APLICAÇÃO DE PRECEDENTES E \"DISTINGUISHING\" NO CPC/2015

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CUNHA, Leonardo Carneiro da; MACÊDO, Lucas Buril de; ATAÍDE JR, Jaldemiro Rodrigues de (org.). Precedentes judiciais no NCPC. Coleção Novo CPC e novos temas. Salvador: Juspodivm, 2015

APLICAÇÃO DE PRECEDENTES E DISTINGUISHING NO CPC/2015: Uma breve introdução

Dierle Nunes Doutor em direito processual (PUC-MG/Università degli Studi di Roma “La Sapienza”). Mestre em direito processual (PUC-MG). Professor permanente do PPGD da PUC-MG. Professor adjunto na PUC-MG e na UFMG. Secretário-Geral Adjunto do IBDP, Membro fundador do ABDPC, associado do IAMG. Advogado. Membro da Comissão de Juristas que assessorou no Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados. Advogado.

André Frederico Horta Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG. Advogado.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS O Código de Processo Civil de 2015 promove a estruturação de um novo modelo dogmático para o dimensionamento do direito jurisprudencial no Brasil em face do quadro de alta instabilidade decisória que acabou tornando inviável a promoção do uso adequado dos precedentes no Brasil, considerando a superficialidade da fundamentação dos julgados e a ausência de análise panorâmica dos fundamentos, entre outros déficits de aplicação. No entanto, um dos acréscimos mais relevantes, defendido pelo primeiro autor desde antes da tramitação legislativa do CPC em questão, foi o dimensionamento de uma técnica essencial no sistema de precedentes: a distinção (distinguishing), que

possibilita à parte demonstrar que seu caso se diferencia dos precedentes ou dos padrões decisórios que gravitam em torno da matéria nele tratada. Perceba que, neste aspecto, o CPC/2015 expressamente estrutura a aplicação e utilização da técnica da distinção na parte dos recursos repetitivos (art. 1037, §§ 9º et seq., com aplicação subsidiária em todo o microssistema de litigiosidade repetitiva), indica sua necessidade na parte da fundamentação estruturada (art. 489, §1º, VI),1 além de estabelecer pressupostos normativos contra-fáticos para a correção de uma infinidade de vícios nos quais a prática judicial atual incorre e alimenta. O presente ensaio busca ofertar ao leitor uma visão panorâmica do sistema de precedentes dimensionado no CPC/2015, com destaque para a técnica de distinguishing, de forma a permitir a compreensão dos fundamentos e do modo que dogmaticamente se deverá implantar uma prática precedencialista brasileira embasada nas normas fundamentais do processo constitucional e da nova legislação.

2. O CASO BRASILEIRO: ENTRE O CIVIL LAW E O COMMON LAW. O NOVO SOB O OLHAR DO VELHO, OU O VELHO SOB O OLHAR DO NOVO? No específico contexto brasileiro, não é novidade que o ordenamento jurídico pátrio encontra-se permeável à utilização do direito jurisprudencial como fonte normativa. Em minuciosa pesquisa histórica da época Colonial e Imperial, Marcus Seixas Souza2 descreve quais eram os tipos de decisões judiciais existentes à época, a importância de cada uma e de que modo influenciavam a prática jurídica de então, sendo perceptível a influência de alguns deles, como os assentos portugueses, até os dias de hoje como no caso dos enunciados de súmula da jurisprudência dominante dos tribunais superiores, que possuem características aproximadas às dos assentos. Nas últimas duas décadas, foram implementadas inúmeras reformas processuais de valorização do direito jurisprudencial, desde a criação dos referidos enunciados de súmulas (inicialmente, apenas nos regimentos internos dos tribunais e, posteriormente, 1

“Art. 489. São elementos essenciais da sentença: § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: [....] VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.” 2 SOUZA, Marcus Seixas. Os precedentes na história do Direito processual civil brasileiro: Colônia e Império. Salvador, Dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, 2014, p. 87-88.

na legislação, por meio da Lei nº 8.756/98, que deu nova redação ao art. 557 do CPC/73, e da Lei nº 11.276/06, que acrescentou o § 1º ao art. 518 do mesmo diploma), da Súmula Vinculante (art. 103-A do CPC, criado pela Emenda Constitucional nº 45/04), passando pelo julgamento liminar de demandas repetitivas (art. 285-A do CPC/73, introduzido pela Lei nº 11.277/06), e, por fim, introdução das técnicas de julgamento de recursos excepcionais repetitivos por amostragem (art. 102, § 3º, da CR, introduzido pela EC nº 45/04, e arts. 543-A a 543-C do CPC/73, criados pelas Leis nº 11.418/06 e 11.672/08). O novo Código de Processo Civil mantém essas reformas, vai além e evidencia o importante papel que o direito jurisprudencial exerce no ordenamento jurídico brasileiro com o delineamento de um microssistema de litigiosidade repetitiva que encampa, entre seus preceitos, novo regramento dos precedentes no Brasil. A título exemplificativo, o art. 926 do CPC/2015 estabelece que os tribunais devem zelar para que sua jurisprudência mantenha-se uniforme, íntegra e coerente; o art. 988 abre a possibilidade de manifestação da reclamação perante o STF e o STJ, em caso de desrespeito a precedente estabelecido em sede de julgamento de casos representativos da controvérsia; os arts. 976 e ss. inauguram o incidente de resolução de demandadas repetitivas (IRDR); o art. 311 cria a denominada tutela da evidência e estabelece que uma das hipóteses de sua concessão (a do inc. II)3 depende da existência de tese favorável firmada pelos tribunais superiores em julgamento de casos repetitivos ou de súmula vinculante; a improcedência liminar dos pedidos é autorizada desde que, além de ser dispensável a fase instrutória, a pretensão autoral contrarie enunciado de súmula do STF ou do STJ, acórdão proferido por esses tribunais em julgamento de recursos repetitivos ou em incidente de resolução de demandas repetitivas, ou enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local, tudo nos termos do art. 332; e a remessa necessária não se efetivará se a sentença estiver fundada em súmulas ou acórdãos proferidos em sede de resolução de demandas repetitivas ou em julgamento de recursos repetitivos, a teor do § 3º do art. 496. Verifica-se, portanto, a relevância cada vez maior conferida ao direito jurisprudencial e ao próprio Poder Judiciário, que balizados pelo processo constitucional e pelas novas premissas do CPC/2015 (com destaque a teoria normativa da 3

Cf. NUNES, Dierle; PIRES, Michel Hernane Noronha; GODINHO, Luana Veloso Gonçalves. Executividade imediata da sentença: evolução no CPC projetado e técnica decisória de ressalva de entendimento. In: FUX, Luiz et al (org.). Novas tendências de processo civil, v. 4, Salvador: Juspodivm, 2014.

comparticipação)4, promovem o dimensionamento das mais diversas espécies de litigiosidade. Nesse contexto, começou a ser sustentada uma aproximação do ordenamento jurídico brasileiro à tradição de common law. Embora se possa objetar que não se encontra no Direito inglês e norte-americano qualquer mecanismo semelhante aos enunciados sumulares5 (que tanto prestígio receberam em solo pátrio), ou que o julgamento de recursos por amostragem e o incidente de demandas repetitivas constituem técnicas embasadas no procedimento-modelo alemão,6 é inegável a 4

Cf. THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2015. NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: juruá, 2008. 5 O modo como as Súmulas são aplicadas no Brasil, além de não se aproximar do método de common law de aplicação de precedentes, em certa medida dialoga com uma variante do positivismo jurídico alemão, qual seja, a jurisprudência dos conceitos, que sustentava a capacidade de os Tribunais criarem conceitos universais, em “um sistema fechado que parte do geral para o singular e que chega a ‘esse’ geral com a negligência às singularidades”. NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre. Falta aos Tribunais formulação robusta sobre precedentes. Artigo publicado em jan/2014 e disponível no link . Acesso em 26 de julho de 2014. E pior; ao se recorrer ao uso dos enunciados sumulares como se lei fossem – o que constitui outro equívoco –, o entendimento neles consubstanciado é utilizado de forma desvinculada dos julgados que lhes deram origem, isto é, sem a análise das circunstâncias fáticas e jurídicas que justificaram a sua edição. Embora hoje se tenha amplo acesso aos julgados dos quais os enunciados foram extraídos, os tribunais costumam aplicá-los descontextualizados da moldura jurídica e fática que os embasam, como se o enunciado constituísse um texto normativo independente. Isto é agravado quando os tribunais, ao “fundamentarem” as suas decisões, apenas indicam a existência de determinado enunciado que, em tese, constituiria fundamentação idônea e suficiente para a decisão proferida. No novo CPC, isso é vedado, por força do § 1º do art. 489. A nova lei passa a tornar obrigatória a perquirição dos casos e do contexto em que o enunciado foi elaborado, a fim de seja conferida motivação de sua adequação ao caso concreto em exame. O novo comando atende ao que a melhor doutrina sempre reclamou: “as decisões judiciais devem estar justificadas, e tal justificação deve ser feita a partir da invocação de razões e oferecendo argumentos de caráter jurídico, assinala Ordónez Solís. O limite mais importante das decisões judiciais reside precisamente na necessidade da motivação/justificação do que foi dito. O juiz, por exemplo, deve expor as razões que lhe conduziram a eleger uma solução determinada em sua tarefa de dirimir conflitos. A motivação/justificação está vinculada ao direito à efetiva intervenção do juiz, ao direito dos cidadãos a obter uma tutela judicial (...). Sendo assim, o juiz não pode considerar que é a súmula que resolve um litígio – até porque as palavras não refletem as essências das coisas, assim como as palavras não são as coisas, mas, sim, que é ele mesmo juiz, o intérprete, que faz uma fusão de horizontes para dirimir o conflito”. STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. Op. cit., p. 128-129. Cf., também, o enunciado nº 166, elaborado pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis: “A aplicação dos enunciados das súmulas deve ser realizada a partir dos precedentes que os formaram e dos que os aplicaram posteriormente”. 6 “Trata-se de uma técnica conhecida em diversos países, que a denominam de ‘caso-piloto, ‘caso-teste’ ou ‘processo-mestre’. Consiste o mecanismo em permitir que, entre várias demandas idênticas, seja escolhida uma só, a ser decidida pelo tribunal, aplicando-se a sentença aos demais processos, que haviam ficado suspensos. Esse método é utilizado pela Alemanha, Áustria, Dinamarca, Noruega e Espanha (nesta, só para o contencioso administrativo)’.”GRINOVER, Ada Pellegrini; JAYME, Fernando Gonzaga; FARIA, Juliana Cordeiro de; LAUAR, Maira Terra (coord). O tratamento dos processos repetitivos. In Processo civil: novas tendências: estudos em homenagem ao professor Humberto Theodoro Junior. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 5. Para maiores detalhes, conferir: NUNES, Dierle José Coelho; PATRUS, Rafael Dilly. Uma breve notícia sobre o procedimento-modelo alemão e sobre as tendências brasileiras de padronização decisória: um contributo para o estudo do incidente de resolução de demandas repetitivas brasileiro. In Novas Tendências do Processo Civil: Estudos sobre o Projeto do Novo Código de Processo Civil. Editora Jus Podivm: Salvador, 2013.

