APOSTILA - A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL - Prof. Marcos Alvito

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Apostila A Questão Racial no Brasil - Prof. Marcos Alvito






APOSTILA
A QUESTÃO RACIAL NO BRASIL
Prof. Marcos Alvito
Universidade Federal Fluminense


Paul Harro-Harring - Negra acusada de roubo - aquarela 1840

SUMÁRIO:

BIBLIOGRAFIA básica recomendada ....................................................... 003
PRÓLOGO: DEFINIÇÕES DE RAÇA ............................................................ 004

PARTE I - A questão racial no século XIX ................................................. 006
O OLHAR DOS VIAJANTES ESTRANGEIROS .................................................. 006
A QUESTÃO DA IMIGRAÇÃO ...................................................................... 016

PARTE II - A questão racial na literatura naturalista ............................... 018

PARTE III - A questão racial durante a Primeira República ..................... 047

PARTE IV - A questão racial durante o primeiro governo Vargas ........... 056
(AINDA A DESENVOLVER)

PARTE V - A questão racial pós-1945 ...................................................... 057
(INCOMPLETO)






BIBLIOGRAFIA básica recomendada:

DA MATTA,Roberto.
[1981] Relativizando: uma introdução à Antropologia Social.Petrópolis:Vozes. Capítulo & da 1a. parte: "Digressão: A Fábula das Três Raças, ou o Problema do Racismo à brasileira".
MAGGIE,Yvonne e REZENDE,Cláudia Barcellos (Orgs.)
[2002] Raça como retórica – a construção da diferença. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
MAIO,Marcos Chor & SANTOS,Ricardo Ventura (orgs.).
[1996] Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/CCBB.
SCHWARCZ,Lilia Moritz
[1993] O espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras.
[1998] "Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na intimidade" In: SCHWARCZ,L. (Org.) História da Vida Privada no Brasil, vol. 4: Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras.pp.173-244.
____________________ & QUEIROZ,Renato da Silva (orgs.).
[1996] Raça e diversidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Estação Ciência.
____________________ & REIS,Letícia Vidor de Sousa (orgs.).
[1996] Negras imagens. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/ Estação Ciência.
SKIDMORE,Thomas.
[1989] Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz & Terra.2.ed.
VÍDEO recomendado:

O Fio da Memória, de Eduardo Coutinho. RioFilme/Sagres, (1991) 115'.
PRÓLOGO
DEFINIÇÕES DE RAÇA:

"Queremos RAÇA !"
(Torcida do Flamengo)

"'Raça' é uma divisão física da humanidade, cujos membros se distinguem por possuírem uma combinação similar de características anatômicas devido a uma hereditariedade comum [...] não existe um critério físico único para distinguir as raças; as mesmas são delimitadas pela associação nos grupos humanos de múltiplas variações no formato e na estrutura do corpo, tal como a quantidade de pigmento no cabelo, na pele e nos olhos; tipo de cabelo; formato de nariz; variação em estatura; relação entre comprimento e largura da cabeça, etc."
(E.Hooton, antropólogo físico norte-americano em 1936)
Fonte: MAIO & SANTOS,1996:128

"Que a variação em capacidade mental é 'mais ou menos' a mesma em todas as raças é dificilmente uma afirmação científica acurada. É no máximo uma generalização vaga [...] Sabe-se bem que diferenças mentais e temperamentais correlacionam-se com diferenças físicas. Basta mencionar os bem conhecidos atributos musicais dos negróides e as habilidades matemáticas de algumas raças indianas."
(W.C.Osman Hill, primatologista britânico em 1951, contestando a "Primeira Declaração sobre Raça" da UNESCO, datada de julho de 1950)
Fonte: MAIO & SANTOS,1996:128

"... a perspectiva contemporânea para raça deriva da genética de populações, na qual raça é vista como uma população em isolamento reprodutivo, nem mais, nem menos."
(S.M.GARN, antropólogo físico norte-americano em 1961)
Fonte: MAIO & SANTOS,1996:128

"Raça é um conceito biológico mas é uma realidade social... Raça é uma das maneiras de coletivizar as pessoas nas nossas mentes."
(Thomas Sowell, Race and Culture, 1994)
Fonte: SCHWARCZ & QUEIROZ,1996:12

"Raças são populações que diferem significativamente nas freqüências de seus genes."
(Oswaldo Frota-Pessoa, Instituto de Biociências da USP)
Fonte: SCHWARCZ & QUEIROZ,1996:29

"Parece, hoje, indiscutível, à luz da ciência, que no caso dos seres humanos não há raças. Em apenas um sentido, que Lévi-Strauss chamou 'raças invisíveis', a antiqüíssima palavra quer dizer alguma coisa quando se refere a nossa espécie – são os conjuntos de freqüências genéticas que fazem, ocasionalmente, uma pessoa loirírssima estar mais perto de outra preta retinta do que de outra também loira. Não há raças e entretanto há relações raciais."
(Joel Rufino dos Santos)
Fonte: MAIO & SANTOS,1996:219

"Raça é um logro, ou, como disse um dia o escritor angolano Luandino Vieira: 'a pele é apenas o embrulho da alma'"
(José Eduardo Agualusa)
Fonte: "O embrulho da alma", crônica em O Globo, 22 de junho de 2015, 2o. Caderno, p.2

E DE RACISMO:
"Racismo é a valorização generalizada e definitiva de diferenças reais ou imaginárias, em proveito do acusador e em detrimento da vítima, a fim de justificar os seus privilégios ou a sua agressão."
Fonte: SCHWARCZ & QUEIROZ,1996:11


PARTE I - A questão racial no século XIX
O OLHAR DOS VIAJANTES ESTRANGEIROS

Texto nº : Homens de natureza inferior e bruta, Spix e Martius (1817-20)
Natureza e data do texto:
Passagens do livro Viagem pelo Brasil (1817-1820), escrito pelo botânico Martius e pelo zoólogo Spix, enviados pelo rei Bávaro Maximiliano José para fazerem parte de uma expedição científica que acompanhou a jovem imperatriz D.Leopoldina (que era austríaca) ao Brasil. Foi publicado pela primeira vez em alemão em 1823.
"Quem chega convencido de encontrar esta parte do mundo descoberta só desde três séculos, com sua natureza inteiramente rude, violenta e invicta, poder-se-ia julgar, ao menos aqui na capital do Brasil, fora dela; tanto fez a influência da civilização e cultura da velha e educada Europa para remover deste ponto da colônia os característicos da selvajaria americana, e dar-lhe cunho de civilização avançada. Língua, costumes, arquitetura e afluxo dos produtos da indústria de todas as partes do mundo dão à praça do Rio de Janeiro aspecto europeu. O que, entretanto, logo lembra ao viajante que ele se acha num estranho continente do mundo, é sobretudo a turba variegada de negros e mulatos, a classe operária com que ele topa por toda a parte, assim que põe o pé em terra. Esse aspecto foi-nos mais de surpresa do que de agrado. A natureza inferior, bruta, desses homens importunos, seminus, fere a sensibilidade do europeu que acaba de deixar os costumes delicados e as fórmulas obsequiosas de sua pátria."

Fonte: SPIX & MARTIUS, Viagem pelo Brasil (1817-1820). Belo Horizonte:Itatiaia; São Paulo:Edusp,1981.

Texto nº : A fábula das três raças
Natureza e data do texto:
Em 1845 o Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publicou o ensaio vencedor do concurso de monografias sobre "Como escrever a História do Brasil". Carl F.P. von Martius (ver texto anterior) é o vencedor, em um texto que começa com a seguinte afirmação (que teria um impacto decisivo na maneira de pensar o Brasil, doravante):
"Qualquer que se encarregar de escrever a Historia do Brasil, paiz que tanto promette, jamais deverá perder de vista quaes os elementos que ahi concorrerão para o desenvolvimento do homem. São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças, a saber: a cor de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou ethiopica. Do encontro, da mescla, das relações mutuas e mudanças d'essas três raças, formou-se a actual população, cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular."

Fonte: PICCOLI,Valéria. "As três raças do Império" In: MARTINS,Carlos (org.) [1999] O Brasil Redescoberto. Rio de Janeiro:Paço Imperial/Ministério da Cultura. (catálogo da exposição).p.38.

Texto nº : As contradições de Debret (1802-1858)
Natureza e data do texto:
Passagens da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de Jean-Baptiste Debret (1768-1848), publicado na França entre 1834 e 1839. Debret era um pintor neo-clássico, discípulo do grande pintor da corte napoleônica Jean-Louis David. Com a derrocada de Napoleão, aceita um convite para vir ao Brasil onde residirá por quinze anos, entre 1816-1831. Torna-se o pintor oficial da corte portuguesa no Brasil e professor de pintura histórica da Academia de Belas Artes, por ele fundada. Sobretudo aproveita sua longa estada para observar de perto as ruas do Rio de Janeiro, fazendo esboços e aquarelas que focalizam a vida cotidiana da população escrava e que futuramente seriam transformados nas gravuras do livro Viagem Pitoresca e Histórica. Quanto à questão racial, o testemunho de Debret é contraditório: no que pode ser uma estratégia para não perder leitores, é bastante conservador no seu texto (ver infra - passagem A), reafirmando peremptoriamente a inferioridade da raça negra. Por outro lado, retrata negros e negras com muita dignidade (ver infra, passagem C) executando seus pesados trabalhos diários e sugere que a criação do novo país estava sendo empreendida por eles (passagem B).
A - Espécie à parte da raça humana, destinada à escravidão
"No Brasil, entretanto, a mortalidade dos negros, geralmente bastante grande, é compensada pela extrema fecundidade das negras, dotadas por outro lado de uma constituição física favorável ao parto, o qual ainda é facilitado pela extrema pequenez do crânio do negro. (...)
Examinando-se as proporções da cabeça, encontra-se uma face excessivamente desenvolvida em comparação com o estreitamento do crânio, em geral um nono menor do que o do europeu, diferença que se verifica enchendo-se ambos de um líquido e que explicaria a inferioridade de suas faculdades mentais reconhecida entre nós. A fisiologia atribui à espessura da medula espinhal do negro sua extrema predisposição para sensações e excitações nervosas, flagelo a mais na sua escravidão." (...)
Em resumo, os sábios naturalistas concordam em que o negro é uma espécie à parte da raça humana e destinada, por sua apatia, à escravidão, mesmo em sua pátria."
(Debret, 1982:530)
B - O escravo negro como sustentáculo do país e o injusto tratamento que sofre
"Tudo assenta pois, neste país, no escravo negro: na roça, ele rega com seu suor as plantações do agricultor; na cidade, o comerciante fá-lo carregar pesados fardos; se pertence ao capitalista, é como operário ou na qualidade de moço de recados que aumenta a renda do senhor. Mas, sempre mediocremente alimentado e maltratado, contrai às vezes os vícios dos nossos domésticos, expondo-se a castigos públicos, revoltantes para um europeu, e que são, muitas vezes, seguidos da venda do culpado aos habitantes do interior, onde o infeliz vai morrer a serviço do mineiro. Sem o consolo do passado, sem a confiança do futuro, o africano esquece o presente, saboreando, à sombra dos algodoais, o caldo da cana-de-açúcar; e, como essas plantas cansadas de produzir, acaba definhando a duas mil léguas de sua pátria, sem nenhuma recompensa pelos seus serviços prestados."

