Apesar da pena: execução penal e redução de danos [FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna]

May 30, 2017 | Autor: D. Fonseca Fernandes | Categoria: Criminology, Punishment and Prisons, Prisons, Criminologia, Execução Penal, Criminología Crítica
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PANÓPTICA Apesar da pena: execução penal e redução de danos Daniel Fonseca Fernandes1 Lucas Vianna Matos2 Recebido em 4.4.2016 Aprovado em 12.5.2016

Resumo: Este trabalho propõe uma reflexão teórica em torno do direito de execução penal, compreendendo-o enquanto conjunto de normas, conceitos e práticas que orientam a imposição da pena de prisão e que, a partir de uma concepção agnóstica e negativa da pena, deve funcionar como elemento limitador dos seus efeitos deletérios. Pensando a execução penal a partir da violência exacerbada do sistema prisional brasileiro, o artigo articula uma crítica do direito de execução penal, analisando pontos problemáticos deste campo jurídico no Brasil, e empreendendo esforço teórico para não cair na armadilha legitimante das ideologias “re”. Objetiva-se, assim, abrir uma fissura no discurso jurídico hegemônico, possibilitando que a execução penal seja pensada a partir da lógica de redução dos danos intrínsecos à experiência prisional.

Abstract: This paper proposes a theoretical reflection about sentence execution and its procedure, understanding it as a set of standards, concepts and practices that guide the imposition of a prison sentence and that, from an agnostic and negative conception of penalty, must function as a limiting factor of the its harmful effects. This study analyzes the sentence execution from the violence of brazilian penitentiary system, articulating a critique of the process of sentence execution, identifying trouble spots of this legal field in Brazil, and making a theoretical effort to don’t fall into the trap of legitimating ideologies "re". The purpose is thus open a crack in the hegemonic legal discourse, enabling the sentence executing process to be thought from the perspective of reduction of the intrinsic damages in the prison experience.

Palavras-chave: criminologia crítica; Keywords: critical criminology; agnostic concepção agnóstica da pena; execução conception of penalty; sentence execution penal. process. 1. Introdução A conjuntura da execução penal no Brasil revela um quadro grave de violação sistemática de direitos. De um lado, observa-se um sistema prisional no qual os efeitos

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Aluno Especial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected] 2 Mestrando em Direito Penal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected] FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA deletérios sobre as vítimas da experiência carcerária são intensificados diante dos níveis extraordinários de violência física e simbólica que marcam o seu desenvolvimento histórico. Por outro lado, o discurso jurídico-penal parece paralisado diante desse quadro, incapaz de assumir responsabilidades e propor alternativas. Existe certo consenso discursivo no Brasil em torno da execução penal. O discurso jurídico costuma utilizar a lei nº 7.220/84, Lei de Execução Penal (LEP), para exemplificar jargão muito comum em nosso país: a ideia de que o Brasil tem boas leis, mas que por diversos motivos – ineficiência da administração, falta de vontade política, corrupção etc. – não são devidamente aplicadas. Nessa toada, multiplicam-se os discursos de que o Brasil tem uma lei de execução penal avançada, moderna e humana, que – por uma fatalidade qualquer – não é aplicada. O discurso jurídico-penal, assim, evita o debate em torno da execução, desprezando o fato de que a questão prisional é, especialmente na nossa margem, um dos principais eixos de deslegitimação do sistema penal. Este discurso jurídico hegemônico, reticente em enfrentar o grave processo da deslegitimação, assume, na linguagem proposta por Zaffaroni (2001, p. 11/45), uma atitude que evita o enfrentamento do problema e a assunção de responsabilidades, escorando-se na noção de que a legislação é “avançada”, como verdadeiro mecanismo de fuga. Neste contexto, há outro discurso jurídico, que pretende impor ao campo da criminologia e do direito penal crítico uma falsa dicotomia, objetivando desmoralizar a crítica deslegitimadora da prisão. A tese central é que diante da situação do sistema prisional não há espaço para a crítica estrutural à pena de prisão. Opera-se, assim, uma tradução para o campo penal do mito neoliberal do “fim da história”. Este discurso acusa os setores críticos de não oferecerem caminhos concretos para superação da dramática situação do sistema prisional, encarando-o como obstáculo a medidas como a construção de novos presídios, intensificação do uso de monitoramento eletrônico e, especialmente, iniciativas de privatização de presídios. Entendemos que o reconhecimento da deslegitimação da pena de prisão é um imperativo ético-político, diante da empiricamente demonstrada incompatibilidade entre seus discursos legitimantes e o seu desempenho histórico real. O discurso deslegitimador, todavia, também por um imperativo ético não é imobilista, nem tampouco idealista. Deve ser crítico e propositivo, deslegitimador do cárcere e orientado por uma utopia abolicionista, em sentido positivo, mas disputada a partir da reforma progressiva e permanente do sistema prisional, FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA sempre atento às possibilidades reais de cada conjuntura histórica (MATHIESEN, 2003, p.

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88). Na perspectiva de buscar alternativas à esta (falsa) dicotomia e assumindo a responsabilidade diante do atual quadro da nossa execução penal, é que este trabalho se apresenta como uma aproximação ainda inicial em torno do tema, no sentido do desenvolvimento de uma execução penal como mecanismo político-criminal e jurídico-penal de redução dos danos intrínsecos à experiência prisional. A execução penal e seu processo só se justificam quando colocados como obstáculos aos efeitos perversos da pena, na contramão da institucionalização do sujeito, sem lhe conferir, no entanto, qualquer efeito positivo. A adoção de uma concepção negativa e agnóstica da pena, no campo da execução penal, deste modo, parece se realizar a partir de uma dupla perspectiva: necessidade de incorporação radical das garantias jurídicas formais ao campo da execução (afastando-se do obscuro direito penitenciário) e propositura de alternativas que reduzam os efeitos negativos da pena, buscando reduzir a incidência das inevitáveis consequências prisionais.

