APONTAMENTOS PARA UM ABOLICIONISMO MARGINAL BRASILEIRO

June 14, 2017 | Autor: Luciano Góes | Categoria: Race And Abolition, Prison Abolition, Sistema Prisional
Share Embed


Descrição do Produto

APONTAMENTOS PARA UM ABOLICIONISMO MARGINAL BRASILEIRO APONTAMENTOS PARA UN ABOLICIONISMO MARGINAL BRASILEÑO Luciano Góes1 “Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma nova justiça”. (Louk Hulsman)

Resumo Em nosso jardim marginal, toda construção central resulta irrealizável por nossos matizes e especificidades, realidade que exige reconhecimento periférico e comprometimento. Assim, partindo de nosso realismo racial marginal, produto do racismo que estrutura um mundo branco, antes de cogitarmos um abolicionismo penal é necessário falar e pensar um abolicionismo racial pleno, enfrentando nosso racismo que mantém sua força excludente e genocida por sua negação e naturalização, uma estratégia política que produz uma “esquizofrenia” racial que oculta a programação racista do nosso sistema de controle racial-social facilmente identificável por sua “clientela”. Um abolicionismo marginal somente é alcançável decolonialmente, uma perspectiva capaz que transpor os estreitos limites centrais para resgatar nossas raízes inclusivas, embasando uma sociedade mestiça arquitetada sobre uma ética Umbuntista. Palavras chave: Racismo. Decolonialidade. Abolicionismo marginal. Ubuntu. Resumen

En nuestro jardín marginal, toda construcción céntrica resulta irrealizable, por nuestros matices y especificidades, realidad que exige reconocimiento periférico y comprometimiento. Así, partiendo de nuestro realismo racial marginal, producto del racismo que estructura un mundo blanco, antes de cogitar un abolicionismo penal es necesario hablar de y pensar en un abolicionismo racial pleno, enfrentando nuestro 1

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Pesquisador-membro do grupo de pesquisa “Brasilidade Criminológica”, Coordenado pela Prof.ª Dr.ª Vera Regina Pereira de Andrade (UFSC-CNPq); Secretário da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil (OAB/SC); Membro da Comissão de Igualdade Racial (OAB/SC) e Advogado Criminal.

racismo, que mantiene su fuerza excluyente y genocida por su negación y naturalización, una estrategia política que produce una “esquizofrenia” racial que oculta la programación racista de nuestro sistema de control racial-social, fácilmente identificable por su “clientela”. Un abolicionismo marginal solamente es alcanzable decolonialmente, en una perspectiva capaz que transponer los estrechos límites céntricos para rescatar nuestras raíces inclusivas, basando una sociedad mestiza construida sobre una ética Umbuntista. Palabras-clave: Racismo. Decolonialidad. Abolicionismo marginal. Ubuntu. INTRODUÇÃO Como norte abolicionista, a frase de Hulsman, disposta como epígrafe, é emblemática e até certo ponto acalentadora. Mas, se nosso jardim estiver assentado em uma base tão sólida e profunda que ele próprio se transforma em obstáculo para o nascimento dessas novas plantas, o que fazer? Em nosso jardim marginal, muito distinto do lugar de fala de Hulsman, uma proposta abolicionista não pode se limitar ao conflito de classes ou à substituição do modo de produção haja vista que esses aspectos não envolvem a questão racial sedimentada há muito e construída para além do centro. É dizer que toda a construção teórica abolicionista construída no, e para o centro, incutidas em seu dever-ser, não são realizáveis em nossa margem exatamente por nossa dependência histórica, o ser que jamais será, segundo Eugenio Raúl Zaffaroni (1991) ao defender um Realismo marginal. Nesse sentido, tomamos como base uma das inúmeras valiosas lições de nossa querida homenageada: a demarcação do nosso lugar de fala, do qual exige um comprometimento com nossos matizes. Uma postura que impulsiona um projeto desenvolvido a várias mãos2 e que se vincula à perspectiva decolonial que estrutura o saber criminológico libertário latino que traz consigo o pluralismo jurídico que confere “novos” significados a conceitos forjados pelo eurocentrismo que transbordam uma falsa ideia de unicidade, sendo o direito a identidade (negada) apenas um de seus pressupostos, que não se atrela à questão de ser 2

Este é o objetivo do Grupo de pesquisa coordenado pela Prof.ª Dr.ª Vera Regina Pereira de Andrade, denominado “Brasilidade Criminológica” (UFSC-CNPq), que busca, a partir dos trabalhos desenvolvidos de modo encadeado por seus membros, a construção de uma Criminologia brasileira.

institucionalizados ou não, mas à necessidade de ruptura com a tradição cultural monista central-opressora para buscar o (re)fortalecimento e (re)conhecimento de suas raízes originárias (WOLKMER, 2001). Outrossim, em termos de Brasil, esse processo nos remete à Diáspora negra promovida pelo racismo enquanto prática discriminatória orientada pelo fenótipo africano, uma concepção não central mas que desembarcou em nosso solo como herança sua, pilar inaugural para a construção de um mundo branco, consolidando a branquitude, por um lado, e o status dos negros como não-humanos do outro. Uma ideologia estruturante, estrutural e condicionante que tangencia toda nossa história, responsável pela construção do maior, mais duradouro e mais importante sistema escravagista do mundo, incutindo nos escravizados o sonho senhorial (FANON, 1968) de ter poder “absoluto” sobre o apropriável, sendo que a condição primordial para o reconhecimento social como pessoa era (e ainda é) a objetificação do negro, fator básico para a “normalização” da violência ilimitada sobre seu corpo. Nesse contexto, reconhecendo nosso realismo racial marginal e seu sistema de controle racial-social, antes de cogitarmos um abolicionismo penal é necessário falar e pensar em um abolicionismo racial pleno somente alcançável se ultrapassadas as estreitas fronteiras do eurocentrismo para (cor)responder às necessidades que o problema racial brasileiro nos impõe, apesar de ser quase imperceptível, dada a sua naturalização e negação que continuam a ecoar em coro, como um mantra que deve ser repetido na esperança que desapareça, sem nunca ter sido de fato enfrentado, salvo em termos genocidas. Imprescindível, portanto, falarmos em “raças”, conceito biologicamente falso, mas verdadeiro enquanto construção sociopolítica inferiorizante que após longo processo de estigmatização discriminatória, foi transformado em instrumento identitário, de resistência e conscientização da negritude brasileira, se situando hoje como instrumento político antiracista. Desvelar as feridas históricas abertas pelo racismo, nunca tratadas e ainda expostas, é um dos nossos objetivos, e para tal, com Vera Malaguti (2007) refazemos nossas pegadas para recompor o pretérito, entender o presente e projetar um futuro, observando os “detalhes” que passam quase que totalmente despercebidos. Uma busca que irá por luz sobre a sombra que tenta encobrir a ideologia racial que esta na base da chamada “guerra contra as drogas” e nas práticas diuturnas policiais que impulsionam o genocídio nosso de cada dia.