(Debret, 1982:121-122)

C - Verdadeiros cidadãos


Lojas de Barbeiros - aquarela de Jean-Baptiste Debret, 1821 (Museus Castro Maya)
[Comentário de Debret acerca da Prancha 12 do Tomo II, Lojas de Barbeiros, gravura feita a partir da aquarela acima]:
"No Rio de Janeiro, como em Lisboa, as lojas de barbeiros, copiadas das espanholas, apresentam naturalmente o mesmo arranjo interior e o mesmo aspecto exterior, com a única diferença de que de oficial barbeiro no Brasil é quase sempre negro ou pelo menos mulato. Esse contraste, chocante para o europeu, não impede o habitante do Rio de entrar com confiança numa dessas lojas, certo de aí encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hábil, um cabeleireiro exímio, um cirurgião familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas. Dono de mil talentos, ele tanto é capaz de consertar a malha escapada de uma meia de seda como de executar, no violão ou na clarineta, valsas e contradanças francesas, em verdade arranjadas a seu jeito. Saindo do baile e colocando-se a serviço de alguma irmandade religiosa na época de uma festa, vemo-lo sentado, com cinco ou seis camaradas, num banco colocado fora da porta da igreja, a executar o mesmo repertório, mas desta feita para estimular a fé dos fiéis que são esperados no templo, onde se acha preparada uma orquestra mais adequada ao culto divino (...)
Desenho aqui a hora calma, das quatro às cinco, que precede o delicioso passeio da tarde.
Um vizinho do barbeiro, negligentemente largado perto da janela, com um leque chinês numa das mãos, deixa a outra para fora, entregue à agradável sensação do ar fresco. Recém-acordado e com o estômago cheio de água fresca, olha com indiferença o tabuleiro de doces que lhe apresenta uma jovem negra, à qual, por desafio, faz algumas perguntas sobre os seus senhores. Mas logo, aborrecido desta distração inútil, manda-a embora com esta frase de pouco-caso: 'Vai-te embora', expressão grosseira, empregada em todos os tons, desde o mais amistoso até o mais injurioso. Essa solução destrói as esperanças da vendedora, bem como do pequeno cão que aguarda humildemente um pedaço de doce.
A loja vizinha é ocupada por dois negros livres. Antigos escravos de ofício (1), de boa conduta e econômicos, conseguiram comprar sua alforria (possibilidade legal que lhes devolveu a liberdade e lhes assinou o lugar de cidadãos [grifo meu M.A.], que ocupam honestamente na cidade. Quem, com efeito, ousaria dizer-se mais digno da consideração pública que este oficial de barbeiro brasileiro, ante a lista pomposa de seus talentos afixada na porta da loja? Infatigável até na hora do repouso geral, vemo-lo afiar as navalhas numa mó, que outro negro faz girar, ou consertar meias de seda, ramo de indústria explorado exclusivamente nos seus momentos de lazer. Sua modesta loja acha-se neste momento escura e abandonada, mas dentro de duas horas estará perfeitamente iluminada por quatro velas já preparadas nos castiçais do pequenino lustre, economicamente construído com alguns pedaços de madeira torneada, reunidos entre si por um arame cujos contornos variados formam os caules de uma folhagem de zinco.
Mas é principalmente no sábado que a porta do barbeiro é assaltada pelos clientes, ansiosos por um lugar no simples banco ou na poltrona de honra. Cerca de meia-noite, entretanto, cansado de ter cegado inúmeras navalhas que lhe decoram a loja, e satisfeito com a receita, o barbeiro fecha a porta e se deita até de madrugada na sua marquesa, leito de descanso sem colchão, colocado no fundo da loja e dissimulado por um pequeno tabique de cinco a seis pés de altura.
Muito menos ocupado como dentista, o barbeiro, nessa qualidade, só tem como clientes indivíduos de sua cor, que o descaso dos senhores entrega à sua imperícia, levados sem dúvida pela isca da modicidade dos preços."
Nota do tradutor: (1) Negros escravos que escrevem [sic, exercem?] um ofício nas lojas dos oficiais e cujos senhores recebem o salário semanalmente.
(Debret,1982:188-189)
Fonte: DEBRET,Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (2 volumes). São Paulo: Círculo do Livro, 1982.

Texto nº : Rugendas (1802-1858) e o espetáculo das raças
Natureza e data do texto:
Passagem da Viagem Pitoresca através do Brasil, de Johan Moritz Rugendas (1802-1858), um viajante bávaro que esteve no Brasil como desenhista a serviço da expedição científica do botânico russo Langsdorff. Depois de desentender-se com o chefe da expedição, continuou no Brasil por sua conta, tendo vivido aqui entre 1822-1825. Seu livro foi publicado pela primeira vez em alemão e francês em 1835.
O espetáculo das raças:

"As diversas raças de homens que se encontram nos países do Novo Mundo, e a imensa variedade que as caracteriza, apresentam ao observador, ao estadista, ao cidadão, o panorama mais interessante que as sociedades humanas podem oferecer."

Fonte: RUGENDAS, João Maurício. Viagem Pitoresca Através do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1979. 8a.ed., p. 97.


Texto nº : Passagens das cartas de Gobineau (1869-70) e do artigo L'émigration au Brésil, de 1873
Natureza e data do texto:
O Conde de Gobineau (1816-1882) era um diplomata francês, famoso autor do Essai sur l'inegalité des races humaines (1853-55), obra de 4 volumes em que ele analisava o declínio de inúmeras civilizações, atribuindo-o a uma lei natural, a 'lei do declínio', que 'os nossos olhos podem ver, os nossos ouvidos podem ouvir, as nossas mãos podem tocar' (apud ARENDT,1978:237). Ele concluía, inclusive, pelo desaparecimento do homem da face da Terra, devido à degenerescência causada pela mistura se sangue, na qual a raça inferior acabava por predominar. Suas idéias tiveram mais sucesso a partir do último quartel do século XIX e chegaram até à 2a.Guerra Mundial. Embora possivelmente um conde impostor (seu título era duvidoso), Gobineau remontava sua genealogia ao deus germânico Odim, através de um pirata escandinavo. De abril de 1869 a maio de 1870, muito, muito a contragosto, este homem que achava 'também pertencer à raça dos deuses' foi encarregado de chefiar a legação diplom tica francesa no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro. Em inúmeras cartas à esposa e a amigos, deu exemplos de como o Brasil era visto pelas lentes racistas e, ademais, mal-humoradas.
Os brasileiros:

'excetuando a família imperial, todos aqui são mais ou menos mulatos, e passam a vida com um palito nos cabelos e um cigarro atrás da orelha. O Rio é uma cidade grande e bonita, mas são os estrangeiros que fazem tudo por aqui. Os brasileiros evitam mover uma palha para fazer qualquer coisa de útil, até mesmo para se afogarem' (p. 32)

Os macacos e o rei:
'Simbá, o marujo, conseguindo chegar à margem do rio, avistou montanhas cobertas de bosques compactos e, no meio de um vale, uma bela e grande cidade cujos monumentos lhe pareceram numerosos e imponentes. Ele se dirige até a cidade, e qual não é a sua surpresa quando percebe que a multidão de gente, que de longe parecia povoar as ruas, era, na verdade, uma multidão de macacos ! Havia grandes e pequenos, novos e velhos; mas todos eram macacos extremamente feios, fazendo caretas atrozes e circulando de um lado para o outro, uns apressados, outros não; todos lúgubres. Depois de andar a esmo de um lado para o outro, Simbá chegou, enfim, ao alto de um bairro, onde avistou um grande palácio que julgou ser o do Rei desse povo; e, entrando nos pátios onde os macacos que passeavam nada fizeram para prende-lo, penetrou nos apartamentos, e depois de atravessar várias galerias teve uma agradável surpresa, ao ouvir o som de uma voz humana; e, de fato, dirigindo-se para o lado de onde vinha a voz, entrou numa sala e viu, finalmente, um homem! E esse homem lia o Alcorão. De modo que não apenas encontrara um ser de sua espécie, mas um ser com quem podia se entender.
Suponho, madrinha, que com a aguda inteligência que a distingue... você adivinhou que Simbá estava no Brasil, que os macacos eram os brasileiros e que o rei era o imperador.' (pp. 33-34)

Aconselha D. Pedro II sobre a abolição e a imigração:
'Falamos sobre todos os assuntos do mundo, e só saí às 3 horas e quinze. Fizemos um especial arrazoado sobre a emancipação que ele quer conceder o quanto antes, e sobre a melhor maneira de conduzir a emigração para o Brasil, especialmente a de alemães católicos. Ele me presenteou com um remo indígena e um arco. Voltarei na quinta, como de hábito.' (p. 37);

Salvo o imperador... :
'Salvo o imperador, não há ninguém neste deserto povoado de malandros.' (...) 'Uma população toda mulata, com sangue viciado, espírito viciado e feia de meter medo...' (...) 'Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes da carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto.'
'Já não existe nenhuma família brasileira que não tenha sangue negro e índio nas veias; o resultado são compleições raquíticas que, se nem sempre são repugnantes, são sempre desagradáveis aos olhos.'
'As melhores famílias têm cruzamentos com negros e índios. Estes produzem criaturas particularmente repugnantes, de um vermelho acobreado... A imperatriz tem três damas de honra: uma marrom, outra chocolate-claro, e a terceira, violeta.' (pp. 39-40)

Trechos do artigo L'émigration au Brésil, de 1873

Este artigo foi provavelmente redigido a pedido do imperador D.Pedro II, de forma a estimular a imigração para o Brasil.

'Quando uma terra é assim dotada, é irrevogável que, num tempo determinado, seu destino seja se tornar o centro de uma importante aglomeração da raça humana. Apta a responder a todas as necessidades e a satisfazer todas as ambições, podendo também facilitar o desenvolvimento numérico das populações e garantir-lhes a riqueza destinada a elevar sua inteligência e a aperfeiçoar seu estatuto social, na medida em que o valor intrínseco da raça dominante possa se prestar a isso, uma terra semelhante deve necessariamente atrair todos os que, entre os homens, têm sede de trabalho frutuoso e de bem-estar assegurado. Neste momento, convém reconhecer, ainda faltam os meios de valorizar tantos tesouros, e isto porque faltam braços. As mais recentes estatísticas fixam em 11.780.000 almas a população total desta décima parte do globo terrestre, que é o Brasil. (...)

Pode-se duvidar da exatidão dos 11 a 12 milhões fornecidos pela estatística oficial. Ouvi estimativas muito mais baixas quanto ao total da população do Brasil, e alguns observadores que me pareciam competentes, e que apoiavam seus cálculos em deduções sensatas, não indicavam mais do que 9 milhões de almas. Mais ainda, no espaço de trinta anos, o número de 9 milhões foi o que sobrou de um total anterior de 10 milhões. Conseqüentemente, em trinta anos um milhão desapareceu. É interessante reconhecer este fato totalmente inexplicável. A grande maioria da população brasileira é mestiça e resulta de mesclagens contraídas entre os índios, os negros e um pequeno número de portugueses. Todos os países da América, seja no norte ou no sul, hoje mostram, incontestavelmente, que os mulatos de distintos matizes não se reproduzem além de um número limitado de gerações. A esterelidade nem sempre existe nos casamentos; mas os produtos da raça gradualmente chegam a ser tão malsãos e inviáveis que desaparecem antes de darem à luz, ou então deixam rebentos que não sobrevivem. (...)

