a finalização da assembleia, em que rezaram juntos a oração do Pai-Nosso. Nesse momento, quero agradecer todos vocês, todos vocês que vieram lutar pelo direito de vocês. Agora vamos fazer um minutinho de silêncio pra gente agradecer que nós conseguimos parar a marcação da feira, para que seja feito da melhor maneira possível, e transparente. Agora tem que ter sabedoria. Então vamos agradecer a Deus, gente? A gente tá todo mundo junto aqui, e com isso evitamos muitas brigas. Devemos juntos evitar no futuro injustiças, brigas e prejuízos. Tá? Não sei a religião aqui de cada um, mas vamos rezar um pai-nosso pra gente agradecer a Deus nesse momento, independente de religião. O pai-nosso é pra todos, gente. Senhor meu Deus, eu te agradeço senhor por estarmos juntos aqui. Eu agradeço pai, pedimos sabedoria senhor, pra estar junto aqui de todos vocês. Agradeço também Nossa Senhora. Olha gente, que lindo, aquilo ali é nossa casa [aponta para a Basílica, no final da avenida]. Dos católicos, tá? Mesmo as de outras religiões, Deus é pai de todos. De todos. Maria é a mãe de Jesus. Então vamos agradecer: Pai Nosso...

Ora referindo-se à minha pesquisa como “livro” e ora como “documentário”, Rosângela, Zulu e as demais pessoas, que conheci através deles, dispuseram-se a falar

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comigo tendo como pressuposto que, com o registro que fazia dos acontecimentos, eu os ajudaria “na batalha” que travavam118. O que quero ressaltar neste capítulo é que longe de ser uma situação conjuntural, fui percebendo que se tratava de algo estruturante: esse embate político com os padres e a prefeitura era tão antigo quanto a Feira. “Sua pesquisa tem que mostrar todas as irregularidades, seja hotel ou feira”, pediu um feirante, ao explicar que se no alvará o hotel conta com dez quartos é ignorado que em cada um desses quartos existem pelo menos dez beliches. A ilegalidade é generalizada, ressaltou, e não exclusiva dos feirantes. Mas isso de sonegação começa com os padres! Ih, esses são os piores! Dizem que a igreja não deve pagar imposto e eu concordo e defendo isso, religião é sagrado mesmo, mas aquilo lá não é nem religião nem igreja, é igualzinho isso aqui. Tudo que vende aqui vende lá! Mas não dá pra mexer nisso não, aqui na cidade os padres são o quarto poder.

Todos os aqueles que trabalham na Feira, e com os quais pude dialogar, defendiam que no que diz respeito à Aparecida não cabia ao Santuário Nacional fazer uso de seus aspectos comerciais, mas apenas os religiosos. Do mesmo modo, criticavam enfaticamente a influência política do clero, ao ser o “quarto poder” na cidade. Ao ouvir esse discurso, repetidas vezes, constatei que os feirantes utilizavam réguas weberianas, mesmo sem as conhecer, para medir até que ponto a atuação dos padres era permitida. Afirmo isso porque os feirantes exigiam do clero a mesma ética que Max Weber destaca sob a classificação da “religião da fraternidade”, ambos justificando sua consequente incompatibilidade com a esfera econômica. Uma economia racional é uma organização funcional orientada para os preços monetários que se originam nas lutas de interesses dos homens no mercado. O cálculo não é possível sem a estimativa em preços em dinheiro e, daí, sem lutas no mercado. O dinheiro é o elemento mais abstrato e “impessoal” que existe na vida humana. Quanto mais o mundo da economia capitalista moderna segue suas próprias leis imanentes, tanto menos acessível é a qualquer relação imaginável com uma ética religiosa de fraternidade (Weber, 1997: 164).

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A nova disposição da Feira, com mais dois corredores onde antes ficava o canteiro central da avenida, passou a vigorar no fim de semana seguinte à visita do Papa. Essa reformulação foi feita pela Prefeitura Municipal, ignorando os apelos e manifestações políticas dos feirantes organizados. Foi quase um ano depois, em junho de 2014, que a Polícia Civil efetuou a chamada Operação Leviatã, na qual foi preso um grupo de pessoas (entre eles um vereador e vários servidores municipais), acusado de coordenar as práticas descritas, confirmando tudo o que foi dito a mim pelos feirantes.

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Do mesmo modo, eles exigiam que essa divisão se estendesse à esfera política, para que cada grupo se restringisse em atuar de acordo com seus respectivos meios, ou seja, os comerciantes na economia, os políticos na política e os padres na religião. Como já foi descrito nos dois capítulos anteriores, e destacado na introdução, no caso de Aparecida essa divisão não é nada simples.