utilização cada vez mais frequente de decisões jurisprudenciais como fonte do direito, mesmo em se tratando de aplicação de súmulas e das teses firmadas a partir daquelas duas últimas técnicas, que, embora não possam ser qualificadas como precedentes propriamente ditos, colocam em evidência pronunciamentos jurisdicionais com aptidão para resolver casos concretos. Antes de se prosseguir, cumpre enfrentar uma questão que servirá de ponto de apoio para o desenvolvimento do tema central do presente ensaio. Ao contrário do que se passa no common law, a utilização, no Brasil, dos precedentes e, em maior medida, do direito jurisprudencial na aplicação do direito é fruto de um discurso de matiz neoliberal, que privilegiava a sumarização da cognição, a padronização decisória superficial e uma justiça de números (eficiência tão somente quantitativa), configurando um quadro de aplicação equivocada (fora do paradigma constitucional) desse mesmo direito jurisprudencial que dá origem ao que se pode chamar de hiperintegração do direito7. A expressão denota o tratamento igualitário a casos substancialmente distintos, como se fossem (mas não são) objetos subsumíveis à mesma regra geral. Na precisa lição de Ramires, “de um lado, uma decisão judicial deve ser coerente com o todo da prática jurídica, porque o direito rejeita os casuísmos típicos da política. Mas, de outro, as distinções e particularidades dos casos exigem respostas individualizadas”8. Mais adiante, o autor explicita que há hiperintegração “na interpretação quando os fatos de um caso com alguma especificidade e restrição acabam se tornando um parâmetro geral para casos subsequentes que não guardam suficientes padrões de identificação com ele”9. Uma cadeia de eventos descritos em outra sede10 criou o espaço ideal para o surgimento de reformas processuais (já mencionadas) que visam, sob a justificativa da razoável duração do processo, à padronização decisória em prol da celeridade processual, da sumarização da cognição e do reforço da jurisdição, com a instauração de “uma visão neoliberal de alta produtividade de decisões e de uniformização superficial 7

A expressão contrapõe-se ao que se pode chamar de desintegração do direito, gerada pela especificação exacerbada de um caso, cujas distinções com outro caso não justificariam o tratamento diferenciado, justamente porque as partes (os dois casos) estão conectadas a uma totalidade. Como se vê, a desintegração e a hiperintegração constituem vícios da prática judiciária que se localizam nos extremos, e, tal quais as virtudes aristotélicas, possuem um justo meio termo: a integridade do direito. 8 RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2010, p. 105. 9 RAMIRES, Maurício. Op. cit., p. 109. 10 NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008.

dos entendimentos pelos tribunais”, ainda que isso “ocorra antes de um exaustivo debate em torno dos casos, com a finalidade de aumentar a estatística de casos ‘resolvidos’”.11 Ao se perceber este quadro adulterado é que surge o CPC/2015, com uma função contra-fática12 na tentativa de promover um aprimoramento qualitativo do sistema de precedentes de modo a ofertar um diálogo genuíno na formação dos julgados que leve a sério todos os argumentos relevantes para o deslinde da situação em julgamento. O novo CPC busca se alinhar ao modelo democrático e constitucional de processo13, com o reforço de seu aspecto principiológico logo em seu capítulo introdutório, que menciona expressamente o princípio de boa-fé objetiva (art. 5º), da cooperação entre os sujeitos processuais (art. 6º – teoria normativa da comparticipação), e do contraditório como paridade de armas (art. 7º), de bilateralidade de audiência (art. 9º), e, mais importante, como garantia de influência e não-surpresa (art. 10º), de modo a impedir a potencial manutenção do sentido das reformas processuais gestadas sob o denunciado discurso neoliberal. Caso a nova lei não seja interpretada em sua unidade e em conformidade com a teoria normativa da comparticipação, corre-se o risco de manter-se o “velho” modo de julgamento empreendido pelos magistrados, que, de modo unipessoal (solipsista), aplicam teses e padrões sem a promoção de juízos de 11

THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Breves considerações da politização do judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro: Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória. In Revista de Processo, Ano 35, nº 189, Revista dos Tribunais: São Paulo, nov/2010, p. 21-23. 12 Como explicado em outra sede: Ao se perceber uma série de vícios e descumprimentos à normatização (inclusive constitucional) a nova legislação tenta, contra-faticamente, implementar comportamentos mais consentâneos com as finalidades de implementação de efetividade e garantia de nosso modelo processual constitucional. Este é um de seus grandes pressupostos ao se buscar corrigir problemas sistêmicos. Adotase, assim, uma série de “registros de avanço” normativos para uma plêiade de comportamentos não cooperativos habitualmente adotados pelos sujeitos processuais.” NUNES, Dierle. A função contra-fática do direito e o Novo CPC. Revista da AASP. Abril/2015. 13 Cf. THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2015. O processo, na perspectiva de um modelo constitucional, “inaugura uma visão garantística” dos direitos fundamentais, limitando a atuação daqueles que dele (do processo) participam de forma equivocada e inaugurando uma hermenêutica processual condicionada à Constituição e à ideia de Estado Democrático de Direito, à luz da comparticipação e do policentrismo. NUNES, Dierle José Coelho. Teoria do Processo Contemporâneo, op. cit., p. 14. Na precisa lição de Aroldo Plínio Gonçalves, o processo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, deve ser concebido como “um procedimento de que participam aqueles que são interessados no ato final”, o que se dará em contraditório e deve cumprir a finalidade de permitir “que as partes recebam uma sentença, não construída unilateralmente pela clarividência do juiz, não dependente dos princípios ideológicos do juiz, não condicionada pela magnanimidade de um fenômeno Magnaud, mas gerada na liberdade de sua participação recíproca, e pelo recíproco controle dos atos do processo”. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. AIDE Editora: Rio de Janeiro, 2001, p. 68 e 188.

adequação e aplicabilidade ao caso concreto, citando ementas e súmulas de forma descontextualizada, e não se preocupando em instaurar um efetivo diálogo processual com os advogados e as partes, especialmente se a doutrina não reassumir a função e a postura crítica que dela se espera, ao contrário de se conformar em repetir o ementário e os enunciados sumulares de uma prática jurisprudencial que se vale, em um círculo vicioso, dos mesmos enunciados e ementas. É no contexto de reanálise de técnicas de padronização decisória e com a finalidade de, a partir das premissas principiológicas do novo CPC e do modelo democrático de processo, fornecer subsídios para a reversão do quadro de hiperintegração do direito gerado pela aplicação das aludidas técnicas e para a correta aplicação do direito jurisprudencial como fonte normativa que se irá desenvolver o tema central do presente texto: a criação e dimensionamento de técnicas de distinção (o conhecido distinguishing do common law) no momento de aplicação do direito jurisprudencial ao caso concreto. O CPC/2015 supre a carência normativa hoje vivenciada de inexistência de previsão de técnicas de distinção, deixando evidente, em diversos dispositivos, a necessidade de sua observância, fornecendo fértil substrato normativo para que o tema seja desenvolvido. É o que se passa no importante § 1º do art. 489 (a ser comentado mais adiante), que estabelece algumas balizas normativas a serem seguidas pelo magistrado ao proferir sua decisão (seja sentença, decisão interlocutória ou voto integrante de acórdão), a fim de que ela seja considerada fundamentada e atenda ao inc. IX do art. 93 da Constituição da República, sob pena de nulidade. Para ilustrar, nos termos do inc. VI do citado dispositivo, a decisão que deixa de seguir determinado enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente apenas será considerada fundamentada caso sejam demonstrados padrões de distinção entre as razões de fato e/ou de direito nele consubstanciadas e o caso em exame. 14 14

Como vimos sustentando, no marco do constitucionalismo, o pressuposto é o de se perceber o processo como garantia, com a formação e a aplicação do direito jurisprudencial observando-se essa garantia. Em outra sede, um dos autores do presente artigo já havia delineado as diretrizes básicas de aplicação, no Brasil, do direito jurisprudencial, as quais são tomadas como balizas no desenvolvimento do tema proposto: “Nesse aspecto, o processualismo constitucional democrático por nós defendido tenta discutir a aplicação de uma igualdade efetiva e valoriza, de modo policêntrico e comparticipativo, uma renovada defesa de convergência entre o civil law e common law, ao buscar uma aplicação legítima e eficiente (efetiva) do direito para todas as litigiosidades (sem se aplicar padrões decisórios que pauperizam a

3. TRABALHANDO COM PRECEDENTES: INDIVIDUALIZAÇÃO DO DIREITO À LUZ DA INTEGRIDADE E DA COERÊNCIA.

análise e a reconstrução interpretativa do direito), e defendendo o delineamento de uma teoria dos precedentes para o Brasil que suplante a utilização mecânica dos julgados isolados e súmulas em nosso país. Nesses termos, seria essencial para a aplicação de precedentes seguir algumas premissas essenciais: 1.º – Esgotamento prévio da temática antes de sua utilização como um padrão decisório (precedente): ao se proceder à análise de aplicação dos precedentes no common law se percebe ser muito difícil a formação de um precedente (padrão decisório a ser repetido) a partir de um único julgado, salvo se em sua análise for procedido um esgotamento discursivo de todos os aspectos relevantes suscitados pelos interessados. Nestes termos, mostra-se estranha a formação de um “precedente” a partir de um julgamento superficial de um (ou poucos) recursos (especiais e/ou extraordinários) pinçados pelos Tribunais (de Justiça/regionais ou Superiores). Ou seja, precedente (padrão decisório) dificilmente se forma a partir de um único julgado. 2.º – Integridade da reconstrução da história institucional de aplicação da tese ou instituto pelo tribunal: ao formar o precedente o Tribunal Superior deverá levar em consideração todo o histórico de aplicação da tese, sendo inviável que o magistrado decida desconsiderando o passado de decisões acerca da temática. E mesmo que seja uma hipótese de superação do precedente (overruling) o magistrado deverá indicar a reconstrução e as razões (fundamentação idônea) para a quebra do posicionamento acerca da temática. 3.º – Estabilidade decisória dentro do Tribunal (stare decisis horizontal): o Tribunal é vinculado às suas próprias decisões: como o precedente deve se formar com uma discussão próxima da exaustão, o padrão passa a ser vinculante para os Ministros do Tribunal que o formou. É impensável naquelas tradições que a qualquer momento um ministro tente promover um entendimento particular (subjetivo) acerca de uma temática, salvo quando se tratar de um caso diferente (distinguishing) ou de superação (overruling). Mas nestas hipóteses sua fundamentação deve ser idônea ao convencimento da situação de aplicação. 4.º – Aplicação discursiva do padrão (precedente) pelos tribunais inferiores (stare decisis vertical): as decisões dos tribunais superiores são consideradas obrigatórias para os tribunais inferiores (“comparação de casos”): o precedente não pode ser aplicado de modo mecânico pelos Tribunais e juízes (como v.g. as súmulas são aplicadas entre nós). Na tradição do common law, para suscitar um precedente como fundamento, o juiz deve mostrar que o caso, inclusive, em alguns casos, no plano fático, é idêntico ao precedente do Tribunal Superior, ou seja, não há uma repetição mecânica, mas uma demonstração discursiva da identidade dos casos. 5.º – Estabelecimento de fixação e separação das ratione decidendi dos obter dicta da decisão: a ratio decidendi (elemento vinculante) justifica e pode servir de padrão para a solução do caso futuro; já o obter dictum constituemse pelos discursos não autoritativos que se manifestam nos pronunciamentos judiciais “de sorte que apenas as considerações que representam indispensavelmente o nexo estrito de causalidade jurídica entre o fato e a decisão integram a ratio decidendi, onde qualquer outro aspecto relevante, qualquer outra observação, qualquer outra advertência que não tem aquela relação de causalidade é obiter: um obiter dictum ou, nas palavras de Vaughan, um gratis dictum”. 6.º – Delineamento de técnicas processuais idôneas de distinção (distinguishing) e superação (overruling) do padrão decisório: A ideia de se padronizar entendimentos não se presta tão só ao fim de promover um modo eficiente e rápido de julgar casos, para se gerar uma profusão numérica de julgamentos. Nestes termos, a cada precedente formado (padrão decisório) devem ser criados modos idôneos de se demonstrar que o caso em que se aplicaria um precedente é diferente daquele padrão, mesmo que aparentemente seja semelhante, e de proceder à superação de seu conteúdo pela inexorável mudança social – como ordinariamente ocorre em países de common law.”