Se tomarmos essa observação como base fixa para um cálculo de probabilidades, e se admitirmos, para evitar complicações, que a acumulação de misturas não precipita um movimento de aniquilação, o que não é provável, podemos concluir que, se um período de trinta anos culstou um milhão de habitantes ao Brasil, os nove milhões os quais terão desaparecido completamente, até o último homem, ao final de um período de 270 anos. (...)' (pp.84-6)

Fonte: RAEDERS,Georges. O Conde de Gobineau no Brasil. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1997. pp. 29; 32; 33-34; 37; 39-40


Texto nº : O esquema racial de Gobineau
Natureza e data do texto:
Ver texto anterior.
RAÇAS HUMANAS
Negra Amarela Branca

Intelecto Débil Medíocre Vigoroso

Propensões animais Muito fortes Moderadas Fortes

Manifestações Parcialmente Comparativamente Altamente
morais latentes desenvolvidas cultivadas

Fonte: Apud DA MATTA,1981:72

Texto nº : Louis Agassiz e a 'deterioração decorrente do amálgama de raças' ( A Journey in Brazil, 1868)
Natureza e data do texto:
O famoso naturalista suíço (naturalizado americano) Louis Agassiz e sua mulher Elizabeth estiveram no Brasil entre 1865-6, tendo sido muito bem recebidos não somente pelo imperador e pelas autoridades, mas por inúmeros colaboradores em todo o Brasil. Agassiz veio, basicamente, para estudar e coletar espécies, afim de formar uma coleção nos EEUU (na Universidade de Harvard), no que foi extremamente bem sucedido graças à enorme boa vontade das populações locais. Elizabeth ficou encarregada de um diário, no qual há cartas e relatórios científicos do marido, e que serviu de ponto de partida para o livro. Ao contrário de Gobineau, os Agassiz nutriram uma enorme simpatia pelos brasileiros, mas isto não impediu Louis Agassiz de explicar o Brasil segundo sua teoria sobre as raças humanas, isto é, de que elas eram como espécies diferentes.

'Que qualquer um que duvida dos males dessa mistura de raças, e se inclina, por malentendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam – venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente do amálgama das raças, mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando, rapidamente, as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental.'
Fonte: SKIDMORE, 1989:47-48.

Comparação entre as raças humanas e as espécies animais, e as conseqüências disso:
"Os naturalistas podem diferir de opinião sobre a origem das espécies, mas há um ponto em que estão de acordo: é que o produto do que se chama duas espécies diferentes é um ser intermediário participando ao mesmo tempo dos traços próprios de cada qual dos genitores, sem ter com qualquer um deles uma semelhança tão estreita que se possa confundi-lo com este ou aquele ou considerá-lo como o representante fiel de um ou de outro. Detenho-me neste fato, cuja importância é extrema quando se trata de determinar o valor e a significação das diferenças observadas entre as chamadas raças humanas. Deixo de lado a questão da origem provável ou mesmo do número dessas raças. Para o que ora tenho em vista, é indiferente que haja três, quatro, cinco ou vinte e que derivem ou não umas das outras. O fato de diferirem por traços constantes e permanentes basta, por si, para justificar uma comparação entre as raças humanas e as espécies animais. Sabemos que, entre os animais, quando dois indivíduos de sexo diferente e de espécies distintas concorrem na produção de um novo ente, esse híbrido não apresenta uma semelhança exclusiva com o pai, nem com a mãe e participa dos caracteres de ambos. Não me parece menos significativo que tal fato seja igualmente verdadeiro quanto ao produto de dois indivíduos de sexo diferente, pertencentes a raças humanas distintas. O filho nascido de uma preta e de um branco não é preto nem branco, é um mulato; o filho de uma índia e de um branco não é um índio nem um branco, é um mameluco; o filho de uma negra e de um índio não é um negro nem um índio é um cafuzo. Cafuzo, mameluco e mulato participam dos caracteres de seus autores tanto quanto a mula participa dos do cavalo e da jumenta. Logo, no que diz respeito ao produto, as raças humanas se acham, umas em relação às outras, na mesma relação que as espécies animais entre si e a palavra raça, na significação atual, deverá ser abandonada quando o número das espécies humanas for definitivamente abandonado e quando os verdadeiros caracteres dessas espécies houverem sido nitidamente estabelecidos. Por mim, julgo estar demonstrado que, a não ser que se prove que as diferenças existentes entre as raças índia, negra e branca são instáveis e passageiras, não se pode, sem estar em desacordo com os fatos, afirmar a comunidade de origem para todas as variedades da família humana. Do mesmo modo, é entrar em contradição com os princípios da ciência fazer uma distinção sistemáticas entre as raças humanas e as espécies animais. (...) O resultado de ininterruptas alianças entre mestiços é uma classe de pessoas em que o tipo puro desapareceu, e com ele todas as boas qualidades físicas e morais das raças primitivas, deixando em seu lugar bastardos tão repulsivos quanto os cães amastinados, que causam horror aos animais de sua própria espécie, entre os quais não se descobre um único que haja conservado a inteligência, a nobreza, a afetividade natural que fazem do cão de pura raça o companheiro e o animal predileto do homem civilizado. Minhas observações sobre os mestiços da América do Sul me convenceram de que as variedades provindas de uniões entre essas espécies humanas ou pretensas raças diferem das próprias espécies tão exatamente quanto os animais híbridos diferem das espécies que os geraram." (pp.182-184)

Apêndice V – PERMANÊNCIA DOS TRAÇOS CARACTERÍSTICOS NAS DIFERENTES RAÇAS HUMANAS

"O que à primeira vista logo me impressionou ao ver índios e negros reunidos foi a diferença marcada que há nas proporções relativas das diferentes partes do corpo. Como os macacos de braços compridos, os negros são em geral esguios; têm pernas compridas e tronco relativamente curto. Os índios, ao contrário, têm as pernas e braços curtos e o corpo longo; sua conformação geral é mais atarracada. Prosseguindo na minha comparação direi que o porte negro lembra os Hilobatas esguios e irrequietos, ao passo que o índio tem algo do orango inativo, lento e pesado. É claro que há exceções a essa regra, que se encontram negros curtos e atarracados bem como índios altos e esbeltos; mas tão longe quanto pude levar minha observação, a diferença essencial entre as raças indígena e negra é a altura e a forma quadrangular do tronco, aliada à curteza dos membros na primeira; e o arcabouço delgado, o tronco curto, as pernas altamente talhadas e os braços compridos na segunda. (...)
Algumas palavras apenas bastarão para fazer ver quão profundamente arraigadas são as diferenças primordiais entre as raças puras. Como as espécies distintas de animais, as diferentes raças humanas dão mestiços pelo cruzamento, e os mestiços nascidos de raças diversas apresentam grande diferença. O híbrido de branco e preto, chamado mulato, é por demais conhecido para que eu precise descrevê-lo; tem traços elegantes e cor clara; é cheio de confiança em si, mas indolente. O mestiço de índio e negro, que se designa por cafuso, é muito diferente: seus traços nada têm da delicadeza dos do mulato; sua cor é carregada; seus cabelos, longos, finos e anelados; e seu caráter apresenta uma feliz combinação do humor afável do negro e da enérgica rusticidade do índio. O mestiço do branco com o índio, denominado mameluco no Brasil, é pálido e efeminado, fraco, preguiçoso, embora algo obstinado.(...) " (pp.305-307)

Fonte: AGASSIZ,Luiz e AGASSIZ,Elizabeth Cary Agassiz. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Belo Horizonte:Itatiaia;São Paulo:Edusp, 1975.





A QUESTÃO DA IMIGRAÇÃO

Texto nº : Uma corrente de sangue caucásico

Joaquim Nabuco em O Abolicionismo (1883):
" [um país] onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberalidade do nosso regime, a imigração européia, traga sem cessar para os trópicos uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo..."
Fonte: SKIDMORE,Thomas. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1989. 2.ed. p.40

Texto nº : O relatório de Meneses e Sousa contra os chineses (1873)
Natureza e data do texto:
Num relatório formal ao ministro da Agricultura (Teses sobre a colonização do Brasil; Projeto de solução das Questões Sociais que se prendem a este difícil problema; Relatório apresentado ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas em 1873), o Barão de Parapiacaba, João Carlos Meneses e Sousa afirmou sobre os chineses:

"suco envelhecido e envenenado [de] constituições exaustas e degeneradas"
baseado na "verdade antropológica" de que a raça chinesa "é abastardada e faz degenerar a nossa"

Fonte: SKIDMORE,Thomas. Opus cit. p.41.

Texto nº : O relatório de Salvador de Mendonça "a favor" da imigração chinesa (década de 1870)
Natureza e data do texto:
Encarregado pelo líder do governo liberal, o Visconde de Sinimbu, o cônsul-geral do Brasil investiga a imigração chinesa nos EEUU e escreve um memorandum no qual diz que os chineses são:

"trabalhadores inteligentes, frugais e industriosos"
e que deveriam vir os de Cantão
"onde o clima é tropical, adaptar-se-iam rapidamente ao Brasil"
mas, preconizava apenas uma "emigração transitória"
porque os "chins" "não aprendem a amar a terra para a qual emigram"
além de serem falsos, desconfiados, mentirosos e concupiscentes
Fonte: SKIDMORE, Opus cit. pp.41-2.

Texto nº : Joaquim Nabuco contra a imigração chinesa (década 1880)
Natureza e data do texto:

Em O Abolicionismo (1883), acha que uma onda chinesa serviria para
"viciar e corromper ainda mais a nossa raça" (...)
E num discurso parlamentar (entre 1879-89) "Por limitada que fosse o Brasil seria inevitavelmente mongolizado, como foi africanizado, quando Salvador Correia de Sá fez vir os primeiros negros". Perdiam para os negros em adaptabilidade e no fato de que não se deixavam assimilar. Capazes de sobreviver "nas piores condições possíveis" acabariam por ocupar qualquer país em que os deixassem entrar. Era contra os chineses:
"etnologicamente , porque vêm criar um conflito de raças e degradar as existentes no país; economicamente, porque não resolvem o problema da falta de braços; moralmente porque vêm introduzir na nossa sociedade essa lepra de vícios que infesta todas as cidades onde a imigração chinesa se estabelece; politicamente, afinal, porque em vez de ser a libertação do trabalho, não é senão o prolongamento ... do triste nível moral que o caracteriza e a continuação ao mesmo tempo da escravidão."

Um deputado o apoiou: "Precisamos levantar o nível moral deste país"

E outro acrescentou: "O negro melhora-se, o chin é impossível"

Fonte: SKIDMORE, Opus cit., p.42.


PARTE II -
A questão racial na literatura naturalista

Texto nº : Tropicalização: Rita Baiana e Jerônimo
Natureza e data do texto:
Passagens do romance naturalista O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Datado de 1890, ele enfoca, todavia, a vida das camadas populares no Rio de Janeiro antes da Abolição, mais ou menos por volta de 1870-80.

