Apontamentos sobre a Diferenca de Gênero na Universidade

May 26, 2017 | Autor: Junia Zaidan | Categoria: Feminismo, Género, Produtivismo Acadêmico
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ZAIDAN, Junia C. S. de Mattos. Apontamentos sobre a Diferença de Gênero na Universidade. In: Patrick Rezende (Org.), Interfaces com a Linguística, dialogando saberes. Pedro e João, 2016, p.229-240 Apontamentos sobre a Diferença de Gênero na Universidade Junia Zaidan/UFES

Há alguns anos, em uma conversa informal com uma professora universitária, colega de instituição, perguntei-lhe sobre sua vida profissional após o nascimento de seu primeiro bebê. „A trancos e barrancos‟, respondeu, descrevendo em seguida a dificuldade de se readaptar à roda-viva produtivista em que se tornou o mundo acadêmico, enquanto seu companheiro e colega de departamento - o pai do bebê - fortalecia seus projetos de pesquisa com um grupo de estudantes e frequentes publicações, despontando como acadêmico de alta produtividade em pesquisa. Trago esse relato como pano de fundo para alguns apontamentos que desejo fazer sobre o espaço universitário público como emblemático dos modos de interação entre as identidades de gênero na vida social e de como se garante/restringe/impede o acesso aos bens materiais e simbólicos. Como desdobramento do jogo identitário que se processa por mecanismos muitas vezes imprevistos, consideraremos também algumas micropolíticas de resistência que vemos emergir no meio acadêmico, através da produção e circulação de textos, funcionando para sublinhar o feminino e assim possibilitar formas mais equitativas de interação na universidade. Assim como seu parceiro, a professora com quem conversamos é pressionada pelo produtivismo que, submetendo a educação às interferências diretas do mercado sob o argumento da globalização e da internacionalização, estabelece seus ditames em uma universidade cuja doxa educacional é qualificar para o mercado e não para a vida. Os efeitos das condições laborais precárias que o produtivismo acadêmico surte são objeto de estudo de pesquisadores que apresentam conclusões, relacionando-o ao sofrimento psíquico, emocional e físico. (Cf. LIMA & LIMA-FILHO, 2009; BORSOI, 2012; DIAS & ROZENDO, 2015, por exemplo). Níveis altos de ansiedade, angústia,

estresse, frustração, esquecimento, insônia, depressão são detectados nesses estudos, expondo e explicando a relação de causalidade entre os distúrbios e rotinas extenuantes, que incluem metas a serem atingidas, competição intra e interinstitucional, jornadas estendidas para o ambiente domiciliar, ameaça de descredenciamento de programas de pós-graduação, a pressão para não ter seus artigos rejeitados por periódicos indexados, a participação em bancas, a sobrecarga de leitura, o comparecimento a eventos acadêmicos, as eventuais funções administrativas,

entre outras atividades da vida docente, tornam

adversas as condições de trabalho das/os professoras/es. Como seu parceiro, ao longo desses anos em que a ideologia neoliberal tem se fortalecido na academia, a professora teve que se reorganizar e ressignificar seu papel no ensino e na pesquisa, sua relação com as/os alunas/os, sua compreensão do que é contribuir para a sua área e para a instituição. Diferentemente de seu parceiro, no entanto, a professora enfrenta também uma ideologia patriarcal em que as práticas acadêmicas estão inscritas, uma ideologia que se materializa em discursos a atualizar-se de diversas e veladas formas, e que embora não produzam, necessariamente, os enunciados abaixo de forma explícita, traduzem-se em prática sociais, em formas de agir sobre o outro que professoras e alunas conhecem profundamente. - Você não é boa o suficiente porque você é mulher; - A universidade não é lugar de mulher; - Seu ingresso e ação na universidade dependem da chancela dos homens; - Seu corpo não lhe pertence; - Sua aparência é mais importante do que seu intelecto. A circulação dos discursos subjacentes a esses enunciados (que não serão proferidos, necessariamente) produz, na arena produtivista da instituição de ensino superior, uma divisão social do trabalho em que as mulheres passam a constituir o proletariado acadêmico. Os depoimentos que coletamos a fim de ilustrar nossa discussão sobre as formas sutis que a dominação de gênero

adquire no mundo acadêmico referem-se às experiências de mulheres durante o curso de graduação e de mestrado, entre os anos de 2006 e 2015: No primeiro período da graduação, já fui avisada de que havia um professor no curso que não aceitava orientandas mulheres na iniciação científica e ele em sala demonstrava muita hostilidade ao tratar as mulheres da turma, (...), inferiorizando seus raciocínios e apontamentos. Era extremamente incômodo principalmente por sermos calouras. (Relato da Docente 1)