2. Criminologia e deslegitimação do sistema penal

2.1. Pensar com a criminologia Para compreender a deslegitimação do sistema penal e do cárcere, é preciso ter como ponto de partida o instrumental oferecido pela produção do saber criminológico e a problematização das teorias da pena, tidas como suporte discursivo deste sistema. Sem pretender realizar um panorama histórico das diversas criminologias e suas implicações, este estudo tem como marco teórico sua vertente crítica e as desconstruções radicais de autores abolicionistas. Deste modo, a criminologia é encarada como “ferramenta de leitura da realidade”, pelo que pretendemos “pensar com a criminologia”, sem realizar a mera descrição de suas teorias (CARVALHO, S., 2013, p. 41/45). Reconhecemos, sem medo das desqualificações que buscam tratar a produção crítica enquanto ideológica, que a criminologia apresenta sempre conteúdo político e envolve a disputa por posições acerca do sistema penal e suas consequências. Deste modo, rejeitamos a criminologia enquanto “regulador apolítico, técnico-científico” (RAUTER, 2003, p. 58). FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

PANÓPTICA Portanto, para articular um pensamento criminológico crítico, com intuito de propor e induzir mudanças no sistema penal, em especial no campo da execução penal no Brasil, tomamos como ponto de partida três eixos de premissas: a criminologia crítica, as rupturas radicais do abolicionismo penal e o realismo marginal latinoamericano. O primeiro eixo de premissas diz respeito aos deslocamentos produzidos pela criminologia crítica, com base na obra de Alessandro Baratta. Partindo das rupturas geradas pelo interacionismo simbólico e pela obra de Marx, a criminologia crítica contrapõe-se à criminologia positivista de enfoque biopsicológico, através de dois importantes processos: deslocamento do enfoque teórico do autor para as condições objetivas (estruturais e funcionais) e deslocamento da busca pelas causas do crime para análise de mecanismos institucionais e sociais que aplicam e criam as definições de criminalidade e processos de criminalização (BARATTA, 2002, p. 160/161). O crime é desnaturalizado, destacando-se a seletividade problemática de bens protegidos e pessoas atingidas pelo sistema penal. O segundo eixo, consiste na incorporação das críticas de autores abolicionistas como Thomas Mathiesen, Louk Hulsman, Angela Davis e Nils Christie. O que é de central na obra destes autores é a compreensão de que a justiça penal não é resposta legítima para situações problemáticas e tem característica de problema público (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 157). Deste modo, não é mecanismo apto à resolução de conflitos, mas se apresenta como causa de tantos outros, como desagregação de células familiares, perda de laços afetivos, redução do espaço sociabilidade, submissão a intenso controle policial e exposição à violência de grupos diversos que disputam os espaços de poder nas instituições carcerárias. A prisão – pena que ocupa posição central na grande maioria dos sistemas penais (formais) contemporâneos – se apresenta como um universo artificial onde tudo é negativo, se apresentando como um sofrimento estéril, não criativo, desprovido de sentido (HULSMAN; CELIS, 1993, p. 62). No currículo oculto do sistema penal, nega-se legitimidade a uma série de alternativas que deveriam ser consideradas para resolução de conflitos. Através do discurso contra a arbitrariedade das decisões, o sistema barra soluções alternativas (CHRISTIE, 1982, p. 50) e nega as existências variáveis na vida social. A vigência do sistema penal se apresenta como bloqueio ao questionamento à necessidade de punição, atrelada especialmente ao cárcere. O discurso jurídico penal é dotado de certo fatalismo punitivo. As punições, além de serem legitimadas e pré-definidas para FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA situações diversas, são tidas como inevitáveis (DAVIS, 2003, p. 09). No âmbito do judiciário e em meio aos próprios pesquisadores, passa-se a pressupor a existência da pena. O terceiro eixo de premissas refere-se ao realismo marginal latinoamericano de Zaffaroni (2001, p. 161/166). Sua doutrina se apresenta como realista na medida em que se aproxima dos fenômenos do sistema penal, reconhecendo uma “existência do material do mundo independente dos atos de conhecimento”, recusando qualquer modelo ideal na busca de uma “práxis redutora de violência” e elencando a vida humana como prioridade. O pensamento deste autor apresenta-se como marginal na medida em que se situa na periferia dos países centrais, estando com eles em relação de dependência (econômica, epistemológica, etc.). Zaffaroni (2001, p. 17/19) refere-se à utópica legitimidade do sistema penal como uma característica outorgada por seu próprio discurso. Este discurso jurídico-penal, na visão do autor, para que fosse considerado legítimo deveria se apresentar como efetivamente racional. A racionalidade, tratada por Zaffaroni, exige coerência interna (com substrato antropológico, não apenas lógico-formal), e valor de verdade quanto à operatividade social, sob um duplo aspecto: valorização do discurso em função da experiência social (adequação do fim aos meios ou “vir-a-ser possível do ser”) e funcionamento conforme suas pautas declaradas. O discurso legitimador é perverso, pois falseia o real exercício violador e genocida do poder punitivo. Não raro a crise de legitimidade do sistema penal é absorvida por instâncias judiciárias e legislativas como demanda por mais controle e disciplina em determinados grupos sociais (MATHIESEN, 1990, p. 14). A própria inadequação do sistema é ressignificada, fazendo parecer que os problemas gerados e não resolvidos decorrem de um problema conjuntural operacional, solucionável através do seu incremento. Esta característica é facilmente notada no caso da execução penal no Brasil, onde não raro se apresentam discursos por mais pena e mais prisões como solução para problemas de violência urbana e para a própria precariedade das unidades prisionais. A partir destes referenciais teóricos e de outros autores de orientação crítica, busca-se expor elementos característicos do sistema penal que expõem sua falta de legitimidade, inadequação e necessidade de superação, seja com práticas de longo alcance, que visem substituir sua estrutura, seja com medidas de contenção e alívio das violências penais. FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA 2.2. Teorias legitimantes e concepção agnóstica da pena Entender a deslegitimação do sistema penal, a partir da ausência da racionalidade de seu discurso, também implica rejeitar as teorias justificadoras da pena. Para Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar (2011, p. 115/116) as teorias da pena podem ser divididas a partir de suas funções manifestas: (a) pretensão meramente retributiva sobre a pessoa condenada por prática de delito, as conhecidas teorias absolutas; (b) pretensão de que o valor da criminalização atue sobre pessoas que não foram condenadas pela prática de delito, abarcadas aqui as teorias da prevenção geral, negativas (dissuasórias) e positivas (reforçadoras); (c) pretensão de que atue sobre as pessoas condenadas pela prática de delito, aqui colocadas as teorias da prevenção especial, que se dividem em negativas (neutralizantes) e positivas (das ideologias re). Diante do objeto desse trabalho, as teorias que atribuem a função de prevenção especial à pena merecem destaque, pois, de uma forma geral, direcionam o foco do sistema penal ao indivíduo condenado. As teorias de prevenção especial positiva sustentam o discurso de que a pena destina-se a melhorar o indivíduo, apresentam-na como um bem para quem a recebe, tanto em suas versões morais e religiosas como naquelas influenciadas pelo discurso médico. O correcionalismo é sua marca determinante. A partir desta concepção da pena, o cárcere assume posição central no sistema discursivo do cumprimento dos objetivos declarados do sistema penal. A prisão é tida como espaço para recuperação de pessoas apenadas apesar de todos os seus efeitos degradantes, potencializadores de violência e redutores de sociabilidade, altamente nocivos aos indivíduos e à própria coletividade. O conjunto das chamadas ideologias re, que sustentam a possibilidade de ressocialização, reeducação, reinserção, reabilitação, incorporam um discurso científico e desenvolvem técnicas destinadas a cumprir a prevenção especial positiva. O controle se amplia de forma exponencial, com enfoque aparentemente humanista e isento, apolítico, reforçando a sensação de legitimidade. As teorias de prevenção especial negativa reconhecem que a pena é um mal para quem vai sofrê-la, mas que é necessária para se preservar o meio social. É a consagração da neutralização do indivíduo, de sua exclusão em defesa da sociedade. A metáfora do organismo social surge com mais força, expondo a necessidade de eliminação de FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA determinadas “células” diante da incapacidade de recuperá-las. Deste modo, estas teorias ontologizam o criminoso, remetendo às antigas e ainda vivas teorias de criminosos natos, dando suporte à ação violenta e excludente do sistema penal. Cumpre destacar ainda, com Alessandro Baratta (2002, p. 191), que, em muitos casos, adota-se uma teoria polifuncional da pena, em que suas funções declaradas são combinadas, tendo, atualmente, especial enfoque discursivo na reeducação. Tais “teorias combinatórias”, buscando conjugar funções “diversas e incompatíveis”, são marcadas pela simultaneidade (funções que ocorrem ao mesmo tempo) e alternatividade funcional (se não cumpre uma das funções, cumpre outra) e ocupam posição central em grande parte das legislações atuais (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2011, p. 140/141). No Brasil, este caráter polifuncional é marcante tanto no Código Penal quanto na Lei de Execução Penal. O sistema penal e suas manifestações de poder são encarados neste trabalho como um fenômeno social, sendo necessário articular o maquinário jurídico e a concepção da pena para construir um pensamento não legitimante, que busque esvaziar este sistema e diminuir seu potencial destrutivo. Salo de Carvalho (2013, p. 267) sustenta que a esquizofrenia secular da busca por legitimar o ilegítimo deve ser deixada de lado, adotando-se uma concepção agnóstica da pena, nos termos estabelecidos por Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar (2011, p. 99): “[...] a pena é uma coerção, que impõe uma privação de direitos ou uma dor, mas não repara nem restitui, nem tampouco detém lesões em curso ou neutraliza perigos iminentes. O conceito assim enunciado é obtido por exclusão: a pena é um exercício de poder que não tem função reparadora ou restitutiva nem é coerção administrativa direta. Trata-se, sim, de uma coerção que impõe privação de direitos ou dor, mas que não corresponde a outros modelos de solução ou prevenção de conflitos [...]”. Na tentativa de construir um conceito jurídico (sem pretensão de definir sua essência) que sirva para limitar o poder do sistema penal, os referidos autores enunciam a concepção negativa e agnóstica da pena. Esta concepção expõe, ao menos, a impossibilidade de generalização das teorias tradicionais. Trata-se de uma concepção negativa, obtida por exclusão e não reconhecimento, diante de limites metodológicos ou ético-políticos, de qualquer função positiva à pena; e agnóstica, por confessar não conhecer todas as suas funções.