VI
Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e pouco calor.
(...)
Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquela confederação da estalagem. Foi a chegada da Rita Baiana, que voltava depois de uma ausência de meses, durante a qual só dera noticias suas nas ocasiões de pagar o aluguel do cômodo. (...)
E entre a alegria levantada pela sua reaparição no cortiço, a Rita deu conta de que pintara na sua ausência; disse o muito que festou em Jacarepaguá; o entrudo que fizera pelo carnaval. Três meses de folia! E, afinal abaixando a voz, segredou às companheiras que à noite teriam um pagodinho de violão. Podiam contar como certo!
Esta última noticia causou verdadeiro júbilo no auditório. As patuscadas da Rita Baiana eram sempre as melhores da estalagem. Ninguém como o diabo da mulata para armar uma função que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a gente como foi que a noite se passou tão depressa. Além de que "era aquela franqueza! enquanto houvesse dinheiro ou crédito, ninguém morria com a tripa marcha ou com a goela seca!
(...)
Iam fazer comentários sobre o caso, mas a Rita, voltandose para o outro lado, gritou:
— Olha o velho Libório! Como está cada vez mais duro!... Não se entrega por nada o demônio do judeu!
E correu para o lugar, onde estava, aquecendose ao belo sol de abril, um octogenário, seco, que parecia mumificado pela idade, a fumar num resto de cachimbo, cujo pipo desaparecia na sua boca já sem lábios.
— Êh! êh! fez ele, quando a mulata se aproximou."
VII
(...) Nisto começou a gemer à porta do 35 uma guitarra; era de Jerônimo. Depois da ruidosa alegria e do bom humor, em que palpitara àquela tarde toda a república do cortiço, ela parecia ainda mais triste e mais saudosa do que nunca:
"Minha vida tem desgostos,
Que só eu sei compreender...
Quando me lembro da terra
Parece que vou morrer..."
E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por fim, a monótona cantiga dos portugueses enchia de uma alma desconsolada o vasto arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que vinha lá de cima, do sobrado do Miranda.
"Terra minha, que te adoro,
Quando é que eu te torno a ver?
Levame deste desterro;
Basta já de padecer."
Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos, até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiramse outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer, fazendo estalar de gozo.
E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e besouros venenosos, freneticamente, bêbedos do delicioso perfume que os mata de volúpia.
E à viva crepitação da música baiana calaramse as melancólicas toadas dos de alémmar. Assim à refulgente luz do trópicos amortece a fresca e doce claridade dos céus da Europa, como se o próprio sol americano, vermelho e esbraseado, viesse, na sua luxúria de sultão, beber a lágrima medrosa da decaída rainha dos mares velhos.
Jerônimo alheouse de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto dele sacudiu as saias e os cabelos.
— Que tens tu, Jeromo?... perguntoulhe a companheira, estranhandoo.
— Espera, respondeu ele, em voz baixa: deixa ouvir!
Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas.
Jerônimo levantouse, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade, aproximouse da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca de jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela cantiga sedutora e voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta gameleira brava o cipó flexível, carinhoso e traiçoeiro.
E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldarase nesse momento, envolvendoa na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.
Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tirilando.
Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreterse todo, a sumirse no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo os calcanhares, os braços a querer fugiremlhe dos ombros, a cabeça a querer saltarlhe. E depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre.
O chorado arrastavaos a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.
E Jerônimo via e escutava, sentindo irselhe toda a alma pelos olhos enamorados.
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meiodia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhandolhe os desejos, acordandolhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picandolhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavamse pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.
Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber. De todas as impressões daquele resto de domingo só lhe ficou no espírito o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de mel chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito alvas, cheirosas e úmidas, que ele na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre os limosos pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de saudade.
E deixavase ficar, olhando. Outras raparigas dançaram, mas o português só via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do amigo. Piedade, a cabecear de sono, chamarao várias vezes para se recolherem; ele respondeu com um resmungo e não deu pela retirada da mulher.
Passaramse horas, e ele também não deu pelas horas que fugiram.
O circulo do pagode aumentou: vieram de lá defronte a Isaura e a Leonor, o João Romão e a Bertoleza, desembaraçados da sua faina, quiseram dar fé da patuscada um instante antes de caírem na cama; a família do Miranda puserase à janela, divertindose com a gentalha da estalagem; reunira povo lá fora na rua; mas Jerônimo nada vira de tudo isso; nada vira senão uma coisa, que lhe persistia no espírito: a mulata ofegante a resvalar voluptuosamente nos braços do Firmo.
Só deu por si, quando, já pela madrugada, se calaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu à casa.
E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela cintura.
Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silêncio na sua viagem misteriosa. As janelas do Miranda fecharamse. A pedreira, ao longe, por detrás da última parede do cortiço, erguiase como um monstro iluminado na sua paz. Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se distinguiam o bruxulear dos pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murmúrios das árvores que sonhavam.
Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela música embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos, da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o coração.
E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céu, que ele nunca vira senão depois de sete horas de sono, que era já quase ocasião de entrar para o seu serviço, e resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé.
(...)
XXII
E a mísera, sem chorar, foi refugiarse, junto com a filha, no "CabeçadeGato" que, à proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais iase rebaixando acanalhado, fazendose cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legitima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma lama; paraíso de vermes, brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão."


Texto nº : Trechos de O Mulato, de Aluísio de Azevedo (1881)
Natureza e data do texto:
Passagens do romance O Mulato [1881], de Aluísio de Azevedo, obra que praticamente inicia o romance naturalista brasileiro. Passada em São Luiz do Maranhão, faz uma crítica contundente à hipocrisia e mediocridade da província, com destaque para o ataque desfechado contra a Igreja. Conta a história de um rapaz mulato, chamado Raimundo, órfão de pai e educado na Europa, o qual, ao voltar para o Brasil apaixona-se por sua prima Maria Rosa e acaba assassinado por um pretendente branco (um caixeiro português).
1
Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida as folhas das árvores nem se mexiam as carroças de água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.
(...)

Para não ficar só com a filha "que se fazia uma mulher" convidou a sogra D. Maria Bárbara a abandonar o sitio em que vivia e ir morar t com ele e mais a neta "A menina precisava de alguém que a guiasse, que a conduzisse! Um homem nunca podia servir para essas coisas! E, se fosse a meter em casa uma preceptora - Meu bom Jesus! - que não diriam por ai?... No Maranhão falavase de tudo! D. Maria Bárbara que se decidisse a deixar o mato e fosse de moda para a Rua da Estrelas! Não teria que se arrepender... havia de estar como em sua própria casa - bom quarto, boa mesa, e plena liberdade!"
A velha aceitou e lá foi, arrastando os seus cinqüenta e tantos anos, alojarse em casa do genro. com um batalhão de moleques, suas crias, e com os cacaréus ainda do tempo do defunto marido. Em breve, porém, o bom português estava arrependido do passo que dera: D. Maria Bárbara apesar de muito piedosa; apesar de não sair do quarto sem vir bem penteada, sem lhe faltar nenhum dos cachinhos de seda preta, com que ela emoldurava disparatadamente o rosto enrugado e macilento; apesar do seu grande fervor pela igreja e apesar das missas que papava por dia, D Mana Bárbara, apesar de tudo isso, sairalhe "má dona de casa".
Era uma fúria! Uma víbora! Dava nos escravos por hábito e por gosto; só falava a gritar e, quando se punha a ralhar, - Deus nos acuda! - incomodava toda a vizinhança! Insuportável!
Maria Bárbara tinha o verdadeiro tipo das velhas maranhenses criadas na fazenda Tratava muito dos avós, quase todos portugueses; muito orgulhosa; muito cheia de escrúpulos de sangue Quando falava nos pretos dizia "Os sujos" e quando se referia a um mulato dizia "O cabra". Sempre fora assim e como devota, não havia outra: Em Alcântara tivera uma capela de Santa Bárbara e obrigava a sua escravatura a rezar ai todas as noites. em coro de braços abertos às vezes algemados Lembravase com grandes suspiros do marido "do seu João Hipólito" um português fino, de olhos azuis e cabelos louros.
Este João Hipólito foi brasileiro adotivo e chegou a fazer alguma posição na secretaria do governo da província Morreu com o posto de coronel.
Maria Bárbara tinha grande admiração pelos portugueses, dedicavalhes um entusiasmo sem limites, preferiaos em tudo aos brasileiros. Quando a filha foi pedida por Manuel Pedro, então principiante no comércio da capital, ela dissera: "Bem! Ao menos tenho a certeza de que é branco!"
(...)
2
Manuel armou os óculos no nariz e leu para si a seguinte carta datada do Rio de Janeiro: "Reverendíssimo amigo e Sr. Cônego Diogo de Melo Folgamos que esta vá encontrar V. Reverendíssima no gozo da mais perfeita saúde. Temos por fim comunicar a V. Reverendíssima que, no paquete de 15 do corrente, segue para essa capital o Dr Raimundo José da Silva, de quem nos encarregou V. Reverendíssima e o Sr. Manuel Pedro da Silva quando ainda nos achávamos estabelecidos em Lisboa. Temos também a declarar, se bem que já em tempo competente o houvéssemos feito, que envidamos então os melhores esforços para conseguir do nosso recomendado ficasse empregado em nossa casa comercia! e que, visto não o conseguirmos, tomamos logo a resolução de remetêlo para Coimbra com o fim de formarse ele em Teologia, o que igualmente não se realizou, porque, feito o curso preparatório, escolheu o nosso recomendado a carreira de Direito, na qual se acha formado com distinções e bonitas notas.
Cumprenos ainda declarar com prazer a V. Reverendíssima que o Dr Raimundo foi sempre apreciado pelos seus lentes e condiscípulos e que tem feito boa figura, tanto em Portugal, como depois na Alemanha e na Suíça, e como ultimamente nesta Corte, onde, segundo diz ele, tenciona fundar uma empresa muito importante. Mas, antes de estabelecerse aqui, deseja o Dr. Raimundo efetuar nessa província a venda de terras e outras propriedades de que ai dispõe, e com esse fim segue.
Por esta mesma via escrevemos ao Sr. Manuel Pedro da Silva, a quem novamente prestamos contas das despesas que fizemos com o sobrinho. "
Seguiamse os cumprimentos do estilo.
Manuel terminada a leitura, chamou o Benedito, um moleque da casa, e ordenoulhe que fosse ao armazém saber se havia já chegado a correspondência do Sul. O moleque voltou pouco depois, dizendo que "ainda não senhor, mas que seu Dias a fora buscar ao correio".
— Homem! ele é isso!... exclamou Pescada. O rapaz está bem encaminhado, quer liquidar o que tem por cá e estabelecerse no Rio. Não! Sempre é outro futuro!.
— Ora! ora! ora! soprou o cônego em três tempos. Nem falemos nisso! O Rio de Janeiro é o Brasil! Ele faria uma grandíssima asneira se ficasse aqui.
— Se faria...
— Até lhe digo mais.. nem precisava cá vir, porque... continuou Diogo, abaixando a voz, ninguém aqui lhe ignora a biografia; todos sabem de quem ele saiu!
— Que não viesse, não digo, porque enfim.. "quem quer vai e quem não quer manda", como lá diz o outro; mas é chegar, aviar o que tem a fazer e levantar de novo o ferro!
— Ai, ai!
— E demais, que diabo ficava ele fazendo aqui? Enchendo as ruas de pernas e gastando o pouco que tem... Sim! que ele tem alguma coisinha para roer . tem aquelas moradas de casa em São Pantaleão; tem o seu punhado de ações; tem o jimbo cá na casa, onde por bem dizer é sócio comanditário, e tem as fazendas do Rosário, isto é - a fazenda, porque uma é tapera...
— Essa e que ninguém a quer!... observou o cônego, e ferrou o olhar num ponto, deixando perceber que alguma triste reminiscência o dominava.
— Acreditam nas almas doutro mundo... prosseguiu Manuel. O caso é que nunca mais consegui darlhe destino. Pois olhe, seu compadre, aquelas terras são bem boas para a cana.
O cônego permanecia preocupado pela lembrança da tapera.
— Agora... acrescentou o outro, o melhor seria que ele se tivesse feito padre.
O cônego despertou.
— Padre?!
— Era a vontade do José...
— Ora, deixese disso! retrucou Diogo, levantandose com ímpeto Nós já temos por ai muito padre de cor!
— Mas, compadre, venha cá não é isso...
— Ora o quê, homem de Deus! É só - ser padre! E no fim de contas estão se vendo, as duas por três superiores mais negros que as nossas cozinheiras! Então isto tem jeito?... O governo - E o cônego inchava as palavras - o governo devia até tomar uma medida séria a este respeito! devia proibir aos cabras certos misteres!
— Mas, compadre...
— Que conheçam seu lugar!
E o cônego transformavase ao calor daquela indignação
— E então, parece já de pirraça, bradou, é nascer um moleque nas condições deste...
E mostrava a carta, esmurrandoa - pode contarse logo com um homem inteligente! Deviam ser burros! burros! que só prestassem mesmo para nos servir! Malditos!
— Mas, compadre, você desta vez não tem razão...
— Ora o quê homem de Deus. Não diga asneiras! Pois você queria ver sua filha confessada, casada. por um negro? você queria seu Manuel que a Dona Anica beijasse a mão de um filho da Domingas? Se você viesse a ter netos queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro que esta batina? Ora, seu compadre, você às vezes até me parece tolo!
Manuel abaixou a cabeça, derrotado.
(...)

