APLICAÇÕES DA FOTOGRAFIA ESTEREOSCÓPICA ÀS CIÊNCIAS: UMA PERSPETIVA HISTÓRICA

May 27, 2017 | Autor: Marília Peres | Categoria: History of photography, Historia de la fotografía
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APLICAÇÕES DA FOTOGRAFIA ESTEREOSCÓPICA ÀS CIÊNCIAS: UMA PERSPETIVA HISTÓRICA Marília Peres Resumo: Em 1839, François Arago (1786-1853), no discurso que apresentou à Academia das Ciências em Paris considerou, com grande previsão, o contributo que teriam para as Ciências os trabalhos de Daguerre (1787-1851) e de Niépce (1765-1833) relativos à descoberta da Fotografia. Sucessivos progressos técnicos e científicos encorajaram a prática fotográfica em diversas ciências. No início, a utilização da fotografia no papel de auxiliar documental da Ciência era entendida, segundo Jules Janssen (1824-1907), astrónomo francês, como a “retina do cientista”. A evolução da técnica fotográfica teve uma influência considerável no domínio das aplicações científicas e até industriais. A fotografia, para além de representar o real, visível ou invisível, foi também incluída no protocolo experimental. A fotografia estereoscópica longe de ser unicamente um instrumento de diversão ocupou desde cedo um lugar primordial na construção da ciência, bem como no seu ensino e divulgação. Através de uma abordagem histórica, pretende-se neste artigo analisar o papel da fotografia estereoscópica em vários ramos da ciência e no ensino. Palavras-chave: Fotografia científica, estereoscopia, ensino e divulgação da ciência, processos fotográficos históricos

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Introdução A fotografia nasceu certamente do desejo de captar e guardar para a posteridade imagens e momentos, embora cientificamente tenha resultado da conjugação interdisciplinar de duas áreas: a química e a óptica. Captar a imagem dependia da instrumentação existente e dos conhecimentos de química e de óptica do fotógrafo. Pode por isso dizer-se que a fotografia científica evoluiu com o contributo de muitas áreas do saber. Após as primeiras fotografias bem-sucedidas, os cientistas reconheceram as potencialidades desta nova técnica que lhes permitia registar com fidelidade e crescente nitidez as imagens do objecto de estudo, nascendo assim a fotografia científica. Os investigadores passaram a dispor de um conjunto de instrumentos e materiais para captar instantâneos da experimentação, como por exemplo a imagem das riscas espectrais. Ao ser utilizada como suporte instrumental pelos vários ramos da ciência, passou a ser uma prática científica ao serviço dos químicos, dos físicos, dos astrónomos, dos cartógrafos, dos médicos, dos antropólogos e de muitos outros, sofrendo por essas vias diferentes desenvolvimentos. O valor do uso da fotografia na ciência é reconhecido universalmente, deixando de lado as considerações sobre a manipulação para efeitos artísticos ou de falsificação. Apesar deste valor, a fotografia plana, dita normal, não mostra o objeto tal como os olhos o reconhecem, falhando por isso na tentativa de mostrar o real. Embora se associe estereoscopia à fotografia, os estudos acerca da visão binocular são anteriores a invenção do estereoscópio, apesar de ter sido apenas no século XIX que a ciência se propôs a quantificar e precisar a diferença angular de cada olho para especificar a disparidade das imagens, e a tentar compreender como é que o olho é capaz de sintetizar as duas imagens. 26