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PANÓPTICA A adoção de uma concepção agnóstica e negativa da pena é compatível, a longo prazo, com um projeto de crítica radical ao sistema penal, possibilitando a emergência de práticas não legitimantes. O poder punitivo é um fato e a disputa crítica do direito tem que se contrapor às circunstâncias reais na medida em que se pretende sua superação.

3. Execução penal da redução de danos

3.1. Lei de Execução Penal e anacronismo criminológico O controle social realizado através do sistema punitivo, no Brasil, encontra-se marcado por forte herança positivista e etiológica, que atribui sentidos ontológicos ao crime e ao criminoso. A tradução latino-americana dos pensadores europeus da criminologia positiva, como Lombroso e Ferri, não foi literal, implicando, a partir do marco conceitual de Sozzo (2014, p. 07/94), um conjunto de adoções/recusas/complementações que, no caso brasileiro, deram origem a interpretações sui generis a respeito da miscigenação e de sua interação com fatores morais e climáticos, a partir da cisão da sociedade em uma parcela branca e civilizada e outra indígena e negra. As concepções etiológicas e os diversos positivismos apresentam-se como elemento de permanência histórica nas práticas e discursos de controle social no Brasil. Na compreensão de Vera Malaguti Batista (2012, p. 41), o positivismo é “uma grande permanência no pensamento social brasileiro”. Diante das variadas manifestações e amplo espectro de incidência – em especial entre pensadores conservadores, mas também em alguns setores da esquerda - a autora vem pensando o positivismo não como uma escola, mas como cultura. As formas de manifestações deste paradigma cultural e científico, no campo criminológico, foram modificadas, recriadas e adaptadas em cada período histórico. O discurso criminológico positivista, a partir do século XIX, sustenta a necessidade de uma pena eficiente e de se promover a reforma moral do preso, ainda que a maioria dos cárceres brasileiros tenha permanecido como verdadeiros depósitos de pessoas. O anacronismo criminológico é evidente nos discursos e nas práticas penais no Brasil. O paradigma positivista da compreensão do crime, que lhe confere caráter de anormalidade, ainda não foi superado pelas práticas penitenciárias, na medida em que se busca, ao menos

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PANÓPTICA discursivamente, recuperar a pessoa condenada através de programas de reabilitação ou

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ressocialização (SÁ, 2007, p. 61). Os discursos criminológicos, próximos às práticas penitenciárias, fortalecidos por teorias de defesa social, são apresentados como teorias humanizadoras, em oposição às retributivistas. A busca pela realização dos objetivos das ideologias re é tida como meta humanitária, em benefício da pessoa que sofre a pena. Nas teorias polifuncionais da pena, a prevenção especial positiva permanece como elemento discursivo marcante, buscando dar legitimidade ao cárcere através do correcionalismo. A Lei de Execução Penal (1984) é o primeiro instrumento legal a regular a execução penal do Brasil, representando algum avanço em matéria penitenciária, uma vez que jurisdicionaliza a execução penal, além de positivar o princípio da legalidade em sede executiva. Contudo, um olhar mais cuidadoso sobre os dispositivos da lei desvela uma orientação criminológica anacrônica, que passeia entre um positivismo periculosista e correcionalista. Nas palavras de Roig (2005, p. 137/138), a lei, adotando um modelo neodefensivista, consagra a “ressocialização do condenado como objetivo anunciado da pena, reincorporando a noção de periculosidade do agente e primando pela ideia de ‘tratamento do delinquente’”. A permanência do entulho positivista na legislação contemporânea se faz sentir, por exemplo, na permanência de exames de avaliação psicossocial, herdeiros do extinto EVCP (Exame para Verificação de Cessação de Periculosidade), conforme aponta Rauter (2003, p. 85). Apesar das críticas contundentes desde a elaboração do projeto da LEP, no início da década de oitenta, os exames criminológicos ainda fazem parte do cotidiano da execução penal no Brasil e seguem sendo muito úteis ao respaldar de modo “neutro” e científico” as decisões defensivistas dos magistrados da execução penal. Estes exames contribuem para que direitos subjetivos sejam negados e os “inimigos” permaneçam encarcerados apesar de cumprido o percentual legal exigido para a progressão de regime ou concessão da liberdade condicional.