Para tal, urge um rompimento com a “esquizofrenia” racial, fruto do conto infantil “o país das maravilhas raciais”, que seduz grande parte de nossos críticos. Uma posição que fortalece nosso racismo pelo não enfrentamento, a estratégia política que se reflete em nossos “Direitos Penais”, ocultando a programação racista que os impulsiona, enquanto possibilita o fácil reconhecimento de seus “clientes” em termos de cor, classe social e origem geográfica, heranças marcadas a ferro em uma das maiores populações

negras do mundo que acaba desarmada

politicamente, garantindo o sucesso do genocídio identitário do “Ser negro”, caracterizado pelo controle racial/social assimilacionista concebido no pós-abolição. O modelo eurocêntrico societário é, desde nossa marginalidade, um limite para um abolicionismo próprio, sendo, imprescindível um olhar decolonial assentado em nosso lugar de fala escravizado para resgatar, em nossas matrizes africanas, modelos que não se inserem na perspectiva “civilizatória” que traz incrustada a barbárie exterminante do “Outro” como sinônimo de progresso (MENEGAT, 2012). Uma busca que vai ao encontro da nossa historicidade racial enquanto fonte de conflitos e de direitos. Esse processo objetiva o reconhecimento do projeto político genocida brasileiro, transformando-o em projeto político identitário, de conscientização racial e potencial emancipatório com força suficiente de promover fissuras naquele solo eurocentral sólido, por onde a decolianilidade pode penetrar, permitindo a germinação de uma Sociedade Mestiça embasada em termos inclusivos a partir de uma Ética Umbuntista. 1 – SITUANDO A GÊNESE DO PROBLEMA RACIAL “O matador mata sempre duas vezes – a segunda pelo silêncio.” (Elie Wiesel – Prêmio Nobel da Paz em 1986)

Muito antes do desembarque em nossa margem do capitalismo tardio, e com ele os conflitos de origem econômica entre classes sociais, ou seja, de cunho materialista, a questão racial já encontrava um enraizamento profundo que nos reporta para além do centro em direção à história não oficializada da humanidade. Para encontrarmos o epicentro do problema proposto, partimos da advertência de que, se por uma perspectiva biológica o termo raça resta errôneo, por um viés histórico-sócio-político não o é. É o que Elisa Larkin Nascimento (2007,

p. 13) denominou de “raça socialmente construída”, cuja concretude existencial e consequências não se pode ignorar. Imprescindível, assim, deslocarmos o termo para nosso eixo principal por sua influência no caldo heterônomo que se consubstanciam as sociedades onde produz(iu), primeiro, um fato concreto carregado de significados de caráter hierarquizante em seus controles sociais. A construção do negro se operou, de acordo com Carlos Moore (2007, p. 257-258), com a variação fenótipica-melânica da população de pele negra que, no período Neolítico Superior (4 a 10 mil anos a. C.), representava a humanidade e por influência de fatores biológicos, climáticos e geológicos deu origem aos povos leucodérmicos

(euro-asiático-semitas).

Essa

diferenciação

promoveu

uma

“consciência grupal fenotipizada”, desencadeando a identificação racial-grupal a partir da negação da ancestralidade africana, ou seja, o negro foi construído no exato momento em que deixou de sê-lo para ser amarelo e branco, criador/criatura do racismo que nasce naquele momento enquanto prática discriminatória. A genealogia do racismo nos remete há 1.500 anos a.C., como demonstra o Rig-Veda (Livro dos hinos), escrito aproximadamente entre 1.000 e 500 anos a.C.. Conforme o livro mais antigo da trilogia sagrada do Hinduísmo, as tribos invasoras leucodérmicas (de pele clara, branca ou amarela) autodenominadas arri ou ária (“gente da pele nobre”), designavam seus oponentes de dasyu (denominação coletiva para “negros”) ou anasha (“gente do nariz chato”) e a partir da identificação dos lados “[...] o Rig-Veda relata que Indra, suposto líder dos invasores arianos, logo transformado em semi-Deus, ordenou a seus súditos guerreiros de “destruir o dasyu” e “eliminar a pele negra da face da Terra” (MOORE, 2007, p. 51). Nas matrizes greco-romanas, a xenofobia estigmatizava qualquer “Outro” de “bárbaro”, mas o primitivo foi “descoberto” na África. A posição inferiorizada, de base racial-epidérmica, é encontrada no texto épico Ilíada, de Homero, ao referenciar os conflitos entre xantus (cor clara) e melantus (cor preta) e também no antigo tratado Fisiognomica de Aristóteles, que é “[...] racialmente determinista, fixando qualidades e defeitos morais do ser humano segundo critérios baseados puramente no fenótipo. Entre esses, ‘a cor demasiado negra é a marca dos covardes”, enquanto “a cor rosada naturalmente enuncia as boas disposições’” (MOORE, 2007, p. 56). É sobre o pilar racial que os saberes sobre o homem e a humanidade dos principais nomes da filosofia e literatura greco-romana, tida como “clássica” e considerada, até hoje, como “berço da civilização humana” e fonte do saber se