Embora o número de professoras no ensino superior se equipare e/ou supere o número de professores, e o de alunas já seja maior do que o de alunos, é comum a sensação narrada por muitas mulheres de que o espaço universitário ainda impõe restrições relativas ao gênero de formas muito sutis e não declaradas. O depoimento acima é representativo de muitas alunas de graduação que circulam nos

espaços de ensino e extensão, mas que,

comparativamente, costumam figurar em porcentagem menor na pesquisa. Ou seja, reflete-se na economia das trocas simbólicas entre gêneros a relação hierarquizada entre pesquisa, ensino e extensão que o produtivismo instaurou, segundo a qual, atuar na pesquisa fornece capital simbólico maior do que nas outras dimensões da universidade. Como argumentam Almeida e Soares, Nos tempos modernos e contemporâneos, quando essas relações se estabeleceram no mundo do trabalho após a inserção feminina nesse espaço, por sua vez, produziram mecanismos sutis e explícitos de dominação inseridos nos espaços hierárquicos de poder. Esses, muitas vezes, são fragmentados quando se deslocam para profissões feminizadas e parece haver uma concordância implícita sobre quais trabalhos são "para mulheres". Dentre estes, o magistério de crianças e jovens se destaca como trabalho feminino por natureza e dessa maneira, é social e culturalmente aceito. Porém, quando se trata do Ensino Superior alguns paradoxos acontecem, pois conflitam com esse imaginário. Isso porque, desde os tempos idos, os homens eram os doutores, os lentes, os conhecedores, os livres; e as mulheres mal conseguiam aprender a ler e escrever, submergidas nas funções domésticas e maternas. (ALMEIDA & SOARES, 2012, p.558)

Lastreia o espaço universitário a memória um modo de fazer ciência – ou, para evitar a digressão que essa expressão causaria – um modo de produzir conhecimento calcado na objetividade, racionalidade e na proposição de princípios universais para explicar os fenômenos. Ainda que o PósEstruturalismo tenha contribuído para descontruir muitos dos axiomas iluministas, a progressão que o pensamento neoliberal tem obtido no âmbito

acadêmico na última década opera de modo a atualizá-los nas práticas universitárias. A representação do feminino esteve sempre comprometida com a ideia de sensibilidade ao invés de racionalidade, de subjetividade, ao invés de objetividade, de descontrole, ao invés de controle, de fragilidade ao invés de força, de loucura, ao invés de sanidade, para mencionar apenas alguns pares dicotômicos que demarcaram historicamente os espaços em que a mulher poderia atuar de modo mais “natural”. A visão cartesiana de que a sensibilidade exclui a racionalidade, a torna ausente, bem como a reificação mesma da racionalidade/objetividade estabeleceram que a legitimação acadêmica – sobretudo nos campos ditos “duros”, mas com reflexos inegáveis nos campos “moles” - depende da capacidade de apresentar “argumentos”, “teorizações” que emerjam de procedimentos “rigorosos”, o que também demarca o espaço de prestígio ocupado pelos homens, historicamente representados pela outra dimensão das dicotomias mencionadas (a racionalidade, a objetividade, a sanidade, entre muitas outras). Logo que entrei no mestrado, um aluno espalhou entre os colegas que com o meu Lattes eu só poderia ter passado depois de ter feito favores sexuais. Outra, numa aula da filosofia, argumentava em favor de uma interpretação, e o doutorando que dava aula contrargumentou dizendo que eu era muito bonita para estar ali. Depois me ridicularizou na saída dizendo que se ele tivesse nascido com meus atributos físicos, não perderia tempo estudando filosofia e desconcentrando os colegas. (Relato da Docente 2)

A depreciação da capacidade da mulher para interagir no ambiente acadêmico costuma se basear na ideia de que seus atributos físicos podem ser sempre objeto de avaliação e de que – quando bem avaliados – automaticamente a destituem do lugar de enunciação que uma intelectual poderia ocupar. Se na vida fora da universidade, a performance aprendida dos papeis de gênero socialmente designados para homens e mulheres circunscreve suas práticas e as naturaliza por repetição (BUTLER, 2010), poderão fazer sentido para uma mulher que ingressa na universidade, seja como docente, seja como aluna, os discursos que relacionam seu corpo com a culpa, a não legitimidade, a supostamente necessária restrição de sua expressão ou o controle alheio.