Apresentam-se

como

um

instrumento

voltado

a

homogeneizar

os

“recuperandos”, formatar a sua individualidade e condicionar direitos subjetivos à adoção – ainda que retórica – de um determinado padrão familiar, comportamental e cultural considerado recomendável.

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PANÓPTICA A Lei de Execução Penal3 e suas repetições espalhadas por diversos estatutos penitenciários dos estados brasileiros, como o Estatuto Penitenciário do Estado da Bahia4, preservam a existência do exame criminológico e seguem vinculando a efetivação de direitos das pessoas presas ao resultado destas avaliações. A perspectiva correcionalista, deslegitimada nos países centrais, a partir da decadência do modelo penal do welfare, ainda orienta a as punições e benefícios e os mecanismos disciplinares, além de sustentar as ideologias “re” como “teorias” de relegitimação do sistema prisional. A observação de expressões utilizadas na legislação ajuda a compreender o modelo de comportamento exigido pelo sistema. Roig (2005, p. 138/159) chama atenção para o fato de que a metade dos “deveres” do preso se relacionam com o tema disciplina, exaltados os valores da “ordem”. A obscura ideia de “obediência”, presente em diversos dispositivos, assim como o termo “submissão”, denota o caráter autoritário da nossa ideologia penitenciária. A partir desta realidade da execução penal no Brasil, mostra-se urgente a adoção de uma práxis alternativa. Nesse sentido, a perspectiva redutora de danos maneja os institutos da execução penal a partir da deslegitimação da prisão, compreendendo a pena como fato político e o maquinário judiciário como mecanismo que busca diminuir suas violências estruturais. Assim, seguindo a linha de autores que já trabalham com a perspectiva crítica e redutora de danos da execução e do processo penal5, pretendemos apresentar ainda em caráter preliminar, algumas observações sobre a execução penal, repensando suas práticas, a partir de diferentes eixos: criminológico e de direito material e processual.

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Art. 8º. O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução. 4 Art. 25. O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução. 5 ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva, 2014; CHIES, Luiz Antônio Bogo. Execução Penal Crítica: Tópicos Preliminares. Pelotas: Educat, 1999; CARVALHO, Salo de (org.). Crítica à execução penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; DUCLERC, Elmir. Por uma teoria do processo penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA 3.2. Horizontes criminológicos para uma perspectiva de execução penal redutora de danos Considerando o referencial teórico adotado, é essencial ter em vista dois pressupostos a respeito da prisão. O primeiro diz respeito à centralidade do cárcere no sistema penal formal, sendo a prisão a pena por excelência do aparato jurídico-penal. Esta qualidade, porém, não encobre o fato de que a prisão apresenta-se como a ponta do iceberg (BARATTA, 2002, p. 167) do sistema punitivo de controle sendo marcada pelo caráter de continuidade, significando, via de regra, um processo secundário de marginalização (BARATTA, 2004, p. 381). Portanto, a prisão não inaugura a exclusão violenta pelo sistema penal, por isso sua análise não dá conta, por exemplo, do genocídio em ato nos sistemas penais subterrâneos (ZAFFARONI; BATISTA; ALAGIA; SLOKAR, 2011, p. 53), mas problematizar a prisão e o cumprimento da pena segue sendo tarefa urgente do pensamento crítico engajado na redução das violências penais. O segundo pressuposto refere-se à adoção de uma lógica estritamente redutora de danos, segundo a qual qualquer possível benefício à pessoa submetida à execução penal se dá apesar da pena e do cárcere. A execução penal é encarada como mecanismo jurídico de mitigação dos efeitos negativos gerados pela imposição de pena e encarceramento. O aparato jurídico da execução penal, portanto, não deve ser a consequência natural ou realização da pena, mas seu oposto, sua antítese. Adoção de uma postura redutora de danos implica total abandono das ideologias re, que baseiam as teorias da pena de prevenção especial positiva. Toda a gramática correcionalista e etiológica está desligada de um projeto redutor. Deste modo, não se pretende construir uma prática voltada a recuperar, ressocializar, reintegrar, reeducar, reinserir ou reabilitar a pessoa submetida à pena, mas construir uma práxis redutora que: (a) limite os prejuízos das privações penais sobre o indivíduo e a comunidade; (b) se oponha ao processo contínuo de marginalização e exclusão; (c) coloque à disposição dos sujeitos apenados uma série de serviços que devem ser garantidos a todo cidadão.