A relevância do tema a que se propôs enfrentar se justifica na medida em que o que se vê, na prática, é “o posicionamento absolutamente restritivo que os Tribunais vêm adotando em relação à recorribilidade das decisões proferidas em consonância com os paradigmas firmados”15, em uma tendência de engessamento do Direito e de supressão de discussões sobre teses jurídicas já decididas, a despeito da existência de razões peculiares que recomendariam as departures do common law – a exemplo do distinguinshing –, o que é agravado em razão da dificuldade de promoção da formação de padrões decisórios realmente panorâmicos. Nesse ponto, teríamos a aprender com o common law que uma decisão não nasce como se precedente fosse; são os juízes de casos futuros que, instados a se manifestarem sobre decisões passadas, podem invocar tais decisões na qualidade de precedentes. Porém, uma das características peculiares do ordenamento jurídico brasileiro é a que permite, mediante a técnica recursal, o julgamento para a formação de precedentes. E se assim adotamos a formação de julgados, devemos consolidar modificações que garantam que o Tribunal, desde o primeiro julgamento, busque um esgotamento discursivo do caso levando em consideração todos os argumentos relevantes daquele caso. Sabe-se e aprendemos com o common law que o juiz do primeiro caso apenas pretendia resolver a situação que lhe fora submetida (o que não quer dizer que, ao decidir, ele não tenha se preocupado em prolatar uma decisão que pudesse ser útil no futuro). A própria noção do que seja o precedente (uma atividade reconstrutiva do passado) torna possível a novos juízes darem novos sentidos ao texto, derivando dessa assertiva a possibilidade se de promover o distinguishing, ou até mesmo se ampliar (widening) ou reduzir (narrowing) o precedente, a depender das circunstâncias e dos padrões de identificação que forem estabelecidos entre os casos – mas todas essas atividades extrapolam a mera citação do texto de uma decisão passada qualquer, de enunciados sumulares ou mesmo de teses estabelecidas.16 Em outras palavras, jamais o precedente será anunciado de forma completa e única. É a partir das distinções, das ampliações e das reduções que os precedentes são dinamicamente refinados pelo Judiciário (sempre a partir das contribuições de todos os sujeitos processuais), à luz de novas situações e contextos, 15

NUNES, Dierle; FREIRE, Alexandre; GODOY, Daniel Polignano; CARVALHO, Daniel Corrêa Lima de. Precedentes: alguns problemas na adoção do distinguinshing no Brasil. In Revista Libertas, UFOP, v. 1, nº 1, jan-jun/2013, p. 21. 16 RAMIRES, Maurício. Op. cit., p. 73.

a fim de se delimitar a abrangência da norma extraída do precedente. Se, de um lado, é verdade que o precedente originário estabelece o primeiro material jurisprudencial (não se ignora o texto legal e a doutrina) sobre o qual se debruçarão os intérpretes dos casos subsequentes, com o passar do tempo, uma linha de precedentes se formará a partir daquele primeiro precedente, confirmando-o, especificando-o e conferindo-lhe estabilidade,17 e a técnica da distinção (distinguishing) desempenha uma importante função nesse processo de maturação do direito jurisprudencial. Ademais, deve-se, sempre, levar em consideração que cada caso específico colocado sob apreciação do Judiciário dificilmente será completamente novo, e certamente não será o último, o que induz ao questionamento sobre a pertinência de se tentar resolver todos os casos trabalhando por atacado ou por amostragem e com a pretensão de que o texto do enunciado, da ementa ou das teses formadas consiga, de antemão, abarcar todas as situações da vida possíveis, e, pior, sem o esgotamento da matéria e sem a abertura do espaço processual adequado para a discussão dos fatos subjacentes ao caso em análise face aos precedentes e enunciados sumulares que se pretende aplicar ou afastar – posturas como essas eram incentivadas (ou, para dizer o mínimo, toleradas) pelo CPC/1973, mas o CPC/2015 busca promover uma readequação da prática judiciária à luz do modelo democrático de processo, para o que não pode ser interpretado a partir de velhos hábitos. O novo CPC não prescinde de que o direito jurisprudencial seja aplicado sempre à luz de todos os fatos que integram o caso em análise e também dos casos sumulados ou que deram origem às teses e precedentes invocados – se pelas partes, constitui ônus destas estabelecer padrões de analogia ou de distinção; se pelo magistrado, este deverá facultar às partes o momento processual adequado para as partes se manifestarem, sob pena de violação do contraditório, após o que, levando em consideração os argumentos apresentados, procederá, de forma fundamentada, às analogias e/ou contra-analogias. Portanto, trabalhar com precedentes (ou súmulas e teses) constitui um processo de individualização do Direito (o que é diuturnamente ameaçado pelo formalismo dos enunciados sumulares e das teses estabelecidas pelos tribunais superiores, sem

17

MACÊDO, Lucas Buril. Precedentes judiciais e o direito processual civil. Editora Jus Podivm: Salvador, 2015, p. 363.

seguimento

dos

pressupostos

democráticos

contra-faticamente18

impostos

no

CPC/2015,19 na medida em que incentivam a desconsideração das peculiaridades dos casos concretos) e de universalização da regra estabelecida no precedente (ou nos casos sumulados) a exigir do intérprete constante atenção à dimensão subjetiva (construída processualmente, em especial na fase probatória) do caso concreto, sem a qual restará prejudicada sua conciliação com a dimensão objetiva do Direito. Nesse processo, é preciso indagar-se quando e em que medida determinado caso é subsumível no precedente, e este questionamento diz diretamente com o nível de generalização a ser buscado tanto no precedente como no caso presente, a fim de serem estabelecidas as analogias e as contra-analogias que definirão acerca da aplicabilidade daquele a este.

4. ANALOGIAS E CONTRA-ANALOGIAS. APLICAÇÃO DO PRECEDENTE E DISTINGUISHING. ENCONTRANDO PADRÕES DE SEMELHANÇA E DISTINÇÃO. Raciocinar por precedentes é, essencialmente, raciocinar por comparações. Comparam-se situações, fatos, hipóteses, qualidades e atributos, e, ao serem feitas as comparações, analogias e contra-analogias são elaboradas para que se possa concluir se tais comparações são fortes o suficiente para que coisas diferentes sejam tratadas de forma igual, ou se são fracas o bastante para que coisas diferentes não sejam tratadas de forma desigual – aliás, por mais complexa e controvertida seja a noção de “justiça”, dificilmente se conseguirá ensaiar alguma conceituação fundamentada sem enfrentar a questão da igualdade e da diferença. Uma analogia consiste em indicar similaridades entre atributos de dois ou mais “entes” a fim de que, embora diferentes entre si (mas compartilhando de determinadas características), seja-lhes atribuído igual tratamento, a depender da quantidade e da relevância (qualidade) das similaridades existentes. Caso se conclua que a dois fatos deva ser atribuída a mesma consequência, quer dizer que se raciocinou por analogia; 18

NUNES, Dierle José Coelho. A função contra-fática do direito e o Novo CPC. Revista da AASP. São Paulo, abr. 2015. 19 Para a devida compreensão das normas fundamentais e da interpretação do Novo CPC cf. THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: GEN Forense, 2015.

caso se entenda que a ambos os fatos devam ser atribuídas consequências distintas, o raciocínio foi realizado por contra-analogia (ou por distinguishing, para utilizarmos o jargão específico do common law). Em outras palavras, no raciocínio por precedentes, a analogia e o distinguishing (disanalogie ou contra-analogia) colocam-se como técnicas que, conquanto situadas em extremos opostos, fundam-se essencialmente na realização de comparações, definindo a aplicabilidade de determinado precedente ao caso concreto, à luz da coerência e da integridade do Direito. Nesse sentido, Misabel Derzi e Thomas Bustamante entendem que “a decisão de aplicar cada precedente a um novo caso concreto é [...] presidida e informada por uma ponderação de princípios, que se encontra na base do processo de comparação de casos por meio de analogias e contra-analogias”20. É possível classificar a técnica da distinção (distinguishing) tomando por base um sentido amplo e outro estrito: a distinção em sentido amplo consiste no processo argumentativo ou decisional por meio do qual o raciocínio por contra-analogias se manifesta; a distinção em sentido estrito refere-se ao resultado do processo argumentativo, quando se chega a efetivamente diferenciar dois casos ou duas situações, afastando-se a aplicação de determinado precedente.21 A estruturação pela doutrina e jurisprudência pátrias de técnicas de distinção (distinguishing) a partir do CPC/2015 impõe-se como decorrência lógica da concretização do modelo constitucional de processo no marco da convergência de tradições jurídicas (que deve ser lida sob a luz da Constituição e das normas fundamentais da nova legislação22) e da utilização do direito jurisprudencial como fonte normativa e instrumento para a manutenção de um ordenamento jurídico coerente e uniforme, atributos que remontam, em última análise, à integridade do Estado como garantidor de um sistema jurídico único, pois apenas assim será possível conciliar a dimensão subjetiva de cada caso com a dimensão objetiva do direito que se pretende aplicar. Com isso não se quer dizer que o direito jurisprudencial, ao cumprir o seu papel de unificação do Direito como um todo, torne o sistema excessivamente rígido e 20