3

(...)
Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica da sua fisionomia era os olhos - grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz.
Tinha os gestos bem educados. sóbrios, despidos de pretensão, falava em voz baixa, distintamente sem armar ao efeito; vestiase com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política.
Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre povos diversos, cheia de impressões diferentes tomada de preocupações de estudos, jamais conseguira chegar a uma dedução lógica e satisfatória a respeito da sua procedência. Não sabia ao certo quais eram as circunstâncias em que viera ao mundo não sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembravase no entanto de haver saído em pequeno do Brasil e podia jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o supérfluo. Em Lisboa tinha ordem franca.
Mas quem vinha a ser essa pessoa encarregada de acompanhála de tão longe?... Seu tutor, com certeza, ou coisa que o valha, ou talvez seu próprio tio pois, quanto ao pai sabia Raimundo que já o não tinha quando foi para Lisboa. Não porque chegasse a conhecêlo, nem porque se recordasse de ter ouvido de alguém o doce nome de filho, mas sabiao por intermédio do seu correspondente e pelo que deduzia de algumas vagas reminiscências da meninice.
"Sua mãe, porem, quem seria?..." Talvez alguma senhora culpada e receosa de patentear a sua vergonha!... "Seria boa? Seria virtuosa?..."
Raimundo perdiase em conjeturas e, malgrado o seu desprendimento pelo passado, sentia alguma coisa atraílo irresistivelmente para a pátria. "Quem sabia se ai não descobriria a ponta do enigma?... Ele, que sempre vivera órfão de afeições legítimas e duradouras, como então seria feliz!... Ah, se chegasse a saber quem era sua mãe, perdoarlheia tudo, tudo!"
O quinhão de ternura, que a ela pertencia, estava intacto no coração do filho. Era preciso entregálo a alguém! Era preciso desvendar as circunstâncias que determinaram o seu nascimento!
"Mas, no fim de contas, refletia Raimundo em um retrocesso natural de impressões, que diabo tinha ele com tudo isso, se até ai, na ignorância desses fatos, vivera estimado e feliz!... Não foi decerto para semelhante coisa que viera à província! Por conseguinte, era liquidar os seus negócios, vender os seus bens e - por aqui é o caminho! O Rio de Janeiro lá estava a sua espera!
"Abriria, ao chegar lá, o seu escritório, e, ao lado da mulher com quem casasse e dos filhos que viesse a ter, nem sequer havia de lembrarse do passado!
"Sim, que mais poderia desejar melhor?... Concluíra os estudos viajara muito, tinha saúde, possuía alguns bens de fortuna. - Era caminhar pra frente e deixar em paz o tal - passado! - O passado, passado! Ora adeus!"
E, chegando a esta conclusão, sentiase feliz, independente, seguro contra as misérias da vida, cheio de confiança no futuro. "E por que não havia de fazer carreira? Ninguém podia ter melhores intenções do que ele?.. Não era um vadio, nem homem de maus instintos; aspirava ao casamento, à estabilidade; queria, no remanso de sua casa, entregarse ao trabalho sério, tirar partido do que estudara, do que aprendera na Alemanha, na França, na Suíça e nos Estados Unidos. Faltavalhe apenas vir ao Maranhão e liquidar os seus negócios. - Pois bem! cá estava - era aviar e pôrse de novo a caminho!"
Foi com estas idéias que ele chegou à cidade de São Luís. E agora, na restauradora liberdade do quarto, depois de um banho tépido, o corpo ainda meio quebrado da viagem, o charuto entre os dedos, sentia se perfeitamente feliz, satisfeito com a sua sorte e com a sua consciência
— Ah! bocejou fechando os olhos. É liquidar os negócios e pôrme ao fresco!...
E, com um novo bocejo, deixou cair ao chão o charuto, e adormeceu tranqüilamente.
No entanto, a história de Raimundo, a história que ele ignorava, era sabida por quantos conheceram os seus parentes no Maranhão.
Nasceu numa fazenda de escravos na Vila do Rosário, muitos anos depois que seu pai, José Pedro da Silva ai se refugiara, corrido do Pará ao grito de "Mata bicudo!" nas revoltas de 1831.
José da Silva havia enriquecido no contrabando dos negros da África e fora sempre mais ou menos perseguido e malquisto pelo povo do Pará; até que, um belo dia, se levantou contra ele a própria escravatura, que o teria exterminado, se uma das suas escravas mais moças por nome Domingas, não o prevenisse a tempo. Logrou passar incólume ao Maranhão, não sem pena de abandonar seus haveres e risco de cair em novos ódios, que esta província, como vizinha e tributária do comércio da outra, sustentava instigada pelo Farol contra os brasileiros adotivos e contra os portugueses. Todavia, conseguiu sempre salvar algum ouro; metal que naquele bom tempo corria abundante por todo o Brasil e que mais tarde a Guerra do Paraguai tinha de transformar em condecorações e fumaça.
A fuga fizeram eles, senhor e escrava, a pé, por maus caminhos, atravessando os sertões. Ainda não existia a companhia de vapores e os transportes marítimos dependiam então de vagarosas barcas, a vela e remo e, às vezes, puxadas a corda, nos igarapés. Foram dar com os ossos no Rosário. O contrabandista arranjouse o melhor que pôde com a escrava que :. e restava, e, mais tarde, no lugar denominado São Brás, veio a comprar uma fazendola, onde cultivou café, algodão, tabaco e arroz.
Depois de vários abortos, Domingas deu à luz um filho de José da Silva. Chamouse o vigário da freguesia e, no ato do batismo da criança, esta, como a mãe, receberam solenemente a carta de alforria.
Essa criança era Raimundo.
Na capital, entretanto, acalmavamse os ânimos. José prosperou rapidamente no Rosário; cercou a amante e o filho de cuidados; relacionouse com a vizinhança, criou amizades, e, no fim de pouco tempo, recebia em casamento a Sra. D. Quitéria Inocência de Freitas Santiago, viúva, brasileira rica, de muita religião e escrúpulos de sangue, e para quem um escravo não era um homem, e o fato de não ser branco, constituía só por si um crime.
Foi uma fera! a suas mãos, ou por ordem dela, vários escravos sucumbiram ao relho, ao tronco, à fome, à sede, e ao ferro em brasa. Mas nunca deixou de ser devota, cheia de superstições; tinha uma capela na fazenda, onde a escravatura, todas as noites com as mãos inchadas pelos bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava súplicas à Virgem Santíssima. mãe dos infelizes.
Ao lado da capela o cemitério das suas vítimas.
Casara com José da Silva por dois motivos simplesmente: porque precisava de um homem, e ali não havia muito onde escolher, e porque lhe diziam que os portugueses são brancos de primeira água.
Nunca tivera filhos Um dia reparou que o marido, a titulo de padrinho, distinguia com certa ternura, o crioulo da Domingas e declarou logo que não admitia, nem mais um instante, aquele moleque na fazenda.
— Seu negreiro! gritava ela ao marido, fula de raiva. Você pensa que lhe deixarei criar, em minha companhia, os filhos que você tem das negras?... Era só também o que faltava' Não trate de despacharme, quanto antes, o moleque, que serei eu quem o despacha, mas há de ser para ali, para junto da capela!
José, que sabia perfeitamente de quanto ela era capaz, correu logo à vila para dar as providências necessárias à segurança do filho. Mas, ao voltar à fazenda, gritos horrorosos atrairamno ao rancho dos pretos. entrou descoroçoado e viu o seguinte:
Estendida por terra, com os pés no tronco, cabeça raspada e mãos amarradas para trás, permanecia Domingos, completamente nua e com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filhinho de três anos, gritava como um possesso, tentando abraçála, e, de cada vez que ele se aproximava da mãe, dois negros, a ordem de Quitéria, desviavam o relho das costas da escrava para dardejálo contra a criança. A megera, de pé, horrível, bêbada de cólera, riase, praguejava obscenidades, uivando nos espasmos flagrantes da cólera Domingas, quase morta, gemia, estorcendose no chão O desarranjo de suas palavras e dos seus gestos denunciava já sintomas de loucura.
(...)

A morte inesperada de José causou grande abalo no irmão e ainda mais em Mariana. Raimundo era muito criança, não a compreendeu; por esse tempo teria ele cinco anos, se tanto. Vestiramno de sarja preta e disseramlhe que estava de luto pelo pai. Manuel tratou do inventário; recebeu o que lhe coube e mais a mulher na herança; depositou no recémcriado banco da província o que pertencia ao órfão e, apesar das vantagens que propôs para vender ou arrendar a fazenda de São Brás, ninguém a quis. Isto feito, escreveu logo para Lisboa, pedindo esclarecimentos à Casa Peixoto, Costa & Cia., e uma vez bem informado no que desejava, remeteu o sobrinho para um colégio daquela cidade.
Muito custou à bondosa Mariana separarse de Raimundo. Doía aquele coração amoroso ver expatriarse, assim, tão sem mãe, uma pobre criança de cinco anos. O pequeno, todavia, depois de preparado com todo o desvelo, foi metido, a chorar, dentro de um navio, e partiu.
Ia recomendado ao comandante e lamentavase muito em viagem. Quando chegou a Lisboa teve horror de tudo que o cercava. Entretanto, foi sempre bem tratado: seu correspondente hospedouo como a um parente, tratou o como filho; depois, meteuo num colégio dos melhores.
Raimundo envergou o uniforme da casa, recebeu um número, e freqüentou as aulas. A princípio, logo que o deixavam sozinho, punhase a chorar. Tinha muito medo do escuro; à noite, cosiase contra a parede, abraçado aos travesseiros. Não gostava dos outros meninos, porque lhe chamavam "Macaquinho". Era teimoso, cheio de capuchos, ressentiase muito da má educação que os portugueses trouxeram para o Brasil.
No colégio era o único estudante que se chamava Raimundo e os colegas ridicularizavamlhe o nome, "Raimundo Mundico Nico!" diziam lhe, puxandolhe a blusa e batendolhe na cabeça tosquiada à escovinha; até que ele se retirava enfiado, sem querer tomar ao recreio, a chorar e a berrar que o mandassem para a sua terra. Mas, com o tempo, apareceram lhe amigos e a vida então se lhe afigurou melhor. Já faziam as suas palestras; os companheiros não se cansavam de pedirlhe informação sobre o Brasil. "Como eram os selvagens?... E se a gente encontrava, pelas ruas, mulheres despidas: e se Raimundo nunca fora varado por alguma flecha dos caboclos."