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PANÓPTICA 3.2.1. A necessária abertura do cárcere Para realizar uma crítica criminológica consistente à execução penal, é necessário problematizar as principais noções a respeito dos efeitos da prisão e de sua relação com a sociedade em geral. A sociologia desenvolvida a partir dos estudos da Escola Sociológica de Chicago muda definitivamente os rumos da criminologia, concebendo novas maneiras de analisar e compreender os fenômenos em torno do desvio e do controle social. Conforme apontam Adorno e Dias (2013, p. 03), a partir dos 1940, inicia-se uma produção acadêmica considerável acerca do universo prisional. Estes estudos iniciais orientam-se centralmente pela noção de ruptura entre sociedade e ambiente prisional. A prisão, desta forma, inauguraria um universo cultural distinto, com valores e regras sociais próprios. No que tange aos estudos criminológicos sobre a prisão, Dias e Adorno (2013, p. 20) entendem que há certo esgotamento no modelo teórico que concebe uma ruptura entre prisão e sociedade em geral, sendo necessário estar atento às relações interpessoais, dinâmicas e fluxos (de informações, bens, mercadorias, pessoas, etc.) dentro e fora das prisões. Neste sentido, é importante ressaltar, que entre a cultura dos indivíduos submetidos ao encarceramento e o mundo “livre”, extramuros, há uma relação muito mais marcada pela continuidade do que de ruptura (BRAGA, 2012, p. 45). Reconhecendo a complexidade inerente à questão penitenciária – caracterizada pelo entrelaçamento dos elementos que a compõem (CHIES, 2014, p. 39/40), parte-se do pressuposto de que não há uma ruptura cultural drástica entre o interior da prisão e a sociedade. Entretanto, pretende-se trabalhar a ideia da prisão como instituição total e sua tendência ao fechamento, nos termos definidos por Goffman (1974, p. 11), enquanto instituição que abriga e condiciona, em certa medida, o cotidiano e as atividades dos indivíduos separados da sociedade. O caráter absoluto da expressão apresentada por Goffman, não se apresenta adequado às permeabilidades da vida no cárcere, contudo sua descrição mais detalhada traz elementos que podem ser importantes na compressão dos problemas referentes à prisão. Deste modo, considera-se adequada à análise criminológica da execução penal a ideia de “tendência de fechamento” (GOFFMAN, 1974, p. 16). FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA Pode-se observar que o controle de muitas das necessidades humanas realizado na prisão nem sempre parte exclusivamente da administração penitenciária, mas que a organização de grupos e coletivos dos próprios internos traçam dinâmicas de convivência específicas, no que muitas vezes se verifica a imposição de práticas por grupos mais ou menos organizados. É perceptível a criação de espaços de poder informal no cárcere. Esta qualidade de tendência à totalização de necessidades, entretanto, ainda que não parta tão somente da administração penitenciária, também é intrínseca à natureza da instituição carcerária, uma vez que o confinamento de um grupo de indivíduos em determinado espaço não lhes retira a inteligência de organização e arranjos de sobrevivência. Este exercício de poder para além (e muitas vezes ao lado) da imposição de normas pela administração do cárcere também é componente relevante para a compreensão dos efeitos e do caráter totalizante da prisão. Neste sentido, uma das características marcantes da tendência totalizadora da vida no cárcere é chamado por Goffman (1974, p. 24) de “mortificação do ‘eu’”, que consistiria no resultado de um conjunto de práticas destinadas ao rebaixamento, humilhação e padronização de comportamentos, com redução do espaço de autonomia do sujeito. Alvino Sá (2007, p. 116) aponta para os riscos de desorganização da personalidade em virtude da vida em massa que se tem no cárcere. A imposição de determinados rituais e de normas homogeneizantes provocam verdadeiro achatamento da subjetividade dos internos. A determinação de horários para refeições, para banho de sol e outras práticas restritivas são características comuns nos cárceres brasileiros. A fratura da autonomia e o assujeitamento dos cidadãos que cumprem pena restritiva de liberdade, efeitos típicos da prisionalização ou prisionização encontram um dos seus ápices na previsão legal que determina que os mesmos adotem condutas contrárias a qualquer tipo de movimento de subversão à ordem ou disciplina (art. 39, inciso IV, LEP). A lógica é tão autoritária que não só exige a abstenção, como exige “conduta oposta” aos movimentos. Se nos programas policialescos vige o ditado de que bandido bom é bandido morto, para a administração da prisão, preso bom é preso subserviente e, no limite, cagoete. Constatados alguns dos efeitos nocivos do cárcere sobre o indivíduo – em especial a ruptura dos laços comunitários, familiares, solidários e afetivos que as pessoas presas mantinham fora do cárcere – e rejeitando qualquer possibilidade de consequência positiva em razão do encarceramento – é preciso tentar construir mecanismos que contrariem o sentido FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA totalizante e conformador da experiência carcerária. Para tanto, é necessário defender a abertura do cárcere para a sociedade (BARATTA, 2002, p. 203). Permitir que membros da sociedade e familiares de presos possam desenvolver atividades no cárcere é um caminho para tentar fazer com os laços afetivos e solidários sejam preservados. O apoio a instituições não governamentais que realizam trabalhos diversos nas prisões e o suporte a instituições como os Conselhos da Comunidade são essenciais para que a experiência carcerária seja menos hostil e aflitiva. Do mesmo modo, a abertura de espaço para estas instituições gera maior poder de fiscalização informal e denúncia das condições precárias a que as pessoas são submetidas. As instituições que têm tentado realizar trabalho de aproximação da comunidade carcerária com a sociedade extramuros e de mitigação dos efeitos da prisão são, em geral, organizações voluntárias, destacando-se as corajosas organizações de familiares de pessoas encarceradas. Estas instituições encontram resistência por parte das administrações das prisões, que varia a depender do nível de crítica que exerçam (BRAGA, 2014, p. 60). Deste modo, entendemos que não é preciso apenas expor a realidade do cárcere, de qualquer maneira. É preciso tentar ampliar e tornar complexo e acessível um debate sobre os efeitos da pena e da prisão. Neste sentido, Mathiesen (2003, 104/108) afirma que é preciso contribuir com a criação de um “espaço público alternativo na política penal”, aproximandose dos movimentos feitos “de baixo para cima”, contrários a lógica verticalizante do sistema penal e penitenciário, buscando reduzir o isolamento totalizante da prisão e seus efeitos negativos. Acrescente-se ainda que neste processo de diálogo e abertura, as pessoas presas não podem ser encaradas como meros sujeitos passivos, abordagem comum das ideologias re, que objetificam os indivíduos encarcerados, como anormais ou inferiores, incapazes de uma leitura sobre sua própria realidade e propor mudanças. É necessário que estas pessoas tenham voz ativa na construção de propostas e atividades a serem desenvolvidas no cárcere.

3.2.2. Os serviços essenciais A superação do anacronismo criminológico que orienta a execução penal no Brasil passa ainda pela necessária reformulação do conjunto de práticas desenvolvidas no cárcere. Com Alessandro Baratta (2004, p. 381), é necessário abandonar por completo a ideia de FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA tratamento, devendo ser adotado o conceito de serviço. Em outras palavras, é preciso que as possibilidades de ações que beneficiem as pessoas presas sejam tratadas enquanto direitos, não como concessões de um poder administrativo benevolente. Os mecanismos atuais de regulação de direito penitenciário, tendo como exemplo o Estatuto Penitenciário do Estado da Bahia6, consagram esta diferenciação da concessão de benefícios pela autoridade penitenciária. Há sempre como pano de fundo a demanda por ordem no interior da unidade prisional. O esforço para se reduzir o espaço dos efeitos danosos da aplicação da pena deve se direcionar no sentido de preservar todos os outros direitos das pessoas presas. Reduzir os danos da privação da liberdade é também buscar efetivar os direitos não atingidos pela limitação da capacidade ambulatorial. Os direitos relacionados ao trabalho assumem posição destacada, diante da intensa propaganda institucional em torno do tema. O trabalho prisional ainda é apresentado no Brasil pelo discurso jurídico e institucional como elemento legitimador do cárcere, eixo central do almejado processo de ressocialização. Ocorre que a realidade das nossas prisões não esconde a distância entre os devaneios ressocializantes e o cotidiano dos detentos do sistema prisional brasileiro. Os trabalhos parcamente oferecidos em geral não contribuem para a qualificação do trabalhador, são norteados pela subalternização e atraso dos instrumentos se comparados aos utilizados no mundo do trabalho livre (CHIES, 2008, 51/59). Além disso, a exclusão do trabalhador preso do regime geral da Consolidação das Leis Trabalhistas reproduz um quadro de superexploração e depreciação do trabalho. O trabalhador realiza atividades pesadas e no fim do mês recebe menos do que um salário mínimo, não fazendo jus às horas extras, férias, 13º salário ou qualquer outra garantia trabalhista7.