DERZI, Misabel de Abreu Machado. BUSTAMATE. Thomas da Rosa de. O efeito vinculante e o princípio da motivação das decisões judiciais: em que sentido pode haver precedentes vinculantes no direito brasileiro? In Novas Tendências do Processo Civil – Estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Editora JusPodivm: Salvador, 2013, p. 353. 21 MACÊDO, Lucas Buril. Op. cit., p. 356. 22 THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. cit.

engessado. Rupturas (departures) são autorizadas, mas devem ser especialmente fundamentadas e em harmonia com a concepção de integridade do Direito, pois, como aprendemos em Dworkin: o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal, e pede-lhes que os apliquem nos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo as mesmas normas.23

Mesmo em sistemas jurídicos que não estejam sustentados firmemente sobre o precedente (e o Brasil já caminha há bom tempo no sentido de fortalecimento de seu direito jurisprudencial), sua importância deve ser reconhecida, na medida em que “uma aplicação integrativa e coerente do direito deve, necessariamente, levar em conta o modo pelo qual determinado tribunal ou como os outros tribunais do país vêm decidindo determinada matéria”24. O distinguishing qualifica-se como uma das modalidades de rupturas (departures), e tanto maior será sua importância (e necessidade) no ordenamento jurídico de determinado país quanto maior for a autoridade conferida ao direito jurisprudencial; caso contrário, menor será o espaço normativo em que poderão transitar os sujeitos processuais na construção da resposta correta a ser dada ao caso em exame. Inclusive, durante o maior período de rigidez do direito inglês (1898-1966), quando nenhum tribunal, nem mesmo a House of Lords, estava autorizado a superar (overrule) os precedentes já estabelecidos, a técnica da distinção (distinguishing) era de extrema importância para o abrandamento daquela rigidez, temperando o elevado grau de força do stare decisis e limitando a aplicação de precedentes considerados inadequados, ultrapassados ou injustos. É particularmente interessante a capacidade de a exceção confirmar a regra, isto é, a autoridade de um precedente sobressai-se mesmo quando o juiz decide não segui-lo (desde que seja uma overt departure, isto é, uma ruptura explícita em que se leve em consideração o precedente, caso contrário se poderá estar diante de uma decisão per incuriam, passível de reforma justamente por não ter respeitado e levado em consideração determinado precedente), porque é nesse momento que recai sobre o ato 23

DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo, 2ª ed., Martins Fontes: São Paulo, 2007, p. 291. 24 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 5ª ed., rev., mod., ampl., Saraiva: São Paulo, 2014, p. 376.

decisório o ônus argumentativo de romper com o precedente estabelecido – quanto maior for sua autoridade, maior será o ônus argumentativo, cujo grau de desincumbência é inversamente proporcional ao nível de reprovação que recai sobre a decisão (e também sobre o juiz). Mais do que isso, ao se afastar de determinado precedente por ocasião de eventual distinção, não se está a questionar sua validade, eficácia, legitimidade ou a hierarquia do tribunal que o formou, mas apenas a afirmar que se trata de direito não aplicável à espécie. Até mesmo por isso é que, diferentemente do overruling, a distinção (distinguishing) pode ser realizada independentemente do nível hierárquico dos órgãos prolatores da decisão e do precedente.25 No entanto, o distinguishing não pode ser usado de forma inconsistente. Nos países de common law não é incomum (o que não isenta de reprovação) os magistrados forçarem

o

distinguishing

para

se

afastarem

de

determinado

precedente

reconhecidamente ruim (bad law) mas que, pela autoridade e hierarquia que ostenta, não pode ser overruled (revogado) ou afastado de outra forma. Trata-se de uma prática arbitrária que deteriora paulatinamente a força do precedente, quando o caminho correto seria a promoção do overruling. Caso o órgão julgador do caso em análise não detenha poderes para tanto, é recomendável que o precedente seja aplicado e que se faça constar da fundamentação decisória as razões pelas quais tal precedente seria inadequado, ou que se registre eventual ressalva de entendimento.26 O importante é que, com a aplicação do precedente, a parte que se sentir prejudicada terá acesso à via recursal, que constitui o local adequado para ser estabelecido o debate processual acerca da pertinência de se promover, ou não, o overruling. Desse modo, não serão gerados padrões de diferenciação inconsistentes (o que poderia, a longo prazo, comprometer a legitimidade e a credibilidade da técnica, que passaria a ser vista com suspeita, diminuindo a sua força argumentativa e

25

Nesse sentido, confira-se o Enunciado nº 174 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “a realização da distinção compete a qualquer órgão jurisdicional, independentemente da origem do precedente invocado”. 26 Pontue-se que, segundo Resolução 106, de 06.04.2010, que dispõe sobre os critérios objetivos para aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos Tribunais de 2º grau, é levada em consideração a técnica decisória de ressalva, em termos: “Art. 10. Na avaliação do merecimento não serão utilizados critérios que venham atentar contra a independência funcional e a liberdade de convencimento do magistrado, tais como índices de reforma de decisões. Parágrafo único. A disciplina judiciária do magistrado, aplicando a jurisprudência sumulada do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com registro de eventual ressalva de entendimento, constitui elemento a ser valorizado para efeito de merecimento, nos termos do princípio da responsabilidade institucional, insculpido no Código Ibero-Americano de Ética Judicial (2006).”

normativa) e os precedentes incorretos serão revogados da forma constitucional e processualmente adequada. 4.1. Distinguishing within a case e distinguishing between cases Da aplicação do distinguishing podem resultar duas consequências: ou se cria uma exceção à regra jurisprudencial estabelecida, reduzindo o seu campo de incidência, ou se limita a aplicação dessa regra em razão da existência de especificidades (que podem ser até mesmo contextuais) que desautorizam o mesmo tratamento jurisdicional do caso precedente ao caso presente. A primeira etapa para a aplicação do distinguishing é o descobrimento do que restou decidido no precedente, o que remonta à discussão (tão cara ao common law) do que constitui a ratio decidendi. Descobrir a ratio de um precedente constitui, em essência, tarefa de reconstrução do passado e de atribuição de sentido normativo ao texto (à decisão ou ao enunciado sumular, considerados os precedentes que lhe deram origem), a fim de se definir qual é a norma jurisprudencial cuja aplicabilidade ao caso presente será discutida na etapa posterior. Essa tarefa apenas pode ser realizada pelos sujeitos processuais, caso a caso, e em contraditório (lembrando que o contraditório, segundo se defende, deve ser lido à luz da teoria normativa da comparticipação e do policentrismo processuais).27 Trata-se do que Neil Duxbury chama de distinguishing within a case (distinguindo no caso precedente), que consiste em separar os fatos do precedente que são materialmente relevantes daqueles que são irrelevantes, pois é a partir dessa distinção que a norma jurisprudencial será definida.28 A questão se resume ao questionamento do que vale (ou deve valer) como um precedente. Edward Levi ensina que a “forma básica do raciocínio jurídico é o raciocínio por exemplos”; trata-se de um raciocínio de caso a caso que constitui “um processo de três etapas, descrito pela doutrina do precedente, em que uma preposição descritiva do

27

THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. cit. NUNES, Dierle. Processo jurisdicional democrático. Op. cit. 28 DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. Cambrigde University Press, 2008, p. 113.

primeiro caso é transformada em uma regra de direito e, então, aplicada a uma situação similar posterior”.29 Os precedentes são constituídos de (assim como a lei) textos abertos à interpretação e dotados de autoridade. Incumbe ao aplicador do Direito interpretá-lo e extrair-lhe o elemento dotado de força normativa, que pode ter diferentes graus, desde o mais forte, em que a norma é vinculante, salvo razões que recomendam o seu afastamento por ser distinguível do caso presente, ou mesmo superável pela via do overruling, até o mais fraco, quando o precedente terá força meramente ilustrativa – e quanto mais forte o elemento normativo for, mais relevantes se tornam as rupturas, tanto pelo distinguishing como pelo overruling, e mais se exigirá do magistrado ao fundamentar a sua decisão de seguir, ou não, o precedente. De acordo com Thomas Bustamante, a multiplicidade de significados que parcela da doutrina atribui à ratio decidendi parte do equivocado pressuposto de que existe apenas uma ratio decidendi em cada decisão, e que todo o restante seria dispensável.30 Segundo o citado autor: é nas razões que os juízes dão para justificar suas decisões que devem ser buscados os precedentes, e a ausência dessas razões ou a sua superação por outros argumentos mais fortes compromete sua aplicação. As normas extraídas dos precedentes judiciais devem, todas, ser enunciadas sob a forma de enunciados universais do tipo ‘sempre que se verifiquem os fatos operativos (OF), então devem se aplicar as consequências normativas (NC)’.31

Esta forma de perceber o precedente também pode ser encontrada em Geoffrey Marshall, segundo o qual “a ratio talvez deva ser considerada um conceito essencialmente controvertido, porque ele não é puramente descritivo mas também 29

LEVI, Edward H. An introduction to legal reasoning. The University of Chicago: Chicago, 1949, p. 1-

2.

30

BUSTAMANTE, Thomas. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. Editora Noeses: São Paulo, 2012, p. 271-272. Há dois exemplos em que fica claro o acerto da posição do autor: (I) na fundamentação, o magistrado anuncia uma regra geral e uma exceção, sendo o caso resolvida por meio da aplicação da exceção; (II) distinguindo entre regra geral e exceção, o caso, agora, é resolvido com a aplicação da regra geral. Não se poderia dizer que, no primeiro caso, a regra geral seria obiter dictum, ou que, no segundo, a exceção também seria obiter dictum. Da mesma forma, o autor afirma que há decisões despidas de discoverable ratio e que, por isso, carecem de vinculatividade. Seria o caso, por exemplo, de, em um julgamento colegiado, haver convergência de votos com relação à parte dispositiva mas divergência na fundamentação. Nesta situação, pode-se buscar ratios decidendi nos votos isolados de cada magistrado, mas não no acórdão como um todo. Embora seja possível sustentar que as ratios decidendi dos votos isolados constituem, em si, precedentes, a sua autoridade será menor. Ibidem, p. 272-273. 31 BUSTAMANTE, Thomas. Op. cit., p. 270.

valorativo ou normativo [prescriptivo, portanto] em sua força”.32 De modo similar, Lenio Streck e Georges Abboud afirmam que a ratio decidendi constitui-se do “enunciado jurídico a partir do qual é decidido o caso concreto”, isto é, a “regra jurídica utilizada pelo Judiciário para justificar a decisão do caso”, devendo ser, necessariamente, analisada à luz da questão fático-jurídica (caso concreto) que ela solucionou.33 Como os autores do presente artigo já haviam sustentado em outra oportunidade: o caráter normativo da ratio decidendi não exime, portanto, o intérprete do precedente de nele selecionar os fatos relevantes a serem extraídos para comporem a norma que servirá de ponto de partida para casos futuros. O enunciado universal não está pronto e acabado no precedente, aguardando que alguém o aplique sem maiores dificuldades em um caso análogo. A sua elaboração depende, substancialmente, da seleção dos fatos considerados relevantes para o deslinde da controvérsia, e isto constitui tarefa dos participantes do diálogo processual, que debaterão sobre a aplicabilidade de determinado precedente com base naquilo que deve e não deve ser considerado relevante, inexistindo fórmula apriorística para resolver esta questão.34