Um dia desses, o professor me enviou uma mensagem no celular, dizendo que “queria me ver linda” apresentando um trabalho. Isso não é exatamente o que uma aluna espera ouvir de um professor. Achei um desrespeito ao meu intelecto. Uma inconveniência no espaço universitário. Denunciei na Ouvidoria da universidade. (Relato da Aluna de Graduação 2)

A erotização da mulher na academia funciona como um mecanismo de “gatekeeping”, que busca manter sob o controle masculino os espaços de poder, desviando o foco para o corpo da mulher e suas formas físicas de expressão. São exemplos a atenção à aparência em detrimento da argumentação oral durante a apresentação de um trabalho, como narra a Aluna de Graduação 2, e a sensualização da escrita, escamoteando sua representação como prática de agenciamento político, como, entre outras questões, nos mostra o relato a seguir. Uma outra vez, [durante a pós-graduação] tambem na filosofia, um professor se referia a Marilena Chaui como a grande buceta de Chauí. Até que eu me manifestei e tivemos um embate por fim produtivo. Mas o pior de tudo é sempre quando a gente percebe que por vezes dividimos a cama com o babaca machista. Houve outras também, mas essas foram as mais marcantes. Junto a isso, quando um ex amigo disse que achava que no fundo as mulheres não eram capazes de pensamento filosófico, e um ex que dizia que eu escrevia de uma maneira sexy, mas que ele não entendia nada. Enfim... toda mulher tem um punhado dessas histórias, né?! (Relato da Docente 2)

A sensação de inadequação e de que se está às vezes infrigindo alguma regra pode ser detectada no relato da Aluna de Graduação 2, abaixo. A regra que ela infringe é tácita: não deveria ocupar aquele espaço mas, já que ocupa, não pode se expressar, então, uma vez que se expressa, tem que “arcar com as consequências” de sua intrepidez. Essa é a palavra de ordem que estrutura nossa condição de mulher. E, como nos lembra Deleuze, a palavra de ordem é feita para “obedecer e fazer obedecer” e não para que se acredite nela, alavancando um ciclo ininterrupto de indiretividade sígnica. O desdobramento emocional do constrangimento que muitas mulheres enfrentam é a conhecida culpa, que, a partir do discurso que a estrutura, exige providências como, afastar-se, não olhar no rosto, não repetir o “erro”, recuar. Eu estava no 4º período e, numa determinada disciplina, fiquei de prova final e aí, antes da prova, o professor pediu que a gente fizesse alguns comentários gerais sobre o que nós achamos da disciplina, do semestre. Aí eu fiz alguns comentários positivos, falei que gostei, que me fez refletir bastante, que gostei

das discussões...E aí, quando eu estava perto de terminar a prova, ele chegou perto de mim, se abaixou para falar comigo e pediu para eu escrever meu endereço de email na prova. Achei que era alguma coisa relacionada à disciplina, inclusive eu achei que ele tinha pedido isso pra todo mundo. Achei que talvez ele mandaria as notas por email, algo do tipo, então escrevi meu email. Quando a prova acabou, eu perguntei aos meus colegas se eles também tinham escrito os emails nas provas e descobrir que ninguém tinha escrito. Eu nem relacionei isso a algum interesse pessoal, sexual, algo do tipo. Aí, algus dias depois, chegou um email desse professor pra mim, me elogiando muito, fazendo vários elogios tanto em relação ao meu desempenho como aluna, quanto elogios pessoais e agradecendo pelo comentário que eu havia feito e falando que eu poderia procurá-lo a qualquer momento que quisesse, colocando o telefone dele no email. Eu me senti muito constrangida. Ele só pediu isso prá mim. Ele poderia ter feito na frente de todo mundo o agradecimento. Eu e senti muito constrangida. Não cabia a ele naquela posição me fazer elogios pessoais e nem me dar o telefone celular dele. Eu me senti constrangida, mas ainda bem que eu não tive mais aulas com ele...Virava o rosto quando o encontrava pelos corredores...eu ficaria muito envergonhada, apesar de nao ter culpa de nada, a gente se sente assim envergonhada. (Relato da Aluna de Graduação 2)

Não é o objetivo desta discussão sublinhar o que se poderia interpretar como vitimização das mulheres na universidade, mas modestamente contribuir com mais uma entre tantas reflexões sobre a diferença de gênero nesse campo. E acreditamos que a escuta das incontáveis mulheres com seus “punhados” de história, como afirmou a Docente 1, expande nossa compreensão e a torna mais sensível. O adágio feminista de que o pessoal é político trouxe a vida privada, as relações domésticas para o foco da discussão acadêmica nos anos 70, expondo – e, assim, tensionando - a assimetria nas relações de poder em relação ao gênero. Da mesma forma que os mecanismos de (perpetuação da) dominação de gênero não podem ser considerados isoladamente, por meio da clivagem que a ideologia liberal produz entre o público e o privado, as experiências individuais das mulheres no cotidiano institucional precisam compor qualquer análise que se faça das relações de gênero no ensino superior contemporâneo. Isso se torna necessário sobretudo em face da institucionalização do respeito à diferença na universidade, cujo discurso oficial se propõe a promover a convivência em meio à diversidade étnico-racial, de faixa geracional, cultural, social e de gênero. Pode-se argumentar que o suposto amparo das instâncias da vida institucional acaba promovendo, na verdade, um silenciamento das