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Art. 68. Constituem benefícios, concedidos aos presos pelo diretor do estabelecimento penal estadual: I assistir a sessões de cinema, teatro, shows e outras atividades sócio-culturais, em épocas especiais, fora do horário de expediente da unidade prisional; II - assistir a sessões de jogos esportivos em épocas especiais, fora do horário de expediente da unidade prisional; III - praticar esportes em áreas específicas; e IV - receber visitas extraordinárias, devidamente autorizadas. §1º - Poderão ser acrescidos, pela Superintendência de Assuntos Penais, mediante portaria, outros benefícios de forma progressiva, acompanhando as diversas fases de cumprimento da pena. [...] Art. 69. Os benefícios poderão ser suspensos ou restringidos, isolada ou cumulativamente, por cometimento de infração disciplinar, mediante ato motivado da diretoria do estabelecimento penal, precedido de procedimento administrativo, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa. 7 Lei. 7210/84. Art. 28. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva. § 2º O trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho. FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA Em muitos casos, o trabalho sequer é remunerado, uma vez que é prática corriqueira nos estabelecimentos penais a exploração do trabalho dos detentos em atividades de manutenção dos presídios – limpeza e realização de reparos prediais, por exemplo – sem qualquer remuneração (CARVALHO, R., 2011, p. 71/78). No trabalho prisional, o estigma de criminoso persegue o preso, que é sempre mais preso do que trabalhador. Destaca-se que a lei de execução penal define o trabalho prisional como dever social, não como direito do preso. Alguns estatutos penitenciários estaduais, como o da Bahia, vão além e dispõem que o trabalho é obrigatório, considerando falta disciplinar a recusa ao dever do trabalho8. Estas normas representam um continuum histórico da ideia que relaciona trabalho forçado e cárcere. Nesse contexto paradoxal, permeado por intensa exploração da mão de obra e precarização das atividades oferecidas, é preciso reconhecer a fragilidade do discurso dominante, que divulga o trabalho prisional como uma inovação importante do ponto de vista produtivo, moral e reintegrativo. Por outro lado, diversas pesquisas do cotidiano prisional têm sido mais ou menos unânimes ao concluir a importância adquirida pelo trabalho na dinâmica social da prisão, em uma perspectiva, cabe destacar, que foge do modelo valorativo propagado pelo discurso oficial. O tempo no cárcere assume conotações subjetivas essencialmente diferentes daquelas do mundo livre. Aqui fora reclamamos recorrentemente da falta de tempo para realizar todas as nossas atividades. Há um sentimento crescente de que o “tempo está passando cada vez mais rápido”. No cárcere é diferente. O tempo é inimigo do preso, e em nenhuma outra circunstância a expressão “matar o tempo” parece fazer mais sentido (MATOS, 2014, p. 81/101). O “matar o tempo” ganha no cotidiano prisional dois significados distintos. Objetivamente, o trabalho tem o condão de – através do instituto legal da remição – diminuir o tempo de sofrimento atrás das grades. Assim, a participação em atividades laborativas pode matar o tempo perdido na cadeia, reduzindo a duração da pena. Do ponto de vista subjetivo, o trabalho consubstancia uma oportunidade de fugir do ócio avassalador imposto aos detentos.

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Art. 49. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de sua aptidão capacidades. Art. 79. Considera-se falta disciplinar de natureza leve: [...] IX – Recusar o dever de trabalho. FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA Além da capitalização do tempo, o trabalhador preso potencializa o trabalho de diversas outras maneiras, ampliando seu espaço de locomoção, uma vez que realizam suas atividades fora dos módulos onde os outros presos ficam segregados. Os detentos que trabalham circulam por um espaço mais amplo e arejado, além de não estarem sujeitos durante a atividade laboral à vigilância ostensiva dos módulos. Além disso, os presos que trabalham podem se relacionar mais facilmente com pessoas que não cumprem pena – quadros da administração, defensores e advogados, visitantes –, participando, de certa forma, do cotidiano do setor administrativo da penitenciária. Ocorre que na atual conjuntura do nosso sistema prisional, o trabalho é claramente encarado pela legislação e, consequentemente, pela administração penitenciária como “prêmio” para o bom preso. Assim, a pequena quantidade de vagas laborais oferecidas, somada à ausência de critérios objetivos na escolha de quem trabalha, faz do trabalho prisional um relevante elemento na dinâmica do controle administrativo da penitenciária. O preso que não se submeter aos ditames disciplinares do trabalho e não contribuir com a administração pode perder seu posto de trabalho e, consequentemente, os benefícios adquiridos pela atividade. Cabe destacar, inclusive, que nos termos do art. 127 da LEP, o cometimento de falta grave faz com que o trabalhador perca até 1/3 dos dias remidos. O acesso ao trabalho, no contexto do nosso sistema prisional, consubstancia uma série de lutas simbólicas e materiais que o afastam drasticamente do otimismo ressocializador dos discursos oficiais. O instituto carrega todo o seu conteúdo histórico e social que remonta à origem do sistema penitenciário, figurando, no máximo, enquanto instrumento de controle de uma pequena parcela da população prisional. Enquanto isso, os trabalhadores encarcerados lutam para capitalizar o tempo trabalhado que, em alguns casos, pode tornar o período de cumprimento da pena menos aflitivo. Dentro do modelo de execução penal aqui defendido o trabalho pode cumprir papel decisivo na luta pela redução dos danos causados pela experiência penitenciária, mas precisa passar por uma rigorosa reavaliação de sentidos que só é viável a partir do abandono da tese da ressocialização. No caso específico do Brasil, é imprescindível deslocar o debate do campo da demagogia legitimadora da prisão para a disputa do trabalho, enquanto direito do preso, nunca obrigação. Um trabalho que seja devidamente remunerado, que leve em consideração a

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PANÓPTICA história do preso, seus desejos e suas habilidades e que tenha potencial para viabilizar a empregabilidade do trabalhador após cumprimento da pena.