Realizada essa distinção entre os fatos relevantes e os irrelevantes do precedente para a compreensão de qual é a norma jurisprudencial cuja aplicabilidade será discutida, adentra-se na segunda etapa, que, segundo Duxbury, pode ser chamada de distinguishing between cases (distinguindo entre casos).35 Tendo em vista que jamais um caso será igual ao outro, o distinguishing pode ser sempre realizado em maior ou menor grau, e, embora necessária, mais importante do que a discussão acerca da diferença material entre os fatos do precedente e do caso presente é a discussão valorativa acerca desses fatos, isto é, o debate sobre a relevância normativa das comparações entre esses fatos e sobre em que medida tais comparações são substanciais e podem levar à aplicação da norma jurisprudencial ou à sua rejeição. Ao se aplicar o distinguishing, afirma-se que o estabelecimento de uma distinção normativa consubstancia uma exceção direta ao precedente, ao passo que uma distinção 32

MARSHALL, Geoffrey. What is binding in a precedent. In Interpreting precedents: a comparative study. Edited by D. Neil MacCormick and Robert S. Summers, Aldershot: Ashgate, 1997, p. 512-513. 33 STRECK, Lenio Luiz. ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 2ª ed., rev., atual., Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2014, p. 46. 34 NUNES, Dierle. HORTA, André Frederico. Precedentes? significados e impossibilidade de aplicação self service. Artigo disponível em . Acesso em 28 de dezembro de 2014. 35 DUXBURY, Neil. Op. cit., p. 113.

fática constitui uma exceção indireta. Embora a consequência de ambas as exceções seja a mesma (o afastamento do precedente), o raciocínio implicado na demonstração de cada uma delas é diferente, pelo que a classificação da exceção em direta e indireta não perde seu sentido prático. No primeiro caso (exceção direta), exclui-se do âmbito de aplicação da norma jurisprudencial determinado universo de casos que antes por ela estava abrangida, em razão de circunstâncias especiais; essa operação é conhecida, na lógica, como redução teleológica. No segundo caso (exceção indireta), chega-se à conclusão de que a norma jurisprudencial resta inalterada, mas a situação em exame não constitui hipótese de incidência da referida norma, de modo que suas consequências não podem ser aplicadas (exatamente porque os fatos que nela não estão compreendidos); trata-se de uma forma de raciocínio que, por sua vez, é denominada de argumento a contrario.36 4.2. A redução teleológica. A redução teleológica parte da premissa segundo a qual as normas jurídicas (incluídas as jurisprudenciais) são condicionantes superáveis, possuindo exceções implícitas cuja descoberta fica a cargo do intérprete. À vista de determinadas razões, normalmente movidas por um senso de justiça diante de uma situação específica e mediante a introdução de uma cláusula implícita, estabelece-se uma exceção à regra, reduzindo o seu campo de aplicação e retirando-lhe o seu caráter definitivo para a solução de um caso. Assim, se um tribunal decidiu que no caso de Ana vs Beatriz a consequência X deveria ser aplicada por ocasião dos fatos A, B e C e os mesmos fatos A, B e C ocorreram no caso João vs Henrique, em princípio a consequência X também deveria ser atribuída a esse segundo caso. No entanto, se o tribunal, distinguindo ambos os casos, concluir que a solução X, encontrada para o primeiro, deve ser aplicada não apenas se A, B e C ocorrerem como também o fato adicional D e não havendo D no segundo caso (mas apenas no primeiro, cujo elemento normativo antes não havia sido formulado de forma a expressar D), então quer dizer que esse último não deverá ser regido por X, dada a maior especificidade do primeiro caso e cujo âmbito de aplicação

36

BUSTAMANTE, Thomas. Op. cit., p. 471-473.

foi reduzido (alguns poderiam sustentar que se trata de aplicação combinada do distinguishing com o narrowing37). Em síntese, ao acrescentar novas condições necessárias para se chegar a X e considerando a interligação entre a norma jurisprudencial de determinado precedente e os fatos que lhe deram origem, o tribunal modificou a norma jurisprudencial oriunda do primeiro caso. Deve-se frisar que tal forma de raciocínio deve ser usada com bastante cuidado, pois é censurável a postura do magistrado que, recusando-se a reconhecer a inserção de um caso no âmbito de aplicação de determinado precedente, cria, artificialmente, uma distinção sem diferença relevante. Trazendo conhecimentos da matemática, Maurício Ramires explica que esse tipo de abordagem é o que se denomina de monsterbarring (exclusão do monstro)38, em que se preserva a verdade de algum teorema pela força bruta e, “no que respeita à interpretação de precedentes, significa negar a existência de um padrão de identificação entre casos sem verdadeira razão para isso”39. Há também outra abordagem viciosa, um pouco mais sofisticada, chamada de exception-barring (exclusão da exceção)40, em que, embora se reconheça a plausibilidade de um contraexemplo ao teorema, modifica-se a regra de forma ad hoc para não se sacrificar o teorema por completo, o que acaba por abalar a confiança no

37

O narrowing consiste em uma técnica menos conhecida na aplicação do direito jurisprudencial. Richard M. Re classifica as técnicas utilizadas no raciocínio por precedentes a partir de duas perguntas: primeiramente, deve-se indagar se na melhor leitura do precedente em questão ele se aplica ao caso presente. Em seguida, deve-se perquirir se a corte aplicou o precedente ao dito caso. Seguir (follow) um precedente é aplicá-lo a um determinado caso quando a sua melhor interpretação assim o recomenda; restringir (narrow) um precedente significa não aplicar um precedente, embora a sua melhor interpretação assim o recomendasse; estender (extend) um precedente consiste em aplicar um precedente mesmo quando uma leitura mais conservadora não sugira tal aplicação; e distinguir (distinguish) um precedente significa não aplicar um precedente, porque a sua melhor interpretação assim não o recomenda. Há uma quinta técnica, que, pela sua especialidade, situa-se fora dessa classificação: trata-se do overruling. O mesmo autor ensina que, na utilização do narrowing, a leitura que o intérprete faz de determinado precedente reduz o seu campo de incidência. Nesse caso, o precedente permanece no sistema jurídico, mas de uma forma alterada, de modo que sua aplicação seja negada a determinados casos (zone of application) aos quais deveria originalmente ser aplicado. RE, Richard M. Narrowing Precedent in the Supreme Court. Columbia Law Review, 114 Colum. L. Rev. 1861, UCLA School of Law Research Paper No. 14-20, 2014, p. 1863 e 1869. 38 Suponha a proposição de que a soma dos ângulos de qualquer triângulo é 180º. No entanto, alguém demonstra que a soma dos ângulos de um triângulo desenhado na superfície de uma esfera é maior do que 180º. O monster-barrer irá se limitar a afirmar que a regra (mais especificamente a locução de qualquer triângulo) não contempla triângulos desenhados sobre a superfície de esferas, e a suposta exceção não constitui, em verdade, uma exceção, mas, sim, uma monstruosidade. 39 RAMIRES, Maurício. Op. cit., p. 132. 40 Partindo da mesma proposição sobre triângulos, o exception-barrer modificaria o enunciado original, cuja redação passaria a ser a soma dos ângulos de qualquer triângulo que não é desenhado na superfície de uma esfera é 180º.

teorema original, porque não se sabe se, no futuro, outras modificações serão formuladas. No contexto jurídico, Ramires fornece um elucidativo exemplo dessa forma viciosa de raciocínio, extraído do Judiciário norte-americano. No caso Oregon vs Smith, julgado pela Suprema Corte, o Estado de Oregon havia negado o seguro desemprego a dois americanos nativos, pois tinham sido demitidos por usarem peiote, uma droga alucinógena proibida, embora historicamente utilizada por povos nativos em seus rituais tradicionais. Um desses americanos, Smith, com amparo na 1ª Emenda à Constituição, alegou que a negativa do seguro desemprego violava sua liberdade religiosa, o que foi rejeitado pelo Justice Scalia, ao fundamento de que a Suprema Corte nunca havia decidido que as crenças religiosas de um indivíduo o eximissem de obedecer à lei. No entanto, a Corte já havia, sim, estabelecido uma série de precedentes sobre a matéria, como no caso West Virginia Board of Education vs Barnette, quando se decidiu que crianças testemunhas de Jeová não poderiam ser obrigadas a saudar a bandeira dos Estados Unidos da América em escolas públicas, ou como no caso Sherbert vs Verner, em que se determinou que não se poderia negar o seguro-desemprego a uma mulher adventista demitida por se recusar a trabalhar aos sábados. Ocorre que o Justice Scalia não ignorou os precedentes estabelecidos, mas entendeu que em todos eles a liberdade religiosa estava conjugada com outras proteções constitucionais, como o direito de os pais determinarem a educação dos próprios filhos. A solução adotada foi, então, alterar o precedente, incluindo-lhe uma nova (e questionável) condicionante, pela qual o indivíduo não teria de seguir uma obrigação legal que se contrapusesse às suas convicções religiosas, desde que essa liberdade viesse secundada por outra garantia constitucional41. A lição que se pode tirar desse exemplo é que a redução teleológica não deve ser empreendida de forma leviana. Para se evitar os tipos de abordagem de que se deu notícia, em que o intérprete cria distinções de forma artificial, devem ser buscados parâmetros normativos que limitem a redução teleológica, a fim de que não seja utilizada de forma discriminatória. Postura diversa negaria a própria premissa comparticipativa do CPC/2015 que desautoriza a adoção de um privilégio cognitivo ao aplicador-juiz.

41

RAMIRES, Maurício. Op. cit. P. 133-134.

É necessário, portanto, que as distinções realizadas na redução teleológica sejam consistentes à luz do princípio da igualdade, uma vez que, por via do princípio em questão, “o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas”42, devendo-se perquirir acerca do elemento tido como discriminatório, para, em seguida, analisar se é racionalmente justificável o tratamento desigual à luz do elemento discriminatório adotado e, enfim, indagar se essa justificativa guarda harmonia, ou não, com a Constituição43 em conformidade com o debate processual, em contraditório.44 4.3. O argumento a contrario. No argumento a contrario, por sua vez, conclui-se que os fatos do caso presente não se encontram inseridos no campo de aplicação da norma do caso precedente com relação ao qual se pretende promover o distinguishing, isto é, a conclusão a contrario se impõe quando se verifica que o caso presente não constitui hipótese de incidência do precedente, cujas consequências restarão inaplicadas (se a norma N se aplica a X e a apenas X, então N não se aplica a Y). Em última instância, a ideia por detrás desse tipo de argumento – e que justifica seu nome – é a de que afirmar algo sobre determinada coisa pode ser interpretado como dizer o contrário de outra coisa. Assim, caso se decida que determinada norma não se aplica a uma situação nela não prevista, é possível se inferir que a situação nela não prevista é distinta da situação prevista na norma, o que poderá ser demonstrado à luz de argumentos interpretativos e de comparações.45 Para o sucesso desse tipo de raciocínio, deve-se presumir o caráter relativamente fechado do ordenamento jurídico (a falta de menção a determinado fato nas regras jurídicas não representa falta de regulação desse mesmo fato) e se partir da premissa da ausência de condições suficientes alternativas para a conclusão negada pelo argumento a contrario.

