Apontamentos sobre a história do Belenzinho

May 23, 2017 | Autor: Daisy Perelmutter | Categoria: History and Memory, Historia Cultural, História Oral, História Da Cidade
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Apontamentos sobre a história do Belenzinho

26/10/10

Daisy Perelmutter



Os belenenses costumam destacar com arroubo e até com certo ufanismo
que há um distintivo muito singular que particulariza a vivência no
Belenzinho, a despeito das enormes transformações e mutilações sofridas
pelo bairro ao longo de sua história centenária, e que permanece como seu
distintivo: a sensação de estar em família.

O fato de ter sido vivido e reconhecido como um espaço familiar, no
qual a confiança, a tutela e os vínculos sanguíneos se sobrepuseram às
relações impessoais não significa, contudo, que sua história tenha sido
construída sem rusgas e fraturas, em outras palavras, isenta de lutas,
contradições e conflitos. Como toda "saga familiar" que se autodenomine
como tal, a história do bairro do Belenzinho revela e desperta em seu amplo
repertório de fatos e acontecimentos os sentimentos humanos mais díspares:
paixão, ódio, vingança, ousadia, doçura, abjeção, autonomia, opressão,
fúria, ternura. Sendo assim, a fraternidade dos laços entre os moradores,
até hoje celebrada, é um aspecto que fala bastante, sem dúvida, a respeito
da identidade regional do Belenzinho, mas, não é sua única marca. Muitas
outras experiências esmaecidas pelo tempo ou pulverizadas no espaço maior
da grande cidade que São Paulo foram também significativas para a
construção da identidade do bairro e merecem, portanto, reivindicar seu
espaço na história: a ardente militância sindical dos trabalhadores têxteis
nas primeiras décadas do séc.XX; a paixão pelo futebol de várzea e a
proliferação de diversos clubes amadores durante quase cinqüenta anos (1910-
1960); o arrojo nas propostas educacionais de cunho anarquista com a
criação da Escola Moderna n.1 (1912-1919), inspirada na pedagogia
libertária do espanhol Francisco Ferrer y Guardia; a intensa vida pública
nos eventos religiosos, recreativos e culturais (missas, quermesses,
festas, bailes, procissões, footing, grupos amadores de teatro, cinema) no
circuito Rangel Pestana - Celso Garcia; os ideais progressistas expressos
na construção da Vila Operária Maria Zélia (1917), instaurando uma inédita
relação, para a época, entre empregador e operário (a experiência antecede
à consolidação das leis trabalhistas criadas na era getulista), entre
tantos outros fatos e vivências que não poderão constar deste panorama
referendado a partir de certas escolhas.

Todavia, se é possível identificar traços originários que permaneceram
e atualizaram-se ao longo da história, há outros que caducaram e se
tornaram obsoletos em um curto espaço de tempo, como por exemplo, o
bucolismo associado ao bairro do Belenzinho. Ao ganhar autonomia em relação
ao bairro do Brás, em 26 de junho de 1899, em decreto promulgado pelo então
Presidente do Estado São Paulo Fernando Prestes de Albuquerque, o local era
considerado apanágio das famílias paulistanas abastadas, que gozavam em
suas enormes chácaras de uso nos finais de semana das benesses da altitude
privilegiada e vegetação frondosa que caracterizavam a região. Os limites
territoriais estipulados inicialmente envolviam desde a Rua Bresser até
quase a Ladeira da Penha, abrangendo também a área do Tietê, Alto da Mooca
e Tamanduateí. Algumas das ruas hoje importantes ainda não existiam e
muitas outras tinham, originariamente, outros nomes, como a Alvaro Ramos,
conhecida como "Rua do Pedregulho", em razão de um buraco ali existente de
onde se tiravam areia e pedregulho.

Se o esforço ao reconstruir a história de uma determinada experiência
social é tentar identificar descontinuidades e, ao mesmo tempo,
permanências, o mais fiel retrato do bairro do Belenzinho, que se manteve
ao longo de quase nove décadas (1900-1990), sem intermitência, foi dado,
sem dúvida, pelo universo fabril e pela experiência cotidiana do
proletariado industrial.

As primeiras indústrias a se instalar foram às vidrarias, pomposamente
conhecidas como "cristalerias", seguidas pelas indústrias têxteis, com as
quais a paisagem do Belenzinho ficou indelevelmente identificada. A mão-de-
obra estrangeira foi de fundamental importância para a produção fabril e
muitos imigrantes que aportaram na região – italianos, portugueses,
espanhóis e também ioguslavos – foram recrutados para trabalhar nos
extenuantes e difíceis ofícios (vidreiros e tecelões), transmitindo para os
trabalhadores nacionais seus conhecimentos e habilidades. Dentre as
vidrarias, a mais antiga foi a Germânia, do alemão Guilherme Klimburger,
seguida por muitas outras que surgiram logo na esteira: Cristaleria Barone,
Cristaleria Progresso, Cristaleria Scarone, Cristaleria Venturelli,
Cristaleria Itália, Cristaleria Lusitana, Cristaleria Portugal, a Nadir
Figueiredo. No caso das indústrias têxteis, instalaram-se no bairro a
Companhia Nacional Tecidos de Juta, o Cotonifício Paulista, a Moinho
Santista, a tecelagem do complexo Matarazzo, o Cotonifício Guilherme Jorge,
a Gasparian, a Varan, a Felippo. Todas elas absorviam enorme contingente de
operários. Já em 1907, todas estas indústrias movimentavam a economia local
e a Cia Nacional Tecidos de Juta empregava em torno de 1.500 operários.



Família Fernandez Monteiro; 1917; autor não identificado; doação Sylvio
Armando Pires

As duríssimas condições de trabalho, as longas jornadas diárias (11
horas em média), a semana de sete dias consecutivos, o ambiente lúgubre e
insalubre das fábricas e o emprego maciço de mulheres e crianças (muitas
vezes, menores de dez anos) sintetizavam a realidade amarga do operariado
nos primórdios da industrialização no país. A primeira organização de
classe que surgiu no Belenzinho foi à dos barqueiros italianos, que
transportavam tijolos – Societá dei Transportatori di Mattoni -, em 1906.
Em 1908, foi fundado o Sindicato dos Tecelões, bastante forte, contando com
grande número de associados desde os seus primórdios, devido à disseminação
dos estabelecimentos fabris por toda a cidade. Segundo o Boletim do
Departamento Estadual do Trabalho (Ano I, N.1 e 2, SP, IV Trimestre de
1911), em 1911, dos 10.204 trabalhadores empregados nas indústrias têxteis,
6.024 (59,23%) eram italianos, 824 (8,07%) eram portugueses e 338 (3,31%)
eram espanhóis. É notória a presença estrangeira na composição da classe
operária em São Paulo, mas, é importante ressaltar que os imigrantes
estiveram presentes também em outros setores da economia paulistana, como
no comércio e bancos, tanto na condição de empregados como na de
empregadores.