3.3. A problemática incorporação da legalidade e jurisdição penal para o campo da execução O movimento de jurisdicionalização da execução penal na Europa ocidental foi impulsionado, na década de 70, por novas legislações penitenciárias orientadas por um ideal reformista da instituição carcerária. Este movimento de reforma traduziu para o campo da execução da pena alguns corolários do princípio da legalidade penal. Cabe ressaltar que, apesar do anacronismo daquele movimento reformista quanto as suas bases criminológicas, o mesmo teve importante contribuição no processo de crítica à perspectiva jurídico-penitenciária dos sistemas prisionais do ocidente. O antigo direito penitenciário não traduzia para a execução a legalidade penal, tampouco a jurisdição e as garantias liberais que devem orientar o processo penal. No horizonte jurídico-penitenciário, os condenados à pena de prisão não possuem direitos previsto em lei, sendo objetos de uma autoritária relação especial de poder. Assim, o direito penitenciário era uma vertente do direito administrativo, com decisivas influências no campo penal. A incorporação da ideia de legalidade para o cotidiano prisional e a jurisdicionalização da execução penal configuram inegáveis avanços normativos. A radicalização deste movimento é, portanto, um importante passo para a redução do assujeitamento dos presos à discricionariedade administrativa, o que não afasta a necessidade de exame crítico constante do exercício da jurisdição. Do ponto de vista da execução penal como mecanismo de redução dos danos, nos termos delineados no tópico anterior, é fundamental que o discurso criminológico e jurídicopenal crítico lutem pela consolidação das garantias executivas, protegidas por um juízo da execução penal que deve assegurar o princípio da legalidade na execução, restringindo a discricionariedade da administração penitenciária. Na realidade brasileira, este processo é iniciado com a promulgação da Lei 7.210/84. A partir desse marco, o ordenamento passa a considerar o preso como sujeito de direitos e prevê que o processo de execução seja jurisdicional, presidido por um juízo de execução. Ocorre FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA que, ao nosso olhar, este processo de jurisdicionalização e vigência da legalidade, no campo da execução, segue lamentavelmente incompleto no Brasil. Esta constatação se relaciona com os mecanismos punitivos e disciplinares que ainda vigoram no nosso sistema penitenciário. A lógica correcionalista que orienta as punições disciplinares na execução penal faz com que a legislação abra um grande leque de possibilidades de medidas punitivas, confiando à agência penitenciária, sem nenhum limite judicial, o poder de exercer livremente o controle disciplinar no cárcere, fragilizando a incorporação das garantias penais e processuais no campo da execução penal. A aplicação de uma punição disciplinar pode configurar grave prejuízo ao detento, consubstanciando, em alguns casos, efeitos similares aos da própria pena, a exemplo do isolamento celular, da restrição da convivência e lazer ou o impedimento de exercer trabalho e aproveitar o tempo de remição. Zaffaroni (2001, p. 201/207), ao discutir a questão do horizonte de projeção do discurso jurídico-penal, faz algumas observações teóricas fundamentais para a compreensão do problema da natureza, penal ou administrativa, das medidas disciplinares na execução penal. Acompanhamos o professor argentino na compreensão de que a definição da pena deve se orientar a partir de dados ônticos. Nesse sentido, a natureza penal de determinado mecanismo de enfrentamento de um conflito não pode ser deixada, do ponto de vista do discurso jurídicopenal, ao arbítrio da agência legislativa. Ao contrário, a noção de pena deve ser definida a partir dos dados da realidade, observadas as características decisivas do fenômeno: imposição de dor e inadequação aos modelos de solução de conflitos dos demais ramos jurídicos. A partir desta compreensão, que rejeita a possibilidade de que o nomem juris, definido pela agência legislativa, determine a matéria penal, sob risco de legitimar-se uma genuína fraude de etiquetas, Zaffaroni (2001, p. 206/207) destaca situações tradicionalmente afastadas do campo penal que se adequam ao seu conceito de pena, incluindo, entre estas, as sanções administrativas graves. O autor não destaca a questão das medidas disciplinares no cárcere, mas entendemos que estas sanções são indubitavelmente dotadas desta materialidade punitiva. A partir deste entendimento, defende-se que o processo de jurisdicionalização e incorporação da legalidade penal na execução chegue até as medidas disciplinares, que no mais das vezes possuem natureza penal. Esta incorporação apresenta-se como condição

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PANÓPTICA indispensável para que a jurisdicionalização da execução penal se complete no Brasil. Surgem, então, exigências de natureza material e processual. Do ponto de vista da legalidade penal, alguns aspectos merecem ser discutidos. O primeiro diz respeito à aplicação do princípio da anterioridade nas normas de execução penal, uma vez que a Lei nº 7.210/84 não faz nenhuma referência à sua aplicação no tempo. A partir radicalização da incorporação da legalidade penal na execução, entende-se que as leis materiais de execução – que representam uma exasperação das consequências penais (SCHMIDT, 2007, p. 29/76), à exemplo de novas faltas disciplinares – sejam aplicadas irretroativamente, adequando-se à noção de anterioridade penal. A opção político-criminal de levar a sério a legalidade penal na execução cria outra exigência incontornável: a aplicação da taxatividade neste campo. Como discutido anteriormente, a legislação de execução penal é constituída por uma série de termos genéricos, polissêmicos, de pouca precisão interpretativa. Mais uma vez é nos artigos relativos às faltas e sanções disciplinares que o problema assume contornos mais dramáticos. Destaca-se, novamente, o art. 50, I, da LEP, que determina que comete falta grave o preso que “incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina”. Ora, a amplitude da expressão é tamanha que, a depender da via interpretativa adotada, pode abarcar uma quantidade infinita de condutas. Esta situação enfraquece o controle dos atos da administração carcerária, funcionando como um incentivo à perpetuação do autoritarismo que historicamente orienta as práticas da administrativas. Parece fundamental que as sanções disciplinares, dispostas na legislação de maneira tão imprecisa, passem a ser compreendidas, na esteira das considerações em torno de sua materialidade punitiva, como genuínos tipos disciplinares, e consequentemente sofram séria revisão legislativa, para que o corolário da legalidade penal, no quesito taxatividade, seja respeitado. Também constitui imperativo lógico que o discurso jurídico-penal, na perspectiva racionalizadora das punições no cárcere, desenvolva, no campo da dogmática, a criativa ideia, defendida por Roig (2010, p. 01/19), da teoria do injusto disciplinar, como mecanismo de definição da imputação de medidas disciplinares no cárcere. Cabe ressaltar que, em que pese a sua materialidade punitiva, os tipos disciplinares possuem características descritivas e normativas peculiares que, ao que parece, exigem a FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA adaptação da teoria do delito, compreendida como o conjunto de requisitos que devem estar presentes para autorizar a persecução punitiva. Ao defender o desenvolvimento de uma teoria do injusto disciplinar, não afastamos, sob nenhuma hipótese, a perspectiva que denuncia a teoria do delito como mais uma promessa não cumprida da modernidade. A promessa de segurança jurídica e limitação do poder punitivo, especialmente na nossa margem, se transformou em inegável ilusão (ANDRADE, 2012, p. 183/210). Na esteira do pensamento de Zaffaroni (2001, p. 2451/281), compreendemos que o desenvolvimento da teoria do delito impõe às agências judiciais, no mínimo, um constrangimento discursivo, de potencial limitador, que desenvolvido no campo das faltas disciplinares, insere-se como elemento do processo de incorporação da legalidade penal, a partir de uma perspectiva redutora dos danos relacionados à pena de prisão. Em relação ao processo da execução penal, algumas observações podem ser feitas. Como abordado, a LEP jurisdicionaliza a execução penal no Brasil, estabelecendo que deve ser presidida por autoridade judicial. A legislação impõe que uma série de incidentes da execução, como, por exemplo, a progressão ou regressão de regime, sejam decididos por juízes e tenham a executividade acompanhada pelo órgão jurisdicional. Cabe destacar, todavia, que não são poucos os críticos do modelo de atuação judicial no campo da execução. Algumas considerações, especialmente de processualistas penais garantistas, apontam a ausência da estrutura dialética no processo de execução, diante da pouca participação do preso, que, mais uma vez é objetificado, não sendo parte processual ativa. Esta situação é agravada pela predominância de atos escritos e pela burocratização dos procedimentos. A oralidade perde papel, o preso raras vezes participa de audiência, inviabilizando aquilo que Hassemer, citado por Prado (2007, p. 412), chama de compreensão cênica da situação. A participação do preso-sujeito processual nas audiências da execução facilitaria o controle jurisdicional sobre o cotidiano do cárcere e eventuais abusos, contribuindo para que o órgão jurisdicional ocupe um papel central na execução. A centralidade do órgão jurisdicional no controle da execução penal não se confunde, é evidente, com a defesa da prevalência do sistema inquisitorial nesta fase processual. Aury Lopes Jr. (2007, p. 371/406) denuncia que a LEP consagrou um sistema tendencialmente inquisitório, no qual em diversos momentos não é evidente a separação entre as tarefas de