estruturam, ignorando toda filosofia africana que é sua matriz, já que Pitágoras, o mais velho dos pensadores gregos, estudou por anos no Egito. Teoricamente, o estudo da questão racial se inicia com a tipologia (teoria dos tipos) como ensina Michael Banton (1977, p. 16), estruturada sob o aspecto da “linhagem”, que, no mundo ocidental, foi validado pela Bíblia Cristã, onde encontramos a maldição de Cam, um dos filhos de Noé, e com ela a “benção divina” para a escravidão africana. De acordo com Léon Poliakov (1974, p. 110-111), foi na Península Ibérica, no século XVI, que grandes palavras-chave em termos raciais foram forjadas. Lá, a humanidade do índio foi proclamada (vinculando-os aos brancos a partir do termo “mestiço”), a primitividade do negro reconhecida (vinculando-os aos animais a partir do “mulato”, filhote de mula), e o conceito “raça” foi criado pela “antropologia das Luzes” que via no negro sua faceta mais degenerada. Partindo de conclusões raciais o cientificismo se desenvolve, endossandoas, originando um novo paradigma, o racismo científico, que legitimou a posição do negro no mundo branco, incorporado nas teorias antropológicas da “bestialidade” do negro africano difundido no centro e pulverizado no senso comum europeu pelos relatos de viagens, nas quais “[...] as primeiras explorações do ‘continente negro’ revelaram a existência, ao mesmo tempo, de tribos aborígenes e de hordas de grandes símios antropóides, e, entre uns e outros, os observadores não sabiam ou não queriam fazer a separação [...]” (POLIAKOV, 1974, p. 111). Edward

Tyson

(1650-1703),

considerado

o

fundador

da

anatomia

comparativa moderna, foi pioneiro nesse trajeto e após observação meticulosa estabeleceu o indestrutível vinculo entre o homem e os símios, causando certa confusão (ou antes, uma indiferenciação nada ingênua), ao qualificar o chimpanzé como “Pigmeu” e o Orangotango de “homem dos bosques” e sobre a cor do homem negro, afirmava que “[...] ‘era devida a vasos particulares colocados entre a pele e a epiderme, e cheios de um licor negro’ acrescentando que ‘o clima podia alterar as glândulas e dar desta forma uma cor diferente’” (POLIAKOV, 1974, p. 133). A empiria de além-mar promoveu uma revolução científica que buscou a superação dos discursos teológicos e metafísicos, mas, em termos de paradigma racial, se a cor da pele foi o principal fator, Kabengele Munanga (2004, p. 20), ensina que no século XIX houve um incremento com fins de blindá-lo, reforçando a inferioridade negra a partir de outras características, vinculadas, indissociavelmente,

a seu fenótipo (forma do nariz, dos lábios, do queixo, do crânio, o angulo facial, etc.), tudo para aperfeiçoar a classificação. O profundo acúmulo racista enraizado há muito no senso comum central, reformulado e relegitimado cientificamente, é um dos pressupostos do Positivismo de Augusto Comte (1798 - 1857), que sobre a raça inferior nos fornece algumas “noções parciais” a partir da questão apresentada na lição 52 do Curso de Filosofia Positiva: “Por que a raça branca possui, de modo tão pronunciado, o privilégio efetivo do principal desenvolvimento social e porque a Europa tem sido o lugar essencial dessa civilização preponderante?”. Entre as razões da superioridade central, Comte estabelece que: Sem dúvida já se percebe, quanto ao primeiro aspecto, na organização característica da raça branca, e sobretudo quanto ao aparelho cerebral, alguns germes positivos de sua superioridade real; embora os naturalistas estejam, hoje, muito longe de chegarem a um acordo a esse respeito. Igualmente, sob o segundo ponto de vista, pode-se entrever, de um modo um pouco mais satisfatório, diversas condições físicas, químicas e mesmo biológicas que certamente tiveram alguma influência sobre a eminente propriedade das regiões européias de servir até hoje de teatro essencial desta evolução preponderante da humanidade. (COMTE, apud ARON, 1993, p. 121-122).

Imperioso destacar também o racismo de Charles Darwin explícito em sua obra The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, publicado em 1871, cofundadora do darwinismo social, paradigma científico “da moda”, aplicado em diversas áreas do conhecimento por expressar o evolucionismo humano rumo à perfectibilidade: o homem branco. Nas palavras do autor: Não existe, contudo, nenhuma dúvida de que as várias raças, se comparadas e medidas com cuidado, diferem muito... uma da outra — como no tipo dos cabelos, nas proporções relativas de todas as partes do corpo, no volume dos pulmões, na forma e dimensão do crânio e assim também nas circunvoluções do cérebro... As raças diferem também na constituição, na aclimatação, na circunstância de serem suscetíveis a certas doenças. As suas características mentais são igualmente bastante distintas, em primeiro lugar pelo que poderia aparecer nas suas faculdades emocionais, mas em parte por suas faculdades intelectuais... Se um naturalista que antes nunca tivesse visto um negro, um hotentote, um australiano ou então um mongol devesse estabelecer um cotejo entre eles, imediatamente veria que diferem por uma multidão de caracteres, alguns de pouca importância, ao passo que outros de importância considerável. (DARWIN, 1871, apud MENDES, 2013, p. 58).