Algumas melhorias urbanas na cidade de São Paulo já vinham acontecendo
desde os anos 70 do séc.XIX – iluminação pública a gás em substituição aos
antigos lampiões de querosene (1872), instalação de serviço municipal de
águas e esgotos (Cia Cantareira, 1877), novo matadouro e novo mercado
central (1887 e 1890), serviço de bondes com tração animal (1872),
primeiros sistemas de loteamento, arruamento e construções (código de
1886), sistema ferroviário (desde 1867), calçamento de paralelepípedo de
granito (1873). De todo modo, foi na virada do XIX para o XX com o fim do
regime escravista e a proclamação da República, que a mudança se fez de
forma radical: da pacata e provinciana vila à frenética e pulsante
megalópole. A presença do proletariado industrial, como força de trabalho e
força social/ política, ganhou plena visibilidade na sociedade paulistana,
ainda que driblasse todo o esforço de segregação geográfica e sócio-
cultural ao qual foi impingido. Havia uma nítida distinção dos bairros
operários em relação aos burgueses, lembrando que, no primeiro caso,
trabalho e moradia imbricavam-se: a presença da estrada de ferro
determinava a instalação das fábricas e estas, por sua vez, atraíam os
operários. O território proletário, em geral, possuía condições
topográficas das mais precárias: localizava-se nas várzeas dos rios, em
terrenos irregulares, baixos e úmidos e suas ruas não eram calçadas e nem
tinham um traçado regular. As grandes melhorias urbanas com as quais a
cidade foi agraciada e que simbolizavam o ideário da modernização, a moeda
corrente da época – calçamento de ruas, implantação de sistemas de água e
esgoto, serviço de bonde elétrico –, foram gozadas, previsivelmente, apenas
por uma pequena parcela da população. A burguesia agrária- financeira e a
elite político-administrativa eram os cidadãos de primeira classe e no
perímetro urbano diminuto no qual circulavam - Campos Elíseos,
Higienópolis, Paulista e Centro - as mazelas, intempéries e adversidades da
soturna São Paulo passavam à margem.

No entanto, a circunscrição territorial imposta à classe trabalhadora
não impediu que ela se esvanecesse e se recolhesse à sua "insignificância".
Pelo contrário. Diferentemente dos bairros nobres da cidade, nos quais o
convívio social se dava nos interiores dos lares burgueses, possibilitando
tímidas trocas e misturas sociais, nos bairros operários, onde o espaço
doméstico era exíguo e contíguo, a ocupação da rua era imprescindível para
a consolidação das redes sociais. Este diligente esforço de visibilidade
também aconteceu nas situações de exceção (passeatas e manifestações) e nos
momentos de lazer (pic-nics, saídas campestres e peças de teatro de cunho
social), quando o operariado elidia as fronteiras invisíveis que separavam
os lugares autorizados dos interditos, fazendo então uso da cidade
indiscriminadamente. É indiscutível que o preconceito e o xenofobismo das
elites – econômicas e políticas – se acirraram com esta onipresença ruidosa
da classe trabalhadora. O sentimento repulsivo que as elites tinham em
relação a esta emergente classe operária fica evidente neste pequeno trecho
extraído do Jornal "O Estado de São Paulo" (O ESTADO DE SÃO PAULO,
30/04/1913, p.6-7), em sua seção de cartas: "Escreve-nos um leitor desta
folha reclamando contra um facto que é observado quase diariamente nos
bondes da linha da Lapa, o qual exige uma urgente providência por parte da
'Light'. Várias pessoas de segunda classe, na maior parte operários,
costumam embarcar nos bondes da dita linha conversando, ao correr da
viagem, em uma linguagem bastante baixa, sem ao menos respeitarem as
famílias que se acham no carro. Ora, os conductores que estavam no caso de
corrigir estes insolentes, não querem dar a esse trabalho, de modo que as
famílias são obrigadas a supportar todos os desmandos de linguagem e de
maneiras dos referidos operários" (Apud Hakim de Paula, Amir el "Os
Operários pedem Passagem! – A Geografia do Operário na Cidade de São
Paulo(1900-1917)", Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, 2005) .

A luta para assegurar a existência material, a dignidade moral e o
direito à voz e presença no tecido social, este, bastante encolhido
naqueles primeiros anos da República, acabaram promovendo nos trabalhadores
das indústrias uma intensa e sólida solidariedade de classe. O fato dos
operários terem suas moradias vizinhas às fábricas contribuiu de forma
decisiva para o fortalecimento e sucesso de sua árida luta em prol de
melhores condições de trabalho e moradia. Várias batalhas importantes foram
travadas nos primeiros anos da República (já nas primeiras greves do
operariado, em 1906 e 1907, os trabalhadores faziam reivindicações bastante
avançadas), mas o ápice desta organização se deu durante a greve geral de
julho de 1917, quando a cidade de São Paulo foi literalmente tomada de
assalto pelas massas trabalhadoras. A formação de piquetes nas portas das
fábricas e a utilização dos espaços de moradia como esconderijos seguros (a
sinuosidade dos cortiços facilitavam a empreitada) contra a ofensiva
policial constante garantiram a formação deste enclave de liberdade.

As ligas operárias dos bairros, de orientação anarco-sindicalista,
foram constituídas neste momento e o seu êxito como organização deveu-se,
segundo o historiador Boris Fausto (1986, p.203-204), ao fato de terem
conseguido canalizar diferentes modalidades de reivindicação: relativas á
produção, mas também às questões mais gerais da carestia de vida,
habitação, saneamento. A Liga Operária da Mooca surgiu em meados de maio, a
partir da greve dos tecelões das indústrias de Rodolpho Crespi. A Liga
Operária do Belenzinho é constituída também em maio e sua sede é inaugurada
em meados de junho. Na sequência, formaram-se as Ligas da Lapa, Água Branca
e Cambucy. Todas elas buscavam animar as massas operárias, através de
comícios e outros eventos coletivos, de modo a fortalecer suas classes
ainda desorganizadas e distender seu elenco de reivindicações. Os
militantes das Ligas da Mooca e Belenzinho tomaram a iniciativa de criar a
Comissão Operária de Propaganda, visando à unificação e homogeneização da
plataforma de ação. Em 29 de junho de 1917, a Liga Operária do Belenzinho,
em solidariedade ao movimento grevista dos operários do Cotonifício Crespi
(a bandeira de luta pela qual militavam era a suspensão do trabalho
noturno, suspensão das multas e a melhoria dos salários) promove um grande
comício e os grevistas – uma multidão de homens, mulheres e crianças -
realizam uma grande passeata pelo centro da cidade, incluindo também
excursões pelas redações dos principais jornais. Desencadeia-se, a partir
daí, um espiral de passeatas e manifestações, estendendo-se, inclusive, às
cidades vizinhas - Itaquera, Ribeirão Pires e Cotia.

Mas, o estopim para a paralisação total das atividades nas indústrias
em 1917 e suspensão absoluta da ordem burguesa na cidade de São Paulo
(muitas "transgressões" ocorridas naqueles dias de exceção inverteram as
hierarquias e a legitimidade outorgada às autoridades) foi o falecimento
trágico do anarquista espanhol, sapateiro por ofício, Antonio Martinez,
provocado pelas forças policiais, no dia anterior, em confronto ocorrido em
frente à Fiação e Tecelagem Mariângela. O número de grevistas acabou
duplicando entre os dias 12 e 15 de julho, de 25.000 para 50.000 pessoas. É
importante destacar que alguns dos maiores núcleos grevistas foram
formados, justamente, na Fábrica de Tecidos Mariângela (2.500 operários) e
na Fábrica de Tecidos de Juta (2.000), ambas sediadas no bairro e
mediações. Rapidamente, a cidade ficou inteiramente paralisada e, mesmo que
por um curto período, graças à sublevação do operariado, o rígido controle
sobre o espaço urbano exercido pelas elites foi suspenso. No momento em que
o movimento da greve se generalizou, a polícia, bastante conhecida por suas
práticas repressivas e draconianas, intensificou a sua ação, apreendeu
vários cidadãos e fechou todas as ligas e associações operárias. Depois de
um árduo processo de negociação, o Comitê de Defesa Proletária, mediado por
um Comitê de Jornalistas constituído por representantes de jornais diários
de São Paulo, conseguiu estabelecer um pacto de compromisso com os
industriais e com o governo, resultando em importantes melhorias e
conquistas, tais como: 20% de aumento salarial, nenhuma dispensa de
grevistas, melhoria das condições morais/materiais e econômicas do
operariado, direito de reunião, cumprimento das leis de proteção ao
trabalho dos menores e das mulheres e a tomada de medidas para controlar os
preços dos gêneros alimentícios. Esta foi, sem dúvida, a maior greve que
São Paulo já conheceu e embora se atribua à militância anarquista a
responsabilidade pelo seu sucesso, em vista do grande número de anarquistas
que tiveram lugar de destaque nos acontecimentos, muitas das reivindicações
em pauta chegavam a contradizer os princípios balizadores de sua militância
– oposição às greves deflagradas por melhorias econômicas e recusa de
solicitar ação do Estado. Segundo testemunho de Edgar Leuenroth, proferido
cinqüenta anos após as manifestações: "A greve geral de 1917 foi um
movimento espontâneo do proletariado sem a interferência direta ou indireta
de quem quer que seja. Foi uma manifestação explosiva, conseqüente de um
longo período de vida tormentosa que então levava a classe trabalhadora"
(Apud Hall, Michael "O Movimento Operário na Cidade de São Paulo: 1890-
1954" IN Porta, Paula (org.) História da Cidade de São Paulo - A Cidade na
Primeira Metade do Século XX, São Paulo, Paz e Terra, 2004).

