Apontamentos. A Noção de Gênero

June 20, 2017 | Autor: Kátia Brakling | Categoria: Ensino Língua Portuguesa
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A NOÇÃO DE GÊNERO1 Kátia Lomba Bräkling2

“Ao construir nosso discurso, sempre nos antecede a totalidade do nosso enunciado, tanto na forma de um esquema genérico determinado, como na forma de uma intenção discursiva individual. Não partimos de palavras soltas, não seguimos de uma palavra a outra, mas atuamos como se fôssemos preenchendo um todo com palavras necessárias.“ (Bakhtin,1952/53)3

o decorrer da história, em função de diferentes objetivos sociais ou em decorrência do aparecimento de novos meios de comunicação, nas diferentes sociedades foram sendo criadas diferentes maneiras de organizar textos orais e escritos.

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Veja-se, por exemplo, que as enciclopédias apenas surgiram depois da invenção da arte tipográfica e do surgimento da necessidade de divulgação da produção científica da época. O mesmo aconteceu com as bibliografias, que surgiram como as grandes relações de livros cuja finalidade era informar sobre a produção bibliográfica de um determinado momento. Desde Galeano até o nosso século, porém, foram se transformando e, hoje, uma bibliografia é encontrada como parte anexa a qualquer trabalho científico, como fonte referencial de coleta de informações. Os periódicos, por sua vez, surgiram da necessidade de veiculação mais rápida de novidades políticas, notícias sociais e informações variadas, sendo os grandes responsáveis, por exemplo, pelas notícias sobre os Descobrimentos marítimos, contribuindo para a difusão dos conhecimentos náuticos, fato extremamente relevante para a época. O surgimento da imprensa só seria possível depois da invenção da tipografia e do advento do iluminismo, que teve repercussões sociais, políticas e econômicas que contrariavam os interesses da Igreja, notadamente a cristã, e cuja origem estava nas descobertas científicas de Newton e Galileu. Assim, antes de tudo isso, antes do surgimento dos periódicos, gêneros como a notícia, a crônica, o artigo de opinião, a carta de leitores, classificados, editorial ou mesmo os anúncios e propagandas não existiam tal como os conhecemos hoje. Veja-se, ainda, que, antes do aparecimento dos computadores e da Internet, não tínhamos um texto chamado “e-mail”. Essas diferentes maneiras de elaborar textos foram e vão constituindo tipos relativamente estáveis de enunciados, formas-padrão de estruturação do conjunto do texto. Essas formas-padrão ou “modelos de textos” são, na denominação de Bakhtin, os gêneros de discurso, que podem ser caracterizados pelo conteúdo temático, pela composição estrutural e pelo estilo, que define marcas lingüísticas específicas para cada gênero em decorrência das outras duas características. Cada esfera de atividade social – medicina, direito, arte... – tem seus próprios gêneros. Na área do Direito, temos gêneros como a petição inicial, a sentença, o recurso, o parecer, enquanto na área da Medicina, temos as receitas, as bulas, os diagnósticos de exames laboratoriais, etc. Entretanto, embora em um determinado momento histórico, os gêneros tenham uma certa estabilidade, isto é, uma certa forma constante de se concretizar, eles também se modificam constantemente, de acordo com as mudanças sociais e com os instrumentos novos que vão surgindo: alguns desaparecem, outros se modificam, outros surgem. Num determinado momento histórico da sociedade, os gêneros disponíveis constituem-se como "modelos de referência", ou “modelos de escritura", nos quais cada produtor deve se inspirar. Para falarmos e escrevermos, mesmo sem o sabermos, utilizamo-nos sempre dos gêneros. Tudo que falamos, ouvimos, lemos ou escrevemos pertence a algum gênero, embora nem sempre saibamos dizer qual é o gênero. A

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SME/PUC/USP/UNESP. Oficina Cultural 4. lendo e produzindo textos acadêmicos. Momento 1. PECFormação Continuada. São Paulo (SP): CENP; 2001-2002. Kátia Lomba Bräkling Pedagoga e Mestre em Lingüística Aplicada pela PUC de SP; Professora da PósGraduação ISE Vera Cruz (São Paulo – SP); Professora do MBA de Gestão Educacional da PUC de SP; Assessora de Instituições de Ensino na Área de Ensino da Linguagem Verbal. Bakhtin , M. M.(1952/53). Os gêneros do discurso. In Estética da criação verbal. Martins Fontes, São Paulo. 1992. A NOÇÃO DE GÊNERO (KLBrakling)

