Aplicação dos precedentes no sistema norte americano

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Aplicação dos precedentes no sistema norte americano – palestra proferida por Luiz Guilherme Marinoni (22/11/2012)
A aplicação dos precedentes nos EUA não é uma questão técnico-jurídica, mas tem a ver com as particularidades históricas e com as contingências políticas que dizem respeito à nação americana e à própria história da Inglaterra, de modo que, em primeiro lugar, me parece desnecessário deixar claro que common law" não se confunde com "stare decisis".
Há muitos doutrinadores que de forma apressada tentam vincular o "common law" com "stare decisis", ou seja, "common law" com força obrigatória dos precedentes como se a força obrigatória dos precedentes fosse algo inseparável do "common law" ou como se o "common law" só pudesse ter sobrevivido durante uns tempos com a força obrigatória dos precedentes. Entretanto, não é assim. O "common law" sobreviveu por séculos sem regras de precedentes, ou seja, as chamadas "rules of precedents", sem as regras e as elaborações técnicas que permitiram, em primeiro lugar, a compreensão, e, em segundo lugar, a aplicação dos precedentes. Em outras palavras, conceito como "ratio decidendi" e "obiter dicta", obviamente, não estavam presentes na tradição do "common law".
Entretanto, alguém perguntaria: Pois bem, mas por que os ingleses passaram a respeitar os precedentes das Cortes Superiores se lá não existia elaboração teórica ou regra jurisprudencial ou legal determinando a observância dos precedentes dos tribunais superiores?
Isso ocorreu fundamentalmente porque o "common law", como todos sabem, é um direito costumeiro que regulou a vida dos "Englishmen". É direito costumeiro que permitiu a tutela da liberdade dos direitos do povo inglês.
É um direito que, na verdade, segundo as elaborações dogmáticas, ou era descoberto (e essa era a posição do Blackstone e, depois, a posição de Coke), como se o "common law" fosse um oráculo que tivesse que estar sempre à disposição do bom juiz para ser revelado diante das necessidades do caso concreto ou teria que ser criado como, posteriormente, sustentou Austin e também Bentham fundando a teoria constitutiva da jurisdição.
Na Inglaterra, e na "common law" até hoje, existe uma grande disputa entre a teoria declaratória da jurisdição – o direito é descoberto a partir do "common law" e a teoria constitutiva da jurisdição – o direito é criado pelo juiz.
Hoje, para se ter uma ideia nos nossos dias, pode-se lembrar a polêmica acirrada que existe nos EUA entre Dworkin e Hart e também Joseph Hass, por exemplo. Enquanto, Dworkin, por incrível que pareça, sustenta que o Direito deve ser descoberto através da interpretação da constituição, Hart e Hass (são positivistas) dizem que o juiz cria o direito.
Isso é curioso porque todos supõem que a afirmação de que o juiz cria o direito é algo que não poderia ser dito por um positivista. Entretanto, é o contrário, os positivistas, na teoria do "common law", sustentam que o juiz cria o direito; enquanto que os interpretativistas, como Dworkin, sustentam que o juiz descobre o direito.
Voltando à tradição do "commom law". Como não existiam "rules of precedentes" na tradição do "common law", os juristas dessa tradição, como Sympson, deixavam claro que a sobrevivência do "common law" não tem nada a ver com o respeito aos precedentes. Entretanto, nós para podermos compreender, de forma crítica, a razão pela qual os precedentes obrigatórios foram instituídos no "common law" inglês e no "common law" estadunidense e não no "civil law", temos necessariamente de tomar em conta, ainda que de forma rápida, alguns aspectos que dizem respeito à formação do "common law" e do "civil law".
Basicamente, um problema surgido com os valores da Revolução Francesa e os valores da chamada Revolução Gloriosa ou Puritana de 1688.