(...)
4
(...)
Freitas passouse à janela de Raimundo, e aproveitou a oportunidade para despejar contra este uma estopada a respeito do mau serviço doméstico feito pelos escravos.
— Reconheço que nos são necessários, reconheço!... mas não podem ser mais imorais do que são!... As negras, principalmente as negras!... São umas muruxabas, que um pai de família tem em casa, e que domem debaixo da rede das filhas e que lhes contam histórias indecentes! f uma imoralidade! Ainda outro dia, em certa casa, uma menina, coitada apareceu coberta de piolhos indecorosos, que pegara da negra! Sei de outro caso de uma escrava que contagiou a uma família inteira de impigens e dartros de caráter feio! E note doutor que isto e o menos, o pior é que elas contam às suas sinhazinhas tudo o que praticam ai por essas ruas! Ficam as pobres moças sujas de corpo e alma na companhia de semelhante corja! Afiançolhe meu caro senhor doutor, que, se conservo pretos ao meu serviço, é porque não tenho outro remédio! Contudo...
(...)
Pouco depois, ouviuse um farfalhar de saias engomadas, e em seguida apresentouse a Brígida, uma mulata corpulenta a carapinha muito trançada e cheia de flores, um vestido de chita com três palmos de cauda, recendendo a cumaru. Preparavase daquele modo, para ir à sala, oferecer água. com ambas as mãos uma enorme salva de prata, cheia de copos, dirigiase a todos, um por um, a bambalear as ancas volumosas.
A criadagem de Manuel e Maria Bárbara constava, além de Brígida, e Benedito, de uma cafuza já idosa, chamada Mônica, que amamentara Ana Rosa e lavava a roupa da casa, e mais de uma preta só para engomar, e outra só para cozinhar, e outra só para sacudir o pó dos trastes e levar recados à rua. Pois, apesar deste pessoal, o serviço era sempre tardio e malfeito.
— Estas escravas de hoje tem luxos!... observou Amância em voz baixa a Maria do Carmo, apontando com o olhar para o vulto empantufado de Brígida.
E entraram a conversar sobre o escândalo das mulatas se prepararem tão bem como as senhoras. "Já se não contentavam com a sua saia curta e cabeção de renda; queriam vestido de cauda; em vez das chinelas, queriam botinas! Uma patifaria!" Depois falaram nos caixeiros, que roubavam do patrão para enfeitar as suas pininchas; e, por uma transição natural, estenderam a crítica até aos passeios a cano, às festas de largo e aos bailes dos pretos.
— Os chinfrins, como lhes chamava o meu defunto Espigão, acudiu Maria do Carmo, Conheço! ora se conheço!... Bastante quizília tivemos nós por amor deles!...
— É uma semvergonheira! Ver as escravas todas de cambraia, laços de fita, água de cheiro no lenço, a requebrarem as chandangas na dança!...
— Ah, um bom chicote!... disseram as duas velhas ao mesmo tempo
— E elas dançam direito?... perguntou a do Carmo,
— Se dançam!... O serviço é que não sabem fazer a tempo e a horas! Lá para dançar estão sempre prontas! Nem o João Enxova!
A indgnação secavalhe a voz.
— Até parecem senhoras, Deus me perdoe! Todas a se fazerem de gente! os negros a daremlhe excelência "E porque minha senhora pra cá! Vossa Senhoria pra lá!" E uma pouca vergonha, a senhora neo imagina!... Uma vez, em que fui espiar um chinfrim, porque me disseram que o meu defunto estava lá metido, fiquei pasma! E o melhor é que os descarados não se tratam pelo nome deles tratamse pelo nome dos seus senhores!... Não sabe Filomeno?... aquele mulato do presidente?... Pois a esse só davam "Sr. Presidente!" Outros são "Srs. Desembargadores, Doutores, Majores e Coronéis!" Um desaforo que deveria acabar na palmatória da polícia!
(...)
5
Era Ana Rosa. Logo que ela se recolhera ao quarto, gritara pela Mônica.
— Mãe pretinha!
Assim tratava a cafuza que a criara e que dormia todas as noites debaixo da sua rede...
— Mãepretinha! Ó senhores!
— O que é, laiá? Não se agaste!
— Você tem um sono de pedra! oh!
Deu um estalo com a língua.
— Dispame!
E estendeuse negligentemente em uma cadeira, entregando à criada os pés pequeninos e bem calçados.
Mônica tomouos, com amor, entre as suas mãos negras e calejadas; descalçoulhe cuidadosamente as botinas, sacoulhe fora as meias; depois, com um desvelo religioso, como um devoto a despir a imagem de Nossa Senhora, começou a tirar as roupas de Ana Rosa; desatoulhe o cadarço das anáguas; desapertoulhe o colete e, quando a deixou só em camisa, disse, apalpandolhe as costas:
— laiá? vos vossemecê está tão suada!...
E correu logo ao baú.
A senhora puserase a cismar, distraída, coçando de leve a cintura, o lugar das ligas e as outras partes do seu corpo que estiveram comprimidas por muito tempo. Mônica voltou com uma camisola toda cheirosa, impregnada de junco, a qual, abrindoa com os braços, enfiou pela cabeça de Ana Rosa, esta ergueuse e deixou cair a seus pés a camisa servida e conchegou a outra à pele, afagando os seus peitos virgens num estremecimento de rola. Depois suspirou baixinho e deu uma carreira para a rede, na pontinha dos pés, como se neo quisesse tocar no chão.
A cafuza ajuntou zelosamente a roupa dispersa pelo quarto e guardou as jóias.
— laiá quer mais alguma coisa?
— Água, disse a moça, aninhandose já nos lençóis defumados de alfazema. Só se lhe via a graciosa cabeça, saindo despenteada dentre nuvens de pano branco.
A cafuza trouxelhe uma bilha de água, e a senhora, depois de servida, beijoulhe a mão.
— Boas noites mãepretinha. Abaixe a luz e feche a porta.
— Deus te faça uma santa! respondeu Mônica, traçando no ar uma cruz com a mão aberta.
E retirouse humildemente, toda bons modos e gestos carinhosos.
Mônica orçava pelos cinqüenta anos; era gorda, sadia e muito asseada; tetas grandes e descaidas dentro do cabeção Tinha ao pescoço um barbante, com um crucifixo de metal, uma pratinha de 200 réis, uma fava de cumaru, um dente de cão e um pedaço de lacre encastoado em ouro. Desde que amamentara Ana Rosa, dedicaralhe um amor maternalmente extremoso, uma dedicação desinteressada e passiva. Iaiá fora sempre o seu ídolo, o seu único 'querer bem", porque os próprios filhos esses lhos arrancaram e venderam para o Sul. Dantes, nunca vinha da fonte, onde passava os dias a lavar, sem lhe trazer frutas e borboletas, o que, para a pequenina, constituía o melhor prazer desta vida. Chamavalhe "sua filha, seu cativeiro" e todas as noites, e todas as manhãs, quando chegava ou quando saia para o trabalho, lançava lhe a bênção, sempre com estas mesmas palavras: "Deus te faça uma santa! - Deus te ajude! Deus te abençoe!" Se Ana Rosa fazia em casa qualquer diabrura, que desagradasse a mãepreta, esta a repreendia imediatamente, com autoridade; desde, porém, que a acusação ou a reprimenda partissem de outro, fosse embora do pai ou da avó, punia logo pela menina e voltavase contra os mais.
Havia seis anos que era forra. Manuel deralhe a carta a pedido da filha, o que muita gente desaprovou, "terás o pago!..." diziamlhe. Mas a boa preta deixouse ficar em casa dos seus senhores e continuou a desvelarse pela laia melhor que até então, mais cativa do que nunca.
(...)
— Ora, seu Manuel! exclamou Maria Bárbara, levantandose e pousando no chão o enorme cachimbo de taquari do Pará Você às vezes tem lembranças que parecem esquecimento! Pois então, uma menina, que eu eduquei, ia olhar... - E gritou com mais forca - para quem, seu Manuel!?
— Bem, bem...
— Vejam se não é mesmo vontade de provocar uma criatura!...
— Bem, bem! Eu não digo isto para ofender!... desculpouse o negociante. Mas é que temos cá um rapaz bemaparecido, que...
— Um cabra! berrou a sogra. E era muito bem feito que acontecesse qualquer coisa, para você ter mais cuidado no futuro com as suas hospedagens! Também só nessa cabeça entrava a maluqueira de andar metendo em casa crioulos cheios de fumaças! Hoje todos eles são assim! Súcia de apistolados! Dáselhes o pé e tomam a mão! Corja! Julguese mas é muito feliz em não lhe ter recebido o coice! porém fique você sabendo que só a mim o deve!—sei a educação que dei a minha neta!... por esta respondo eu!.. E, quanto ao cabra... é tratar de despachálo já, e já, se não quiser ao depois ter de pegarse com trapos quentes!...
— Pois bem, pois bem, senhora! Amanhã mesmo tratarei disso! Oh!
E Manuel pensou logo em aconselharse com o cônego.
Ana Rosa continha o choro.
— Vou para meu quarto! disse ela, com mau modo.
— Ouça!... opôslhe o pai, detendoa. A senhora...
— Não diga asneiras!... atalhou a velha, empurrando a neta para fora. Vaite! e reza à Virgem Santíssima para que te proteja e te dê juízo!
Ana Rosa fechouse, no seu quarto, rezou muito, não quis tomar chá, e soluçou até às quatro horas da manhã.
(...)
10
(...)
Caminharam meia hora em silêncio. O dia declinava, os primeiros sintomas da noite levantavamse da tenra, como um perfume negro, as aves refugiavamse no seio embalsamado da floresta; a viração fresca da tarde eriçava os leques das palmeiras, enchendo os ares de um doce murmúrio voluptuoso.
— Tenho pairado tanto, disse por fim Raimundo com certa perplexidade, e todavia não tratei do que mais me interessa ..
— Como assim?...
— Lembrase o senhor que, outro dia, pedilhe uma conferência em seu escritório, e, ou porque o meu amigo se esquecesse, ou porque mesmo não houvesse ocasião, o certo é que não chegamos a falar, e no entanto, o assunto é de suma importância para ambos nós...
— E o que vem a ser?
— E um grande favor, que tenho a pedirlhe...
Manoel abaixou a cabeça, contrafazendo o embaraço em que se via.
— Tratase de alguma questão comercial?... perguntou.
— Não senhor; tratase de minha felicidade...
— E a mão de minha filha que deseja pedir?
— É...
— Então... tenha a bondade de desistir do pedido...
— Por quê?
— Para pouparme o desgosto de uma recusa...
— Como?!...
— É natural que o senhor se espante, concordo; doulhe toda a razão; está no seu direito! O senhor é um homem de bem, é inteligente, tem o seu saber, que ninguém lho tira, e virá sem dúvida a conquistar uma bonita posição, mas...
— Mas... Mas, o que?
— Desculpeme, se o ofende tal recusa de minha parte, mas creia, ainda mesmo que eu quisesse, não podia fazerlhe a vontade...
— Está já comprometida talvez... Bem! Nesse caso, esperarei... Restame ainda a esperança!...