O espírito militante que marcou tão fortemente a classe operária
paulistana, e faz parte da essência vital do Belenzinho, pode ser aferido
também nas várias lutas travadas em prol da melhoria das condições de
moradia. Nos bairros operários paulistanos, na primeira metade do séc.XX, o
tipo de habitação que prevaleceu foram os cortiços e não as "casas de
periferia" e favelas, que surgiram como decorrência do processo de
metropolização - periferização da cidade ocorrido a partir da década de 50.
Segundo estimativas, a terça parte das habitações em São Paulo era composta
por cortiços sediados também contíguos às áreas nobres da cidade. A repulsa
por esta moradia tida como lasciva e permissiva levou às elites se debruçar
sobre programas/propostas que viabilizassem sua erradicação total do espaço
metropolitano. O desejo de substituir os cortiços por uma habitação
unifamiliar esbarrava nos preços exorbitantes da terra e dos alugueis nas
áreas já ocupadas, bem como no empecilho de distanciar o operário da
fábrica, lembrando que o transporte coletivo da época – bonde - circulava
apenas no perímetro urbano central. Nesta cruzada moral empreendida pelo
poder público, empresários e filantropos, todos eles obcecados com a idéia
de higienização e moralização das habitações populares, era ignorado o
aspecto mais trivial desta realidade: a existência dos cortiços não era uma
opção cultural e ideológica, mas a única alternativa possível diante do
oceano de precariedades que acossava o operariado. Se, por um lado, as
condições de higiene e saneamento eram, sem dúvida, motivo de justa
preocupação – a água captada do Rio Tietê fornecida aos distritos do Brás,
Bom Retiro, Mooca e Belenzinho era inconvenientemente tratada e em contato
direto com o sistema de coleta de esgoto - criando as condições para a
proliferação de focos epidêmicos, o cortiço como espaço de sociabilidade
produzia uma inédita coexistência de grupos sociais distintos, misturando
em seus corredores e pátios pais e filhos (as), imigrantes recém-chegados,
negros e mulatos que trabalhavam nas funções mais desprestigiadas da
produção industrial e comércio, operários qualificados, prostitutas e
muitos outros grupos considerados páreas sociais. Não obstante os
conflitos gerados pelas intransponíveis diferenças em espaços sem
privacidade, os cortiços permitiram o estabelecimento de laços de
sociabilidade e solidariedade entre vizinhos que, de algum modo, se
incrustou na paisagem destes bairros, persistindo como um de seus traços
diferenciais.

A solidariedade cultuada não poupou o Belenzinho de duros
enfrentamentos, como no caso da Gripe Espanhola, em 1918. Embora o bairro
já convivesse com diferentes epidemias e doenças - encefalite, febre
tiróide, disenteria amébica e tuberculose - desde o início da República
Velha, a pandemia de 1918 trouxe à tona o que a greve de 1917 havia trazido
como plataforma de reivindicação: não apenas aumento de salários, mas
melhorias nas questões de habitação, transporte e alimentação. Números
precisos sobre a morbidade paulistana durante a pandemia não se sabe ao
certo. Há várias justificativas para a imprecisão estatística: muitos
médicos não informaram ao Serviço Sanitário sobre pacientes que estavam sob
seus cuidados, muitas vítimas não tiveram acesso aos serviços de socorros e
tratamento médico, a repartição de estatística estava deficitária em termos
de pessoal. Fala-se em 116.777 casos de infecção gripal, o que representava
em termos percentuais aproximadamente 22,32% de toda a população
paulistana.

O sentimento geral era de que não havia família que pudesse escapar à
gripe e que ela era "democrática" ao dizimar pobres e ricos. Interpretada
na época como uma espécie de fatalidade individual, poucas foram às vozes
dissonantes desta premissa. Houve um cronista do jornal O Combate que ousou
replicar este discurso oficial, apontando que a gripe era muito mais letal
nos distritos do Brás, Mooca e Belenzinho. A denúncia foi rapidamente
esvaziada e a contra-resposta tergiversou a acusação afirmando que o maior
número de óbitos devia-se única e exclusivamente à maior concentração
demográfica nestes bairros. Esta celeuma não foi levada adiante na época,
mas sabe-se hoje que "as marcantes diferenças das condições materiais de
vida próprias a cada grupo social determinaram desiguais oportunidades de
viver e morrer na Paulicéia assaltada pela peste" (Bertolli Filho, Claudio,
Gripe Espanhola em São Paulo, 1918, São Paulo, Editora Paz e Terra, 2003).
A partir de dados que constavam dos Livros dos Cemitérios foi possível
identificar os distritos nos quais residiam as vítimas e de 15 de outubro a
19 de dezembro foram registrados 557 óbitos gripais no Belenzinho, que
contava na época com uma população de 41.698 pessoas. Terceiro bairro mais
afetado pela pandemia na cidade, só foi superado pela Mooca, em primeiro
lugar (860 óbitos para 62.993 habitantes) e pelo Brás, em segundo (674
óbitos 61.057).

É interessante observar que durante o período da pandemia, quando o
Estado teve que admitir publicamente sua incapacidade em combatê-la,
clamando então o esforço conjunto da sociedade na hercúlea empreitada de
erradicar o "mal" que grassava a cidade, algumas empresas decidiram
participar de forma enérgica no combate à doença. A Companhia Antarctica,
os jornais O Estado de São Paulo e A Capital e as fábricas sediadas no
Belenzinho – Companhia Nacional de Juta e Cristaleria Itália – montaram
farmácias e postos de socorros para atender inicialmente seus empregados,
que acabaram sendo extensivos a qualquer pessoa que a eles recorresse.
Aqui, mais uma vez, voltamos à tecla reincidente que tem pontilhado esta
trajetória histórica do Belenzinho, que é a idéia de solidariedade como um
de seus distintivos identitários.

O arrebatamento provocado pela disseminação da Gripe Espanhola neste
período fez com que a cidade de São Paulo assumisse feições profundamente
macabras. Segundo o testemunho de Paulo Duarte, em Os Mortos de Seabrook,
vol 4 de seu livro de memórias (Apud Claudio Bertolli Filho, p.216): "A
Avenida Paulista, onde fui tomar o bonde, quase deserta... Em toda a rua da
Consolação, e isso era geral em toda a cidade, muita pouca gente de pé,
alguns automóveis, principalmente de médicos e os caminhões carregando
cadáveres para os cemitérios. Esta paisagem tornou-se rotina. Já não se
prestava atenção naqueles montes de caixões de defunto, todos iguais, uns
sobre os outros nos caminhões".