Os comerciantes “O povo da Feira tem muita richa com o daqui. Chega a ser inveja que os feirantes têm, porque aqui vale mais aí falam mal, mas a verdade é que isso aqui foi feito pra eles mesmos”, afirmou Fred, na nossa primeira conversa. Por volta dos 50 anos de idade, ele mantém dois pontos comerciais lado a lado no Centro de Apoio aos Romeiros (CAR), conhecido como Shopping da Fé, em que vende uma variedade de produtos, desde terços pendurados nas portas e canecas pelo chão a imagens de santos nas prateleiras e bijuterias protegidas no balcão. Localizado dentro do Santuário, o CAR conta com 330 pontos comerciais em um espaço de 8200 metros quadrados. Fundado em 1998, conforme explicou Fred, tinha como propósito organizar a venda de produtos que ocorria, até então, “livremente” no entorno da Basílica. O empreendimento, no início, teve os feirantes como público alvo, e foram eles, afirmou, os primeiros a serem convidados a se instalarem naquele espaço. Contudo, com grande pessimismo em relação à empreitada, boa parte teria recusado o convite, com a justificativa de que não compensaria em relação ao valor cobrado pelo ponto comercial. Atualmente, os mesmos pontos valeriam mais de 15 vezes o valor original119, e pagando, sim, impostos, como fez questão de me mostrar no alvará de funcionamento. Desse modo, para Fred, essa “implicância” dos Feirantes estaria muito associada à inveja, pela situação econômica deles ser melhor – “Aparecida é fábrica de

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Ele afirmou que se em 1998 os pontos custavam 12 mil, em 2013 valiam 200 mil reais. Já os pontos da praça de alimentação custariam no mínimo um milhão de reais.

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171” 120. Contudo, mesmo ressaltando as diferenças frente aos outros, ouvi daqueles que trabalham no CAR discursos similares aos dos feirantes. “Aqui só vai pra frente o que os padres querem. Anota aí uma coisa que sempre dizemos: aqui somos todos funcionários dos padres. Trabalhamos pra eles porque quem pode manda e quem não pode obedece” - me afirmou um lojista - “você tem que entender que o foco dos comerciantes é um só: ganhar dinheiro. Hoje o shopping é uma máquina de dinheiro, através da exploração do romeiro. Aqui é a maior renda da cidade com os pontos mais caros”. Criticando a excessiva interferência do clero na administração do CAR, disse que todas as tentativas dos lojistas de fundar um sindicato foram reprimidas. Do mesmo modo, toda iniciativa comercial de grande porte que chegava à cidade seria refreada por eles. E você acha que em Roma não tem comércio também no entorno do Vaticano? A diferença tá em ser abusivo. Aqui o pessoal abusa do comércio. (...) Você quer saber a relação entre comércio e religião: não rola parceria, mas relação de poder mais alto que é a religião. Aqui a religião está acima de tudo e de todos. Como tava falando, eles são uma potência, ainda mais com rádio e TV que o Santuário faz lavagem cerebral que nem o McDonald’s pro povo vir pra cá gastar (...). Eu falo essas coisas nos encontros, Aparecida perdeu o foco do que é religião. Sempre me dizem: mas nós da RCC estamos aqui pra consertar isso. E eu respondo que só consertamos na conversa. A gente sempre fala disso, mas não faz nada.

Com discurso predominantemente econômico e sobre trabalho, evocando números, cifrões e porcentagens, ele estende a mesma crítica para o catolicismo, tendo como contraponto as religiões evangélicas. Na sua concepção, o problema não está tanto na relação, mas, sim, em ser excessivo. Mesmo com essa crítica ferrenha, explica que é católico praticante e há quase dez anos faz parte da Renovação Carismática Católica (RCC) de Aparecida como palestrante. Em último caso, o interesse desse discurso crítico é a almejada atuação tanto sem as restrições impostas pelo clero, como sem a concorrência que representam. De todo modo, como muitos deles se identificam como católicos, é inegável que esse discurso

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A expressão é uma referência ao código penal: “Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.

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também carregue interesse religioso: eles discursam como comerciantes, cujo emprego e fonte de renda dependem dessa atuação, e como religiosos e devotos de Aparecida. Para ele o Santuário tem a mesma relação de poder e dominação no campo econômico e religioso, e em ambos os casos ele afirma ser uma resistência. Na sua concepção, porém, ser religioso leigo significa que tem menos obrigações que os sacerdotes. Todavia, se o clero foi criticando por todos os feirantes que dialoguei, já no shopping ele foi defendido por alguns. Solange é lojista no CAR desde a sua fundação, há quinze anos, onde vende imagens de santos. Na época, passava dificuldade para criar sozinha o seu filho pequeno e viu oportunidade naquele empreendimento. Conta que o Santuário Nacional distribuiu panfletos em toda a cidade, além de fazer anúncio nas rádios, convidando os aparecidenses a comprarem um espaço.

Inicialmente a recepção da

população não foi boa, diziam que não daria certo, mas ela arriscou e não se arrepende disso: Eu não tenho do que reclamar. Foi com esse ponto que comprei meu carro, minha casa, ajudo minha mãe e banquei escola particular pro meu filho e agora o cursinho. Aqui gostam de falar mal dos padres, mas pra mim foram muito bons: na época estava com muita dificuldade e parcelaram pra mim, conversei várias vezes sobre meus problemas e eles sempre muito bons. Onde os padres mexem dá certo, são ótimos administradores. Só que gostam das coisas certas: quem reclama é porque não é direito.

