Aparição de Vergílio Ferreira, um romance que poderia ter escrito Clarice Lispector

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Intervenção no Congresso Língua Portuguesa: Unidade na diversidade UMCS Lublin, 5-6 de novembro 2015

Wojciech Sawala, Universidade Adam Mickiewicz de Poznań

Aparição de Vergílio Ferreira, um romance que poderia ter escrito Clarice Lispector (ou Entre persona e pessoa ou Por que os animais não falam?)

Há vários momentos lispectorianos no romance Aparição de Vergílio Ferreira. Um deles poderia ser aquele quando o menino chamado Bexiguinha reflete sobre como seria se ele fosse galinha, aquele “animal esquisito” com quem tantas vezes empatizam as protagonistas da brasileira. Também poderia se começar por uma das conversas entre o protagonsita principal e sua aluna Sofia, onde a relação mestre-aluna adquire várias e riquíssimas camadas simbólicas. Mas talvez o lugar mais lispectoriano do livro inteiro seja o trecho a seguir: “Senti-me embrutecido, atordoado em todo o corpo. Era espanto e fúria e terror. Era essa indizível e total suspensão em que a absurda evidência nos esmaga pela absoluta impossibilidade. Sei e recuso. Uma violência iluminada incha-me no cérebro, estala-me o crânio como uma massa solar. Pensar, reflectir, como?, como? Apenas vejo, apenas vejo, fascinado, imóvel.” (57)

Queria deter-me um pouco neste trecho. É curioso com que vaga precisão ele poderia se referir às sensações do leitor perante a escrita de Clarice Lispector. Mas, antes de mais nada, devemos dizer que, evidentemente, trata-se de uma aproximação textual do estado de espírito do protagonista. É um estado peculiar, que esquiva descrições e foge às análises. Também não se sobmete a uma identificação clara com um nome concreto. O narrador-protagonista tenta dar conta da sua vivência através da conjunção de tais categorias como espanto, fúria e terror, porém logo ele constata que não se trata bem de uma simples mistura desses sentimentos conhecidos e nomeáveis. Acontece lá algo mais, algo indizível e absurdo. Uma das poucas caraterísticas certas dessa vivência é a sua intensidade. Outra consiste em deslocar o acento desde o pensar e compreender até o ver e sentir com o corpo. Estamos, portanto, assistindo à uma regonfiguração do aparato cognitivo que se afasta do racional para se voltar ao sensual. Estamos assistindo, para empregar o termo de Benedito Nunes, a uma epifania. Ou para empregar o termo da própria Clarice, a um estado de graça. Na crônica do Jornal do Brasil do dia 6 de abril de 1968 ela escreveu: “O estado de graça de que falo não é usado para nada. É como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existe. Nesse estado (...) sem esforço, sabe-se.” (124) Apenas nada poderia se aproximar mais do espírito contido na Aparição, onde o grande escritor português medita sobre a “evidência ácida do milagre que sou”.

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Um dos mais perfeitos exemplos desse estado na escrita de Clarice podemos o encontrar em A maçã no escuro. O protagonista da obra, acha-se no meio dum descampado no que se descreve assim: “Não sei mais falar, disse então para o passarinho (...) “Perdi a linguagem dos outros”, repetiu então bem devagar (...) Estava serenamente orgulhoso, com os olhos claros e satisfeitos. | Então o homem se sentou numa pedra, ereto, solene, vazio (...). Porque alguma coisa estava lhe acontecendo. E era alguma coisa com um significado. | Embora não houvesse um sinónimo para essa coisa que estava acontecendo. | (...) Vagamente ele conhecia isso. No seu antigo apartamento às vezes tivera esse incômodo misturado com prazer e atenção (...). Nunca o sentira, é verdade, com essa nitidez final do descampado. No que era ajudado pela própria sombra que o delimitava sem equívocos no chão. Aquela coisa que ele estava sentindo devia ser, em última análise, apenas ele mesmo.” (32) A revelação que observamos é a-lógica. Ela se produz fora do logos no sentido em que esse termo encerra o raciocínio e a palavra: a propriedade humana de pensar com linguagem. O estado de Martim é, na verdade, consequência de uma prolongada experiência, também no sentido de experimento, que ele tem executado nas últimas duas semanas. A experiencia que consiste em recusar a linguagem e o pensamento lógico. O romance introduz a figura de Martim, no meio de sua, bastante abstrata, fuga, na peregrinação pelo descampado que vai marcando o processo da animalização do protagonista. Ele desce pela janela “como um macaco”, se torna “mais indefeso que um coelho”, “atento e inutilmente feroz, com as mãos avançadas para o ataque” e guia-o “a suavidade dos brutos, a mesma que faz com que um bicho ande bonito.” Ao mesmo tempo vai-se operando a progressiva anulação do pensamento lógico a medida que o protagonista abraça um modo corporal, direto, poderia dizer-se, orgánico, de realcionar-se com o entorno. Afinal, “ em duas semanas aprendera como é que um ser não pensa e não se mexe e no entanto está todo ali.” Esse “no entanto está todo ali” sintetiza a vivência central dessa fuga. Mas isso só pode ser atingido graças a deixar de falar e deixar de pensar. O gesto de deixar de falar e deixar de pensar é muito importante para Lispector. São etapas de um experimento que traz à mente as instruções dos ascetas da mística espanhola do século XVI, quem tentavam descrever o processo de se aproximar de Deus por meio de um gradado procedimento espiritual, que passava fundamentalmente pelo silêncio. Baste evocar a figura de Santa Teresa de Ávila e o estabelecimento das ordens contemplativas. Promovia-se lá a oração individual em silêncio como meio mais certeiro para atingir as “moradas” mais claras e puras da alma, mais próximas de Deus, que por sua natureza constitui algo inexprímivel. Uma associação parecida deve ter tido o já referido crítico de Clarice Bendito Nunes quando punha como epígrafe do seu trabalho dedicado a ela O drama da linguagem, a seguinte cita de Fray Luis de León:

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“No alcanza la lengua al corazón, ni se puede decir tanto como se siente, y aun esto que se puede, no se dice todo, sino a partes... y la pasión con su fuerza y con increíble presteza le arrebata la lengua y el corazón de un afecto en otro: y de aquí son sus razones cortadas y llenas de obscuridad.”

O aspeto místico da escrita de Clarice torna-se surprendentemente próximo das preocupações do protagonista de Aparição, quando ele confessa: “E, todavia, como é difícil explicar-me! Há no homem o dom perverso da banalização. Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras, se queremos pelo menos que os outros sintam connosco. Mas as palavras são pedras. Toda a manhã lutei não apenas com elas para me exprimir, mas ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidência. A luz viva nas frestas da janela, o rumor da casa e da rua, a minha instalação nas coisas imediatas mineralizavam-me, embruteciam-me. Tinha o meu cérebro estável como uma pedra esquadrada, estava esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para reparar a minha evidência necessitava de um estado de graça. Como os místicos1 em certas horas, eu sentia-me em secura. Fechei os olhos raivosamente e quis ver.” (38)

Assinalei há pouco a questão da animalização do protagonista de A maçã no escuro como caminho à epifania ou ao estado de graça. Não é casual pois o ser animal é para Clarice uma das maiores preocupações literárias, aliás ela escreveu algumas crônicas magistrais dedicadas explícitamente à animalidade, onde confessou entre outras coisas: “Não ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias.” Mas interessa ainda mais o que escreveu na já referida crônica dedicada à definição do estado de graça. Lemos lá: “Não sei por quê, mas acho que os animais entram com mais freqência na graça de existir do que os humanos. Só que eles não sabem, e os humanos percebem. Os humanos têm obstáculos que não dificultam a vida dos animais, como raciocínio, lógica, compreensão2. Enquanto os animais têm a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto.” Eis a tragédia do ser pensante: só pode atingir o estado de graça , franquear as suas limitações, desistindo do único instrumento que lhe permitiria acompanhar e se dar conta desse franqueamento. Esse é o sentido da experiência, do experimento de Martim que consiste em deixar de falar e depois deixar de pensar. Nesse momento acho oportuno introduzir a oposição entre duas palavras: persona e pessoa.

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Aqui diverge da versão de Clarice: “Não é nem de longe o que mal imagino deva ser o estado de graça dos santos. Esse estado jamais conheci e nem sequer consigo adivinhá-lo. É apenas o estado de graça de uma pessoa comum que de súbito se torna totalmente real porque é comum e humana e reconhecível.” 2 Será que sejam “dispositivos” no sentido de Agamben? Dispositivos convertidos em máquinas? Na concepção do filósofo italiano, a realidade pode se dividir em duas partes: a vida animada e os dispositivos. No contato entre os seres vivos e os dispositivos que eles usam pode surgir a subjetividade. Mas também pode ocorrer a dessubjetivização. Talvez a concepção de Agamben esteja perto da de Clarice: o uso dos dispositivos como ato trágico: serve mas separa. O dispositivo – fruto proibido.

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Persona aparece pelo menos duas vezes nos escritos de Clarice. A primeira é na crónica intitulada justamente assim: Persona3. Ela faz referência ao filme de Ingmar Bergman que acho que interessa referir não só pelas razões (cuja complexidade não caberia nesta breve exposição), que explicita Clarice no seu pequeno texto. O filme narra, por excelência, o gesto de deixar de falar. A protagonista, atriz Elisabet Vogler cala no meio do espetáculo e decide de lá em diante permanecer muda. O momento mais lispectoriano do filme é a diagnose da médica. Cito imperfeitamente: “Eu entendo você muito bem. O seu fatal desejo de ser. Não fingir mas ser. Em todo momento consciente e atenta. (...) Cada palavra é mentira, cada gesto é falso, todo sorriso é apenas uma careta. (...) Então você não quer mover, não quer falar. Pelo menos você não mente.” Na luz dessa citação não parece casual a escolha da palavra persona numa muito importante frase de A paixão segundo G.H. Quando sua protagonista fica sentada de frente à uma barata e observa-a prolongadamente, num instante ela diz: “Até o momento de ver a barata eu sempre havia chamado com algum nome o que eu estivesse vivendo, senão não me salvaria. Para escapar do neutro, eu há muito havia abandonado o ser pela persona, pela máscara humana. Ao me ter humanizado, eu me havia livrado do deserto.” (73)