42

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo jurídico do princípio da Igualdade. 3ª edição, atualizada, Malheiros: São Paulo, 2009, p. 18. 43 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Op. cit., p. 21-22. 44 Que explicaremos em breve em outra sede. 45 JANSEN, Henrike. In view of an express regulation: Considering the scope and soundness of a contrario reasoning. Informal Logic, Vol 28, Nº 1, 2008, p. 50.

Com Thomas Bustamante aprendemos duas formas de reconstrução do argumento a contrario a fim de verificar a sua correção lógica: uma simples e outra complexa. A forma simples parte da análise do significado dos conectores dos pressupostos de fato às consequências jurídicas que lhe são atribuídas, isto é, deve-se examinar qual é o tipo de relação se-então, que pode ser de três espécies: (1) implicação material ou extensiva, em que as hipóteses são meramente suficientes para as consequências; (2) replicação ou implicação intensiva, na qual a relação da hipótese é necessária para sua consequência; e (3) equivalência ou implicação recíproca, quando a hipótese é necessária e suficiente para a consequência. Fora de (2) e de (3), isto é, quando se tratar de uma implicação material ou extensiva, o argumento a contrario não terá utilidade e será mero sofisma.46 Bustamante, com apoio em Klug, desenvolve uma fórmula para descrever o argumento a contrario nas duas situações em que é útil. No caso em que as consequências jurídicas C somente tenham lugar quando se deem as hipóteses H (isto é, se tratar de uma replicação ou implicação intensiva), então as consequências C nunca terão lugar quando as hipóteses H não estejam presentes, o mesmo valendo se as hipóteses são ao mesmo tempo necessárias e suficientes para as consequências C (o caso da equivalência ou implicação recíproca). Embora não se possa dizer que o argumento a contrario seja interpretativo em si mesmo, ele depende da interpretação, especialmente quando se analisa a relevância do conector e se a relação é de suficiência, de necessidade, ou de ambas.47 Ao se aplicar o argumento a contrario, vale o mesmo alerta feito para a redução teleológica: toda diferença é uma questão de critério, mas o raciocínio não pode se perder em critérios artificiais, que configurarão error in procedendo ou in judicando, passível de correção mediante interposição de recurso. A segunda forma do argumento a contrario é dita complexa ou contextual pois, diferentemente da forma mais simples (que tem por base apenas uma norma), refere-se à relação entre as normas gerais e específicas de um ordenamento jurídico.48 Nesse caso, a ausência de regulação de uma situação fática em determinado precedente implica, necessariamente, a aplicação de outra norma jurídica, mais geral e capaz de reger um 46

BUSTAMANTE. Thomas da Rosa de. Op. cit., p. 488-494. BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Op. cit., p. 494-495. 48 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Op. cit., p. 495-497. 47

número maior de situações. Vale dizer, “o uso do argumento a contrario para distinguir um caso C de um precedente judicial P significa [...] a afirmação de uma regra geral segundo a qual os casos não previstos em P serão regulados de forma distinta”49. Um exemplo hipotético pode ajudar na compreensão: suponha-se uma norma jurídica N1, que estabeleça o amplo acesso ao Poder Judiciário em caso de lesão, ou ameaça de lesão, a direito; suponha-se também uma norma N2, segundo a qual inexiste interesse de agir quando a parte, valendo-se da via jurisdicional, formula pedido em face da administração pública com relação ao qual o órgão administrativo competente não tenha se negado a concedê-lo na via própria. Se a parte demonstrar que, a despeito de ter formulado o pedido na via administrativa, esgotando todos os atos que poderia praticar no sentido de satisfazer o seu interesse, a administração pública quedou-se inerte, é de se aplicar a norma N1 (a regra geral de acesso à justiça, com a outorga, ao final, de uma sentença de mérito), porque se conseguiu demonstrar a necessidade da via jurisdicional em razão da ineficiência do procedimento administrativo (a omissão do órgão público) e da possibilidade de lesão a direito em decorrência dessa inércia. 4.4. Analogias e contra-analogias: síntese. Embora haja uma importante diferença teórica entre o raciocínio por analogia e o argumento a contrario (o primeiro pressupõe lacunas no ordenamento e uma pluralidade de alternativas a partir da qual se buscará construir a solução para o caso; o segundo parte da premissa de que o ordenamento jurídico é fechado, isto é, de que não existem lacunas), há duas questões de ordem prática que (assim como na redução teleológica) os aproximam e os tornam tão relevantes para o raciocínio por precedentes. A primeira questão reside em que constituem formas de argumentação eminentemente comparativas, pois o intérprete deve comparar os elementos essenciais do caso precedente (no contexto brasileiro, incluem-se também os casos sumulados e as teses estabelecidas pelos tribunais), buscando estabelecer padrões de semelhanças ou distinções; a segunda questão (que se relaciona com a primeira) consubstancia-se na exigência de que o intérprete proceda a um cuidadoso juízo de adequabilidade de princípios, pois, como explica Bustamante com amparo em Bankowski, “a solução de um caso em que se cogita da analogia está no estabelecimento de ponderações para o

49

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Op. cit., p. 502.

fim de justificar ou dispensar analogias e diferenciações (disanalogies)”, sendo que “a noção de identidade (sameness) invoca um juízo sobre a qualidade das semelhanças entre casos concretos, e isso só pode ser aferido por meio dos princípios fundamentais do Direito” – aliás, a própria escolha entre a analogia e o argumento a contrario deve ser motivada em razões fortes o suficiente para que uma ou outra forma de raciocínio seja adotada.50 A afirmação de que cada caso é um caso, apesar de não estar incorreta, não pode obscurecer uma outra verdade, segundo a qual a cada experiência sentida (e o precedente não deixa de ser um determinado tipo de experiência) diminui-se o grau de imprevisibilidade, pois o sujeito que experimenta ganha um novo horizonte dentro de algo que para ele pode tornar-se uma nova experiência. A lição, extraída da filosofia gadameriana, transmite a ideia de que a atividade interpretativa não parte de um grau zero, pois o horizonte do intérprete já é possuidor de algum sentido (até por isso não se pode falar em caso absolutamente novo). Por isso se diz que o precedente diminui o imprevisível e acrescenta algo à experiência jurídica, estabelecendo uma força gravitacional (Dworkin) que pode vir a influenciar o julgamento de outros casos. Assim, se cada precedente, ainda que seja o primeiro de sua linha, é decidido com base em argumentos de princípios (o Direito rejeita casuísmos), ao se raciocinar por precedentes e estabelecer padrões por meio de analogias e contra-analogias, deverse-á verificar se os mesmos princípios presentes na individualidade do caso passado encontram-se presentes no caso em exame, e isto constitui o núcleo da aplicabilidade do direito jurisprudencial.51

5. O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: O QUE ESPERAR? Para utilizarmos a expressão de Lenio Streck52, o art. 926 do CPC/2015 constitui a chave de leitura do direito jurisprudencial no Brasil. O citado dispositivo estabelece que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e 50

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Op. cit., p. 535. RAMIRES, Maurício. Op. cit., p. 76-77. 52 STRECK, Lenio. Novo CPC terá mecanismos para combater decisionismos e arbitrariedades? Artigo publicado em 18 de dezembro de 2014, no sítio eletrônico Consultor Jurídico: . 51

coerente”. Até o substitutivo da Câmara dos Deputados, a redação do dispositivo contemplava apenas a estabilidade da jurisprudência (tal como o CPC/1973 já o fazia), não mencionando a integridade e a coerência. Enquanto o primeiro atributo é autorreferente e, sem maiores compromissos com o contexto do todo da prática jurídica ou com o sistema de princípios inaugurado pela Constituição, diz apenas com os julgados passados e com a manutenção de uma linearidade e uniformidade decisória, os dois últimos – que devem ser compreendidos à luz da filosofia dworkiana – guardam um “substrato ético-político para sua concretização”53, pois promovem “a união da vida moral e política dos cidadãos”54. Com efeito, a integridade exige uma coerência de princípios e insiste em que: o direito – os direitos e deveres que decorrem de decisões coletivas tomadas no passado e que, por esse motivo, permitem ou exigem a coerção – contém não apenas o limitado conteúdo explícito dessas decisões, mas também, num sentido mais vasto, o sistema de princípios necessários a sua justificativa.55

A integridade e a coerência consubstanciam, então, atributos dotados de consciência histórica, uma vez que “esse sistema de princípios deve justificar tanto o status quanto o conteúdo dessas decisões anteriores”56. Decidir à luz da integridade e coerência representa muito mais do que garantir a estabilidade. Jurisprudência meramente estável é uma jurisprudência que se basta e, embora se decida de acordo com o que já se decidiu, não há preocupação em se decidir conforme a Constituição, seus princípios, a legalidade, ou mesmo em harmonia com o que os outros juízes e tribunais vêm decidindo. É possível decidir reiteradamente em um sentido equivocado, injusto, que viole o Direito, e, ainda assim, afirmar que se está dando cumprimento à ideia de estabilidade, pois o referencial é tão somente o sujeito (solipsista), e não a comunidade (de princípios). Por sua vez, decidir de forma coerente é decidir para e no sistema jurídico e nos princípios que o definem (não basta apenas respeitar o que se decidiu anteriormente – isto é ser estável –; é preciso ser coerente com o contexto histórico e jurídico em que se está inserido), e decidir de forma íntegra é identificar direitos e 53

STRECK, Lenio. Por que agora dá para apostar no projeto do novo CPC! Artigo publicado em 21 de outubro de 2013, no sítio eletrônico Consultor Jurídico: . 54 DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 230. 55 DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 273. 56 DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 274.

deveres “a partir do pressuposto de que foram criados por um único autor – a comunidade personificada –, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade”57. Ainda segundo o filósofo norte-americano, o direito como integridade exige que: um juiz ponha à prova sua interpretação de qualquer parte da vasta rede de estruturas e decisões políticas de sua comunidade”, devendose perguntar “se ela poderia fazer parte de uma teoria coerente que justificasse essa rede como um todo.58

Na leitura que Streck faz de Dworkin: a integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito. Trata-se de uma garantia contra arbitrariedades interpretativas. A integridade limita a ação dos juízes; mais do que isso, coloca efetivos freios, através dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é uma forma de virtude política. A integridade significa rechaçar a tentação da arbitrariedade59.