Nesta mirada, o mundo burguês central, estruturado no racismo e elevado à superioridade pelo saber científico antropológico, segundo Eric Hobsbawm (1982, p. 272), não necessitava de nenhuma comprovação “[...] porque, de fato, a ‘raça superior’ era superior pelo critério de sua própria sociedade: tecnologicamente mais

avançada, militarmente mais poderosa, mais rica e mais ‘bem-sucedida’. O argumento era tão lisonjeiro quanto conveniente [...].” A “raciologia”, segundo Kabengele Munanga (2004, p. 20), forjada nos finais do século XVIII atravessou, se fortalecendo gradativamente, todo o século XIX chegando ao século XX quando conquistou muito espaço no âmbito sócio-político, e/ou vice-versa, haja vista que “gradativamente, começaram a sair dos círculos intelectuais e acadêmicos para se difundir no tecido social das populações ocidentais dominantes.” Nesses termos, o racismo como prática discriminatória e inferiorizante da raça negra é estrutural e estruturante do próprio centro, onde foi relegitimada continuadamente, transformando-se em ideologia que projetou, estruturou e fomentou instituições, valores e atos, coletivos e individuais, públicos ou privados, de caráter explicitamente excludente e violento, não possuindo relação com “raça”, que foi obra política com objetivos expansionistas (genocidas e exploratórios), mas consolidando a posição inferior(izada) do negro, construindo um contexto sociocultural, atemporal e aterritorial, onde sua naturalização, resultante das relações raciais hierarquizadas, tornou-a quase acrítica pela “armadura” tramada pela branquitude enquanto perfeita integração em um mundo monocromático, condição primária de um “não Outro” que não reconhece o racismo, direta ou indiretamente, como fonte de sua hegemonia. Cabe ressaltar, entretanto, que como palavra para designar essa postura, o termo racismo é produto do século XX como construção contra-hegemônica e luta política antirracial (BANTON, 1977, p. 174-175). 2 – RACISMO ESTRUTURAL E O GENOCÍDIO NOSSO DE CADA DIA “Existe uma história do povo negro sem o Brasil; mas não existe uma historia do Brasil sem o povo negro”. (Januário Garcia).

Com configuração da “Améfrica Ladina” (GONZÁLES, 1988), as estruturas racializadas centrais foram herdadas por nossa margem. Nossa singularidade racial se inicia com o modelo escravagista mais duradouro do mundo, foram mais de 370 anos de objetificação negra, fomos o último país a aboli-la. É dizer que em um pouco mais de 500 anos, nossa nação passou quase quatro séculos coisificando o negro,

somos o país que mais escravizou, possuindo o recorde americano, 40% do total de negros sequestrados (FREITAS, 1991, p. 11). Nesse contexto, nosso racismo, legatário do racismo português, é estrutural, estruturante e condicionante, impulsionando um projeto político genocida que tem como resultado uma “cifra negra” inimaginável (GÓES, 2014). Entretanto, o extermínio físico é somente uma faceta da aniquilação negra, pois, o comércio negreiro originou a ninguendade (RIBEIRO, 1995, p. 131) do africano ainda na mãe África ao ser obrigado a rodear a “Árvore do Esquecimento”3, processo continuado nos navios tumbeiros, fomentado pelo medo branco que extinguia o “Ser Negro”. No final do século XIX, a conjuntura política do país se tornou complexa demais para a manutenção do escravismo e a “liberdade” negra veio como “presente” embalado “legalmente”, uma abolição puramente formal e profundamente falsa, cuja extensão foi limitada ao mínimo. Sem o apoio dos escravistas o Império também ruiu dando lugar à jovem República excludente que reduziu ao máximo os riscos da transição, não arranhando, sequer, a superficialidade da estrutura racista ao adotar, como solução para o problema racial, o branqueamento via mestiçamento e o não enfrentamento do racismo. Assim, nosso abolicionismo foi, de fato, um instrumento de controle racial velado sob o brado libertário. O dia 14 de maio de 1888, quando a questão social encontra a racial, marca um momento de convergência entre a teoria liberal e a prática racista que preparou o país para o inevitável conflito entre o branco e o negro em um mundo que foi construído para tratá-lo como um inumano (NASCIMENTO, 1978, p. 48). 3 – O CONTROLE RACIAL NO PÓS-ABOLIÇÃO: NOSSO APARTHEID (MAL) MASCARADO E AS NOVAS LEGITIMAÇÕES PARA O VELHO RACISMO “Quando o ser humano perde a memória de seu passado, apaga sua identidade. Irremissivelmente montados sobre a flecha do tempo, quando não sabemos de onde viemos, ignoramos onde estamos, e, além disso, ignoramos para onde vamos.” (Eugenio Raúl Zaffaroni - prólogo de Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro – I).

O iminente caos na ordem racial obrigou nossos intelectuais a buscarem um discurso que reforçasse os pilares de uma nação estruturada sobre o racismo capaz 3

Plantada em 1727 por Agadja, “O Conquistador”, quinto rei do Daomé – atual Benim. Antes de embarcarem para além-mar, rumo ao “Novo Mundo”, os cativos andavam em torno da árvore (negros nove vezes e negras sete). Cada volta representava a morte da história de seu povo, de sua história, raízes, subjetividade, memórias, lembranças, laços, etc..

de manter o status quo hierárquico-racial. Essa nova legitimação ideológica viria pelas mãos da sciencia que endossou a fragmentação da África, a Diáspora negra, “legalizada” na Conferência de Berlim realizada entre 15 de novembro de 1884 a 26 de novembro de 1885, pelo chanceler alemão Otto Von Bismarck. No pós-abolição, um enorme contingente negro foi lançado no mundo sem qualquer auxílio ou política governamental. Expulsos da zona rural e excluídos da zona urbana, iniciaram a modernização das senzalas, a favelização das grandes cidades, o “lugar do negro” (SANTOS, 2010), demandando uma nova (re)construção identitária a partir de espectros e fragmentos raciais-culturais. Territórios de miséria e violência que o Estado não apenas ignorou, mas promoveu com fins higienistas, até bem pouco tempo, quando, após total omissão histórica, “descobriu” essas “novas” terras e subiu as vielas “sorrindo” impondo a “pacificação”, demonstrando que o único direito “dessa (quase) gente” é ser violentada. Depois das inúmeras insurreições negras, a ideia de uma nova revolta personificou o medo branco responsável pela criminalização de toda e qualquer manifestação que agrupe negros. O fantasma negro que sempre perturbou os sonhos leves e dourados da sociedade branca ainda assombra. Dentre os fundamentos para essas criminalizações, encontramos a violência atávica do negro, oriunda de sua primitividade potencializada pelo uso do álcool e pela maconha, “fumo de negro” ou “fumo d’Angola” (SAAD, 2013), introduzida no país, de acordo com documento oficial de 1959 do Ministério das Relações Exteriores brasileiro (CARLINI, 2005, p. 23), pelos escravos que trouxeram sementes da planta escondidas nas Abayomis.4 3.1 – RACISMO CRIMINOLÓGICO: BASE DO NOSSO CONTROLE RACIALMARGINAL “O racista numa cultura com racismo é por esta razão normal. Ele atingiu a perfeita harmonia entre relações econômicas e ideologia.” (Frantz Fanon – Toward the African Revolution)