Todos sabem que a Revolução Francesa pretendeu destruir o direito antigo e criar um direito novo capaz de tutelar a liberdade da classe emergente, ou seja, da burguesia. A Revolução Francesa destruiu o direito comum e instituiu o direito novo. A Revolução Francesa, para assim poder atuar, teve que deixar de lado o poder do judiciário. Isso porque também, como todos sabem, os juízes pós-revolução francesa detinham laços espúrios com as classes que dominavam anteriormente a revolução, ou seja, com o rei, os senhores feudais e com outras oligarquias. Nesta época, em que os cargos de juiz eram herdados e até mesmo comprados, obviamente, que não podia dar ao juiz a possibilidade de exercer um poder maior. Não foi outra a razão que Montesquieu, ao elaborar a teoria da Separação dos Poderes, deixou claro que o juiz deveria se comportar como um ser inanimado, alguém que deveria, simplesmente declarar as palavras da lei quando então surgiu a célebre locução "bouche des la loi", ou seja, os franceses não só destruíram o direito comum, como retiraram qualquer poder do juiz. Isso porque não podiam acreditar no juiz. E é por essa razão que nos países em que o pensamento de Montesquieu incidiu de forma mais incisiva. Os juízes foram proibidos de interpretar a lei.
Tanto é verdade que os juízes foram proibidos de interpretar a lei que a lei revolucionária de 1790 instituiu uma comissão formada por legisladores para que os juízes, em caso de dúvida, interpretativa a ela recorressem.
Essa comissão, pouco tempo depois, foi substituída pela célebre Corte de Cassação que, inicialmente, também era composta por membros do legislativo que tinha a função principal de cassar qualquer decisão destoante dos propósitos do legislador. Isso para que a revolução pudesse avançar e era necessário fazer valer a vontade do Parlamento. A vontade dos juízes poderia simplesmente obstaculizar a realização dos desejos da revolução, até porque se sabia que conquistas sociais que tentaram ser impostas pela lei anteriormente à revolução já haviam sido freadas pelos juízes que mantinham lações com o rei e com os senhores feudais. Então, é clara a razão pela qual se proibiu o juiz de interpretar a lei e se disse, como Montesquieu, que caberia ao juiz simplesmente declarar as palavras da lei tanto é curioso e tanto é importante e pouco frisado no Brasil que os pais da Revolução Francesa, Robespiere e Le Chapelieu, disseram de forma textual que a figura do "judge make law" era a mais detestável das instituições jurídicas devendo ser destruída para o bem da revolução. Essa é a realidade do "civil law", portanto. Essa é a realidade da tradição do "civil law" que deu origem ao nosso sistema.
Por outro lado, na Inglaterra, em 1688, com o surgimento da Revolução Puritana ou da Revolução Gloriosa, é vencida uma longa batalha contra o monarca pelo Parlamento. O Parlamento vence a batalha contra o rei. Entretanto, o Parlamento não pensa em nenhum momento destruir o direito antigo, em destruir o direito comum, em fazer desaparecer o "common law". Muito pelo contrário, o Parlamento passou a lutar contra o arbítrio do juiz mediante a autoridade do "common law", mediante a força do "common law", mediante o instrumento do "common law".
É preciso lembrar que antes da Revolução Inglesa (1688), nós temos o célebre caso Bonham (1610), onde Eduard Coke , um juiz que teve grande importância na luta contra a tirania do monarca, afirmou textualmente que as leis estão submetidas a um direito maior, ao "common law" e caso desrespeitem, não tem validade, nem mesmo eficácia. É muito interessante porque essa decisão tomada em 1610, no caso Bonham, faz surgir a primeira semente do "judicial review" estadunidense. E isso de forma paradoxal porque sabemos que na Inglaterra não existe controle de constitucionalidade. O controle de constitucionalidade veio mais tarde com a revolução americana em 1776.
Entretanto, é correto dizer que também com a revolução de 1688, fica muito claro que os juízes têm dever (não só poder) de definir os casos concretos a partir de um amplo pano de fundo, ou seja, a partir do "common law", extraindo direitos e deveres do "common law", como faz hoje o juiz do nosso sistema que decide a partir da Constituição, aliás se nós fizéssemos um parêntese aqui, ficaria muito claro que o juiz brasileiro tem muito mais poder que o juiz americano, porque ele decide a partir da Constituição, como o juiz americano decide também a partir da Constituição ou como o juiz inglês decidia a partir do "common law" e, pior do que isso, não tem respeito aos precedentes das cortes superiores.