Sobre esse papel de manutenção da integridade jurídica que o precedente desempenha em determinada comunidade, Ramires sustenta que há duas coisas que o juiz contemporâneo não pode fazer: a primeira, desconhecer o todo das práticas e decisões, escrevendo (para utilizar a linguagem metafórica do romance em cadeia) o seu “capítulo” como se tivesse total discricionariedade; a segunda, copiar o capítulo antecedente, o que representaria uma quebra de continuidade – a integridade, portanto, representa um ônus adicional no exercício da atividade jurisdicional. Assim, há certas condições constituintes desse ônus para que a integridade e a coerência sejam preservadas: a pesquisa por precedentes não deve estar viciada (vedação ao confirmation bias60); essa pesquisa deve levar em consideração o todo, não 57

DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 271-272. DWORKIN, Ronald. Op. cit., p. 294. 59 STRECK, Lenio. Por que agora dá para apostar no projeto do novo CPC!, op. cit. 60 Sobre essa propensão que contamina o raciocínio do intérprete, vale a pena conferir o artigo escrito em outra sede por um dos autores do presente trabalho em coautoria com Alexandre Bahia. Segundo se demonstra, o juiz que adota uma postura de confirmation bias tem o seu raciocínio distorcido, “de uso e confirmação de todo material (v.g. provas, julgados) que atesta uma versão dos fatos (que acredita) e negligencia e desprezo a tudo que a contradiz”. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre. Processo e República: uma relação necessária. Artigo publicado no seguinte link: http://justificando.com/2014/10/09/processo-e-republica-uma-relacao-necessaria. Acesso em 18 de fevereiro de 2015. Confira-se, ainda, o seguinte trecho, extraído do artigo citado: “Estudos empíricos (psicológicos e jurídicos), realizados com magistrados americanos, demonstram que o juiz sofre propensões cognitivas que o induzem a usar atalhos para ajudá-lo a lidar com a pressão da incerteza e do 58

devendo ser fragmentária; não se deve esquecer de questionar as especificidades do caso presente e do caso que deu origem ao precedente em análise; e a utilização de precedentes não deve substituir um estudo sincero e aprofundado da doutrina e da evolução das práticas judiciais.61 Na manutenção da estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência (art. 927), os juízes e tribunais deverão observar “as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade” (inc. I); “os enunciados de súmula vinculante” (inc. II); “os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos” (inc. III); “os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional” (inc. IV); “a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados” (inc. V). Esse rol não é exaustivo, não excluindo, portanto, que as premissas estabelecidas no art. 926 sejam buscadas em outros tipos de decisão, desde que eles exprimam princípios úteis ao desenvolvimento do raciocínio jurídico em outros casos, uma vez que o raciocínio por precedentes é sempre relevante quando a decisão passada tiver aptidão para constituir indício formal da viabilidade de determinada interpretação do Direito – o que, por certo, não se limita ao disposto nos incisos do art. 927. O art. 926 do CPC funciona, portanto, como uma linha mestra para a formação, aplicação e o desenvolvimento do direito jurisprudencial no Brasil, cujas técnicas de aplicação, de distinção e de superação devem partir das premissas nele estabelecidas – a estabilidade, a integridade e a coerência. Embora o dispositivo se refira apenas aos tribunais, os magistrados de primeira instância encontram-se igualmente jungidos a ditas premissas, devendo zelar para que tempo inerentes ao processo judicial. É evidenciado que mesmo sendo experiente e bem treinado, sua vulnerabilidade a uma ilusão cognitiva no julgamento solitário influencia sua atuação. Um exemplo singelo encontrado nas pesquisas, que aclara esta situação, é a propensão do magistrado que indefere uma liminar a julgar, ao final, improcedente o pedido. Por um efeito de bloqueio ficou demonstrado que o juiz fica menos propenso à mudança de sua decisão mesmo à luz de novas informações ou depois de mais tempo para a reflexão. Tal bloqueio cognitivo ocorre por causa da tendência a querer justificar a alocação inicial de recursos (fuga ao retrabalho), confirmando que a decisão inicial estava correta. Tal constatação deve induzir o fomento ao debate como ferramenta de quebra das ilusões e propensões cognitivas. E aqui poderíamos ampliar no caso brasileiro para o uso de ementas de julgados e súmulas sem reflexão e como âncoras facilitadoras dos julgamentos, com o único sentido privado de otimizar numericamente o número de decisões. Faz-se uso de súmulas e ‘precedentes’ sem a devida recuperação do(s) caso(s) paradigma(s), valendo-se apenas de ementas ou do pequeno texto das súmulas, como se uns e outros pudessem ter algum sentido sem aquilo (os casos) que lhes deram origem e se confundindo a ratio decidendi (fundamento determinante) com algum trecho da ementa ou do voto.” 61 RAMIRES, Maurício. Op. cit., p. 104, 124-125.

suas decisões exprimam entendimentos estabilizados, coerentes e íntegros à luz do sistema jurídico e da prática decisória como um todo, até mesmo porque, levando-se em consideração que a atividade decisória consubstancia tarefa de individualização do Direito, é a partir da atividade processual de primeira instância (cada vez mais valorizada pela comunidade jurídica internacional) que a facticidade de cada caso é processualmente dimensionada, formando o substrato sobre o qual, posteriormente, a jurisprudência das demais instâncias será formada (sem as partes não existe o todo; sem integridade e coerência não há harmonia no todo), conforme estabelece o § 2º do artigo em questão, pelo qual, “ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação”. Outro dispositivo fulcral do CPC para a aplicação do direito jurisprudencial é o § 1º do art. 489, segundo o qual “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que” (inc. I) “se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida”; (inc. II) “empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso”; (inc. III) “invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão”; (inc. IV) “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”; (inc. V) “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”; ou (inc. VI) “deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. Verifica-se a preocupação do novo Código com a fundamentação estruturada das decisões62, exigência constitucional estabelecida no inc. IX do art. 93 da Constituição da República que constitui garantia democrática contra o arbítrio e a discricionariedade do magistrado. Essa discricionariedade, que, no fundo, constitui um salvo-conduto para a atribuição arbitrária de sentidos, manifesta-se de diversas maneiras, tais como nas apostas na interpretação como ato de vontade do juiz, na interpretação como fruto da subjetividade judicial, na interpretação como produto da consciência do julgador, na crença de que os casos difíceis devem ser resolvidos a partir de uma escolha do juiz, no 62

THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. Op. cit.

gosto pelo grau zero interpretativo, e no confirmation bias – postura em que antes se decide (na verdade, escolhe-se arbitrariamente determinada interpretação) para apenas após se buscar a “fundamentação” correlata, com a citação de jurisprudência, argumentos, fatos e doutrina de forma parcial e favorável (biased) tão somente à solução adotada, negligenciando-se(omitindo-se) tudo aquilo em sentido diverso. Fundamentar (ou motivar) a decisão não é o mesmo que explicá-la, conferindolhe uma falsa aparência de validade. Como esclarece Ramires: o juiz explica, e não fundamenta, quando diz que assim decide por ter incidido ao caso ‘tal ou qual norma legal’. (...) [É] preciso que o julgador, no mesmo passo em que diz por que acolheu as razões do vencedor, afirme as razões pelas quais rejeitara a interpretação dada pela parte sucumbente63.

Decidir com base no enunciado de súmula S, na tese T, ou na lei L não consubstancia uma livre escolha de sentido, porque hoje se sabe que o texto da lei (ou da súmula, ou da tese, ou de uma decisão) não possui um sentido unívoco e, mais do que tudo, é preciso que seja estabelecida, racional e ostensivamente, a relação lógica entre o ato normativo e o caso em exame, e é disso que se trata o §1º do art. 489 do CPC. No que concerne o tema do presente trabalho, os incs. V e VI do parágrafo em questão estabelecem, de um lado, a necessidade de que a aplicação de determinado precedente (oriundo de julgamento de casos repetitivos ou não, bastando que constitua indício formal da viabilidade de determinada interpretação e aplicação do Direito) e/ou enunciado sumular (que deve ser sempre lido levando em consideração os julgados que, conjugadamente, lhe deram origem) seja realizada com a demonstração de que o entendimento neles consubstanciado se ajusta ao caso concreto (raciocínio por analogia), e, de outro, a obrigatoriedade de fundamentação da não aplicação de determinado precedente e/ou enunciado sumular por ocasião de distinções existentes no caso concreto que recomendam o tratamento diferenciado (raciocínio por contraanalogia)64.

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RAMIRES, Maurício. Op. cit., p. 41-42. Nesse contexto, vale a pena se conferir o Enunciado nº 306 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, segundo o qual “o precedente vinculante não será seguido quando o juiz ou tribunal distinguir o caso sob julgamento, demonstrando, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta, a impor solução jurídica diversa”.

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Como se viu, a técnica do distinguishing e, de forma mais panorâmica, a aplicação de precedentes se baseiam substancialmente na conjugação dessas duas formas de raciocínio jurídico (analógico e contra-analógico), e o novo CPC andou bem em exigir a explicitação de ambas no ato decisório, até mesmo porque é na ausência da demonstração da (in)adequação de determinado precedente e/ou enunciado sumular ao caso concreto que pode residir o fundamento para que a solução oposta seja adotada em detrimento da escolhida pelo magistrado, que deixou de proceder ao raciocínio jurídico correto. Agora, com o novo CPC, o jurisdicionado pode alegar nulidade da decisão que não promover esse juízo de adequação/distinção. Mas, por outro lado, não deve passar despercebido que constitui ônus argumentativo das partes desenvolver os padrões de analogia e de contra-analogia que favoreçam os seus interesses. Por isso, é corolário do princípio da boa-fé objetiva a necessidade de a parte alegar em seus arrazoados precedentes ou enunciados sumulares que expressem entendimento favoráveis à sua pretensão, apesar de sabermos que, na prática, o processo consista em um ambiente não cooperativo. E é exatamente pela percepção de que os sujeitos processuais com recorrência não tendem a cooperar uns com os outros que o Novo CPC adota uma teoria normativa da comparticipação, que contra-faticamente induz a adoção de um comportamento cooperativo.65 Assim, deve a parte procurar estabelecer os padrões de semelhança e de distinção (e eventualmente até de superação – overruling) com relação ao precedente ou enunciado sumular que gravite sobre a matéria. Perceba-se que a negligência deste comportamento na petição inicial pelo autor, pode conduzi-lo a um julgamento liminar de improcedência, nos moldes do art. 332, CPC-2015 e, ainda, pode privá-lo da obtenção de uma tutela satisfativa da evidência, nos moldes do art.311, II, CPC-2015. Isto fomenta a necessidade de se levar a sério a fase pré-processual do feito, de modo a se proceder uma preparação da causa, inclusive com análise de riscos, tomando por base, entre outros fatores, os precedentes (art. 927), para que se vislumbre as potencialidades decisórias.

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THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. cit. NUNES, Dierle. A função contra-fática do direito e o Novo CPC. Op. cit..