Persona, equivale por tanto, à construção lingüística da máscara humana. Persona é, como poderiamos dizer em termos de Giorgio Agamben, a subjetividade que emerge no contato do ser vivo com os dispositivos. Os dispositivos otorgam subjetividade mas também separam o ser vivo da vida nua. Os dispositivos neste caso são os que Clarice enumerou na crónica sobre o estado de graça: raciocínio, lógica, compreensão. O devir persona é portanto uma metamorfose trágica. A adquisição da fala poderia ver-se nessa perspetiva como a consumição do fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal. O começo do pensamento lógico e o surgimento da linguagem significa o começo da história do ser pensante como sujeito mas ao mesmo tempo significa o degredo do paraíso. O degredo da condição animal. Queria introduzir agora o termo oposto à persona, aquele de pessoa e logo dizer que Fernando Pessoa não tem nada a ver com tudo isso. Antes bem, hemos de nos dirigir novamente à Vergílio Ferreira. Em Aparição encontramos várias passagens em que o termo pessoa é mesmo central. Um deles é a conversa do protagonista principal com o rapaz apelidado Bexiguinha. Este último postula vários experimentos, que poderiam interessar no contexto de nossa análise mas refiro apenas este:

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uma crónica brilhante em que se enxergam ecos ou avisos de tantas obras magnas, como A imitação da rosa, Os restos de caranaval ou A paixào segundo G.H.

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“Fazer assim: pôr-me bem no centro de mim e ver-me, sentir-me bem de dentro para fora, descobrir a pessoa que está em mim.” Mas a pessoa não só está em seres humanos. Aqui retorna a questão animal pois o protagonista narra uma história muito importante sobre um cachorro que outrora tivera e que lhe inspira reflexões sobre as diversas espécies. “Sempre a vida me fascinou, sim. Mas nas vibráteis lagartixas, cujas caudas cortadas remexem ainda frenéticas, nas vívidas doninhas, nos ratos estrepitosos, nos pássaros, eu não sentia senão confusamente uma forma total de vida, a mesma força universal repartida pelos bichos, esse modo de ser em que o começo e o fim não são um limite mas elos de uma continuidade. Ora no cão eu pude sentir obscuramente uma “pessoa”.”

Mais tarde, quando já se torna evidente que o bicho vai morrer, o protogonista perguntará: “Como podia o cão morrer? Como podia morrer a sua pessoa?”4 A tensão entre pessoa e persona é a tensão entre humanidade e animalidade entendidas de forma nada ortodoxa. Ela poderia se compreender melhor se lembrarmos do famoso conto de Kafka “Um relatório para a Academia”. A obra narra a história do macaco Peter, quem aprendera a ser humano. Ele aprendeu a se comportar como ser humano e a falar como um ser humano. No entanto essa aprendizagem teve como consequência a total separação de Peter do seu passado animal. Ele o esqueceu. O caso do macaco falante certifica que um sujeito só pode tornar-se humano recusando a própria animalidade, a própria pessoa. Pois a racionalidade humana é certamente uma instância absolutista, que desterra com violência outros modos de se aproximar da realidade. Só a grande custo é possivel subverter a sua hegemonia. O macaco Peter na sua narração apresenta a imagem da grande porta que no início o separava do seu passado animal. Ela foi-se tornando cada vez mais pequena até se convertir numa passagem estreitíssima pela qual apenas passa um soprinho delicado que enfresca os calcanheres do ex-macaco. A nostalgia dos protagonistas de Vergílio Ferreira e de Clarice é justamente dar volta atrás através dessa ínfima passagem, esse é também o sentido do gesto de Elisabet Vogler, o gesto “dos místicos a certas horas”: o esforço por deixar de falar e deixar de pensar para tornar-se pessoa em vez de persona. Para concluir mudando um pouco de enfoque, e fazendo honra à ideia central do congresso, talvez possa se reparar que um dos méritos da literatura lusófona do século XX é o mesmo que da própria língua portuguesa: aquele de transformar persona em pessoa.

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Lispector vai narrar a sua história de cão também. Na crónica “Bichos” ela vai escrever sobre o cachorro Dilermando que adquiriu em Nápoles. A “cara” dele lembra a Clarice a de um “mulato-malandro” brasileiro. Ela não fala em focinho mas em cara. Ela de modo muito semelhante a Ferreira pressente no cão uma pessoa. A escritora polonesa Olga Tokarczuk, por sua parte, escreveu em “O momento do urso” que sempre presentira que as caras dos animais fossem apenas máscaras que ocultam uma outra vida, vida pessoal.

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