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PANÓPTICA acusar e julgar, atribuindo ao magistrado amplas possibilidades de atuação ex officio, limitando o contraditório e a ampla defesa, relativizando a coisa julgada. Ocorre que não é tão recorrente a crítica à incompletude da jurisdicionalização da execução. A lei de execução penal autoriza a imposição de sansões disciplinares, dotadas de materialidade punitiva, sem a participação do órgão jurisdicional. A lógica autoritária dá poder ilimitado à administração penitenciária no controle da prisão, possibilitando que o cotidiano prisional seja orientado pela ameaça e punição indiscriminada, representando problema que deve ser enfrentado. Esta situação é tão grave que legislação prevê, no art. 59, que “praticada a falta disciplinar, deverá ser instaurado procedimento para a sua apuração”, mas não determina o rito do procedimento, que será orientado por regulamento administrativo. Cabe destacar, ainda, que é resguardada à administração penitenciária poder cautelar, estando autorizada, nos termos do art. 60, a decretar isolamento preventivo do preso por até 10 dias. A aplicação provisória da máxima sanção disciplinar, a inclusão do preso do famigerado Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), depende de despacho do juiz; não existindo previsão de participação defensiva do preso-réu antes dessa decisão judicial. Nesse sentido, parece que, em uma execução penal efetivamente jurisdicionalizada, a competência para instruir os processos disciplinares e decidir sobre a aplicação das punições deve ser dos juízos de execução. O processo deve ser deflagrado a partir da provocação do Ministério Público, devidamente subsidiado pelas informações indiciárias da administração penitenciária, contando-se com efetiva presença da defensoria pública ou advogado constituído, como forma de garantir ao preso-réu o direito à ampla defesa e contraditório. A manutenção da estrutura administrativa de gestão de punições contribui decisivamente para alimentar o clima estruturalmente autoritário do cárcere. Assim, a restrição dos poderes discricionários da administração, especialmente na aplicação de sanções, parece ser uma importante questão na perspectiva de execução redutora de danos.

4. Considerações finais A partir da incorporação do pensamento crítico criminológico e tendo a abolição do sistema penal como objetivo de longo prazo, o presente trabalho adota a perspectiva que abandona completamente as ideologias de recuperação e tratamento das pessoas presas, FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA filiando-se à vertente crítica de postura pragmática de redução de danos, a partir de uma concepção negativa e agnóstica da pena. Neste sentido, foram traçados dois eixos de análise da execução penal referentes à transformação das críticas criminológicas em políticas públicas e à incorporação da legalidade e da jurisdição nessa seara. Destes feixes de observações, é possível concluir, por ora, que o desenvolvimento de uma execução penal redutora de danos e estritamente garantidora envolve: (a) a limitação dos prejuízos que a privação de liberdade traz ao indivíduo, buscando frear o processo continuado de marginalização e exclusão; (b) a abertura do cárcere para instituições que possam contribuir para a preservação e criação de laços solidários das pessoas presas, bem como reduzir os espaços de vulnerabilidade; (c) abertura do cárcere à fiscalização de instituições voltadas à garantia dos direitos fundamentais das pessoas encarceradas; (d) garantia de direitos subjetivos e serviços essenciais às pessoas presas, como oportunidades dignas de trabalho e educação, jamais como imposição da administração; (e) desenvolvimento da jurisdição penal na execução, afastando o arbítrio das punições administrativas; (f) aplicação das garantias processuais e penais, como anterioridade e taxatividade, no âmbito da execução; (g) adoção de procedimento acusatório da execução, com participação efetiva da pessoa presa. Ressalte-se que este horizonte de propostas pragmáticas e redutoras não significa acreditar que a prisão possa cumprir seu desígnio humanizador e ressocializador de criminosos. As necessidades urgentes das pessoas atingidas pelo sistema penal não podem funcionar como elemento castrador de uma imaginação não punitiva, devendo servir como ponto de partida para a elaboração de formas diferentes de resoluções de conflitos. Conscientes dos riscos corridos na proposição de um modelo de execução penal que sirva menos ao cárcere e mais aos prisioneiros, este trabalho é ainda um esboço de uma interpretação que quer pensar a execução penal como uma das táticas, indiscutivelmente limitada, mas possivelmente útil à contenção dos prejuízos causados pela tragédia prisional. A perspectiva apresentada é herdeira da tradição que pretende progressivamente diminuir o espaço social da prisão e conter, dentro do possível, os prejuízos causados às pessoas expostas à experiência da vida encarcerada. A abolição do cárcere, contudo, não ocorrerá de forma espontânea. Prisões não serão destruídas pela crítica contemplativa, sempre muito coerente, mas pouco audaciosa. Parece necessário disputar política e juridicamente os mecanismos de FERNANDES, Daniel Fonseca; MATOS, Lucas Vianna. Apesar da pena: execução penal e redução de danos. Panóptica, vol. 11, n. 1, pp. 158-183, jan./jun. 2016.

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PANÓPTICA controle do poder de punir e encarar o fato de que a execução penal, a depender da

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perspectiva adotada, pode configurar-se como um destes instrumentos de contenção.

5. Referências

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