Renato, outro lojista, discursa no mesmo sentido: Muita gente critica, mas eu não vejo problema nenhum no comércio do Santuário porque é uma instituição que recebe mais de onze milhões de pessoas por ano e tem que tá preparada, porque essas pessoas precisam comer, ter conforto, tomar água, ir ao banheiro e eles oferecem isso muito bem, são ótimos administradores. Sempre tem fofoca de que os padres andam de Honda Civic do ano. Eu não vejo problema! Isso é fruto do cargo deles na administração e é também da instituição, nada vai ficar pra eles depois: só ver os padres aposentados que ficam com um quartinho e mais nada. Diferente de pastor, que deixa herança pro filho, nada é dos padres, mas sim da instituição Igreja. E eles fazem um bom trabalho. O povo gosta de fofoca, mas pouca gente sabe que eles mantém vários centros de caridade: asilo, orfanato, curso profissionalizante e até a Santa Casa que é pública eles financiam, foram eles que a reformaram e a salvaram da falência. Isso ninguém comenta!

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Os discursos de Renato e Solange se distanciam do que ouvi dos feirantes e dos outros lojistas, mas se aproximam entre si: os dois classificam “os padres” como “ótimos administradores” e não consideram algum as suas atividades comerciais um problema. Para a primeira as críticas vem de quem “não é direito” e pro segundo é gosto pela fofoca. Enquanto Renato justifica essa opinião citando as obras sociais, Solange fala da sua própria trajetória de vida como exemplo. Não longe do CAR, ao atravessar a Passarela, entre os comerciantes do centro encontrei opiniões parecidas. “Uma coisa que você tem que falar na sua pesquisa é sobre a luva”, pediu-me um deles. Os padres tem caráter em relação a isso: só cobram luva na aquisição, nem na renovação cobram nada e honram a palavra. Só pra passar o ponto que cobram cinco aluguéis, o que é justo. Nesse aspecto os padres são muito corretos e cumprem o combinado. Tem gente que espera que eles hajam como padres, perdoem dívidas e essas coisas, mas nessa hora são administradores e não padres. Não querem nem saber o motivo. Padres eles são quando tão lá na Basílica, atendendo romeiros e fazendo missa.

“Luva” é o termo usado para um pagamento que o inquilino faz ao proprietário, ao assinar o contrato. Prática ilegal no Brasil, é comum em locais valorizados e com alta demanda, como é o caso. No bairro central, segundo os rumores que ouvi diversas vezes, a maior parte dos imóveis é propriedade “dos turcos” e “dos padres”. Se no passado todo aquele espaço pertencia a Igreja, atualmente parte dos prédios continua em sua posse, muitos deles alugados para o comércio. Estes seriam os imóveis mais concorridos, já que o valor da luva seria mais baixo e com menos imprevistos, diferente dos demais, submetidos às arbitrariedades dos proprietários. O que chama atenção no seu discurso, para o presente capítulo, é a distinção que faz da atuação do clero: padres e administradores. Para ele as mesmas pessoas podem atuar de maneiras distintas, dependendo do objetivo e da posição que se encontram. São padres quando se relacionam com os romeiros e usam batina, e são administradores quando negociam o aluguel com os aparecidenses. Concordando com essa premissa de atuação, Adi conta que já viajou “o mundo” e conhece muitos santuários católicos, como o de Istambul que “é pequeno, precisa ver” e

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também o Vaticano: “lá estive muitas vezes. É grande, bonito, com muito luxo. Dizem que é maior que aqui, mas é mentira. A única coisa maior é o pátio de entrada, a igreja mesmo é menor, mas é a sede da Igreja, né, não podem falar que é menor”. Ele traz essas visitas como prova para sua afirmação de que pôde ver, ele mesmo, que “em nenhum lugar do mundo o romeiro é tão bem recebido como aqui. Dão uma recepção muito boa! O Padre Darci, que agora é bispo, foi um grande administrador”. Sem economizar elogios ao clero, declara que tudo de relevante que já aconteceu na cidade foi de responsabilidade deles. Retomando as esferas weberianas, pode-se afirmar que na concepção desses lojistas, os padres têm capacidade de transitar, entre a esfera religiosa e a econômica, e agir com a respectiva “ética” de cada uma delas, dependendo da situação. E isso só não é um problema, como também contribui para que ajam de maneira mais correta que o usual. “Os padres” concordam com isso.

Os padres Conversar com os sacerdotes, porém, foi uma tarefa árdua. Aqueles que eu convidei dispuseram-se prontamente, mas pediram que eu fizesse uma solicitação à Assessoria de Imprensa do Santuário Nacional, órgão responsável por organizar suas agendas. Durante os seis meses residindo na cidade, muitas foram as vezes em que fui até a sala de atendimento, onde sempre repetiam que esses requerimentos só poderiam ser feitos por email. Já os emails, mesmo com minha insistência, nunca foram respondidos. O único caso bem sucedido de comunicação foi, justamente, com Dom Darci José Nicioli que aceitou o convite121 quando nos encontrarmos casualmente pelo pátio da Basílica. Dentre os assuntos abordados, o bispo contou sobre a história da construção do Santuário Nacional e qual foi o seu papel, como reitor, na modernização que ocorreu a partir de 1996, com a construção do CAR e do estacionamento.

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A entrevista aconteceu dia 25 de setembro de 2013, no Seminário Bom Jesus.

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Durante parte da década de 1980 e de 1990, diferente do século anterior, a administração do Santuário Nacional foi transferida para os leigos, cabendo aos padres apenas a parte litúrgica. Situação complicada organizacionalmente porque a pastoral fica na mão dos padres e a administração fica na mão dos leigos: isso não dá certo, não prospera. Então foi uma década perdida. Os anos 90 foram uma década perdida para a Basílica - nesse período de crise, o Santuário Nacional desenvolveu “uma grande dívida com os bancos”.