vozes das mulheres que enfrentam cotidianamente a naturalização da violência simbólica que se lhes inflige. Nesse sentido, ao invés de garantir a democratização, o discurso oficial da diversidade poderá causar o apagamento ao qual o relato pessoal, as histórias de vida das mulheres e a escuta oferecem resistência. O que acontece quando todos “se tornam” feministas? O que acontece ao feminismo quando a diferença passa a figurar como tônica do discurso oficial, sem que se note seu lastro na vida social de maneira ampla e consistente? Na verdade, as mulheres têm ocupado os lugares, sejam alunas, sejam professoras, a despeito da exotização que se produz através do discurso oficial de democracia e diversidade. Para avançar na busca por mais justiça em relação à diferença de gênero, não tem sido suficiente que a disparidade numérica entre professoras e professores seja pequena, assim como não tem sido suficiente que tenhamos uma vice-reitora, uma reitora, uma pró-reitora, uma diretora de centro, uma chefe de departamento dentro da universidade. Assim como também não tem sido suficiente que tenhamos uma presidenta no país. Temos dessa constatação uma outra, decorrente: o trabalho de desconstrução do discurso patriarcal no espaço acadêmico e fora dele se dá na/através da linguagem. A linguagem é o leito a partir de onde as professoras e alunas forjam as brechas em que atuam, as micropolíticas de desinvenção de sua suposta vulnerabilidade, fragilidade, incapacidade, instabilidade, inaptidão para o trabalho intelectual. Em nossa experiência no trabalho com alunas/os de graduação, vemos estas reconfigurações se processarem através da seleção de textos de mulheres – sobre questões de gênero ou não; através da “iniciação” à descontrução do discurso patriarcal ocorrendo cada vez mais cedo no curso de Letras; através da tradução de conteúdos relacionados à diferença de gênero que solicitam da/o aluna/o leitura detida, negociação de sentidos, re-escrita do texto, expansão de seu repertório linguístico e conceitual, contribuindo para seu letramento crítico; através também da escolha de temas selecionados para Trabalhos de Conclusão de Curso, temas de pesquisa de Iniciação Científica, de comunicações apresentadas em eventos; através dos Centros e Diretórios Acadêmicos em que a participação feminina é muito expressiva; por meio do

engajamente em práticas discursivas como as respostas textuais aos confrontos nas redes sociais; na solidariedade entre as alunas em situações de violência, etc. Essas práticas têm se proliferado, alterando sensivelmente a fotografia da universidade e erigindo espaços de atuação dignos para as mulheres, que não as confinam à estrutura e mecanismos da vida acadêmica, impulsionando a difusão de epistemologias, modos de produzir conhecimento, de viver o currículo e de interagir cada vez menos sujeitos às normatizações relacionadas ao gênero.

*Agradeço às alunas e professoras que dividiram conosco os relatos apresentados.

ALMEIDA, Jane Soares de; SOARES, Marisa. Mudaram os tempos; mudaram as mulheres? Memórias de professoras do Ensino Superior. Avaliação (Campinas), Sorocaba , v. 17, n. 2, p. 557-580, July 2012 . Available from . access on 16 Feb. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S1414-40772012000200013. BORSOI, Izabel Cristina Ferreira. Trabalho e Produtivismo: Saúde e Modo de vida de docentes de instituições públicas de ensino superior. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2012, vol. 15, n. 1, p. 81-100. BUTLER, Judith. Gender Trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990. DIAS, Carmen Lúcia e ROZENDO, Kelly Cristina Tesche. O Contexto Laboral Acadêmico e as possibilidades de sofrimento psíquico do professor universitário. Anais dos Encontro Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão, Colloquium Humanarum, vol. 12, n. Especial, 2015, p. 1319-1327. LIMA, Maria de Fátima Evangelista Mendonça; LIMA-FILHO, Dario de Oliveira. Condições de trabalho e saúde do/a professor/a universitário/a. Ciência e Cognição., Rio de Janeiro , v. 14, n. 3, p. 62-82, nov. 2009 . Disponível em . acessos em 15 fev. 2016.

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