É Eugenio Raúl Zaffaroni quem assinala que na periferia não é o modelo benthamiano que caracteriza o controle social, mas o modelo lombrosiano (ZAFFARONI, 1991, p. 77), estabelecendo o marco da construção do primeiro 4

Na travessia do Atlântico, as escravas, para amenizar o sofrimento das crianças, tentando seu acalanto, rasgavam tiras de pano de suas saias e faziam bonecas para elas brincarem. A palavra abayomi é de origem iorubá e significa “aquele que traz felicidade”.

“apartheid criminológico” marginal, uma política segregacionista encoberta pelo discurso liberal, mas explícita na prática genocida-racial (Id., 1988, p. 131). Isto por que, aqui, não houve o disciplinamento de mão de obra para as fábricas, pois a disciplina sempre decorreu da necessidade da manutenção da ordem racial estabelecida sempre por meio da violência física e mortes, meios indispensáveis ao controle racial que tem como objetivo a domesticação do corpo e o medo representado pelo “mau exemplo” transformado em bandeira estendida no tronco. A tradução desse modelo (SOZZO, 2014), se deve exatamente ao seu viés racista, exposto em L’uomo bianco e l’uomo do colore: letture sull’origine e la varietà delle razze umane, de 1871, onde Lombroso traçou a evolução humana a partir dos primatas, sendo os negros a ligação entre aqueles e o ápice evolutivo humano: o branco europeu. Nesse processo, o negro traria como herança (indireta pelo atavismo ou direta pela hereditariedade), a inferioridade, a primitividade, a impulsividade e a degeneração. É embasado nesse saber racial que se origina L’Umo Delinquente, obra que lhe deu notoriedade mundial e na qual seu racismo se encontra pulverizado (o que não significa dizer que não é explícito). Representante legítimo da elite marginal brasileira, o médico Raimundo Nina Rodrigues traduz essa teoria fortalecendo sua matriz racista em “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, obra na qual esboça um apartheid brasileiro só não implementado pelo desenvolvimento do branqueamento nacional arquitetado pela ideia da “boa miscigenação”, marco de uma ciência à brasileira (SCHWARCZ, 2012, p. 161). A prática do nosso controle racial-social foi um dos maiores legados de Nina Rodrigues, tática que permite que nosso racismo atravesse, praticamente incólume, toda nossa história, tangenciando todas as transições político-sociais, discursos teóricos adotados e direitos positivados, legal ou constitucionalmente. Em “Os africanos no Brasil”, publicado após sua morte, é representativo como a questão racial é situada no início do século XX, incorporando uma esfinge, lança seu enigma: “decifra-me ou devoro-te”, obrigando Nina Rodrigues a modelar suas premissas ao extermínio silencioso do negro em termos assimilacionista, uma vez que nem todo negro seria um negro, alguns possuíam a alma branca. Os processos de tradução do paradigma racial-etiológico lombrosiano demonstram que o racismo é a face oculta(da) da nossa guerra contra as drogas, inaugurada na década de 1930, pela intensificação militar no combate ao “comércio” da planta após sua inclusão, por empenho da delegação enviada pelo Brasil, na lista

proibicionista resultante da II Conferência Internacional do Ópio, realizada em 1924, em Genebra, pela antiga Liga das Nações (CARLINI, 2005, p. 23). Em 1932, a proibição do comércio e consumo de maconha foi estabelecida pelo Decreto nº 20.930, cuja imprescindível fundamentação científica decorreu do estudo pioneiro Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício, de 1915, do médico Rodrigues Dória, autor de outra tradução do paradigma lombrosiano. Destarte, desde sua declaração o que se combate nunca foi a periculosidade toxicológica da droga, sendo que nossa coligação na guerra estadunidense apenas conferiu nova “legitimação” ao genocídio negro nunca interrompido, pois os inimigos, forjado pelo racismo assim como o campo de batalha, sempre foram os mesmos, dando continuidade à velha cruzada racial, agora com o extermínio do traficante, demônio incorporado pelo jovem negro favelado desenhado por Vera Malaguti Batista (2003, p. 36), desde a priori “legalizado”. Em nosso sistema de controle racial/social, sua programação racista é demonstrada inequivocamente, no “Direito Penal Declarado”, pelos dados oficiais do DEPEN que expõem sua “clientela”: os negros (pretos e pardos) representam, até junho de 2014, 67% da 4ª maior população encarcerada do mundo, o que significa que dois em cada três presos são negros.5 Já em nosso “Direito Penal Paralelo”, outrora identificado por Lola Aniyar de Castro como “subterrâneo” (CASTRO, 2005, p. 96), mas que há muito deixou de sê-lo eis seu resultado é produzido à luz do dia para quem quiser enxergar, um dos que mais mata no mundo, é representado pela postura policial racista responsável, em 2014, pela morte de 2.638 pessoas, uma média de 6 mortes diárias pela corporação, das quais quase 70% são de jovens negros, vítimas do racismo institucional que continua (des)velado, sendo 30,5 mais vezes vítimas de homicídios/extermínio do que os brancos (BRASIL, 2014). Em 2015, chegamos à marca de 82 corpos negros “triturados” diariamente6 por várias causas, dentre elas, as balas (nunca) perdidas que sempre acertam seu alvo preferencial: o corpo negro. Dito de outro modo, se para os brancos a presença policial significa segurança, para os negros é completamente ao contrário, representando risco de vida, pois, nosso Direito Penal Paralelo, cuja única limitação é a territorial, exerce 5