Dom Darci explica que foi convocado em 1996, pelo então Arcebispo de Aparecida, Cardeal Aloísio Lorscheider, com a missão de refazer a transição da administração do Santuário Nacional, das mãos dos leigos para as dos Missionários Redentoristas novamente. Então nós começamos a administrar. Entre 96 e 98 nós construímos o shopping, né? Pagando as dívidas e sem dar o braço a torcer. E com isso conseguimos escapar das dívidas bancárias. Tivemos uma ajuda bastante expressiva da Igreja do Brasil, para nos ajudar a enfrentar, em um primeiro momento, com um empréstimo da Igreja (...) as dioceses e congregações religiosas nos ajudaram. A gente pagou as dívidas, senão era impossível de pagá-las devido aos juros bancários. E começamos a trabalhar! Para pagar o dinheiro emprestado. E conseguimos ali nos anos, é... 98 até o ano 2000 nós pagamos todas as dívidas. E no ano 2000 iniciamos então o acabamento do Santuário Nacional: pra isso fundamos a Campanha dos Devotos. A Campanha dos Devotos já tem então 12 anos. (...) conseguimos fazer com que todos os devotos de Nossa Senhora participassem deste movimento de acabamento do Santuário Nacional. Vimos as necessidades, tanto de acabar o Santuário como de melhorar a infraestrutura. O shopping estava pronto e equipado e iniciamos então o estacionamento, mais organizado que aquela confusão bastante grande. Os pátios do Santuário serviam para comércio, então havia uma confusão, com até prostituição e venda de drogas naquele pátio. Porque embora seja um terreno particular, era usado como terreno público. As pessoas chegavam lá sexta-feira, riscavam o chão e sentavam. Vendiam no sábado de manhã para os vendedores que vinham fazer o seu mascate ali. Quer dizer, ficavam com aquele ponto ali: era ingovernado, né? Então nós organizamos, internamente também os vendedores, e hoje eles estão catalogados, vendem água, sorvete, refrigerante em volta do Santuário, naqueles três blocos de containers. Eles devem organizar cada um deles por volta de oitenta vendedores, todos os vendedores devem ser registrados como autônomos, pagando INSS. Quer dizer, aquilo que existia de maneira desorganizada nós organizamos. E isso fez com que nós permitíssemos que houvesse um estacionamento pago, o que era outro problema do Santuário, se roubassem um carro, como ocorreu, roubaram um ônibus uma vez, e o Santuário teve que pagar. Porque se você oferece um estacionamento, independe se você paga ou não, você é responsável

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por aquilo. Então nós resolvemos organizar o estacionamento, foi uma benção de Deus, porque com isso o Santuário teve uma renda a mais e, mais importante que tudo isso, um espaço organizado, limpo, de maneira que o romeiro que aqui venha esteja rezando confortavelmente sem se preocupar com seu bem. Porque era muito complicado estar ali, nem todo estacionamento era asfaltado, em dia de chuva atolava carro, atolava ônibus, uma sujeira. Então nós fomos organizando, a infraestrutura do Santuário, para dar mais conforto ao peregrino e mais segurança, ao mesmo tempo em que fomos fazendo o acabamento do Santuário Nacional, para que o espaço sagrado pregasse por si mesmo. Falasse do mistério ali centrado. Hoje, quando você entra na Basílica, você é levado automaticamente para oração.

Nessa parte da entrevista, chama atenção esse paralelo que o bispo faz da má administração, relacionada aos leigos, em contraponto às melhorias proporcionadas pela administração do próprio clero. Ao explicar toda a trajetória dos Missionários Redentoristas em relação à Aparecida, desde o final do século XIX, Dom Darci se coloca como mais um dos indivíduos que contribuíram para a efetividade dessa missão. Ele teria atualizado e modernizado as diretrizes históricas de evangelização dos redentoristas - “De forma que não podíamos mais ficar sossegados de falar só a partir do palanque, entre aspas, do altar central do Santuário. Era preciso fazer com que o Santuário chegasse à casa dos devotos” - se já havia o jornal e a revista, ele ajudou a criar o canal de televisão e o portal na internet. Da mesma maneira, e com o mesmo fim, prosseguiu com a reformulação dos espaços que compõem o Santuário. Veja como as coisas foram sendo montadas, né, dentro de um planejamento. Sem perder o foco nosso: nós não temos um shopping pra fazer comércio, nós temos um shopping para dar apoio ao romeiro, pra que ele venha. Como ele viria aqui se a cidade não tivesse nada pra ele? Não tem um banheiro público na cidade! Nenhum banheiro público na cidade! Quer dizer, não dá! Depois, o que é a benesse da cidade acaba sendo a sua desgraça, que é o número, o contingente expressivo de visitantes. Quer dizer, a cidade não se preocupa em melhorar porque se trata mal o visitante que vier, já tem outro na porta pra entrar no hotel. Então não tem jeito. A mesma coisa acontece com respeito à alimentação: a cidade é precária! Comer em Aparecida é perigoso! Bom, então nos tínhamos que criar um shopping e botar ordem, pra quê? Pra ajudar a cidade a se organizar. É bem esse o objetivo. Na mesma esteira nós criamos o Hotel Rainha do Brasil. Porque não adianta, a hotelaria em Aparecida é uma hotelaria de terceira categoria. Não é? Ora, então nós criamos uma hotelaria de primeira categoria, e o que está acontecendo? Está mudando a cultura de Aparecida. (...) Muita gente está construindo hotéis novos, tá formando mão de obra. Nós começamos nosso hotel e