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Podemos dizer que a história da estereoscopia começa com a obra de Francois d’ Aguillon (1567-1617). Este jesuíta de Bruxelas publicou em 1613 Opticorum Libri Sex philosophis juxta ac mathematicis utiles (Seis Livros da Óptica, úteis para filósofos e matemáticos), ilustrado pelo famoso pintor Peter Paul Rubens (1577-1640). Foi notável por conter os princípios da projeção estereográfica e ortográfica, e inspirou as obras de Gerard Desargues (1591-1661) e Christiaan Huygens (1629-1695). O conceito de estereoscopia foi desenvolvido pelo físico britânico Charles Wheatstone (1802-1875), que em 1832 inventou o primeiro estereoscópico. A sua invenção antecedeu a descoberta do daguerreótipo. Descrevendo o seu instrumento, Wheatstone propôs o nome de ‘estereoscópio’, para indicar a sua propriedade de representar figuras sólidas (Wheatstone, 1838). O físico escocês David Brewster (1781–1868) exibiu um modelo de estereoscópio portátil em 1849 sugerindo que deveria ser aplicado a fotografia (Claudet, 2008). Em 1850, Brewster levou seu estereoscópio para Paris, onde Abbé Moigno (1804-1884) ficou muito impressionado com a ideia e a apresentou a um fabricante de instrumentos de óptica, Jules Duboscq (1817-1886), que sugeriu produzir imagens transparentes em vidro, substituindo o fundo sólido por uma tela de vidro. Na Grande Exposição de Londres em 1851, no Palácio de Cristal, foram exibidos vários estereoscópios de Duboscq, bem como um conjunto de daguerreótipos estéreo. Após o interesse demonstrado pela rainha Victoria, o fascínio por este instrumento espalhou-se pelo público em geral. Na época o estereoscópio tornou-se tão comum nos lares como a televisão é hoje. Pessoas que nunca haviam tido a possibilidade de viajar, podiam conhecer, com todo o pormenor, paisagens ou monumentos. As imagens estereoscópicas eram utilizadas como guias de viagem. Ao mesmo tempo que se comercializam fotografias de monumentos, paisagens, também se divulgava o conhecimento científico, com fotografias de astros (Fig. 1).

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Figura n.º 1 – “Interior of showroom at 346 and 348 Broadway, New York.” De Appleton & Co. Meia fotografia estereoscópica em albumina (com destaque para o letreiro “The Moon”), 1870 (fonte: Library of Congress)

Em 1861, o médico e escritor de Boston, Oliver Wendell Holmes (18091894) criou, sem registar patente, um visor estereoscópico de mão, aerodinâmico, muito mais económico do que os anteriores (Fig. 13). Este tipo de estereoscópio, também conhecido como estereoscópio americano, foi produzido durante cerca de um século e encontra-se frequentemente em museus. Para Holmes, as imagens assim visualizadas constituíam as representações realistas mais convincentes. Considerava que através das estereografias o mundo podia estar na ponta dos dedos de qualquer indivíduo. 28

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«O primeiro efeito de olhar para uma boa fotografia através do estereoscópio é uma surpresa, como nenhuma pintura jamais produziu. A mente tateia o seu caminho até às profundezas da imagem.» (Holmes, 1859).

A estereoscopia é a maneira mais antiga de se ver imagens em três dimensões. A técnica parte do modelo binocular e produz duas imagens fotográficas da mesma cena com a mesma diferença axial com que os nossos olhos, direito e esquerdo, captam as imagens. Existem diversas técnicas1 capazes de fazer com que essas imagens se tornem apenas uma e sejam vistas de forma tridimensional. O princípio geral da estereoscopia, como referido anteriormente, assenta no facto de os olhos receberem o que pode ser chamado de imagens de objetos em três dimensões, ou seja, objetos sólidos. Na combinação dos dois olhos e dos seus mecanismos o cérebro interpreta estas impressões, de tal forma que perspetiva a tridimensionalidade. Os estereoscópios permitem juntar as duas imagens de modo a que os nossos olhos a percecionem como uma única. Na realidade nem sempre é necessário um aparelho, os olhos estão preparados para juntar duas imagens fotografadas com uma câmara de estereoscopia, embora seja necessária a prática para tal. Entende-se por hiperestereoscopia, o método de utilizar uma diferente separação da lente em vez da do olho humano. Deste modo pode-se obter um alívio mais natural, quando se visualiza as fotografias num estereoscópio, com uma ligeira ampliação. As suas aplicações na estereoscopia prática são importantes, pois o visionador observa a imagem como se de um gigante se tratasse. A hiperestereoscopia revelou-se de grande importância na fotografia aérea, de modo a permitir que os pilotos fizessem uma melhor identificação dos alvos a atingir (Bernardo, 2007).

1) As técnicas mais conhecidas foram: estereoscópio de Holmes, o estereoscópio de Brewster e o estereoscópio de coluna. Também a técnica anaglífica se tornou bastante popular no século XX pela sua simplicidade.