Advertimos que essa porcentagem não corresponde à realidade, pois São Paulo não enviou seus dados. Disponível em: http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal Acesso em: 21 jul 2015. 6 Dados fornecidos pela ONG Anistia Internacional Brasil que fundamentaram a campanha: “Jovem negro vivo”.

suas práticas incontroláveis recortando todo e qualquer quadro teórico, mantendo-se fiel à programação racista da corporação, já que a função da Guarda Real de Polícia, no início do século XIX, era manter a ordem com as “Ceias de Camarão” (BATISTA, V., 2003b, p. 141). A lição de Nina Rodrigues foi muito bem aprendida!. Se pelo discurso declarado a guerra às drogas resta perdida, pelo fundamento latente (programação racista), o sucesso exterminante é inequívoco!. 4 – A ASSIMILAÇÃO RACIAL: ENFIM, O SUCESSO DA POLÍTICA GENOCIDA BRANQUEADORA!

A abolição da escravatura redefiniu nosso racismo, assumindo o preconceito de cor, originado e orientado pelo fenótipo, cujo objetivo era, e segue sendo, apenas um: o de deixar o negro em seu devido lugar, não ameaçando a branquitude, o presente de um mundo (construído) branco ao branco (o não-negro), um porto seguro formado pela exclusividade, hegemonia, benefícios e privilégios, materiais ou simbólicos, oriundos da objetificação e exploração negra (SCHUCMAN, 2014). Essa redefinição foi consequência do fracasso das políticas genocidas das quais o negro “teimava” em sobreviver, sendo imprescindível, assim, a criação de um novo instrumento de controle racial/social: a assimilação racial (mais sutil, porém não menos cruel). Outra marca singular racial brasileira que gestou o mito da “democracia racial” que possui uma superficialidade facilmente percebida, pois apenas uma “raça” monopoliza “[...] todo o poder em todos os níveis políticoeconômico-sociais: o branco” (NASCIMENTO, 1978, p. 46). O antigo sonho de branquear o Brasil se tornou, parcialmente, realidade pelo mestiçamento que possibilitou a redenção de Cam, porém, reformulando a maldição que continua a recair sobre seus descendentes, antes de escravidão, agora de extermínio. A política assimilacionista, outra face da “desafricanização” e parte integrante da formação do “paraíso racial brasileiro”, modelou o racismo brasileiro que ganhou contornos específicos (NOGUEIRA, 2006, p.07), inculcando nos negros e seus descendentes a “vergonha da negritude” (CARDOSO, 1977, p. 265) como uma proposta de tolerância e ascensão social através da negação da ancestralidade e aceitação passiva de modelos comportamentais e estéticos da raça dominante, pois o fenótipo negro, ao se distanciar do padrão Barbie, materializa o “estereótipo do mal” (ZAFFARONI, 1988, 159). É Florestan Fernandes (1972, p. 23) que nos

chama a atenção para um outro sentimento provocado por essa política, agora na grande maioria dos brancos, o “preconceito de ter preconceito”. O sucesso desse instrumento é demonstrado pela Pesquisa nacional por amostra de domicílios (PNAD), realizada pelo IBGE em 1976, quando o brasileiro forneceu 135 cores na tentativa de fugir do estigma racial. De igual modo e pelos mesmos motivos, essa vergonha ocorre em nossa magistratura, segundo o Censo do Poder Judiciário realizado em 2014 pelo CNJ (que já demonstra o racismo institucional), pois apenas 1,4% dos 16.812 juízes do Brasil se autodeclararam pretos, sendo preferível ser pardo (branco-sujo)7 a assumir sua negritude, posicionamento de 14% dos magistrados. Entretanto, essa lógica não é recente, como leciona Frantz Fanon ao colocar luz sobre o desejo incontido de todo colonizado tomar o lugar do colonizador, o escravo tomando a posição do senhor, sendo que o reconhecimento social e alcance do status de ser alguém (contraposição àquela ninguendade) passa(va) pela conquista do poder de objetificar, de modo absoluto, o apropriável cuja condição mais básica era o corpo negro, razão pela qual a violência do negro contra ele mesmo era condição de aceitação social. Lógica que nos permite compreender toda a objetificação permitida e natural(izada) sobre esses corpos desvalorizados, demonstrada hoje pelos “linchamentos” que retratam a saudade do tronco. Nesse sentido, apontamos para a “seleção policizante”, singularidade periférica cunhada por Eugenio Raúl Zaffaroni (2013, p. 56), pela qual as agências policiais recrutam seus operadores na mesma raça/classe de sua “clientela”, treinando e condicionando-os a criminalizar (menos) e executar (mais) seus “iguais” a partir da divisão maniqueísta apolítica que pulveriza o racismo no conflito “mocinhos” x “bandidos”, impossibilitando a conscientização e qualquer coalizão que impulsione o potencial identitário necessário a uma mobilização coletiva. É a modernização do capitão do mato do período escravagista. Nosso racismo nada velado alcançou, com a política branqueadora assimilacionista, o sucesso exterminador do “Ser negro”. É um genocídio articulado em uma dupla operacionalização como leciona Abdias do Nascimento: o branqueamento pela miscigenação e a imposição da cultura eurocêntrica, impedindo o negro de se reconhecer enquanto tal. Assim, o medo branco continua a evitar a

7

Dicionário on line UOL. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/.

todo o custo a conscientização da negritude pela negação de seu racismo explícito que segrega tal qual o apartheid sul-africano (muito bem representado aqui pelos “rolezinhos”), que “[...] só concebe aos negros um único ‘privilégio’: aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora” (NASCIMENTO, 1978, p. 93). Esse é o posicionamento também de Darcy Ribeiro (1995, p. 226) que viu no apartheid e no racismo estadunidense algumas vantagens, eis que esse “paraíso racial” é um golpe político que impede e dissolve a identidade coletiva, despolitizando o negro brasileiro, pois “o aspecto mais perverso do racismo assimilacionista é que ele dá de si uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato, desarma o negro para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições de terrível violência a que é submetido”. 5 – À GUISA DE CONCLUSÃO: uma proposta marginal “Quebre suas correntes e você será livre, corte suas raízes e você morre”. (Provérbio africano).