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não encontrava gente qualificada: tivemos que fazer uma escola. O Hotel Rainha do Brasil é uma escola de hotelaria. Nós damos cursos ali dentro, e gratuitos pra quem quiser. Então começamos a formar gente, a formar nosso pessoal. Olha só que situação, mesmo que uma coisa foi puxando outra, foi sem desvirtuar. Nós não fazemos hotelaria pra competir com a hotelaria local. Nós fazemos hotelaria porque é necessário que a gente ofereça ao peregrino um ambiente diferenciado que aquilo que os hotéis oferecem. Tanto é que não criamos um hotel no estilo de Aparecida. O hotel estilo Aparecida é quarto e refeitório, acabou. O sujeito vem aqui, come, dorme, reza e vai embora. Não sei se você nota, mas o romeiro não tem nem onde ficar no hotel.

Já no desenvolver dessa fala, o bispo indica duas coisas fundamentais para o presente capítulo. A primeira delas é que a sua missão eclesiástica como administrador, assim como a origem redentorista, embasam os empreendimentos propostos na medida em que eles têm como fim a evangelização, o seu objetivo missionário. O argumento é sintetizado pelo slogan – “Acolher bem é evangelizar” – o qual vincula o bem-estar dos romeiros, e a qualidade dos serviços prestados a missão religiosa de evangelização. Isso, contudo, leva ao segundo ponto ressaltado neste trecho: as críticas feitas tanto ao poder público municipal como ao comércio em geral. Característica essa ressaltada também por Turner & Turner (1978) em contextos análogos122. Ultrapassando as fronteiras do Santuário Nacional, sob sua custódia, o bispo cobra que toda a cidade-santuário aja de maneira similar. Então, dessa maneira a gente vai seguindo em Aparecida. Agora, toda cidade-santuário tem as suas dificuldades na relação com o poder público e com as forças vivas porque enxergam a Igreja como competidora. O ideal seria que nós estreitássemos os laços e trabalhássemos como parceiros: todo mundo ganharia mais. Então você vê o poder público que não colabora com o Santuário na sua missão. É simples entender quem está de fora, quem está dentro da cidade não entende nunca isso. Tenho certeza que você que veio de fora, com uma outra cultura, ao olhar, se tirar o Santuário daqui, acabou a cidade.

Ora, como visto no primeiro capítulo dessa dissertação, isso pode ser explicado pela peculiaridade na qual Aparecida se desenvolveu como cidade, pela estreita relação

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“In the course of this study, we have seen that pilgrimage shrines, in principal centers of peace and communitas, are often involved in social and political conflicts of great vehemence and intensity” (Turner; Turner, 1978: 140).

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com aquela devoção. Do mesmo modo, no que diz respeito à abordagem do segundo capítulo, o movimento no qual os redentoristas se apropriam da Imagem Aparecida frente às suas réplicas, criando e exigindo uma qualidade oficializada, pode ser percebida aqui. O discurso de Dom Darci é que tanto o empreendimento do shopping como do hotel foram de caráter pedagógico. Assim, defende que entre as suas missões está a de educação e conscientização política, além de estimularem a economia local. A insatisfação se dá porque, para ele, os resultados se mostram insuficientes. Tudo tá em volta do Santuário. Então o que seria uma atitude inteligente do poder público? Cuidar da galinha dos ovos de ouro! Somar forças nesse sentido porque todo mundo ganha se o Santuário vai bem. Mas é ao contrário: eles veem o Santuário como uma potência, e aquilo que eles puderem tirar do Santuário eles querem tirar do Santuário. Então temos a obrigação de dar. Eu acho também, mas não dessa maneira. Eu creio que a gente pode ser parceiro. Construirmos juntos, com projetos comuns, mas isso aqui é ininteligível, não é inteligível pra eles, não adianta, não adianta, não adianta. Você vê o poder legislativo, os vereadores, infelizmente na cultura que nós temos, não só em Aparecida, mas temos no Brasil. A gente vê que de alguma maneira quer levar vantagem em tudo. Nós não concordamos com uma postura como essa, não entramos nesse jogo, então há sempre uma rixa, há sempre uma dificuldade. O poder executivo, na figura do prefeito, depende muito de quem está a frente, se é simpático ou não é simpático, se é dialogável ou não é dialogável. (...) fica sempre dependendo dessa condição, do sujeito, se vai dar pra trabalhar com ele ou não vai dar pra trabalhar com ele, e assim vai. Então há mandatos que a gente consegue maior parceria, e mandatos que a gente simplesmente se distancia de uma vez. Mas nunca há de fato aquela parceria desejada, nunca houve em Aparecida aquela parceria desejada. Então há sempre uma dificuldade muito grande. Sem dizer das forças vivas da cidade de Aparecida. Há colaboração e muito interesse, gente inteligente que trabalha junto, como também aqueles que jogam contra. Então é sempre muito delicada a relação. Há um acordo tácito que muitas vezes não se reflete em parcerias comuns. Fica uma coisa mais diplomática.

