Apontamentos sobre o povo e a educação no projeto republicano de Euclides da Cunha e Rui Barbosa

September 5, 2017 | Autor: Felipe Souza | Categoria: História do Brasil, Euclides da Cunha, História Da Educação, Rui Barbosa
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ISSN 1807­1783                atualizado em 04 de novembro de 2009

Editorial Expediente De Historiadores

Apontamentos sobre o povo e a educação no projeto republicano de Euclides da Cunha e Rui Barbosa por Felipe Freitas de Souza

Dos Alunos Arqueologia Perspectivas Professores

Sobre o artigo[1]. Sobre o autor[2].

Entrevistas Reportagens

A proclamação da República no Brasil gesta a proclamação do ensino público primário gratuito, laico, obrigatório – enfim, reformado. Esta

Artigos

perspectiva de educação encerra uma perspectiva de sociedade, de povo,

Resenhas

perspectiva esta que esteve presente na obra de dois dos grandes intelectuais do

Envio de Artigos

fim do século XIX e início do XX: Rui Barbosa e Euclides da Cunha. Avaliar qual a

Eventos

função da educação nestes intelectuais é pensar qual a representação de povo e

Curtas

qual “escatologia social” se vislumbrava.

Instituições Associadas Nossos Links

Elegemos como referências destes intelectuais os textos Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública, de Rui Barbosa, bem como Os Sertões e o diário de expedição de Euclides da Cunha. Nosso objetivo não é aproximar obras distantes no tempo e

Destaques

com finalidades tão distintas, tampouco realizar um estudo que esgote as

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possibilidades de análise pelo matiz indicado no presente trabalho, mas

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interessa­nos demonstrar que a educação escolar seria o horizonte para a

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reforma da sociedade, da inclusão dessa população nessa modernidade republicana e para o progresso material e moral da nação. Enfim, procuramos indicar os nexos entre o discurso ruibarbosiano e euclidiano no que tange à educação. Após um período de estabelecimento das instituições republicanas e de suas ações sociais, surge a geração dos críticos republicanos – sendo que alguns entusiastas da República tornaram­se críticos a esta[3]. Um dos principais fatores de insatisfação dos intelectuais com o novo regime era a exclusão do povo do processo social. Com o fim do Império, a figura do Imperador – e, portanto, do Poder Moderador – deixa de ter sentido, permanecendo um vazio simbólico no que se refere ao sujeito legítimo ao qual os esforços sociais deveriam ser dirigidos: ”A transposição republicana traz uma significação profunda que poderia ser chamada de estrutural. Trata­se da supressão repentina de uma dimensão legitimadora da nação, o soberano, restando à

 

representação do povo, absolutamente fragilizada, ocupar­ lhe o lugar de forma única e indefectível. Torna­se, assim, uma representação abstrata, fundada em mecanismos eleitorais restritivos e incapazes de impedir os atos de força que a maculam, totalmente impotente para legitimar o sistema de poder em vigor. Essa circunstância histórica expressa­se bem num ideário que imputa ao povo, razão de ser de uma nação, uma insuficiência que, na verdade, é própria das instituições representativas.”[4] Decorrendo que: “(...) se preserva nas diferentes atualizações do paradigma republicano a raiz comum: a idéia de incorporação do povo à nação, bem como a da insuficiência do povo, fazendo a matriz republicana distinta da do Império.”[5] O povo, novo depositário da legitimidade, deve então ser preparado para esse novo momento da civilização brasileira: conjuntamente ao pensamento republicano, surge uma cidadania republicana que deve ser disseminada. Entre as medidas que constituem essa difusão está a escolarização. Segundo VALDEMARIN, Rui Barbosa possuiria essa percepção do nexo entre educação, riqueza e paz social: “Assim como o atraso escolar indica atraso social e econômico, o aumento de índices educacionais projetaria desenvolvimento econômico e aprimoramento das instituições, já que o raciocínio do autor é sempre no sentido de demonstrar que na reversão da situação educacional está a chave que permite transformar a sociedade como um todo. A inferioridade brasileira em relação a outros países não se limita à questão educacional, se ramifica com desdobramentos sociais e econômicos, mas a instrução é entendida como o elemento a partir do qual se pode transformar a sociedade, na ordem. Nesta perspectiva, a educação seria a condição para a evolução sem revolução.”[6] Apesar das formas de socialização e da posição em espaços sociais distintos, Rui Barbosa e Euclides da Cunha encontram sentidos semelhantes para a resolução dos problemas que encaram. Rui Barbosa propugnava a escolarização como forma de engrandecer o país, desenvolvê­lo, ao pensar na realidade que os demais países apresentavam: Estados Unidos, França, Inglaterra, Áustria, e outros, possuíam um desenvolvimento de ordem econômica expressivo para a época, constituindo­ se enquanto modelos. Rui encontrava nestes países os exemplos que deveriam nortear as medidas escolares no Brasil (VALDEMARIN, 2000, realiza algumas considerações sobre essa transposição de modelos). Já Euclides da Cunha, ao perceber a miséria moral e material que se encontrava o sertanejo, afirma: “Que pelas estradas, ora abertas à passagem dos batalhões gloriosos, que por essas