Obviamente, a população dos distritos proletários – Brás, Mooca,
Belenzinho, Santana e Bela Vista - foi a mais afetada pelo cenário acerbo
provocado pela epidemia. A questão da interrupção dos serviços públicos, os
quais mal tinham acesso, não era a fonte de suas maiores preocupações, mas
sim à escassez dos gêneros de primeira necessidade, o desrespeito geral dos
comerciantes para com a tabela de preços estabelecida pelo Comissariado da
Alimentação e pelo Serviço Sanitário em relação aos preços dos
medicamentos. A sensação de negligência por parte do Estado vivenciada pela
população destas regiões (não só da Várzea do Carmo, mas de toda a vasta
extensão da Zona Leste) no atendimento pleno das questões básicas de saúde
fez com que buscasse os aportes da sabedoria e poderes curativos dos "preto
véios", "curandeiros" e "ervanários", como uma espécie de bálsamo para o
seu sofrimento. Os empréstimos e trocas culturais, que estão na gênese do
desenvolvimento da cidade e que darão o arcabouço para o que ela virá a
consolidar mais à frente, acabaram promovendo, como todos nós somos
testemunhas, um amálgama ímpar e complexo entre pessoas de nacionalidade,
situação sócio-econômica e tradições distintas.

E, retornando ao ano de 1918, quando se imaginava que o quadro de
vítimas da Gripe Espanhola iria continuar crescendo de forma exponencial,
houve, inexplicavelmente, um recuo progressivo da epidemia, e, ao final de
novembro, São Paulo começou a alumbrar-se novamente ao vislumbrar o fim do
flagelo. Este frêmito provocado pelo declínio da epidemia coincidiu também
com a notícia do término da Primeira Guerra Mundial e, a partir daí, uma
nova sensibilidade foi sendo forjada. Em 1 de dezembro a cidade pôde,
enfim, retomar o seu ritmo, reabrindo seus cinemas, bares, teatros e
cassinos, fechados pelo temor de um contágio sem freios.

As agruras enfrentadas pelas classes operárias em seu cotidiano não
abateram as massas a ponto de abdicarem de maneira estóica do seu direito à
felicidade e ao bem estar, nos seus momentos de ócio e lazer. Pelo
contrário, a importância atribuída às atividades lúdicas - cinema, os
grupos de teatro amador, o futebol de várzea, os pic-nics, o Carnaval de
rua, as quermesses durante as festas juninas, o footing nas ruas principais
de acesso, as conversas com a vizinhança nos portões – estas, por sinal,
foram tão determinantes para a formação da cultura operária quanto à
natureza do trabalho realizado e as múltiplas organizações sociais criadas.

O futebol de várzea no Belenzinho, por exemplo, desponta como
uma atividade importante já nos primeiros anos de constituição do bairro,
mantendo incólume esta prevalência até 1970, quando é construída a Radial
Leste e o bairro é cirurgicamente repartido em dois e vários campos
desaparecem. Como afirma o Sr. Edmundo Picasso Prado, antigo morador do
bairro e filho de um ex-presidente do Sindicato dos Mestres e
Contramestres: "O povo se reunia muito pelo futebol. O futebol acabou, mas
nós temos aquela raiz de conhecimento" (Depoimento concedido à Daisy
Perelmutter para a pesquisa sobre a História do bairro do Belenzinho, Sesc-
Memória, em 24/08/10).

Esta longeva afinidade começa há mais de um século, em 1902, quando
nasce o primeiro time do bairro, o "Estrela de Ouro Futebol Clube", que se
tornaria duas vezes campeão municipal (1920 e 1929) em torneios dos
melhores clubes não oficiais. O campo ficava além da Av. Alvaro Ramos, em
uma área que precisava ser desbastada com foice e enxada em razão do
matagal ali concentrado, onde também acampavam ciganos que amestravam
animais. Posteriormente, surgiu o "Clementino" formado basicamente por
tecelões que moravam na rua homônima. Apresentava-se como o grande rival do
"Estrela de Ouro", embora este levasse quase sempre vantagem sobre o seu
concorrente. Vários outros times foram formados no bairro, além destes dois
inicialmente citados: o "União Belém", o " Flor do Belém", o "Turunas
Tietê", o "Juta Belém" (Vila Maria Zélia) , o "União Operário" (formado,
basicamente, por moradores da rua Cachoeira, na sua maioria, carroceiros,
oleiros, barqueiros), o "XX de Setembro" (constituído pelos toscanos,
fundamentalmente), "Portugal Marinhense" (vidreiros portugueses).
(Penteado, Jacó, Belenzinho, 1910, São Paulo, Carrenho Editorial/Narrativa-
Um, 2003, p.200-204). Este lugar de destaque que o futebol de várzea
exerceu na vida cotidiana da população masculina do bairro e que hoje
permanece vivo nas memórias dos belenenses tradicionais pode ser aferido,
com todas as tintas, no testemunho do Sr. Manoel Pitta, presidente da
Sociedade Amigos do Belém, em depoimento concedido a Murilo Leal Pereira
Neto, em 08/03/03 ("A reinvenção do trabalhismo no 'vulcão do inferno'",
Tese de Doutorado, FFLCH/USP, São Paulo, 2006, transcrição integral
disponível no acervo do Centro de Memória Sindical):

"O que tinha muito no Belém antigamente eram campos de futebol, vou
explicar porque, porque tinha muitas chácaras aqui no Belém e essas
chácaras com o tempo se tornaram campos de futebol. E aqui no Belém nós
tivemos muitos jogadores de futebol que se tornaram famosos, como, por
exemplo, o Tunga que jogou no Palmeiras, o Carboni que jogou no
Corinthians, o Fiorotti que jogou no São Paulo, o Carioca que jogou no São
Paulo, o Canhoto que jogou no Palmeiras. Então aqui era assim, os campos de
futebol aos domingos, existiam os jogos famosos e tinha o "Flor do Belém",
o "Turunas", o "Vaspi", diversos clubes que jogavam aos domingos e como a
gente não tinha televisão, aquele tempo, não tinha jogo transmitido, nós
íamos assistir os jogos aqui no bairro, e lotava os campos de várzea, era o
divertimento dos domingos de manhã ou de tarde, nós, homens, íamos assistir
os jogos de futebol aqui no Belém. Tinha uns 10,12, 15 campos de várzea
naquele tempo. Então, o divertimento era assistir os jogos de várzea, era o
divertimento naquele tempo no bairro do Belenzinho."




Time de futebol do bairro; 1957; autor não identificado; doação Sylvio
Armando Pires