Com severas críticas ao poder público municipal, seu argumento é que a população espera muito que o Santuário seja um grande provedor de bens públicos. Ao mesmo tempo, a Prefeitura e a Câmara não aceitavam a conciliação de suas demandas com as do Santuário, que acaba arcando com mais responsabilidades que deveria. Ao invés de parceria, o bispo enxerga uma dependência injusta. É esse o ponto que ele levanta ao explicar a situação da Feira.

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Mas veja, é um absurdo aquele bando de barraca ao redor do Santuário! (...) impedindo a organização viária da cidade de Aparecida se tornando até um perigo. Se estourar um botijão de gás daqueles no meio da feira, vira um inferno a céu aberto. Como que se pode permitir uma coisa dessa? Ora, então foi um trabalho grande, primeiro de transformar o anel viário ao redor do Santuário em uma rodovia federal. Imagine, trabalhei anos nisso. Depois que se transformou numa rodovia federal, bom, então não se pode sob o leito de uma rodovia federal ter barraca. Olha pra você ver, que movimento, digo, como é difícil Aparecida: é tão simples entender que é impossível uma coisa daquele tipo! Agora tão dizendo, “olha, era possível mesmo”, pronto, acabou. É possível mesmo! E podia ser melhor aproveitada a via, porque melhor organizada eles competiriam, com muito mais competência, com o shopping de Aparecida. Mas não entendem isso! Acham um desperdício! A feira deve ser mantida, ela é bonita, ela faz sentido, ela dá dinheiro para o trabalhador, e é bom isso. Mas organizem essa feira! Depois, pouca parte da feira é de Aparecida. Pessoas de fora, que levam dinheiro pra outra cidade, que não vivem aqui. E o poder público permite uma coisa dessa! Sendo que aquilo ali é precário. Se dá uma autorização precária. O poder público tem o poder nas mãos, mas não usa dele. Certamente por outros interesses: tudo leva a essa conclusão. Não acuso, mas dois e dois são quatro, não? (...) É tudo um jogo, ali dentro, que a gente não alcança. Mas veja como são as coisas. É difícil, muito difícil. E o Santuário segue a diante com o seu projeto, e vai levando a cidade a reboque. Agora nós temos grandes empreendimentos, temos lá dentro da Cidade do Romeiro um Centro Multimídia para a evangelização através da figura de Nossa Senhora. Será uma evangelização através de novas mídias, de forma que seja interativa, mais ou menos como os parques da Disney World, que você entra dentro de um ambiente e você é envolvido por aquele ambiente. Através de som, luz, imagem e etc. Então nós estamos com um grupo de empresários franceses, trabalhando nisso. Esse projeto será construído lá dentro da Cidade do Romeiro. Temos também o teleférico que vai ligar a Basílica Nova até o Morro do Cruzeiro. E o Morro do Cruzeiro recebe também toda uma repaginação. Isso são investimentos que fazemos, e fazemos para o benefício da própria cidade, para o turismo religioso.

A fala de Dom Darci evidencia como, na sua concepção, o Santuário não só age independentemente do poder público municipal, como contribui para o progresso econômico da cidade. E qual o reconhecimento que se tem disso? Eu gostaria que você perguntasse, nas suas entrevistas, para os empresários da cidade de Aparecida porque é que nunca, em Aparecida, nos prêmios que a cidade dá para os empreendedores do ano, os empresários do ano, os maiores investidores da cidade - todo ano tem esse movimento a partir da associação comercial, dos sindicatos - porque é que nunca foi dado isso aos padres? Acho interessante isso! O maior investidor da cidade de

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Aparecida é o religioso. É interessante que a cidade nunca, a força viva da cidade nunca reconheceu isso. É emblemático isso. Essa pergunta caberia, mas por que não? Porque eles entendem que a Igreja não é parte da cidade de Aparecida. Por mais absurdo que possa parecer isso! É como se nós fossemos de fora. (...) Olha o que Dom Raimundo Damasceno fez neste espaço aqui do Colegião, o Seminário Bom Jesus. Reformou um prédio mais que centenário que a cidade de Aparecida nem conhece, tem aparecidense que não conhece isso aqui. Não existe, no centro-sul, um prédio desse naipe. E Dom Damasceno teve o mérito de reconstruí-lo completamente, adaptá-lo, pra ser Seminário, Cúria e Pousada. E nunca houve reconhecimento da cidade por ter feito isso. Acho interessante! Um investimento como aquele do Hotel Rainha do Brasil. Em Aparecida! Imagina! Olha! Feito em um ano e oito meses. E olha que coisa esplendorosa. Um shopping, como foi construído o shopping de Aparecida. É interessante não é, que o mundo empresarial não vê isso como progresso para a cidade. Não há um reconhecimento honesto, com respeito ao trabalho dos Missionários Redentoristas e do clero em geral, que trabalha nisso aqui há mais de cem anos. É interessante, muito interessante isso! Pra você ver a dificuldade que há de interação.