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Estereoscopia e Ciência: A observação é a prática mais difundida e fundamental de toda a ciência. Segundo Daston & Lunbeck (2011) a observação educa os sentidos, calibra o julgamento, seleciona objetos de investigação científica e contribui para construção de um pensamento coletivo. Os instrumentos da observação são vários, podemos destacar a observação natural, o telescópio e microscópio, os espetroscópios, a fotografia, o contador Geiger, entre muitos outros. A fotografia desde cedo se comprometeu a ser a retina do cientista, a tornar visível o invisível. Mas, foi quando se começou a usar gelatina em vez do colódio para produzir negativos que a fotografia científica sofreu um grande desenvolvimento. O químico e fotógrafo francês Alphonse Louis Poitevin (1819–1882) descobriu a fotossensibilidade da gelatina bicromatada. Em 1850 Poitevin tentou utilizar a gelatina no processo dos negativos com o iodeto de prata, usando o ácido gálico como revelador. Devido à baixa sensibilidade do iodeto de prata e à pouca eficácia do revelador usado, não conseguiu resultados positivos (Poitevin, 1883). Também Gaudin em 1853 sugeriu que a gelatina fosse usada como um agente ligante (Gaudin, 1853). Apesar de já usar brometo de prata, não conseguiu resultados satisfatórios pois a grande sensibilidade deste composto só se manifesta quando revelado com o ácido pirogálico. Foi em 1871, que o médico e fotógrafo inglês Richard Leach Maddox (1816-1902) propôs a utilização de uma nova emulsão fotográfica de sensibilidade superior à do colódio húmido, a gelatino brometo de prata, resultante da adição de brometo de cádmio a uma solução aquosa de gelatina, posteriormente sensibilizada com nitrato de prata (­Chicandard, 1909).

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Charles Bennett descobriu que prolongando o tempo de aquecimento da “emulsão” de gelatino brometo de prata (de 5 a 10 dias) a 32 oC, em meio alcalino, podia aumentar a sua fotossensibilidade (este processo era chamado de maturação). Aplicando este processo produziu placas secas com um tempo de exposição da fração do segundo. Também em 1878 a firma Wratten & Wainwright colocou no mercado de Londres chapas de grande sensibilidade (Eder, 1945). Com o uso da gelatina a sensibilidade das placas fotográficas aumentou, tornando as operações fotográficas mais rápidas. Este facto permitiu potenciar a fotografia em todos os aspectos. Na Astronomia nasce uma nova era em que se conseguia fotografar objetos não detetáveis com a observação através da luneta. Ao mesmo tempo que se fotografavam estrelas longínquas, tornava-se possível fotografar o muito pequeno, conseguindo-se maiores ampliações (Peres, 2013 & 2014). Esta nova era da fotografia científica foi potenciada pelo uso da estereoscopia.

Estereoscopia e microscopia A aplicação dos princípios estereoscópicos é de grande importância na fotomicrografia, técnica que foi desenvolvida desde o início da fotografia e se mantém até aos dias de hoje. Enquanto a introdução da fotomicrografia conseguiu documentar o que os nossos olhos não conseguiam ver, a introdução da técnica estereoscópica tornou essas imagens reais dando-lhes a tridimensionalidade. Este aspeto foi abordado pelo médico francês Albert Moitessier (1833-1889) no seu livro La photographie appliquée aux recherches micrographiques publicado em 1866. Nesta obra ele aborda todas as técnicas fotográficas conhecidas na altura, com aplicação à microscopia, a iluminação mais adequada, apresentando um exemplar fotográfico de uma fotomicrografia de um corpo opaco (Fig. 2).

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Figura n.º 2 – Fotomicrografias estereoscópicas Helix costata (ampliação de 18 diâmetros de um objeto opaco) de Armand Varroquier (Moitissier, 1866, p. 352.)