Mas não era só de futebol que as massas alimentavam o seu espírito e
esquentavam seus corações. Enquanto o jogo com a bola (praticando ou como
expectador) circunscrevia-se à classe operária de sexo masculino, o cinema,
ao contrário, arrebatava paixões de ambos os sexos, diferentes faixas
etárias e classes sociais. Assim como no caso do futebol, que não demorou
muito para arrebanhar seus "fiéis", o cinema, rapidamente, conquistou seu
público cativo e prevalência nos momentos de ócio do paulistano. Várias
salas foram inauguradas na cidade entre as décadas de 10 e 20 do séc.XX,
com arquitetura e decoração próprias. Mais do que uma mera diversão, o
Cinema (com c maiúsculo sim), em São Paulo, teve naquele momento uma função
simbólica importante. Funcionou como uma espécie de ícone de progresso e
civilidade, ideal perseguido pela cidade como forma de elidir, de vez,
todas as expressões que faziam alusão ao seu provincianismo secular. O
esforço de forjar uma nova sensibilidade, com hábitos mais europeus,
favoreceu o florescimento das salas de distribuição e o sucesso de sua
recepção. As intervenções urbanísticas realizadas na administração Antonio
Prado (1889-1910), recortando os espaços abertos nos quais os eventos
populares costumavam tomar posse (circos, exposição de animais adestrados,
jogos de azar, boliches, bailes, etc), contribuíram para o aumento de
espaços fechados de lazer e diversão – cafés, salões, cinemas. O
Belenzinho, já em 1911, ostenta sua primeira grande sala: o Cinema Belem,
na Rua Celso Garcia n.228. A proliferação de cinematógrafos no circuito
Rangel Pestana- Celso Garcia, entre as décadas de 30 e 50, desencadeou uma
mudança interessante na posição periférica/marginal até então atribuída a
este bairro operário. A importância que este novo circuito assume não
apenas para a população local, mas para a cidade como um todo, embaralha
temporariamente as classificações das áreas urbanas tidas como cosmopolitas
e provincianas. Entre as salas que tiveram enorme popularidade no
Belenzinho, destacam-se: o Cine Catumbi (1948), uma das mais procuradas da
região; o Cine Iris (1949), com 700 lugares e com uma média anual de 59.606
espectadores, na Rua Celso Garcia 1558; o Cine Roxy (1940), com 2.485
lugares e uma média anual de 533.582 espectadores, na Rua Celso Garcia 499;
o Universo (1939), com 4.364 lugares e uma média anual de 606.895
espectadores, na Rua Celso Garcia 378 e o Cine São José (1958), com 2000
lugares e uma média anual de 90.433 espectadores, Largo São José do Belém
155 (Santoro, Paula Freire "A relação da sala de cinema com o espaço urbano
em São Paulo – Do provinciano ao cosmopolita", Dissertação de Mestrado, FAU-
USP, 2004). Além dos grandes clássicos, como "Os Dez Mandamentos",
"Tarzan", "Robin Hood", "Flash Gordon", "Rin – tin - tin" e outros
blockbusters da época, as famílias freqüentavam em peso os cinemas da
região nos finais de semana para assistir as grandes séries veiculadas em
capítulos (antecessores das novelas televisivas) e simplesmente fazer uso
das demais atividades oferecidas no espaço das salas de projeção. Como
relembra o Sr. José Carvalho Júnior, morador do bairro há exatos 82 anos:

" ... eu já saía da escola e ajudava numa quitanda para ganhar dois mil
réis, naquele tempo, para ir ao cinema no São José. Era Mickey Rooney e
Shirley Temple. O que dava mais era Mickey Rooney e Shirley Temple. Essas
séries aí e sempre que terminava, quando terminava a pessoa ficava sempre
com a expectativa que ele sempre tava caindo do lugar e não
caía....inclusive nas matinês de domingo também abarrotava, pagava mil e
duzentos réis. Era tão grande que eles davam no domingo, começaram a dar
depois, quem não queria assistir o filme, ficava dançando na frente. Mas
foi um cinema muito bom o São José, pena que ele acabou" (depoimento
concedido à Daisy Perelmutter para a pesquisa História do bairro do
Belenzinho, Sesc-Memória, 23/08/10).

A paixão pelo cinema foi arrebatadora e até mesmo as igrejas locais –
Igreja São Paulo e a Paróquia São José do Belém – fizeram uso deste recurso
para chamar atenção de seus asseclas ou arregimentar novos fiéis.

Se o cinema, de alguma maneira, trouxe aos bairros operários uma
atmosfera cosmopolita, possibilitando que sua população premida por
inúmeras privações pudesse "viajar para outros mundos", o footing e as
quermesses juninas, também extremamente populares nestas localidades,
apontavam para o outro lado, ou seja, para a herança rural de grande parte
dos migrantes nacionais e dos imigrantes que aportaram durante o boom da
industrialização no país. Esta coexistência entre o moderno e o arcaico, às
vezes pacífica, às vezes conflituosa, revelou-se em vários momentos na
história do bairro e, ainda hoje, manifesta-se sob novas figuras e
expressões. A imagem paroquial que o Belenzinho evoca em muitos de seus
moradores antigos está presente em todos os testemunhos memorialísticos
encontrados e fica patente nos depoimentos dos belenenses por nascimento ou
por adoção, José Procino, Sylvio Armando Pires e Pedro Seman (concedido à
Daisy Perelmutter para a pesquisa sobre a História do bairro do Belenzinho,
Sesc-Memória, 16/08/10,) moradores do bairro há mais de sessenta anos:

" (...) O Largo São José era belíssimo, com aquelas fontes de águas
coloridas, com aquelas luzes coloridas e água subindo. Olha, quando tiraram
aquilo lá foi uma perda irreparável. Que aquilo, a gente era criança, os
pais levavam pra passear, você vê aquela fonte de água jorrando com aqueles
holofotes coloridos! Não sei porque conseguiram acabar com aquilo, que era
uma marca, como existe hoje em qualquer cidadinha do interior que você vai.
Primeiro, onde se identifica a cidade? É pela praça que tem a igreja e o
seu chafariz.Toda praça tem a sua igreja com seu chafariz" (Sylvio Armando)

"(...) O mais festeiro aqui era o S. Luiz porque aqui nessa rua já tinha
festa junina, quando não era asfaltada, não tinha esse trânsito. Nossa, o
que tinha? Tinha dança de quadrilha da festa junina, pau de sebo. Sempre se
fazia na rua corrida de saco.Teve até uma corrida de cachorros. O único que
tinha motocicleta aqui era o Edson. Então puseram em uma gaiola um gato e
todos que tinham cachorro ficaram bem aqui onde nós estamos conversando. Aí
a moto saiu e os cachorros foram tudo atrás do gato. Inventaram assim uma
corrida. Só que na hora do prêmio, que era um osso grandão saiu briga entre
os cachorros (risos) Tinha muita festa!".

Esta cultura própria que o operariado construiu misturando elementos
culturais pautados em valores por vezes antagônicos – religião, militância
política, cosmopolitismo, provincianismo – ficava também patente na
experiência que ganhou bastante popularidade durante os primeiros anos da
República: os grupos amadores de teatro.

Festividades juninas (campeonato de corrida de saco); 1957; autor não
identificado; doação Sylvio Armando Pires

Espalhados por todos os bairros, eles eram em geral dirigidos por
portugueses e italianos. No Belenzinho, como esperado, predominavam os
ensaiadores e diletantes de origem italiana. Muitos destes grupos estavam
articulados às grandes ideologias e projetos políticos e/ou foram formados
em razão de alguma finalidade social, como, por exemplo, arrecadar fundos e
prestar assistência aos doentes e desempregados. Outros tantos estavam
comprometidos com a sua própria sobrevivência e aspiravam, apenas, à sua
manutenção como coletivo artístico. No bairro do Brás concentravam-se os
vários grupos de teatro do movimento anarquista. Apesar de darem
assistência aos trabalhadores em situação de vulnerabilidade (desemprego,
perseguições políticas, etc), o objetivo maior da agremiação através da
prática e linguagem teatral era mobilizar a classe trabalhadora para que
tomasse consciência de sua condição social e criasse aparatos para
transformar a sociedade.

O ideário anarquista, fomentado em grande parte pelos imigrantes
italianos, espraiou-se por todos os bairros operários da cidade e teve no
Belenzinho uma de suas maiores representações: a criação da Escola Moderna
n. 1, em 1912, inspirada na educação libertária de autogestão do educador
"racionalista" Franscisco Ferrer y Guardia, originário da região da
Catalunha/Espanha. Ferrer sempre esteve muito próximo aos movimentos
operário e anarquista, tendo travado contato com vários de seus expoentes,
entre eles, Tolstoy e Kropotkin. Os anarquistas viam o "saber escolar" como
uma espécie de patrimônio da humanidade e, portanto, não admitiam que este
domínio pudesse ser monopolizado por grupos e classes dominantes. A perda
da hegemonia sobre este campo representava, portanto, a possibilidade de
uma ruptura social profunda. Preconizavam uma pedagogia livre da tutela
estatal e da Igreja (principalmente a Católica), almejando uma instrução
baseada nos conhecimentos científicos da época chamados de "racionalistas".
Com o apoio de alguns sindicatos e com maciça presença operária, a escola
oferecia aulas diurnas e noturnas, cursos especiais aos sábados e aceitava
crianças de ambos os sexos e também adultos. Realizava trabalhos fora da
instituição escolar com o objetivo de aproximar as crianças da realidade
circundante. Sediada na Av. Celso Garcia 262, manteve suas portas abertas
por seis anos sem intermitência (1913-1919), período no qual tomou lugar as
grandes manifestações operárias, como a luta contra a carestia de vida
(1913) e a greve geral (1917). Previsivelmente, o caráter transgressivo da
pedagogia racionalista gerou forte apreensão e temor pelas autoridades
políticas da época e, em 1917, durante a Greve Geral, as Escolas Modernas
foram obrigadas a suspender temporariamente suas atividades e, em 1919,
foram obrigadas a fechar definitivamente suas portas.