Se a análise feita da relação com a prefeitura é mais fatalista, em que não se vislumbra a desejada parceria, esse trecho evidencia que há um ressentimento na relação estabelecida com os comerciantes, pela falta de reconhecimento. Se para ele “o maior investidor da cidade é o religioso”, os demais empreendedores parecem não concordar com isso. Isso se dá, na sua percepção, porque os aparecidenses não consideram nem o Santuário nem os padres como parte da cidade. Como foi descrito nos tópicos anteriores, contudo, a crítica que ouvi estava na fronteira dúbia de atuação do clero. Para aquelas pessoas, os padres não podem ser empreendedores justamente por serem padres, e foi isso que expus para Dom Darci. Sua reação foi imediata: E por que não? Quer dizer, a razão do por que: o resultado final favorece a cidade como um todo, cria emprego e renda. Ora, não é isso que é importante? Não é nisso que temos que ajudar? Agora, para nós cumprimos a nossa missão, como evangelizadores que somos, sem os meios necessários é impossível! Por exemplo, hoje a cidade se vê beneficiada como um todo pela TV Aparecida. Se não fosse os religiosos, quem faria essa TV? Não? E não ganha o hoteleiro? Não ganham aqueles que têm as fábricas de souvenirs? Não ganha aqueles que têm restaurantes? E não ganha o feirante? Porque muitos vêm atraídos pela TV Aparecida. Ora, isso só podia ter nascido da mão dos padres, não tem como. Veja como não há consenso numa afirmação dessa, que o padre por ser religioso tinha que cuidar das coisas da religião. Ora, a religião está em relação ao mundo, ela está encarnada. Então, sem ter os meios

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necessários, por isso é necessário que tenha uma boa administração, nós não conseguimos mais evangelizar hoje. Então eles nos veem, infelizmente, como competidores e não como parceiros.

Por outro lado, Dom Darci comenta que em todas as eleições municipais é convidado para se lançar candidato a prefeito, ideia que rejeita. De jeito nenhum, não é nossa função fazer isso. Não é nossa questão. Se você entra no esquema deles, você se perde naquele esquema, e não faz nada! Então contribuímos para a cidade de uma outra maneira. Agindo de uma forma que leve a cidade a progredir, a dar passos. Provocando a cidade e interagindo com a cidade. Daquilo que a cidade precisa, a gente colabora. Sem paternalismo porque a cidade espera muito da gente nesse sentido, mas de forma paternalista. Querem que o Santuário dê tudo. Nós nunca entramos com um projeto de cidade sozinho, já é filosofia nossa: “quem é que tá junto?” aí nós somos os parceiros, sozinhos não.

Não colocando como problema exclusivo seu, o bispo ressalta mais uma vez que essa condição é sistêmica de cidades-santuário. Sempre tem essa mesma questão. Toda cidade aonde tem um poder forte, centralizado da Igreja, suscita essa tensão. E não tem jeito. Nas cidadessantuário o protagonista é o Santuário, não tem jeito. E se não for o Santuário quem investe, infelizmente, o empresário de Aparecida investe olhando para o próprio umbigo. É natural que todo empresário queira isso, mas ele tem que entender que o seu lucro, parte dele, tem que ser reinvestido para o bem comum. Ora, quem investe no bem comum aqui é o Santuário Nacional. Todo empresário investe pra si mesmo. E tem a cultura também dos próprios políticos, em que o sujeito exerce a sua função, que foi conferida pelo povo, mas em benefício próprio. É público e notório isso. Ora, o fato da cidade não ter um banheiro público fala muito sobre isso. E o Santuário tem mil e quarenta e seis banheiros a disposição dos visitantes. É um número expressivo esse que diz de uma postura diferenciada. Ah se não fosse o Santuário! Não existiria a cidade de Aparecida, não há dúvida. Ah se não fossem os Missionários Redentoristas! A devoção a Nossa Senhora Aparecida não seria nacional. Ah se não fosse o olhar empreendedor, que foi impresso no Santuário Nacional, a partir dos anos dois mil! E isso aí são fatos tratados como argumento. Não há quem não reconheça isso. Então se é assim, porque então a assertiva de que o padre não deve ser empresário? Não o fato de eles serem empresários, mas o fato de se aquilo que ele realiza está em consonância com o seu objetivo. Não teria sentido o padre ser um empresário para acumular riquezas. Agora, tem sentido o padre ser empreendedor para realizar a sua missão. De forma que ele tenha as estruturas necessárias, para de forma elementar cumprir a sua missão que é evangelizar. Daí então o Hotel, daí então a Rádio, daí então a TV Aparecida, o portal A12, a própria estrutura do Santuário Nacional, e

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tudo aquilo que a gente vê em Aparecida que é em função da evangelização. Não há outro objetivo se não esse.

Nesse trecho final da entrevista, Dom Darci justifica todas as ações do Santuário, em todas as suas frentes, pela missão evangelizadora. Desde os meios de comunicação, até o shopping e o hotel, todos seriam meios para o mesmo fim. Dito de outro modo, para o bispo os fins religiosos justificam os meios econômicos. Nos termos weberianos, os padres reivindicam uma “ação social com respeito a valores”, mas são acusados por alguns de camuflar uma “ação social com respeito a fins”. O que as descrições etnográficas indicam, é que as disputas se dão devido às diferentes formas de expressão de Aparecida não respeitarem as fronteiras que lhes tentam impor.