Muitos microscópios apresentam duas peças para observação, isto é são binoculares. Tal prende-se com a necessidade de melhorar a observação, pois esta através de um microscópio monocular torna-se cansativa, fazendo com que a precisão da observação diminua ao fim de alguns minutos. Para que se verifique o efeito estereoscópico é necessário que cada olho veja apenas a imagem respetiva. Segundo Moitissier (1866) o microscópio binocular imaginado pelo fabricante francês Nachet possuía uma disposição que permitia observar o efeito estereoscópico (Fig. 3). Neste aparelho os dois raios descreviam um percurso idêntico, de maneira que as duas imagens se formavam com igual dimensão, podendo por isso ser adaptado para reprodução fotográfica.

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Figura n.º 3 – Microscópio estereoscópico de Nachet (Moitissier, 1866, p. 142)

O microscópio de Nachet, embora de uso simples para observação, não era prático para a fotografia das duas imagens estereoscópicas. Numa montagem vertical (Fig. 4) obrigava à realização de uma fotografia de cada vez, obrigando a um movimento, que era obrigatoriamente controlado, da câmara fotográfica. Nachet construiu um microscópio monocular ajustável que permitia adaptar a câmara em várias inclinações (Fig. 5).

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Figura n.º 4 – Montagem vertical para fotomicrografia (Moitissier, 1866, p. 127)

Figura n.º 5 – Montagem adaptável de Nachet para fotomicrografia (Duchesne, 1893)

Era possível obter boas fotografias estereoscópicas usando um microscópio monocular em conjunto com uma pequena câmara fotográfica. Assim, como nos estereogramas comuns podiam ser obtidos fazendo duas fotografias individuais de posições ligeiramente diferentes, também os microestereogramas podiam ser obtidos do mesmo modo. Esse deslocamento poderia ser obtido movendo o objeto, o espécimen microscópico, muito ligeiramente. Sem qualquer alteração da focagem ou iluminação, era necessário mudar o slide na horizontal, e fazer uma segunda fotografia em condições idênticas. As cópias resultantes podiam proporcionar um efeito estereoscópico natural. Existiram três tipos principiais de microscópios binoculares: o binocular de prisma, em que o prisma de Wenham era colocado entre a objetiva e a ocular; o binocular com arranjo na ocular, em que o prisma era colocado de modo a dividir o raio luminoso proveniente da objetiva em duas partes e ainda o binocular com dois tubos separados.

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O microscópio binocular R & J Beck do rei D. Carlos I de Portugal (1863-1908) (Fig. 6) era do primeiro tipo (de acordo com o modelo), ou seja era equipado com um prisma de Wenham (Fig. 7), não sendo por isso muito adequado para fotografia, pois era difícil de iluminar as duas imagens do mesmo modo, não permitindo por isso grandes ampliações. Só mais tarde, já no início do século XX a empresa R & J Beck de Londres optou por um rearranjo que permitia uma boa resolução (Fig. 7).

Figura n.º 6 – Microscópio binocular R & J Beck do rei D. Carlos (fotografia de M. Peres 2010, cortesia do Aquário Vasco da Gama)

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Figura n.º 7 – Prisma de Wenham (à esquerda) e montagem para microscópios Beck – início do século XX (à direita) (Judge, 1926, pp. 180 e 181)

A empresa Carl Zeiss desenvolveu o último tipo de microscópio binocular referido. Usando um tubo “Bitumi”, onde as oculares eram colocadas numa distância que equivalia à distância interocular, permitindo assim a fusão das duas imagens. A este microscópio era possível acoplar uma câmara fotográfica como a de Drüner produzida pela Carl Zeiss (Fig. 8).

Figura n.º 8 – Câmara estereoscópica Drüner da Carl Zeiss, início do sec. XX, (fonte: Museum of History of Science, n.º de inv. 94222)

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Na primeira metade do século XX a fotomicrografia estereoscópica apresentava excelentes resultados. Segundo Judge (1926) já permitia obter ampliações até 2000 x, e permitia fotografar espécimes muito diferentes (Fig. 9).