Arquivo João Penteado; 1900-1958; Centro de Memória da Educação/FEUSP




Além das Escolas Modernas, a história do bairro ainda goza de mais um
feito absolutamente único e que pode conferir ao Belenzinho à pecha de um
espaço vanguardista: a construção de uma das primeiras vilas operárias na
cidade, a Vila Maria Zélia, iniciativa do industrial Jorge Street, então
proprietário da Companhia Nacional de Tecidos de Juta. Com a finalidade de
oferecer moradia de qualidade, salubre e economicamente acessível para os
mais de 2.100 operários de sua empresa, buscou reunir em um mesmo espaço
diferentes funções cotidianas: habitação, comércio, lazer, vida religiosa,
educação. A comodidade deste território pensado em sua multifuncionalidade
era bem-vista pela própria classe operária, acossada por toda a sorte de
carência material. Os inconvenientes da proximidade com a fábrica, com o
patrão e com as leis que regiam a produção e as críticas acerbas sofridas
durante á sua construção não obliterou o ufanismo nutrido por grande parte
de seus moradores.

A preocupação com a questão da habitação das camadas pobres estava na
pauta dos mais diferentes setores da sociedade – autoridades médicas,
empresários, imprensa. O embate entre o poder público e iniciativa privada
sobre quem deveria assumir a responsabilidade pela melhoria do padrão de
habitação, teve uma resposta provisória pela solução encontrada no conceito
das vilas operárias. Além de equacionarem a questão do saneamento, as vilas
significavam, ao mesmo tempo, a erradicação das populações mais pobres para
as áreas mais distantes do centro. A iniciativa pioneira do empresário
Jorge Street, formado em Humanidades na Alemanha e médico de formação, com
a construção da Vila Maria Zélia, atende, neste sentido, ao clamado social
pela profilaxia das moradias populares, além de acalentar o sonho de muitos
operários de terem o seu próprio teto. Segundo o testemunho do memorialista
Jacob Penteado, o empreendimento revolucionou o velho Belenzinho e
despertou um enorme frisson nos tecelões, que se acotovelaram nas enormes
filas para conseguir vagas de trabalho na recém-instalada Companhia de
Tecidos de Juta.

O processo de construção da Vila Maria Zélia ocorreu entre 1911 e 1917
e o local escolhido foi a Rua dos Prazeres, entre as Ruas Celso Garcia e
Cachoeira, que possuía as condições ideais para a construção da fábrica e
da vila. Os equipamentos adicionais à habitação, tais como a escola, a
capela, farmácia, armazém foram sendo entregues paulatinamente aos
operários. A relação de gratidão para com o empresário que, na época, era
considerado um "ponto fora da curva" em razão do arrojamento de suas idéias
e amabilidade nas relações cotidianas (todos os operários eram convidados
para as festas de aniversário do casal e servidos com todas as "honras e
pompas" por suas próprias filhas) parece ter sido fortíssima nas gerações
passadas. Como afirma o morador Edélcio Pereira Pinto, morador da Vila
Maria Zélia há cinqüenta e nove anos, neto de um operário da Companhia de
Tecidos de Juta durante a administração de Jorge Street e "zelador
informal" devotado à preservação e valorização do patrimônio arquitetônico
e cultural da Vila:

"Meu avô contava as coisas. Até hoje eu lembro do meu avô contando e
eu me emociono.... porque eu lembro do meu avô falando com lágrima nos
olhos (choroso) tanto do Dr. Jorge como da dona Zélia. 'Eles não eram
patrões' – ele falava. 'Era um pessoal que tinha dinheiro que cuidava da
gente como se a gente fosse criança'. Ele se colocando no lado de criança,
entendeu? O cuidado... Ele contava que os carcamano - ele brincava,
carcamano é o modo de brincar com os italianos – recebiam a chave da casa e
que entravam na casa - e a casa, que nem a casa que eu moro, tem três
quartos, sala, cozinha – eles falavam: 'O banheiro!'. Hoje é uma bobagem,
mas naquela época a pessoa ter banheiro pra família dela você não imagina o
ganho que foi, porque o que existia era muito cortiço. O meu avô não
conheceu cortiço aqui em São Paulo pra ele morar, mas ele sabia o que as
pessoas passavam. Também na minha casa tinha o tanque pra lavar roupa, só
pra esposa dele lavar ou a filha. Foi um ganho extraordinário, porque por
aí era tudo coletivo" (depoimento concedido à Daisy Perelmutter para o
projeto História do bairro do Belenzinho, Sesc-Memória, 19/08/10)

O alento que a tutela e proteção proporcionavam à população
trabalhadora, à margem do pleno exercício de sua cidadania, anulava, de
certo modo, o desconforto gerado pelo controle exercido na fábrica, no
espaço coletivo da vila e no próprio lar. A atmosfera familiar que Jorge
Street fez questão de criar em seu "laboratório" – o pai protetor e os seus
infantes devotos – contribuiu para que estreitos laços de solidariedade
entre patrão e operários fossem consolidados. A igreja teve um papel
fundamental nesta conformação e contribuiu para que a obediência fosse
mantida á custa de muitas privações no âmbito da liberdade individual. A
imprensa operária da época criticava febrilmente a atitude dos padres da
Vila que advertiam ferozmente os casais que conversavam livremente nas
ruas. O controle era expresso por uma série de proibições mundanas:
circulação nas ruas depois de 9 horas da noite, venda de bebidas alcoólicas
em bares, festas sem permissão, brincadeiras de crianças nas ruas. Mas,
acrescidas às imposições descritas, havia também o controle dissimulado
através de diversas normas disciplinares relacionadas à higiene: as casas
deveriam ser todas pintadas iguais, não era permitido que moradores
dormissem nas salas de estar, havia concurso para se eleger o jardim mais
bonito, a máquina de lavar mais limpa, etc.

A educação também foi palco de muita atenção na Vila Maria Zélia, já
que era através da instituição escolar que os "bons hábitos" poderiam ser
semeados desde muito cedo. O paradoxo de Jorge Street é que a sua
preocupação com a infância não implicou na dispensa do trabalho infantil e
muitas crianças iniciaram sua vida profissional antes mesmo dos dez anos
completos. Além dos salários (mesmo irrisórios), a participação das
crianças no universo da fábrica tinha outro fator de incentivo: o tamanho
da casa concedido a cada célula familiar estava condicionado ao número de
trabalhadores de cada núcleo.