Polivalências de Aparecida

Na introdução dessa dissertação ressalto que a análise weberiana mostrou-se insuficiente para a compreensão do fenômeno que encontrei durante as incursões etnográficas. Contudo, neste terceiro capítulo, não por acaso, foi justamente a terminologia de Max Weber que guiou a análise dos discursos expostos. Como já foi indicado, esta escolha metodológica se deu principalmente pela consonância que encontrei entre o autor e aqueles com quem dialoguei. Ao traçarem uma fronteira, bem delimitada, a percepção daquelas pessoas é a de que “os padres” atuam para além da esfera que lhes é permitida, a religiosa, invadindo aquela que eles deveriam ter exclusividade, a econômica. É nisso que se baseia a afirmação de que “Aparecida perdeu o foco do que é religião” ou ainda de que “aquilo não é religião nem igreja”. Evidentemente, pelo clero ser centralizado e facilmente identificável - além de representar a hierarquia e o poder - torna-se também um alvo mais suscetível às críticas direcionadas. Mesmo aqueles que lhes são mais simpáticos, assumem que eles transitam entre as duas funções, de padre e bons administradores, ainda que isso não seja um problema. É o discurso de Renato o que mais se aproxima daquele do bispo entrevistado, ao 128

afirmar que as ações dos padres, na verdade, são da instituição e não meramente individuais. Para Dom Darci, a função administrativa é parte intrínseca da religiosa, já que “a religião está em relação ao mundo, ela está encarnada” ou que “a religião tem que ser vivida na prática e não subjetivamente”. Nesse ponto, o que o bispo reivindica é a posição de “asceta ativo” 123, contrariando a expectativa dos feirantes. Assim como nos dois capítulos anteriores, o que esses discursos indicam são alguns dos modos nos quais Aparecida se manifesta. As disputas discursivas que notei entre as pessoas, sobre os seus limites de ação, são capazes de evidenciar Aparecida. É nessa teoria da ação social que as terminologias de Weber (1997) fazem sentido, mas não no intuito de compreender o fenômeno, mas sim uma parte das relações que ele estabelece. Esses aparecidenses não são apenas sujeitos religiosos, mas eles mesmos teóricos sobre a religião. Em outras palavras, o que eles revelam não é como a religião é praticada em Aparecida, mas sim como Aparecida é capaz de moldar o que é religioso. A busca do que é a religião, ou ainda do que ela deve ser, sempre foi uma problemática teológica, principalmente para aqueles religiosos que executam o trabalho missionário, mas não é essa questão que norteia minha abordagem. A meu ver, essa é parte da contribuição antropológica que os relatos etnográficos expostos neste capítulo são capazes de evidenciar: como Aparecida agencia a religião. O intuito não é saber o que ela é em si. A boa pergunta é o que ela relaciona e agencia na transição do que foi agrupado como religiosidade, religioso e religiões (Almeida, 2010: 396).

Como já foi dito, meu interesse de pesquisa está em Aparecida como termo específico. Concordo com Talal Asad124 sobre a indefinição da religião, e a considero aqui uma categoria em construção constante, e com referenciais que variam no decorrer do

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“O ascetismo ativo opera dentro do mundo; o ascetismo racionalmente ativo, ao dominar o mundo, busca domesticar o que é da criatura e maligno através do trabalho numa vocação “mundana” (ascetismo do mundo)” (Weber, 1997: 159). 124 “Não pode haver uma definição universal de religião, não apenas porque seus elementos constituintes e suas relações são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela mesma o produto histórico de processos discursivos” (Asad, 2010: 264).

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tempo. Os processos discursivos, evidenciados pela disputa, fazem da religião de Aparecida um produto histórico. Todavia, os discursos que ouvi nunca tratam apenas da religião, mas sim a sua relação a algum outro aspecto. É justamente sobre essa indefinição que se refere o lojista ao afirmar que tudo “é uma coisa só”. Ao tentar delinear as fronteiras, exaustivamente, o que os discursos indicam é que em Aparecida predomina a indefinição. À primeira vista, pode-se afirmar que Aparecida é ambígua, já que seus diferentes significados apontam para interpretações diversas ou mesmo contraditórias. O problema desta percepção é o de que ela carrega juízos de valor, por partir de pressupostos do que seria ou não religioso para além do que foi percebido etnograficamente. Se essa delimitação é um alvo constante, não cabe que eu aponte qual seria o mais ou menos sensato, muito menos construir uma nova demarcação, mas sim entender o que essas delimitações implicam para Aparecida. Dito de outro modo, não se pode afirmar que haja ambiguidade em Aparecida, por seu uso remeter às práticas rituais, comerciais e políticas, justamente porque na etnografia ela transpassa essas categorias. A sua expressão pela cidade-santuário, ou ainda pela Imagem Aparecida, não comporta nenhuma dessas delimitações, que não existem no plano do cotidiano. Essa polivalência pode traçar as fronteiras da religião, mas do mesmo modo traça as fronteiras da economia e da política. Com efeito, essa ação é desejada e planejada por aqueles que dialogaram comigo, mas não deve ser tida como parâmetro da análise antropológica. Qualquer fronteira conceitual que se assuma em Aparecida, entre as três categorias, subverteria a sua especificidade como fenômeno etnográfico. Não é Aparecida que deve ser conceituada através dessas categorias, mas as categorias serem repensadas através do que a etnografia de Aparecida indica: que no seu caso, essas categorias não são três, essa categoria é indefinida. Aparecida é religiãoeconomia-política - sendo irrelevante a ordem das palavras e dos hífens – e é expressa pelos lugares, pelos artefatos e pelas palavras. Aparecida é polivalente e é justamente essa potência que agencia seus espaços, suas imagens e seus sentidos.

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