Percorrendo o fio condutor histórico, observamos que racismo e genocídio são nossas pedras angulares, os dois lados da mesma moeda forjada pela exclusão dos indesejados para quem a violência estatal e o projeto político de extermínio foram direcionados, impulsionados e naturalizados, parte da herança composta ainda pela miséria, subempregos, sub-moradias e sub-julgação, marcadas a ferro em, aproximadamente, 53,1% da população brasileira8, uma das maiores populações negras do mundo, considerada sub-humana sempre a serviço dos “sinhôs e sinhazinhas” e principal objeto de atuação do Direito Penal Paralelo de viés escravagista-doméstico (BATISTA, N., 2000, p. 25), base matricial de nosso “Ornitorrinco punitivo” (ANDRADE, 2012, p. 111). Fica, pelo mesmo processo histórico, evidente a metamorfose que o conceito de “raça negra” sofreu, outrora, sinônimo de escravização, inferiorização, hoje, por mérito da força e resistência do Movimento Negro (organizado ou não), motivo de orgulho, sinônimo de empoderamento e pertencimento pela negritude. O conto do “país das maravilhas raciais” além de atirar os negros em um mundo branco desarmados e despreparados para suas armadilhas, mesmo sem 8

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD) de 2013, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

enxergá-las, seduz grande parte de nossos intelectuais que limitam suas críticas a um controle social e sua seletividade, sendo que pouquíssimos ousam descer ao nível racial, mantendo nosso racismo “inominável”, apesar da unânime e imediata identificação de nossa “clientela” penal em termos de cor, raça, origem e baixa (ou falta de) escolaridade, nosso legado racista. Ao diluírem a questão racial (radical) em favor do conflito de classes originado de um capitalismo tardio, reforçam e legitimam nosso racismo e seu processo genocida em termos assimilacionistas e despolitizantes, e assim, continuam a falar em “cifra negra”, seletividade penal (e não racial), em controle social (e não racial) e em ordem social (e não racial). A ignorância ou “desatenção” de nossa realidade por parte dos criminólogos e abolicionistas nacionais, uma postura de negação de sua própria marginalidade e dependência central denunciada por Rosa Del Olmo, Lola Aniyar de Castro, Vera Andrade, Vera Malaguti, Eugenio Raúl Zaffaroni, Máximo Sozzo, dentre outros, mantém a antiga tradição de “traduzir” as teorias centrais desconsiderando nossas especificidades, uma postura iludida sobre um falso universalismo que ignora quase quatro séculos de escravidão, coisificação e genocídio, produtos de um colonialismo que se estendeu a toda margem latina, mas que no Brasil tomou proporção e cariz singulares, perante as quais devemos situar nossa Realidade Marginal Racial, uma programação racista explícita pela seletividade racial (que recorta a seletividade penal) e com ela nosso sistema de controle racial/social. Tocar nessa ferida exposta, ocasionada pelos grilhões raciais reforçados, sistematicamente, é invocar os demônios que perturbam os lindos sonhos encantados da raça/classe dominante, que não devem ser nomeados sob pena de materialização em sopros emancipatórios e revolucionários decorrentes da conscientização coletiva coalizadora, outrora incorporado pelas insurreições negras. Assim, antes de qualquer (re)ação racial organizada, o Estado brasileiro, como medida acautelatória e protetiva, extermina a juventude negra exatamente por se tratar de quem mais tem motivos para desconstruí-lo. Em nossa margem, constituída de mundos monocromáticos, devemos descortinar nosso racismo (muito) mal mascarado, reformulando conceitos e abrindo caminho para o seu (re)conhecimento como processo político genocida histórico e atemporal que transforma àquela mãe gentil (de poucos) em uma madrasta cruel (para a maioria), tornando-o em projeto político identitário e de conscientização da negritude que traz consigo o impulso transformador de todos os instrumentos e

agências do controle social que formam nossa sociedade para concretizar àquelas velhas promessas do ilusório abolicionismo escravocrata. Essa (des)construção também objetiva, por outro lado, expor os privilégios, hegemonia e dominação, resultantes da branquitude. Uma luta a muito travada que não se circunscreve à população negra, pois impulsionada pela utopia de uma novel sociedade (ou resgate das raízes fragmentadas), busca a construção de seus pilares em termos inclusivos, irrestritos. Não defendemos, assim, por óbvio, uma revolução racial segregacionista no melhor estilo apartheid às avessas, muito ao contrário, nosso projeto decolonizador se inicia com a procura e retomada da identidade e ancestralidade negadas aos negros brasileiros desde sua ninguendade, explicitada no paradoxo do negro brasileiro: trazer a marca do escravizado à flor da pele enquanto carregam, em seu sobrenome, a “herança” do escravizador. Uma proposta marginal deve superar os ismos que nos fundamentam, refazendo o caminho colonizador para a construção de uma nova sociedade que não fundada em um pacto sempre excludente como leciona Alessandro Baratta (1995) ao defender um Estado mestiço, mas que ultrapasse os estreitos limites centrais sempre racializados, onde não encontraremos nenhuma resposta que não aquela barbárie rotulada de civilizatória orientada pela construção, identificação e imediato extermínio do “Outro”, mas mantemos a tradição transplantada em nossa margem colonizada de colocar o Estado sempre como protagonista, tal qual àquele “marinheiro bêbado” que nos fala Joaquín Herrera Flores (2009, p. 47), que procura sua carteira perdida sob a luz de um poste mesmo sabendo que ela ali não estava sob o argumento de que era o único lugar que podia enxergar. Acreditamos que a base para essa outra sociedade esteja no modo relacional, no sentimento de pertencimento social a um todo (que exclui a estigmatização e criação do “Outro”, a individualidade e a meritocracia), e de responsabilidade da sociedade perante seus integrantes, fator indispensável para entender o erro individual como falha coletiva. Nosso projeto marginal tem como pedra fundamental uma Ética Ubuntista9, essência da sororidade e do Quilombismo que propagam o “sou por que nós