O fato do universo fábrica-lar ter ficado muito imiscuído na Vila
Maria Zélia não significou, todavia, que seus moradores abdicassem do
direito ao ócio e da consolidação de práticas lúdicas e espaços de lazer. O
futebol, o cinema, as quermesses juninas, as peças de teatro, as bandas de
música, os bailes e as festas religiosas, o footing pelas ruas e os banhos
de rio no Tietê, que estabelecia os limites da Vila e atraía, inclusive,
inúmeros belenenses que não residiam em seu interior, foram vividos de
forma pregnante e de forma intensa, tal como foi experimentado em toda a
extensão do bairro. Em extratos de depoimentos de moradores antigos podemos
visualizar esta atmosfera que se manteve intacta ao longo desta sua longeva
história. Como afirma Dona Julieta Burlo, 82 anos, nascida no bairro do
Brás e moradora da Vila desde 1935, ou seja, há setenta e cinco anos e Dona
Ernestina Aparecida Cardoso, desde 1941, há sessenta e nove (depoimentos
concedidos para Daisy Perelmutter para a pesquisa História do bairro do
Belenzinho, Sesc-Memória, 10 e 19/08/10, respectivamente):

"Nós brincávamos muito aqui na Vila. O papai sentava na porta com a
mamãe, na escada. Inclusive é igual, não igual, mais ou menos... Sentavam
na porta e ele deixava a gente brincar, a gente ia brincar de esconde-
esconde, corria com os coleguinhas, com os amiguinhos, e na hora de chamar
ele dava um assobio e estava todo mundo ali na porta e então entrava.(....)
Lá onde é o INPS agora, onde é do Estado, era a nossa Vila ainda, então lá
tinha o campo de futebol.... Meu pai e meu irmão eram conselheiros deste
clube. Lá tinha campo de futebol, então eles fizeram salão de baile
lá.(...) Então lá tinha o baile, então fazia o Carnaval, a gente se
divertia muito, era muito gostoso. Os carnavais nossos eram muito bonitos.
Os meninos jogavam bola com outros clubes, "linhavam", ainda tem lá
embaixo..." (D. Julieta Burlo)

"Olha, quando eu era mais nova, o pessoal da Vila mesmo, os vizinhos,
se reunia, fazia fogueira, estourava pipoca, fazia churrasco... Porque era
areia aqui. Não era asfaltado. Então a gente ficava aqui mesmo na esquina.
E.... a gente se divertia assim." (D. Ernestina Aparecida Cardoso)

O arrojo das idéias e práticas de Jorge Street para o contexto da
época não o poupou de uma série crise financeira, após o término da
Primeira Guerra Mundial, em 1919. Devido à suspensão de empréstimos feitos
com banqueiros ingleses e à concorrência na produção de tecidos de juta, o
empresário foi enfrentando enormes adversidades, que foram se revelando
insuperáveis. As dívidas avolumaram-se e Jorge Street não encontrou outra
saída a não ser desfazer-se de seu patrimônio. A fábrica e a vila foram
vendidas ao grupo Scarpa (há controvérsias sobre a data exata da venda, mas
estima-se que tenha sido entre 1924-1925) passando então a chamar-se Vila
Scarpa. Esta mudança causou enorme indignação por parte dos
moradores/trabalhadores, já que o nome Maria Zélia havia sido dado em
homenagem à filha do empresário, falecida precocemente na adolescência, no
ano de inauguração da vila. Em 1929, o grupo Guinle adquiriu a Vila e
devolveu o nome original ao lugar. O Instituto de Aposentadoria de Pensão
dos Industriários – IAPI passou a administrar o local em meados de 1931 e,
em 1939, a fábrica de pneus Goodyear comprou parte do terreno que incluía a
fábrica de tecidos/creche/jardim de infância/dezoito casas. Todos os
imóveis foram destruídos, posteriormente, para viabilizar a construção de
sua fábrica, que permanece em funcionamento até os dias de hoje, ao lado da
Vila.

A Vila Maria Zélia é tão rica em acontecimentos, lendas e "causos" que
poderia se constituir, sem dúvida, como um capítulo especial da história do
bairro do Belenzinho. Mesmo não lhe outorgando esta prerrogativa, há ainda
alguns fatos muito interessantes os quais merecem, mesmo que rapidamente,
destaque neste percurso histórico.

Apesar das constrições às liberdades individuais impostas pelo
universo da fábrica na gênese da formação da Vila Maria Zélia, é difícil
imaginar que ela tenha sido também, posteriormente, palco de eventos
dolorosos e nada abonadores da ditadura Vargas. Durante o Estado Novo,
foram improvisados inúmeros cárceres em razão do enorme contingente de
prisões efetuadas (algo em torno de 15.000 pessoas). Uma das áreas da Vila
Maria Zélia (posteriormente comprada pela Goodyear) foi escolhida para
funcionar como espaço provisório de detenção, concentrando todos os
prisioneiros políticos (aproximadamente 700), entre eles, vários
intelectuais de prestígio e dirigentes políticos. Neste período e neste
espaço co-habitaram o então presidente da Aliança Nacional Libertadora/ALN
e militante do Partido Comunista Brasileiro/PCB, Caio Prado Júnior, o
médico Quirino Puca, o ex-soldado do exército, aliancista e simpatizante do
PCB Abdon Prado Lima, o ex-deputado Clóvis de Oliveira Netto, o general
Miguel Costa, o advogado Danton Vampré, os jornalistas Aristedes da
Silveira Lobo e Fúlvio Abramo. A convivência intensa, o engajamento
político de todos (havia uma miríade de correntes políticas em disputa:
anarquistas, socialistas, trotskistas, comunistas, partidários da ALN) e o
idealismo no sentido de restaurar a democracia no país fizeram com que o
grupo, apesar das diferenças e conflitos, transformasse o período do
cárcere em um momento de formação e amadurecimento político. Aulas, debates
e palestras aconteciam às escondidas depois do almoço e do jantar. A
história do movimento sindical, a trajetória do Movimento Comunista, a
organização do Partido Comunista, Teoria e Economia Política, Antropologia,
entre tantos outros temas e plataformas constavam do programa de estudos da
"Faculdade Maria Zélia". O grande intelectual, crítico de cinema, professor
e diretor Paulo Emílio Salles Gomes chegou ser transferido, por um curto
espaço de tempo, para o cárcere da Vila Maria Zélia. Neste período, ele
escreveu a peça Destinos, que trata de um diálogo-embate entre um jovem
militante engajado e outro disposto a viver a juventude sem maiores
compromissos. Apesar dos paliativos encontrados pelos presos políticos para
se manterem sãos – corpo e espírito – as condições às quais estavam
sujeitos eram muito lúgubres. O autoritarismo de seus algozes, os métodos
brutais de tratamento, as más condições de alimentação e a falta de
assistência médica levaram o grupo a arquitetar uma fuga em massa. Os
métodos de repressão durante a ditadura Vargas, como a nossa história a
posteriori teve a função de revelar, foram impiedosos. O plano de evasão
teve consequências trágicas. Na noite do dia 21 de abril de 1937, 24 presos
políticos (aproximadamente) desarmados, que tentavam fugir do cárcere pela
passarela do andar superior foram descobertos pela guarda. Recapturados, os
prisioneiros foram enfileirados e divididos em três grupos. Os dois
primeiros foram duramente espancados e retornaram às suas celas e o
terceiro permaneceu no pátio, onde foi metralhado pelas costas a sangue
frio. A crueldade desta represália foi, na ocasião, ignorada pelos
moradores da Vila. A grade que circundava o presídio delimitava o
território de circulação autorizado aos moradores.

Finda a ditadura ferrenha de Getúlio Vargas (1937-1945), o país restaurou a
ordem democrática e ventos mais promissores voltaram a soprar tanto em
termos nacionais como internacionais, já que este período de fechamento
político coincide, justamente, com o início e o final da Segunda Guerra
Mundial. Com relação à Segunda Guerra, vale um breve destaque para a
convocação de cinco moradores da Vila Maria Zélia como pracinhas na Força
Expedicionária Brasileira. Segundo Dona Ernestina Cardoso, cujo irmão havia
sido recrutado, foi indescritível a emoção provocada pelo retorno de todos
eles. Ainda hoje ela se emociona ao relembrar as festividades organizadas
na Vila para receber de volta seus heróis nacionais.