— Não é isso... E peçolhe que não insista.
— Não quer separarse da menina?
— Oh! O senhor maritizame!...
— Também não é?... Então que diabo! Terei, sem saber, alguma divida de meu pai, que haja de rebentar por ai, como uma bomba?...
— Que lembrança! Se assim fosse eu seria um criminoso em não o ter nunca prevenido. O que o senhor possui está limpo e seguro! Presto contas quando quiser!...
— Ah! já sei... tomou Raimundo com um vislumbre, rindo. Não quer dar sua filha a um homem de idéias tão revolucionárias?...
— Não! não é isso! E fiquemos aqui! Sei que o senhor tem direito a uma explicação, mas acredite que, apesar da minha boa vontade, não a possa dar...
— Ora esta! Mas então por que é?...
— Não posso dizer nada, repito! E peçolhe de novo que não insista... Esta posição é para mim um sacrifício penoso, creia!
— De sorte que o senhor me recusa a mão de sua filha? Definitivamente?!
— Sinto muito, porém... definitivamente...
Calaramse ambos, e não trocaram mais palavra até à fazenda do Cancela.
12
(...)
— Oh! com efeito! O senhor torturame com as suas perguntas'. . creia que, se eu pudesse dizerlhe a causa de minha recusa, têloia feito desde logo! Oh!
Raimundo não pôde conterse e disparatou, fazendo estacar o seu cavalo.
— Mas o senhor deve compreender a minha insistência! Não se diz assim, sem mais nem menos, a um homem que vem, legitima e constenciosamente, pedir a mão de uma senhora, que a isso o autorizou. "Não lha dou, porque não quero!" Por que não quer? "Porque não! Não posso dizer o motivo!..." P boa! Tal recusa significa uma ofensa direta a quem faz o pedido! Foi uma afronta à minha dignidade. O senhor há de concordar que me deve uma resposta, seja qual for! uma desculpa! uma mentira, muito embora! mas, com todos os diabos! e necessária uma razão qualquer!
— É justo, mas...
— Se me dissesse: "Oponhome ao casamento, porque antipatizo solenemente com o seu caráter". Sim senhor! Não seda uma razão plausível, mas estaria no seu direito de pai, mas o senhor...
— Perdão! eu não podia dizer semelhante coisa depois de o haver elogiado por várias vezes, e terme declarado, como repito, seu amigo e seu apreciador...
— Mas então?! Se é meu amigo, que diabo! digame a razão com franqueza! tireme, por uma vez, deste maldito inferno da duvida! declareme o segredo da sua recusa, seja qual for, ainda que uma revelação esmagadora! Estou disposto a aceitar tudo, tudo! menos o mistério, que esse tem sido o tormento da minha vida! Vamos, fale! suplicolhe por... aquele que caiu assassinado!—E apontou na direção da cruz. Era seu irmão e dizem que meu pai... Pois bem, peçolhe por ele que me fale com franqueza! Se sabe alguma coisa dos meus antepassados e do meu nascimento, conteme tudo! Jurolhe que lhe ficarei reconhecido por isso! Ou, quem sabe? serei tão desprezível a seus olhos, que nem sequer li e mereça tão miserável prova de confiança?...
— Não! não! ao contrário, meu amigo! Eu até levaria muito em gosto o seu casamento com a minha filha, no caso de que isso tivesse lugar!... E só peço a Deus que lhe depare a ela um marido possuidor das suas boas qualidades e do seu saber; creia, porém, que eu, como bom pai, não devo, de forma alguma, consentir em semelhante união. Cometeria um crime se assim procedesse!...
— Com certeza há parentesco de irmão entre ela e eu!
— Repare que me está ofendendo...
— Pois defendase, declarando tudo por uma vez!
— E o senhor promete não se revoltar com o que eu disser?...
— Juro. Fale!
Manuel sacudiu os ombros e resmungou depois, em ar de confidencia:
— Recuseilhe a mão de minha filha, porque o senhor é... é filho de uma escrava...
— Eu?!
— O senhor é um homem de cor!... Infelizmente esta é a verdade...
Raimundo tomouse lívido. Manuel prosseguiu, no fim de um silêncio:
— Já vê o amigo que não é por mim que lhe recusei Ana Rosa mas e por tudo! A família de minha mulher sempre foi muito escrupulosa a esse respeito, e como ela é toda a sociedade do Maranhão! Concordo que seja uma asneira; concordo que seja um prejuízo tolo! o senhor porém não imagina o que é por cá a prevenção contra os mulatos!... Nunca me perdoariam um tal casamento; além do que, para realizálo, teria que quebrar a promessa que fiz a minha sogra, de não dar a neta senão a um branco de lei, português ou descendente direto de portugueses!... O senhor é um moço muito digno, muito merecedor de consideração, mas... foi forro à pia, e aqui ninguém o ignora
— Eu nasci escravo?!...
— Sim, pesame dizêlo e não o faria se a isso não fosse constrangido, mas o senhor é filho de uma escrava e nasceu também cativo.
Raimundo abaixou a cabeça. Continuaram a viagem. E ali no campo, à sombra daquelas árvores colossais, por onde a espaços a lua se filtrava tristemente, ia Manuel narrando a vida do irmão com a preta Domingas. Quando, em algum ponto hesitava por delicadeza em dizer toda a verdade, o outro pedialhe que prosseguisse francamente, guardando na aparência uma tranqüilidade fingida. O negociante contou tudo o que sabia.
— Mas que fim levou minha mãe?... a minha verdadeira mãe? perguntou o rapaz, quando aquele terminou, Mataramna? Venderam-na??? O que fizeram dela?
— Nada disso; soube ainda há pouco que está viva... E aquela pobre idiota de São Brás.
— Meu Deus! exclamou Raimundo, querendo voltar à tapera.
— Que é isso? Vamos! Nada de loucuras! Voltarás noutra ocasião!
Calaramse ambos. Raimundo, pela primeira vez, sentiuse infeliz; uma nascente má vontade contra os outros homens formavase na sua alma ate ai limpa e clara; na pureza do seu caráter o desgosto punha a primeira nódoa. E, querendo reagir, uma revolução operavase dentro dele; idéias turvas, enlodadas de ódio e de vagos desejos de vingança, iam e vinham, atirandose raivosos contra os sólidos princípios da sua moral e da sua honestidade, como num oceano a tempestade açula contra um rochedo os negros vagalhões encapelados. Uma só palavra bolava à superfície dos seus pensamentos: "Mulato". E crescia, crescia, transformandose em tenebrosa nuvem, que escondia todo o seu passado. Idéia parasita, que estrangulava todas as outras idéias.
— Mulato!
Esta só palavra explicavalhe agora todos os mesquinhos escrúpulos, que a sociedade do Maranhão usara para com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: "Ora mirese!" a razão pela qual diante dele chamavam de meninos os moleques da rua. Aquela simples palavra davalhe tudo o que ele até aí desejara e negavalhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retiravalhe a esperança de ser feliz, arrancavalhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizialhe brutalmente: "Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua mãe, lembrate bem, foi escrava! E tu também o foste!"
— Mas, replicavalhe uma voz interior, que ele mal ouvia na tempestade do seu desespero; a natureza não criou cativos! Tu não tens a menor culpa do que fizeram os outros, e no entanto és castigado e amaldiçoado pelos irmãos daqueles justamente que inventaram a escravidão no Brasil!
E na brancura daquele caráter imaculado brotou, esfervilhando logo, uma ninhada de vermes destruidores, onde vinham o ódio, a vingança, a vergonha, o ressentimento, a inveja, a tristeza e a maldade. E no circulo do seu nojo, implacável e extenso, entrava o seu país, e quem este primeiro povoou, e quem então e agora o governava, e seu pai, que o fizera nascer escravo, e sua mãe, que colaborara nesse crime. "Pois então de nada-lhe lhe valia ter sido bem educado e instruído; de nada lhe valia ser bom e honesto?... Pois naquela odiosa província, seus conterrâneos veriam nele, eternamente, uma criatura desprezível, a quem repelem todos do seu seio?.." E vinhamlhe então, nítidas 3 luz crua do seu desalento, as mais rasteiras perversidades do Maranhão; as conversas de porta de botica, as pequeninas intrigas que lhe chegavam aos ouvidos por intermédio de entes ociosos e objetos, a que ele nunca olhara senão com desprezo. E toda essa miséria, toda essa imundícia, que ate então se lhe revelava aos bocadinhos, fazia agora uma grande nuvem negra no seu espírito, porque, gota a gota, a tempestade se formara. E, no meio desse vendaval, um desejo crescia, um único, o desejo de ser amado, de formar uma família Um abrigo legítimo, onde ele se escondesse para sempre de todos os homens.
Mas o seu desejo só pedia, só queria, só aceitava Ana Rosa, como se o mundo inteiro houvera desaparecido de novo ao redor daquela Eva pálida e comovida, que lhe dera a provar, pela primeira vez, o delicioso veneno do fruto proibido.
(...)
14
Sete dias depois, morava Raimundo em uma das suas casinhas da Rua de São Pantaleão.
Vivia aborrecido; vivia exclusivamente a esperar o dia da viagem para a Corte. Nunca a província lhe parecera tão enfadonha, nem o seu isolamento tão pesado e tão triste. Não sala quase nunca à nua; não procurava pessoa alguma, nem tampouco ninguém o visitava. Diziase por aí que ele estava de cama por uma bonita sova, que lhe mandara dar o pai da namorada. "Era bem feito! Para se não fazer apresentado com uma menina branca!"
Os maldizentes, empenhados na vida dele, como se Raimundo fosse um político de quem dependesse a salvação da província, afiançavam que alguma peça estava o tratante urdindo em silêncio.
— Acreditem, exclamava um dos tais, a um grupo, que todos estes sujeitos que se fazem muito santarrões e de quem a boca do mundo nada tem que dizer, são os mais perigosos! Eu, cá por mim, não me fio de ninguém! quando vejo um tipo, julgo logo mal dele; se o traste pregame alguma, não me espanta, porque já a esperava!
— E se não prega?
— Fico na certeza de que muita coisa se faz às caladas neste Maranhão! Mas 1á acreditar em virtudes de aventureiros, isso é que nem à sétima facada!
Entretanto, Raimundo levava uma vida de degradado, sem amigos e sem carinhos de espécie alguma. No seu desterro tinha por companhia única uma preta velha, que se encarregara de servilo; magra, feia, supersticiosa arrastandose, a coxear, pela varanda e pelos quartos desertos fumando um cachimbo insuportável, e sempre a falar sozinha, a mastigar monólogos intermináveis.
Tomara embirrância por tudo e emagrecia.
(...)