Entretanto, como o juiz inglês tinha o dever de julgar a partir do "common law" e a ele era dada, por consequência, uma subjetividade muito maior, uma ampla latitude de poder para julgar, tornou-se necessário ao jurista inglês – não simplesmente como fizeram os revolucionários da França – afirmar que a lei é suficiente para garantir a liberdade. Tiveram eles que – porque o juiz tinha amplo poder para julgar – firmar que importante era a igualdade perante as decisões judiciais e a coerência do direito – aí incluídas, as decisões judiciais. Em outras palavras, a tradição da "civil law" supõe que a lei é bastante para garantir a liberdade, porque supõe-se que o juiz não poderia interpretar a lei (que a lei teria de ser simplesmente declarada de modo que ela era suficiente para permitir a tutela aos direitos e às liberdades. Já na Inglaterra, como se tem consciência e não se precisa criar o mito, a ideia falsa de que o juiz não pode compreender o caso concreto e interpretar a lei (porque isso é obviamente falso, porque não há quem possa fazer um juízo, sem compreender alguma coisa, sem interpretar alguma coisa). Como na Inglaterra, eles não precisaram cometer essa falsidade teórica. Eles sabiam que os juízes poderiam decidir de forma diferente os casos. Eles foram obrigados então, ao invés de dizer que a igualdade estava garantida pela lei, frisar que a igualdade tinha que ser preservada pela isonomia de todos os cidadãos perante as decisões judiciais e que, por causa disso, a ordem jurídica tinha de ser coerente - aí incluídas as decisões judiciais – de modo que os precedentes surgem n Inglaterra exatamente para preservar a igualdade e a coerência do direito (a igualdade perante as decisões e a coerência do direito, sem a qual não há estado de direito, foram determinantes para o surgimento do respeito às decisões na Inglaterra. Isso surgiu de modo natural (e teria surgido, imagino eu, no "civil law" de forma natural, não fosse o engano de se supor que todos os juízes podem proferir decisões iguais, porque não podem interpretar a lei e quando eventualmente isso acontecesse teriam as decisões cassadas pela Corte de Cassação.
Essa, portanto, me parece que seja a primeira razão para demonstrar o motivo pelo qual o "common law" passou a respeitar precedentes. Entretanto, para se introduzir o problema estadunidense, preciso lembrar que a Revolução Gloriosa (1688) frisou o princípio da supremacia do Parlamento. Ao frisar esse princípio, deixou claro que as cartas, ou seja, as leis da metrópole (as leis inglesas) se sobreporiam às leis produzidas nas colônias e exatamente por isso, os juízes da colônia, ao aplicar as suas leis, jamais poderiam destoar das leis da metrópole. Fica claro em outras palavras que os juízes dos EUA nesse momento passam a ser controlados pelas cartas da metrópole. Entretanto, logo a carta que controla os juízes americanos é substituída pela Constituição dos EUA, com a revolução de 1776. Com esta revolução, surgindo a Constitui ão e logo se afirmando a cláusula da supremacia, ou seja, a cláusula embutida no artigo 6º da Constituição dos EUA, que afirma que todos os juízes estaduais estão submetidos à Lei Suprema do país, fica muito claro que os juízes estaduais têm que prestar devoção à Constituição e, portanto, aos precedentes constitucionais (embora isso não tenha sido dito desde logo, sendo dito muito tempo depois).
É interessante que a afirmação da força obrigatória dos precedentes constitucionais apenas é expressa pela Suprema Corte americana em 1958 no caso Cooper X Aro, quando a Corte para decidir, no sentido de que os precedentes da Suprema Corte são vinculantes, aplica pela primeira vez a cláusula de supremacia do artigo 6º da Constituição dos EUA


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