estradas amanhã silenciosas e desertas siga depois da luta, modestamente, um herói anônimo, sem triunfos ruidosos, mas que será, no caso vertente, o verdadeiro vencedor: O mestre­escola.”[7] Este sujeito, “herói anônimo”, surge como um “ato falho” no discurso euclidiano: Euclides da Cunha em certa medida é um entusiasta da República, mas também seu crítico. A difusão da escola pública e do pensamento republicano, dessa cidadania e dessa civilidade, são fatores positivos na apreensão euclidiana que se manifestam pela incorporação da população: “Depois da nossa vitória, inevitável e próxima, resta­nos o dever de incorporar à civilização estes rudes patrícios que – digamos com segurança – constituem o cerne da nossa nacionalidade.”[8] Através da luta contra um segmento da população que sofria a “(...) inadaptabilidade do povo à legislação superior do sistema político recém­inaugurado (...)”[9], em meio aos “(...) lugares em que se normalizou a desordem esteada no banditismo disciplinado”[10], haveria, por fim, de se estabelecer a civilidade. A percepção de Euclides sobre o ambiente moral indicava uma “sociedade de retardatários”: “Ademais ninguém se iludia ante a situação sertaneja. Acima do desequilibrado que a dirigia estava toda uma sociedade de retardatários. O ambiente moral dos sertões favorecia contágio e o alastramento da nevrose.”[11] Não haveria de ser diferente: uma população à qual o Império pouco de dedicou e que à República cabia normatizar haveria de se encontrar nesse estado de retardamento social; a fome, o preconceito, a miséria, certamente são fatores deste retardamento que aponta, como ROCHA (2004) indicara acima, a debilidade das instituições republicanas e de seu alcance, não de um povo. Retornando a Rui Barbosa, temos que: “Não é que atribuamos à instrução elementar a propriedade mágica de eliminar diretamente a imoralidade de cada espírito, de onde elimine a ignorância. Mas, além de que nada tende mais a inspirar o sentimento da ordem, o amor do bem e a submissão às amargas necessidades da vida, do que a noção clara das grandes leis universais que regem o universo e a sociedade, acresce que o ensino desentranha, em cada um dos indivíduos cuja inteligência desenvolve, forças de produção, elementos de riqueza, energias morais e aptidões práticas de invenção e aplicação, que o revestem de meios para a luta da existência, o endurecem contra as dificuldades, e lhe preparam probabilidades mais seguras contra a má fortuna. O homem cheio de precisões e destituido de recursos vai já a meio caminho do mal; e os delitos mais comuns são menos vezes fruto de predisposições perversas do que da ausência dessa confiança robusta no trabalho, que só a consciência do merecimento, adquirido pela educação, sabe inspirar as provações de cada dia.”[12]