9

D eri v a da do Ub u nt u , pa l a vr a d e or i gem Ba nt o q u e c ar ac t er i za u m a f ilos of i a tr ib a l af ric an a , na q u a l o pr óx im o é ex te ns ã o do s er , s om en te c om pre en d id os s e i ns er i d os no c o l et i v o, pr om ov e nd o a r es po ns a b i l id a de m útu a e o s en t im e nt o d e

somos!”, um projeto político utópico (note-se que de “sonho”, utopia passa a ser o resgate de uma filosofia milenar com base concreta), mais facilmente acreditável, possível e alcançável do que as promessas feitas há muito, jamais realizadas(veis) mas que ainda fundamentam os sonhos infantis da fina-flor de nossa sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012. ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BANTON, Michael. A ideia de raça. Lisboa: Edições 70, 1977. BARATTA, Alessandro. Ética e pós-modernidade. In: KOSOVSKI, Ester (Org.). Ética na comunicação. Rio de Janeiro: Mauad, 1995, 133-156. BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. Rio de Janeiro: ICC, 2000. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: droga e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. ______ O Medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003b. ______ O realismo marginal: criminologia, sociologia e história na periferia do capitalismo. 2007. BRASIL, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário 2014. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//8anuariofbsp.pdf. Acesso em: 21 jan 2015. per t enç a, n ã o p os s u in do um ún ic o s i gn if ic a d o. Es s a f i l os of i a f o i a bas e d o g o v ern o de Ma d i b a ( N els o n M an d e la) n a Áf r ic a d o S ul , m es m o ap ós 2 7 an os de pr is ã o . O i de a l é f ac i lm en te c o m pr ee nd i do a par t ir d e um c on t o q ue re l at a o es t u do d e um an tr op ó l og o dur a nt e s uas p es q u is as em um a tr ib o af ric an a . D i z a h is t ór ia q ue e l e ha v i a d e ix a d o d e ba ix o d e um a ár v ore u m a bon it a c es t a d e doc es e c ham o u as c r i anç as , pr op o n do um a c orri da at é as gu l os eim as . Q u em c heg as s e pr im eir o f ic ar i a c om o pr êm io . Mas , q ua n do e l e dis s e “j á! ”, to das as c ri a n ç as s e de ram as m ãos e s a ír am c or r e n do em d ir eç ã o à ar v ore . Q u an d o c he g ar a m lá, c om eç ar am a d is tr i b uir os d oc es e ntr e s i e a c om e rem , f eli ze s . O an tr op ó l og o, en t ão , per g u nt ou por q ue el a s ti nh am id o t od as j u nt as s e um a s ó po d er i a ter f ic a d o c om tu d o e , as s im , c o m er ia m ui t o m ais doc es . E as c r i an ç as s im pl es m e nt e res p o n der am :“ Ub u nt u ! . C om o um a de n ós po d er ia f ic ar f e l i z s e to d as as ou tr as es t i v es s em tr is tes ?” .

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 3. ed. Rio de Janeiro: paz e Terra, 1977. CARLINI, Elisaldo Luiz de Araujo. A História da Maconha no Brasil. In: CARLINI, et al. (Orgs) Cannabis sativa L. e substâncias canabinóides em medicina. São Paulo: CEBRID, 2005. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução: José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. FLORES, Joaquín Herrera. A (re)invenção dos Direitos Humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. FREITAS, Décio. O Escravismo Brasileiro. 3. ed. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1991. GÓES, Luciano. Racismo, genocídio e cifra negra: raízes de uma criminologia antropofágica. In: Vera Regina Pereira de Andrade; Gisele Mendes de Carvalho; Gustavo Noronha de Ávila. (Org.). Criminologias e Política Criminal. Ied. Florianópolis: CONPEDI, 2014, p. 452-481. GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, nº. 92/93 (jan./jun.). 1988, p. 69-82. HOBSBAWM, Eric. A era do capital: 1848-1875. Tradução de Luciano Costa Neto. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. LOMBROSO, Cesare. L’uomo bianco e l’uomo di colore: Letture sull’origine e la varietà delle razze umane. Bologna, Archetipolibri - CLUEB, 2012. MENEGAT, Marildo. Estudo sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan, 2012. MENDES, Iba. O maravilhoso mundo de Darwin. Edição digital, 2013. MOORE, Carlos. Racismo e sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In BRANDÃO, André Augusto. Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. Niterói: EdUFF, 2004, 15-34. NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O tempo dos povos africanos: suplemento didático da linha do tempo dos povos africanos. IPEAFRO - SECAD/MEC - UNESCO, 2007. NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: Sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n1/a15v19n1.pdf Acesso em 22 out. 2014. POLIAKOV, Léon. O Mito Ariano: Ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos. São Paulo: Perspectiva, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 3. ed. Salvador: Livraria Progresso, 1957. ______ Os africanos no Brasil. Centro Edelstein de Pesquisas Sociais: Rio de Janeiro, 2010. SAAD, Luísa Gonçalves. “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no Brasil (c. 1890-1932). Salvador, 2013. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/13691/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20 LUISA%20SAAD.pdf Acesso: 25 fev 2015. SANTOS, Joel Rufino. A metamorfose do negro. In: COSTA, Haroldo; LOPES, Nei; SANTOS, Joel Rufino (Orgs.). Nação Quilombo. Rio de Janeiro: ND Comunicação, 2010. SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014. SOZZO, Máximo. Viagens culturais e a questão criminal. Tradução Sérgio Lamarão. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa Omega, 2001. ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Criminología. Aproximación desde una margen. Bogotá: Temis, 1988. ______.Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. ______.Et al. Direito Penal Brasileiro. Vol. I, 4 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.