Em 1953, outra grande greve protagonizada pelos trabalhadores têxteis e
metalúrgicos (com adesão posterior de carpinteiros, vidreiros e gráficos)
paralisa a cidade de São Paulo por 27 dias – de 26 de março a 23 de abril.
Conhecida como a "Greve dos 300 mil" (amplamente estudada por cientistas
sociais e historiadores), a greve contribuiu para o fortalecimento do
movimento sindical, enfraquecido pela corrente "ministeralista" que
controlava os sindicatos desde o Estado Novo, colocando novamente na cena
pública a classe operária. Como foi descrito anteriormente, desde os anos
20, uma nova circularidade feérica de homens e mulheres pela cidade passou
a existir, deflagrada pelo boom da urbanização e industrialização. Igreja,
Estado e os diversos saberes médicos preocupados com a suposta desordem que
esta presença na vida pública representava empenharam-se na elaboração de
discursos higienistas que buscavam disciplinar e retirar do espaço público
este novo sujeito coletivo. A greve de 1953 promoveu um golpe profundo e
violento neste regime de disciplina espacial e revelou a capacidade do
movimento operário estabelecer diferentes alianças, contando com o apoio de
estudantes, políticos, comerciantes e militares. O bairro do Belenzinho,
previsivelmente, com o seu enorme contingente de trabalhadores têxteis não
assistiu de longe toda esta movimentação. Várias assembléias foram
realizadas, como de hábito, na sala do Cine São José do Belém. Apesar de
ter sustentado uma das maiores greves do operariado de São Paulo e da
memória do movimento ter permanecido bastante positiva entre os
trabalhadores, os têxteis, de fato, sofreram uma dura derrota. Segundo o
tesoureiro do Sindicato dos Têxteis aposentados, Sr. José Bonifácio:

"(...) Aí a greve fracassou e nós voltamos a pegar os mesmos 32%. Tivemos
um desgaste muito grande nessa greve de 1953. Mas foi a greve que mais
assim chamou a atenção do trabalhador brasileiro e daqui da cidade de São
Paulo, tanto metalúrgico, como gráfico, como vidreiro, como marceneiro, que
eram uns mais chegados com os outros. A greve chegou ao conhecimento de
todos, então foi uma propaganda para o sindicato. O sindicato até aquela
época não era muito forte, não; mas daquela época, de 1953 para cá, até
1960, o sindicato foi muito forte. Nós fizemos... Aquilo depois virou a
campanha para o décimo terceiro salário" (depoimento concedido à Daisy
Perelmutter para a pesquisa História do bairro do Belenzinho, 02/09)

Depois disso, muitas outras greves, lutas e reivindicações galvanizaram os
trabalhadores e moradores do bairro até a década de 70 com a construção da
Radial Leste e do metrô. Neste momento, o bairro sofre transformações
profundas e assume, de fato, novas feições. Um novo capítulo, não tão
admirável e viçoso quanto os anteriores, começa a ser desenhado. Vários
espaços públicos de encontro e sociabilidade deixam de existir; o trânsito
se intensifica; o comércio local vai cedendo lugar às grandes redes e
perdendo a sua hegemonia para os Shoppings; um enorme contingente de
moradores é desalojado e, por fim, a intensa solidariedade de classe que
existia entre os belenenses – das mais diferentes tradições culturais - vai
perdendo, paulatinamente, a sua força. Como vaticina melancolicamente o Sr.
Edmundo Picasso Prado (depoimento concedido à pesquisa História do bairro
do Belenzinho):

"(...) O bairro passou de um bairro que tinha todas as oportunidades mas
que sofreu uma descaracterização tão grande.... Primeiro com a Radial
Leste, que trouxe um tráfego intenso. Porque isso o que o Luisinho falou é
verdade, de não poder sair de casa e tal. Mas não é só isso. Você com um
tráfego intenso, você se fecha em casa, você não confia, porque começa a
passar gente que você não conhece. E eu, por exemplo, moro numa ruazinha
que tem cem metros. Eu conheço todos os moradores. Quando passa alguém
diferente, eu já fico... porque já teve vários assaltos aqui nessas ruas de
pouco movimento. Ontem, por exemplo, eu fui conversar na casa dele, toquei
várias vezes a campainha. Aí a mulher dele abriu a janela e tal. Não sai
mais à noite depois de determinado horário, porque o pessoal... Entendeu? E
começa a descaracterizar. Então a oportunidade de você se ligar com o
vizinho é mais difícil. Porque tudo é ligação com os vizinhos."

Em 1990, com a política de abertura de mercado promovida pelo Governo
Collor várias indústrias foram fechadas em decorrência da concorrência
internacional ou foram transferidas para o interior e outros estados. O
bairro sofreu um duro golpe e houve uma evasão de mais de 60.000 pessoas.
No lugar da intensa solidariedade de classe, da quente e fraterna rede de
relacionamentos entre vizinhos e de um comércio local diversificado e
próspero, a paisagem foi se tornando, dia-a-dia, um tanto quanto lúgubre e
impessoal.

Alguns moradores resistem herculeamente e se mantêm no bairro apesar de
sua violenta descaracterização e abandono por parte do poder público.
Empenham-se através de suas memórias caudalosas e de suas singelas práticas
cotidianas (os jogos de dominó nas ruas mais pacatas, a conversa nos
antigos bares, a circulação no Largo São José do Belém) em manter os laços
e as redes sociais - não virtuais, mas reais - no contrapelo do
individualismo e solipsismo que caracteriza a contemporaneidade. A
reabertura da unidade do Sesc no Belenzinho, prevista para o dia 04/12, tem
despertado em todos estes singelos resistentes à esperança de que novos
ventos, capazes de resgatar antigas vocações e potencialidades do bairro,
soprem em seu favor reanimando-o do seu sono letárgico de mais de duas
décadas.

Este processo de ressignificação dos espaços e reanimação cultural, de
certo modo, já vem sendo realizado, de maneira pontual, na Vila Maria Zélia
pelo Grupo XIX de teatro, responsável pela criação dos premiadíssimos
espetáculos Hygiene e Hysteria. A grande diferença empunhada pelo grupo é
que além de utilizar os espaços históricos como espaço cênico, eles
trouxeram o processo criativo para dentro do espaço histórico. Sediados na
Vila há mais de seis anos, graças a um convênio com o INSS que permite a
utilização de um de seus prédios como escritório e local de ensaio, em
contrapartida aos cuidados e manutenção adequada do equipamento, a
permanência do grupo tem promovido uma troca muito saudável entre a
população local e os artistas. Além do intenso intercâmbio através das
diferentes oficinas oferecidas para todas as faixas etárias da população
(senhores, adultos, jovens e crianças) da montagem cênica e figurinos dos
espetáculos, dos seminários e cursos promovidos, entre tantas outras
trocas, a presença do grupo na Vila e toda a atenção que vem sendo
despendida pela mídia, tem contribuído para o florescimento da auto-estima
dos moradores em relação ao seu próprio espaço, os quais passaram a olhá-lo
com muito mais apreço e sensibilidade. Que esta intervenção do Grupo XIX,
que já vem dando bons frutos e resultados, tenha efeito multiplicador no
bairro do Belenzinho e encontre na sede reformada do Sesc o seu maior
aliado. Os antigos moradores – imigrantes europeus, descendentes e
migrantes nordestinos, que ocuparam em massa a zona leste durante a década
de 70 – bem como os novos – bolivianos que hoje trabalham nas confecções em
condições bastante adversas – vêm clamando por espaços de congregação,
criação e diversão. A unidade do Sesc Belenzinho, ciosa da sua
responsabilidade para com à população local, imbuiu-se da missão de dar
continência às múltiplas necessidades - associativas, criativas, lúdicas,
esportivas, formativas e reflexivas – que o seu público potencial vem
apresentando.




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