Se o povo pode obter a “consciência do merecimento” pela instrução elementar, esta não haveria de ser difundida? A integração nacional perpassa, em Rui Barbosa, a educação e, em Euclides, a civilidade. “Tereis instituido realmente a educação popular, se a escola não derramar no seio do povo a substância das tradições nacionais? se não comunicar ao indivíduos os princípios da organização social que o envolve? se não imprimir no futuro cidadão idéia exata dos elementos que concorrem na vida orgânica do município, da província, do Estado? se não lhe influir o sentimento do seu valor e da sua responsabilidade como parcela integrante da entidade nacional?”[13] A civilidade e a instrução elementar seriam formas de inculcar estas estruturas de controle humanas[14] através de um processo civilizador, pois “(...) as estruturas da personalidade e da sociedade evoluem em uma inter­ relação indissolúvel.”[15] Euclides “intui” a escolarização através do mestre­ escola; Rui Barbosa já indicara este caminho para os republicanos. Euclides percebe um indivíduo fraco, um sertanejo miserável e sujeitado que deve ser civilizado, uma vez que é o “cerne de nossa nacionalidade”; Rui Barbosa percebe um povo alijado dos meios de representação política, sujeitado às condições de produção que lhes são oferecidas e que pode ser emancipado pela escola, emancipando a nação. Impor formas de viver e conviver socialmente, seja pela escola ou pela violência física, são as formas de moldar esse povo de ex­súditos em cidadãos – preparados para a cidadania e modernidade especificamente republicanas. São expressões de um paradoxo republicano, “(...) que, ao mesmo tempo em que impõe a incorporação do povo, como exigência básica de legitimação do poder, fundamenta­se na idéia da sua insuficiência cívica”[16], insuficiência esta solucionada pela escola, mas também pelo Exército e forças policiais. Se Rui Barbosa já havia indicado o caminho da escolarização, por que, tristemente, o evento de Canudos veio a tomar corpo e se difundir pela obra euclidiana? Certamente pela ânsia de desenvolvimento destes dois pilares dessa República nascente: a repressão armada para os desajustados e a escola para as futuras classes produtivas. Concluímos que entender as propostas para este povo é compreender o próprio projeto republicano, é entender quais representações foram impostas para este povo e qual a nova forma que este haveria de se comportar. Referências bibliográficas: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares

da instrução pública. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946. 4 vol. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. CUNHA, Euclydes da. Os sertões: campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora; Publifolha, 2000. CUNHA, Euclides da. Canudos: diário de uma expedição. São Paulo: Martin Claret, 2003. ELIAS, Norbert. Introdução à Edição de 1968. In.: O Processo Civilizatório: uma história dos costumes (1º vol.). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994. MONTEIRO, Douglas Teixeira. Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado. In.: FAUSTO, Boris (org.). O Brasil republicano: sociedade e instituições (1889­1930). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p.39­92. ROCHA, Marlos Bessa Mendes da. Matrizes da modernidade republicana: cultura política e pensamento educacional no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados: Brasília, DF, Editora Plano, 2004. VALDEMARIN, Vera Teresa. O liberalismo demiurgo: estudo sobre a reforma educacional projetada nos Pareceres de Rui Barbosa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2000. [1] Este trabalho foi originalmente apresentado no Seminário Internacional 100 anos sem Euclides da Cunha.

[2] Graduado em Pedagogia pela UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Araraquara, Faculdade de Ciências e Letras; aluno do programa de pós­ graduação Stricto sensu em Educação Tecnológica do CEFET­MG – Centro Federal de Educação Tecnológica – Minas Gerais, Campus II.

[3] ROCHA, Marlos Bessa Mendes da. Matrizes da modernidade republicana: cultura política e pensamento educacional no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados: Brasília, DF, Editora Plano, 2004.

[4] ROCHA, Marlos Bessa Mendes da. Matrizes da modernidade republicana: cultura política e pensamento educacional no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados: Brasília, DF, Editora Plano, 2004. p.56.

[5] ROCHA, Marlos Bessa Mendes da. Matrizes da modernidade republicana: cultura política e pensamento educacional no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados: Brasília, DF, Editora Plano, 2004. p.19.

[6] VALDEMARIN, Vera Teresa. O liberalismo demiurgo: estudo sobre a reforma educacional projetada nos Pareceres de Rui Barbosa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2000. p.91 – grifos nossos.

[7] CUNHA, Euclides da. Canudos: diário de uma expedição. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 45.

[8] CUNHA, Euclides da. Canudos: diário de uma expedição. São Paulo: Martin Claret, 2003. p. 74.

[9]CUNHA, Euclydes da. Os sertões: campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora; Publifolha, 2000. p.247.

[10] CUNHA, Euclydes da. Os sertões: campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora; Publifolha, 2000. p.186.

[11] CUNHA, Euclydes da. Os sertões: campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora; Publifolha, 2000. p.208.

[12] BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946. 1º vol. p.195.

[13] BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1946. 2º vol., p.384­385.

[14] ELIAS, Norbert. Introdução à Edição de 1968. In.: O Processo Civilizatório: uma história dos costumes (1º vol.). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994. p.215.

[15] ELIAS, Norbert. Introdução à Edição de 1968. In.: O Processo Civilizatório: uma história dos costumes (1º vol.). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994. p.221.

[16] ROCHA, Marlos Bessa Mendes da. Matrizes da modernidade republicana: cultura política e pensamento educacional no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados: Brasília, DF, Editora Plano, 2004. p.94.

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