Ademais, do mesmo modo que não é dado ao magistrado desconhecer o todo da prática jurídica, ignorar a argumentação desenvolvida pelos demais sujeitos processuais, ou não motivar as suas decisões, as partes (por meio de seus respectivos advogados) têm o dever de, agindo de boa-fé e com transparência, trabalhar com todos os precedentes (pelo menos os mais emblemáticos) e enunciados sumulares que digam respeito à temática tratada em seus arrazoados, ainda que aparentemente contrários aos seus interesses – daí a adoção do dever de se levar em consideração os argumentos relevantes das partes (art. 489, §1º, IV).66 Com isso, a discussão processual se concentra em um debate acerca da aplicabilidade de determinado precedente e/ou enunciado sumular ao caso em exame, podendo-se inferir que o ônus argumentativo não é apenas do magistrado, mas também das partes (noção de comparticipação e de policentrismo). No relatório de recente pesquisa intitulada “A força normativa do direito judicial: uma análise da aplicação prática do precedente no direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário”, elaborado por grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) a partir de dados empíricos de 10 tribunais (incluindo o STF e STJ), algumas considerações foram feitas a respeito do dispositivo em questão, valendo a pena sua completa transcrição: O art. [489], § 1º, do projeto estabelece, nesse sentido, que ‘não se considera fundamentada a decisão, sentença ou acórdão que’: IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limita a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. Esses três preceitos nos parecem fulcrais para compreender a sistemática do precedente vinculante no direito brasileiro, pois tornam obrigatória uma cultura argumentativa na práxis jurídica nacional. O inciso IV, ao tornar obrigatório enfrentar todos os argumentos aduzidos pelas partes, evoca um discurso de aplicação sobre o precedente judicial, fazendo com que os juízes, necessariamente, tenham de tomar em conta todas as circunstâncias específicas do caso concreto, e todas as razões dadas pelas partes para a interpretação ou re-interpretação do precedente, bem como seu ajustamento a novos dados empíricos e normativos que eventualmente não tenham sido considerados anteriormente. O inciso 66

THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo Civil: Fundamentos e sistematização. Op. cit.

V, por outro lado, reforça essa obrigação, exigindo que a aplicação do precedente – é dizer, a sua extensão por analogia para casos semelhantes – seja expressamente pautada pelos princípios e razões justificatórias que fundamentam o precedente. Neste particular, o Novo Código de Processo Civil Brasileiro se afasta da doutrina positivista do precedente judicial, que predominou no Reino Unido, principalmente na Inglaterra, durante o século XIX e a maior parte do século XX. Segundo esta ultrapassada doutrina, que não se aplica nem mesmo naquele sistema jurídico, como explicamos nas seções II e III deste trabalho, o precedente é vinculante apenas em razão da autoridade que o sistema jurídico atribui a determinados órgãos jurisdicionais. O inciso V parece acatar, expressamente, a concepção pós-positivista ou discursiva do precedente judicial, tal como defendida por MacCormick e reforçada neste trabalho, que defende expressamente que a vinculação ao precedente é na verdade uma vinculação aos fundamentos da decisão, aos princípios que a justificam e que devem ser repetidos com fundamento nas exigências de imparcialidade e universalizabilidade do direito. O fundamento do precedente não é apenas a auctoritas, mas também a ratio, que se determina pelas exigências de coerência, integridade e racionalidade do sistema jurídico. O inciso VI, por seu turno, exige o mesmo tipo de procedimento intelectual e ônus argumentativo para a diferenciação do precedente. Na realidade, distinguishing e extensão por analogia constituem duas facetas do mesmo processo hermenêutico, diferenciando-se apenas pelo resultado desse procedimento. Os incisos V e VI exigem unicamente, portanto, que esse procedimento cumpra o dever de motivação das decisões judiciais e obedeça a todas as constrições que esta impõe sobre a argumentação jurídica. O inciso VI adota ainda, expressamente, o princípio da inércia na aplicação de precedentes, que havia sido defendido por Perelman e Alexy em suas teorias da argumentação jurídica. Como já se teve oportunidade de explicar em outra ocasião, ‘o caráter evolutivo do direito repele as cristalizações e a estagnação. Entre os movimentos de continuidade e de evolução, é verdade, existe contínua tensão, a que ALEXY chamou de universalidade e de princípio da inércia (Trägheitsptinzip)’. O princípio da inércia exige que o afastamento do precedente encontre justificação racional: ‘quem quer que deseje se afastar de um precedente detém o ônus da argumentação’.”67

A única ressalva a ser feita no trecho transcrito é que a sistemática com a qual o dispositivo foi elaborado torna despiciendo se falar em princípio da inércia, uma vez que tanto quanto na hipótese de realização de distinguishing ou de overruling (inc. VI) como na de aplicação de precedentes (oriundos de casos sumulados ou não, ou de julgamentos de casos repetitivos) (inc. V) recairá sobre o intérprete (a parte a quem interessar e ao magistrado) o ônus argumentativo, o que, aliás, já havia sido mencionado no próprio relatório. 67

BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. (coord.). A força normativa do direito judicial: uma análise da aplicação prática do precedente no direito brasileiro e dos seus desafios para a legitimação da autoridade do Poder Judiciário. Brasília, CNJ. 2014, p. 195 e 196

Espera-se que os juízes e tribunais levem a sério as exigências do § 1º do art. 489 do CPC, que, se desrespeitadas, tornam a decisão nula por ausência de fundamentação idônea – e as decisões de embargos declaratórios também não poderão vir pré-formatadas, ao estilo de “não se vislumbrando vícios de omissão, obscuridade e contradição, devem ser rejeitados os embargos de declaração”, pois se estaria violando o inc. III do citado dispositivo. Como já se aludiu, trabalhar com o direito jurisprudencial não deve servir de atalho para, no atacado, resolver massivamente os casos que chegam ao Judiciário. Se, de um lado, a formatação de teses e de enunciados sumulares favorece a uniformidade do Direito e a previsibilidade e confiança do jurisdicionado, de outro, não deve servir de escusa para o Judiciário deixar de analisar, profunda e detidamente, os casos que lhe são submetidos, aplicando, ou deixando de aplicar, o direito jurisprudencial com base em razões de fato e de direito construídas comparticipadamente pelos sujeitos processuais. Ambos os dispositivos analisados – o art. 926 e o § 1º do art. 489 – constituem, portanto, comandos contra-fáticos e núcleo normativo para o desenvolvimento e a aplicação do direito jurisprudencial no Brasil. Cabe aqui, pela exiguidade do espaço, somente apresentar estes pilares mínimos da aplicação do distinguishing em conformidade com o Novo CPC, mas em breve apresentaremos em outra sede os diversos dispositivos e técnicas da nova legislação que disciplinarão a aplicabilidade de precedentes, enunciados sumulares e padrões decisórios, demonstrando-se de que modo o jurisdicionado pode trabalhar com padrões de semelhança e distinção.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Viu-se que não há razões para se sustentar a impossibilidade de adoção de técnicas desenvolvidas em tradições jurídicas estrangeiras na prática judiciária brasileira, desde que se proceda à necessária adequação dessas mesmas técnicas à nossa realidade, cujas características são marcadas pela quantidade de processos e pela forma de construção de precedentes, os quais são formados com recorrência pelos Tribunais Superiores e após a vigência do Novo CPC inclusive pelos tribunais de segundo grau, para nascerem como padrões decisórios.

Tudo isso ganha importância com a aprovação do Novo Código de Processo Civil, que traz em seu âmago um tratamento específico do direito jurisprudencial e dimensiona uma função contra-fática do direito na tentativa de promover um aprimoramento qualitativo do sistema de precedentes, de modo a ofertar um diálogo genuíno na formação dos julgados que leve a sério todos os argumentos relevantes para o deslinde da situação em julgamento. Nesse contexto, o CPC/2015 busca se alinhar ao modelo democrático e constitucional de processo, com o reforço de seu aspecto principiológico logo em seu capítulo introdutório, que menciona expressamente o princípio de boa-fé objetiva (art. 5º), da cooperação entre os sujeitos processuais (art. 6º – teoria normativa da comparticipação), do contraditório como paridade de armas (art. 7º), de bilateralidade de audiência (art. 9º), e, mais importante, como garantia de influência e não-surpresa (art. 10), de modo a impedir a potencial manutenção do sentido das reformas processuais gestadas sob um discurso neoliberal e quebrando o “velho” modo de julgamento empreendido pelos magistrados (solipsismo). Viu-se, também, que o precedente jamais será anunciado de forma completa e única, pois é a partir das distinções, das ampliações e das reduções que os precedentes são dinamicamente refinados pelo Judiciário (sempre a partir das contribuições de todos os sujeitos processuais), à luz de novas situações e contextos. Impõe-se normativamente uma releitura das técnicas de padronização decisória, com a finalidade contra-faticamente fornecer subsídios para a reversão do quadro de hiperintegração do direito gerado pela aplicação das aludidas técnicas e para a correta aplicação do direito jurisprudencial como fonte normativa. Nesse desiderato, revelam-se indispensáveis a criação e o dimensionamento de técnicas de distinção no momento de aplicação do direito jurisprudencial ao caso concreto. Se, de um lado, é verdade que o precedente originário estabelece o primeiro material jurisprudencial (não se ignora o texto legal e a doutrina) sobre o qual se debruçarão os intérpretes dos casos subsequentes, com o passar do tempo, uma linha de precedentes se formará a partir daquele primeiro precedente, confirmando-o, especificando-o e conferindo-lhe estabilidade, e a técnica da distinção (distinguishing) desempenha uma importante função no amadurecimento dos precedentes e, porque também não, dos padrões decisórios e do direito jurisprudencial como um todo.

O distinguishing qualifica-se, então, como uma das modalidades de rupturas (departures), e tanto maior será sua importância (e necessidade) no ordenamento jurídico de determinado país quanto maior for a autoridade conferida ao direito jurisprudencial; caso contrário, menor será o espaço normativo em que poderão transitar os sujeitos processuais na construção da resposta correta a ser dada ao caso em exame. Assim, se cada precedente, ainda que seja o primeiro de sua linha, é decidido com base em argumentos de princípios (o Direito rejeita casuísmos), ao se raciocinar por precedentes e estabelecer padrões por meio de analogias e contra-analogias, deverse-á verificar se os mesmos princípios presentes na individualidade do caso passado encontram-se presentes no caso em exame, e isto constitui o núcleo da aplicabilidade do direito jurisprudencial. A estruturação pela doutrina e jurisprudência pátrias de técnicas de distinção (distinguishing) a partir do CPC/2015 impõe-se, portanto, como decorrência lógica da concretização do modelo constitucional de processo no marco da convergência de tradições jurídicas (que deve ser lida sob a luz da Constituição e das normas fundamentais da nova legislação) e da utilização do direito jurisprudencial como fonte normativa e garantia de manutenção de um ordenamento jurídico coerente e uniforme, atributos que remontam, em última análise, à integridade do Estado como garantidor de um sistema jurídico único.

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