Figura n.º 9 – Fotomicrografias estereoscópicas (Judge, 1926, estampa n.º 13)

Estereoscopia e Astronomia Foi em 1858 que o astrónomo Charles Piazzi Smyth (1819-1900) publicou o primeiro livro ilustrado com fotografias estereoscópicas cientificas: Teneriffe, An Astronomer’s Experiment: or, Specialities of a Residence Above the Clouds, em 1858 (Fig. 10). 37

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Figura n.º 10 – “Sheepshanks telescope first erected on Mount Guajara, the peak of Teneriffe in the distance” (Piazzi Smyth, 1858, fotografia estereoscópica 52)

Piazzi Smyth tornou-se o astrónomo real da Escócia em 1845 e durante uma viagem a África do Sul teve a distinção de ser o primeiro calotipista no país. Em 1856, fez uma viagem a Tenerife para avaliar suas possibilidades como um observatório astronómico. Os resultados das suas observações foram publicados em 1858. No prefácio, o autor indica as razões que o levaram a usar este tipo de ilustração: «This method of book illustration never having been attempted before, may excuse a word on this part of the subject. By its necessary faithfulness, a photograph of any sort must keep a salutary check on the pencil or long-bow of the traveller; but it is not perfect; it may be tampered with, and may suffer from accidental faults of the material. These, which might sometimes produce a great alteration of meaning in important parts of a view, may, however, be eliminated, when, as here, we have two distinct portraits of each object. Correctness is thus secured; and then if we wish to enjoy the effects either of solidity or of distance, effects which are the cynosures of all the great painters, we have only to combine the two photographs stereoscopically, and those bewitching qualities are produced. Stereographs have not hitherto been bound up, as plates, in a volume; yet that will be found a most convenient way of keeping 2) O livro apresenta um total de 20 fotografias estereoscópicas em albumina com 6.0 x 7.0 cm. Cada fotografia além da descrição apresenta seguinte inscrição: “Printed by A. J. Melhuish under the superintendence of James Glaisher, Esqr. F.R.S. and published by Lovell Reeve.”

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them, not incompatible with the use of the ordinary stereoscope, open below and well adapted for Mr. Reeve’s new form of the instrument.» (Piazzi Smtyh, 1858, pp. x-xi)

Enquanto na microscopia não nos é possível visualizar os objetos a olho nu, os corpos celestes mais próximos de nós são visíveis, mas devido à sua distância, são realmente vistos como planos. A estereoscopia permite obter imagens tridimensionais destes. Ao contrário da fotografia estereoscópica de objetos de menores dimensões em que a câmara se move para fotografar os objetos em duas posições diferentes, na fotografia astronómica, quem se move é o objeto perante uma câmara fixa. Nos estereogramas da Lua as duas imagens devem ser obtidas com o nosso satélite na mesma fase, mas podem ser obtidas em ciclos lunares diferentes. As fotografias estereoscópicas da lua publicadas no frontispício do livro de JUDGE (1926) foram tiradas com cerca de quatro anos de intervalo. A primeira foi obtida a 3 de fevereiro de 1896 e a segunda a 20 de abril de 1900 (Fig. 11).

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Figura n.º 11 – Fotografias estereoscópicas da Lua obtidas em 1896 (à esquerda) e em 1990 (à direita (JUDGE, 1926)

Fotografias estereoscópicas da Lua foram obtidas por Warren de la Rue (1815-1889) entre 1857 e 1860. Estas fotografias que formavam um par estereoscópico correspondiam a um deslocamento de cerca de 32000 km (Judge, 1926). Quesneville publica em 1862 no Le moniteur Scientifique um relatório sobre as fotografias de de la Rue, referindo: «Nous avons prononcé le nom du stéréoscope, ne négligeons pas d’annoncer les prodigieuses épreuves stéréoscopiques que vient d’obtenir M. Warren de la Rue. Déjà cet astronome photographe avait reproduit stéréoscopiquement, et en prenant épreuve à des moments un peu différents: la Lune, Mars, Saturne, etc. » 

Também as fotografias estereoscópicas da Lua dos americanos Lewis Rutherford (1816-1892) de e de Henry Draper (1837-1882) se tornaram amplamente difundidas sendo ainda possível hoje encontrar exemplares, comercializados pela empresa Underwood & Underwood (Fig. 12).