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escolha do gênero se realiza em função do contexto da comunicação: da finalidade do produtor, da adequação ao lugar de circulação e ao portador, do destinatário a quem nos dirigimos4. A idéia que temos da forma do gênero escolhido vai dirigir-nos (ou deveria) em todo nosso processo de produção do texto. Os usuários de uma língua têm uma certa consciência da existência dessa diversidade de gêneros e são capazes de reconhecer um certo número deles e de nomeá-los de forma mais ou menos comum (por exemplo, sabemos reconhecer que o texto que temos em mão é um romance, ou uma notícia, ou uma carta, etc.). Em todo o decorrer de nossa vida, as formas típicas dos gêneros se introduzem em nossa experiência e em nossa consciência. Aprender a falar (e a escrever) é aprender a estruturar enunciados e são os gêneros que organizam nossa fala (e nossa escrita). Aprendemos não só a moldar a nossa fala ao gênero, como também a detectar o gênero na fala do outro, o que facilita também a compreensão. Para o leitor, o conhecimento do gênero cria horizontes de expectativa. Quer dizer, ao pensarmos que vamos ler uma notícia, já prevemos que o texto trará, logo no início, o fato central – ocorrido no dia anterior – e que só depois virão os pormenores. Da mesma forma, quando alguém inicia um texto com “Era uma vez” já nos preparamos para saber quem é a princesa, quem será a fada-madrinha ou a bruxa má, nos preparamos para ver por quais provações passará a heroína da história e para descobrir quem será o príncipe encantado com quem a heroína fará par, se casará e viverá “feliz para sempre”. Nossos conhecimentos sobre os gêneros estão sempre correlacionados às representações sobre o contexto social em que se processa a comunicação: conhecer efetivamente um gênero é conhecer suas condições de uso, sua pertinência, sua eficácia, sua adequação ao contexto de produção. Os problemas de produção (ou de compreensão) de textos que freqüentemente temos, podem ser derivados da falta de domínio de um gênero típico de um determinado contexto. Nesse sentido, podemos afirmar que estamos sempre aprendendo a escrever e a falar, pois sempre estamos sujeitos a nos encontrarmos em situações nas quais se devem utilizar gêneros que não dominamos. Assim, é importante aprendermos, na escola, na universidade e em situações mais formais, as características dos gêneros mais complexos, que não aprendemos espontaneamente nas situações de nosso cotidiano. É humanamente impossível conhecer e dominar todos os gêneros que circulam socialmente. Conhecemos, em diferentes graus, e dominamos de diferentes formas, apenas alguns, aqueles que circulam nas esferas sociais das quais participamos. “Muitas pessoas que dominam muito bem a língua se sentem, entretanto, totalmente desamparadas em algumas esferas de comunicação, precisamente porque não dominam os gêneros criados por essas esferas. Não raro, uma pessoa que domina perfeitamente o discurso de diferentes esferas da comunicação cultural, que sabe dar uma conferência, levar a termo uma discussão científica, que se expressa excelentemente em relação a questões públicas, fica, não obstante, calada ou participa de uma maneira muito inadequada numa conversa trivial de bar. Nesse caso, não se trata da pobreza de vocabulário nem de um estilo abstrato; simplesmente trata-se de uma inabilidade para dominar o gênero da conversação mundana, que provem da ausência de noções sobre a totalidade do enunciado, que ajudem a planejar seu discurso em determinar forma composicionais e estilísticas (gêneros) rápida e fluentemente; uma pessoa assim não sabe intervir a tempo, não sabe começar e terminar corretamente (apesar desses gêneros serem muito simples)”5. Quanto maior for o domínio que tivermos sobre os gêneros e quanto mais gêneros conhecermos, maior facilidade de compreensão e de produção de textos teremos, maior será a possibilidade de atingirmos nossos objetivos discursivos.

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Nesse sentido é importante distinguir gênero do discurso, conceito que estamos discutindo, de tipo de texto. De maneira geral, as diferentes tipologias textuais propõem classificações que recortam ou aspectos funcionais ou aspectos da organização estrutural dos textos: seus elementos, a relação entre eles, por exemplo. Deixam de considerar aspectos relativos às condições de produção do discurso como determinantes das características que o texto assume. O conceito de gênero do discurso, ao contrário, inclui, necessariamente, o contexto de produção, não como simples elemento complementar, mas como aspecto constitutivo central. 5 Idem, ibidem. A NOÇÃO DE GÊNERO (KLBrakling)

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