Figura n.º 12 – “Full Moon” - fotografias estereoscópicas da Lua a partir de negativos de Henry Draper, c. 1865 (Coleção de M. Peres)

Para obter o efeito estereoscópico desejado muitas vezes as superfícies esféricas apareciam um pouco elipsoidais, devido à separação entre as imagens, aspeto que poderia ser minorado pelo modo com 40

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as duas fotografias era montadas no cartão, tal como demonstram os exemplos apresentados nas figuras 11 e 12. Também as fotografias estereoscópicas do Sol suscitaram grande interesse científico, pois a fotografia da corona solar fotografada em diferentes alturas durante um eclipse poderia resultar em informação devido ao seu efeito estereoscópico, embora este tipo de informação fosse contestado pois a corona solar sofre modificações durante o intervalo em que as fotografias eram obtidas (Brothers, 1871 & Bonifácio, 2009). Apesar destas limitações científicas, as fotografias estereoscópicas de corpos celestes foram grandemente difundidas e estiveram presentes nas grandes exposições universais que se realizaram desde 1851. Na exposição universal de Londres de 1862 Warren De La Rue apresentou provas estereoscópicas do eclipse solar que fotografou em 1860, tendo sido premiado. Ele ampliou cada uma das fotografias até 90 cm, possibilitando a visualização da imagem do Sol numa perspetiva tridimensional, devido à estereoscopia. Também apresentou fotografias da lua com 25 cm de diâmetro (PERES, 2013).

Estereoscopia e Medicina Assim como a Medicina é uma área multidisciplinar, também a fotografia médica abrange não só vários ramos da Ciência como várias etapas dentro de um processo médico. Pode-se usar no diagnóstico, com a fotomicrografia ou a radiografia, como posteriormente na comunicação entre pares e no ensino. Por outro lado, podemos falar de processos médicos, retratos de pacientes, fotografias de partes do corpo humano, ou mesmo de órgãos (Gernsheim, 1961). Pretende-se dar alguns exemplos da aplicação da fotografia estereoscópica na área da anatomia, dermatologia e radiografia. Em 1905 foi publicada a 1.ª edição de um dos mais famosos atlas de anatomia The Edinburgh Stereoscopic Atlas of Anatomy de Cunningham e Waterson, editado por Keystone View Co. & Imperial Publishing Co, com 5 volumes de imagens estereoscópicas. Os estereogramas eram preparados na Universidade de Edimburgo pelo Professor D. J. Cunningham, assistido pelo demonstrador de Anatomia, D. Waterson, 41

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pelo cirurgião M. H. Cryner e pelo especialistas de olhos, nariz e ouvidos F. E. Neres. Os autores avaliavam a possibilidade de preservar as várias estruturas em formaldeído, e as dissecações eram efetuadas por médicos reconhecidos pela sua autoridade em anatomia. Segundo JUDGE (1926) existe uma série com 36 conjuntos estereoscópicos dedicados à apendicectomia. É possível encontrar exemplares deste atlas em museus de medicina, em bibliotecas com espólios de escolas médicas ou mesmo em antigos liceus (Fig. 13). Em 1911 o Atlas já era composto por 10 volumes com 324 fotografias estereoscópicas.

Figura n.º 13 – Estereoscópio modelo americano (de Holmes) e conjuntos de cartões que pertencem à coleção Pestalozzi Stereographs - The Edimburgh Stereoscopic Atlas of Anatomy. Pestalozzi Educational View (Escola Secundária de Camões números de inventário: ME/401109/93 /94/95)

Também na área da dermatologia a utilização de imagens estereoscópicas permite documentar a morfologia das lesões da derme de um modo muito mais real. Em 1867 o cirurgião o Christian Theodor Billroth (1829–1894) publicou «Stereoscopische Photographien chirurgischer Kranken» com 12 provas estereoscópicas em albumina, do fotógrafo Johannes Ganz (1821-1886), sendo que algumas dessas fotografias correspondiam a doentes com problemas de pele (Neuse et al, 1996). Em 1910 foi publicado o Atlas The Stereoscopic Skin Clinic de S. I. Rainforth (Fig. 14).

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Este atlas era composto por 130 ilustrações estereoscópicas coloridas e um texto sob a forma de uma descrição clínica, projetado para o uso de profissionais e estudantes de medicina. As descrições detalhadas das doenças na parte de trás de cada cartão/foto forneciam informação útil sobre as condições da pele num momento em que os dermatologistas ainda eram raros. O atlas era vendido com um dispositivo de visualização e foi publicado em várias edições.

Figura n.º 14 – Estereoscópio e cartões pertencentes ao Atlas “The Stereoscopic Skin Clinic” – Coleção de Fausto Casi, Arezzo (fotografia de M. Peres, 2010)

Uma importante aplicação da fotografia estereoscópica na medicina nasce com a descoberta dos raios X por Roentgen 1895.Com a estereografia dos raios X era possível localizar objetos, ou defeitos em corpos, podendo ser uma mais-valia em estudos de anatomia e cirúrgicos. Para a obtenção de uma radiografia não é necessária qualquer câmara fotográfica ou lente, e a necessária separação que se tem de ter para obter duas imagens estereoscópicas de cerca de 65 mm poderia ser conseguida movendo com precisão o objeto a radiografar ou o tubo de raios X. Elihu Thomson publica, logo em 1896, Stereoscopic Roentgen Pictures sugerindo a visualização de imagens estereoscópicas de raios X. E Davidson (1898) insiste nas vantagens de usar a a fotografia e a radiografia estereoscópica para documentar estados clínicos.

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Em 1896 a empresa GE Healthcare comercializa o primeiro equipamento para a produção de imagens estereoscópicas de raios X (Fig. 15).

Figura n.º 15 – Equipamento da GE Healthcare de 1896 para produção de imagens estereoscópicas de Roëntgen (GE Healtcare, n.d)

Segundo Kassabian (1904) o método mais habitual para obter este tipo de estereogramas consistia em colocar o paciente deitado com um tubo de raio X por baixo e uma placa fluorescente por cima do corpo. O tubo de raios X podia deslocar-se horizontalmente em várias direções obtendo-se deste modo as posições necessárias para o par de radiografias. Um outro método consistia em dispor de dois tubos de raios X a trabalhar em simultâneo de modo a projetar num ecrã fluorescente. Este ecrã assim iluminado poderia ser observado com um estereofluoroscópio (Fig. 16).

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Figura n.º 16 – Observação vertical com estereofluoroscópio (Judge; 1926, p. 208)

A utilização do equipamento referido permitia a visualização de objetos estranhos no organismo humano, técnica amplamente desenvolvida por Mackenzie Davidson, no Hostal Charing Cross (Fig. 17) ou mesmo de angiografias estereoscópicas, obtidas por J. F Bergmann de Wiesbaden, obtidas em 1903.

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Figura n.º 17 – Radiografias estereoscópicas obtidas por Davidson (em cima imagem de um pé com estilhaços e em baixo peça de explosivo em olho humano) (Davidson; 1916, estampa 16)

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Considerações finais Para Oliver Holmes, o médico de Boston, as imagens estereoscópicas constituíam as representações mais reais, chegando a sugerir que os objetos originais perdiam o seu valor pois podiam ser substituídos pelas imagens estereoscópicas que podiam estar disponíveis para qualquer pessoa. Holmes (1859) preconizava a existência de bibliotecas estereográficas imperiais, nacionais ou mesmo municipais, com coleções especializadas para qualquer assunto. No entanto a fotografia estereoscópica desapareceu do quotidiano das populações, sendo substituída pela imagem plana. Para tal terá contribuído o aparato necessário à sua visualização, a subjetividade da imagem estereoscópica ou mesmo a sua utilização na indústria pornográfica. Além disso, como acrescentou Peixoto (2015) a fotografia estereoscópica não permitia a sua identificação como objeto artístico. Apesar de não ter vingado na arte, na ciência podemos dizer que ganhou raízes. O facto de ser uma técnica imersiva obriga o cientista, o técnico ou o mero observador a construir uma imagem única no seu cérebro que não existe, tornando-se o observador parte do processo (Reis, 2010). Ao mesmo tempo que imergia na imagem fotográfica o observador desligava-se do mundo exterior, focando-se apenas no objeto em estudo. Esta técnica continua a permitir visualizar objetos que não são percecionados com os nossos olhos, de uma forma tridimensional, como no caso da fotomicrografia, da radiografia ou mesmo da astronomia. Impressa em papel ou em formato digital, a fotografia estereoscópica continua a ser uma das ferramentas da ciência mais importantes nos nossos dias.

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