Mas a avó saltavalhe logo em ama:
— Parece que ficaste meio sentida com o que se passou!... Pois Olha. se tivesse Te assistir ao teu casamento com um cabra, jurote, por esta luz que está nos alumiando, que te preferia uma boa morte, minha neta! porque sedas a primeira que na família sujava o sangue! Deus me perdoe pelas santíssimas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! gritava ela, pondo as mãos para o céu e revirando os olhos, mas tinha animo de torcer o pescoço a uma filha, que se lembrasse de tal, credo! que nem falar nisto é bom! E só peço a Deus que me leve, quanto antes, se tenho algum dia de ver, com estes que a terra há de comer, descendente meu caçando a orelha com o pé!
E, voltandose para o genro, num assanhamento crescente:
— Mas creia seu Manuel. que se tamanha desgraça viesse a suceder, só a você a deveríamos, porque, no fim das contas, a quem lembra meter em casa um cabra tão cheio de fumaças como o tal doutor das dúzias?... Eles hoje em dia são todos assim!... Dáselhes o pé e tomem a mão!... Já não conhecem o seu lugar, tratantes! Ah, meu tempo! meu tempo! que não era preciso estar cá com discussões e políticas! Fezse besta? - Rua! A porta da nua é a serventia da casa! E é o que você deve fazer, seu Manuel! Não seja pamonha! despeçao por uma vez para o Sul, com todos os diabos do inferno! e trate de casar sua filha com um branco como ela. Arre.
— Amém! disse beaticamente o cônego.
(...)
Durante aqueles dias não se falava senão em Raimundo.
— Desacreditou, para sempre, a pobre moça!... dizia um barbeiro no meio da conversa da sua loja.
— Desacreditar quis ele! responderamlhe, mas é que ela nunca lhe deu a menor confiança! Isto sei eu de fonte limpa!
Na casa da praça, afirmava um comendador, que a saída de Raimundo da casa do tio era devida simplesmente a uma ladroeira de dinheiro, perpetrada na burra de Manuel, e que este, constava, já tinha ido queixarse à polícia e que o doutor chefe procedia ao inquérito.
— É bem feito! E bem feito!... vociferava um mulato pálido, de carapinha rente, bem vestido e com um grande brilhante no dedo E muito bem feito, para não consentirem que estes negros se metam conosco!
Seguiuse um comércio rápido de olhadelas expressivas, trocadas entre os circunstantes, e a conversa torceu de rumo, indo a cair sobre as celebridades de raça escura, vieram os fatos conhecidos a respeito do preconceito da cor; citaramse pessoas gradas da melhor sociedade maranhense, que tinham um moreno bem suspeito; foram chamados à conversa todos os mulatos distintos do Brasil narrouse enfaticamente a célebre passagem do Imperador com o engenheiro Rebouças. Um sujeito, levantou pasmo da roda, nomeando Alexandre Dumas, e dando a sua palavra de honra em como Byron tinha casta.
— Ora! isso que admira?... disse um estúpido. Aqui Já tivemos um presidente tão negro como qualquer daqueles cangueiros, que ali vão com a pipa de aguardente!
— Não... rosnou convencido um velhote, que entre os comerciantes passava por homem de boa opinião Que eles têm habilidade, principalmente para a musica, isso é inegável!...
— Habilidade?... segredou outro, com o mistério de quem revela uma coisa proibida. Talento! digolhe eu! Esta raça cruzada é a mais esperta de todo o Brasil! Coitadinhos dos brancos se ela pilha uma pouca de instrução e resolve fazer uma chinfrinada. Então é que vai tudo pelos ares! Felizmente não lhe dão muita ganja!
— Aquilo, comentava Amância, boquejando esse dia, sobre o mesmo assunto, em casa de Eufrásia; aquilo não podia ter outro resultado! Cá está quem não poria lá mais os pezinhos, se o basbaque do Pescada metesse o cabra na família!
— Ora não é também tanto assim!... objetava a quente viúva. Conheço certa gente, que se faz muito de manto de seda e que, no entanto, vai filar constantemente o jantar dos cabras que passam bem. A questão é de boa mesa!
— O quê? berrou a velha, pondo as mãos nas cadeiras. Isso é uma indireta?! comigo?!...
E subiulhe uma roxidão às faces.
— Diga! exclamou. Pois diga! Quero que diga qual foi o negro a quem Amância Diamantina dos Prazeres Sousella, neta legítima do Brigadeiro Cipião Sousella, conhecido pelo "Corisco" na Guerra dos Guararapes, desse algum dia a confiança de ocupar! Eu?!... Até brada ao céu! Qual foi o cabra com quem a senhora já me viu de mesa?!...
(...)
[conversa entre Sebastião Campos e Casusa]
— Então que há de novo por aí? perguntou.
— Tudo velho... Você vai se chegando pra casa..
— Humhum, afirmou o Campos com a garganta. Chegou o vapor do Pará?
— Chegou; sai amanhã para o Sul às nove. E verdade! o Mundico vai nele, sabe?
— É! Ouvi dizer que tinha brigado com o Pescada.
— Brigou, hein?...
— Diz que por causa de dinheiro, que Raimundo pediralhe certa quantia emprestada, e, como o outro negara, disparatou!
— Homem! não sei se pediu dinheiro, mas a filha sei, por fonte limpa, que pediu!
— E o galego?
— Negoua! diz que porque o outro e mulato!
— Sim, em parte... aprovou Sebastião
— Ora, deixe disso, seu Campos! Não sei se é porque não tenho irmãs, mas o que lhe asseguro é que preferia o doutor Raimundo da Silva a qualquer desses chouriços da Praia Grande.
— Não! lá isso é que não Preto é preto! branco é branco! Nada de confusões!
(...)
15
(...)
Ana Rosa, quando tornou a si do espasmo em que a prostara a visita de Raimundo, chorou copiosamente e depois encerrouse na alcova com a carta, que ele lhe dera. Abriua logo, mas sem nenhuma esperança de consolo.
Entretanto, a carta dizia:
"Minha amiga,
Por mais estranho que te pareça, juro que te amo ainda, loucamente mais do que nunca, mais do que eu próprio imaginava se pudesse amar; falote assim agora, com tamanha franqueza, porque esta declaração já em nada poderá prejudicarte, visto que estarei bem longe de ti quando a leres Para que não te arrependas de me haver escolhido por esposo e não me crimines a mim por me ter portado silencioso e covarde, defronte da recusa de teu pai, sabe minha querida amiga, que
o pior momento da minha pobre vida foi aquele em que vi fugirte para sempre. Mas que fazer? - eu nasci escravo e sou filho de uma negra. Empenhei a teu pai minha palavra em como nunca procuraria casar contigo; bem pouco porém me importava o compromissos que não teria eu sacrificado pelo teu amor? Ah! mas é que essa mesma dedicação seria a tua desgraça e transformaria o meu ídolo em minha última a sociedade apontarteia como a mulher de um mulato e nossos descendentes teriam casta e seriam tão desgraçados quanto eu! Entendi pois que, fugindo, te daria a maior prova do meu amor. E vou, e parto, sem te te levar comigo, minha esposa adorada, entremecida companheira dos meus sonhos de ventura! Se pudesse avaliar quanto sofro neste momento e quanto me custa a ser forte e respeitar o meu dever; se soubesses quando me pesa a idéia de deixarte, sem esperança de tornar a teu lado—tu me abençoarias, meu amor!
E adeus. Que o destino me arraste para onde se quiser, serás sempre o imaculado arcanjo a quem votarei meus dias; ser a minha inspiração, a luz da minha estrada; eu serei bom, porque existes.
Adeus, Ana Rosa.
Teu escravo
RAIMUNDO. "
Ao terminar a leitura, Ana Rosa levantouse transformada. Uma enorme revolução se havia operado nela; como que vingava e crescialhe por dentro uma nova alma, transbordante. "Ah! Ele amavame tanto e fugia com o segredo, ingrato! Mas por que não lhe dissera logo tudo aquilo com franqueza?..." E saltava pelo quarto como uma criança, a rir, com os olhos arrasados de água. Foi ao espelho, sorriu para a sua figura abatida, endireitou estouvadamente o penteado, bateu palmas e soltou uma risada. Mas, de improviso, lembrouse de que o vapor podia ter já partido, estremeceu com um sobressalto, o coração palpitoulhe forte, com um aneurisma prestes a rebentar.
(...)
Então, sou tua! Olha, saiamos daqui! já! fujamos! Levame para onde quiseres! Fazer de mim o que entenderes!
E deixou cair o rosto sobre o peito dele, e abraçou o estreitamente
Raimundo estava imóvel, medroso de sucumbir, entalado numa profunda comoção.
— Decide! exigiiu ela, soltandoo.
Ele não respondeu. Ofegava.
— Pois olha, se não quiseres fugir, farei acreditar a meu pai que és um infame! Tens medo, não é verdade?um . pois bem, eu lhe direi tudo que me vier à cabeça chamarei sobre ti todo o ódio e toda a responsabilidade, meu amor! porque tu és um homem mau, Raimundo, e meu pai acreditara facilmente que abusaste da hospitalidade que ele te deu. És um miserável. Sai daqui.
Raimundo preciptouse contra a porta. Ana Rosa atirouselhe de novo ao pescoço soluçando.
— Perdoa meu amor! eu não, sei o que estou dizendo! Desculpame tudo isto, meu querido, meu senhor! Reconheço que és o melhor dos homens mas não partas, eu te suplico pelo que mais amas! Sei ,que é o teu orgulho que me faz mau; tens toda razão, mas não me abandoes! Eu morreria, Raimundo, porque te amo muito, muito! e nós mulheres, não temos como tu tens, outras ambições além do amor da pessoa que idolatramos! Bem vês! Eu sacrifico tudo por ti; mas não partas, tem piedade! Sacrifica também alguma coisa por mim! não sejas egoísta! não fujas! É o orgulho! mas que nos importa os outros, procuro agradar! Anda! Levame contigo! Eu desprezarei tudo; mas preciso ser tua, Raimundo, preciso pertencerte exclusivamente.
E Ana Rosa caiu de joelhos, sem se desgarrar do corpo dele.
— É uma escrava que chora a teus pés! é uma desgraçada que precisa de tua compaixão! Sou tua! aqui me tens, meu senhor, amame! Não me abandones!
E soluçou, empalmado o rosto com as mãos. Raimundo, procurando erguêla, vergavase todo sobre ela. E o contato sensual daquela carne branca dos braços e do colo da rapariga, e o sarrafaçar daqueles lábios em brasa, e a proibição de tocar em todo aquele tesouro proibido, fustigavamlhe o sangue e punhamlhe a cabeça a rodar, numa vertigem.
— Meu Deus! Ó Ana Rosa, não chores! Levantate pelo amor de Deus!
Ana Rosa continuava a chorar, e um tremor nervoso percorria o corpo inteiro de Raimundo. Foi nessa ocasião que a lanchinha do Portal soltou o seu primeiro sibilo, chamando os passageiros retardados; e aquele grito, penetrante impertinente chegou aos ouvidos do rapaz, ali, na doce reclusão daquele quarto, como uma nota destacado do coro de imprecações com o público maranhense, formigando lá fora nas ruas, aplaudia a sua retirada da província. Ele um relance mediu a situação, calculou a conseqüências ridículas da sua franqueza, lembrouse das palavras de Manuel, e afinal o seu orgulho rebentou com impetuosidade de um temporal.
— Não, gritou, repelindo bruscamente a moça.
Precipitouse para a saída.
(...)
19

(...)
Mas, no patamar da escada, teve de esperar um instante que descesse um casal que se despedia. Adivinhavase que era gente de consideração pelo riso afetuoso com que todos o cumprimentavam; muitos se arredavam pressurosos, para lhe dar passagem. O próprio presidente acompanharao até ali e agradecia lhe o obséquio do comparecimento ao baile, com um enérgico aperto de mão, à inglesa.
O par festejado eram o Dias e Ana Rosa, casados havia quatro anos. Ele deixara crescer o bigode e aprumarase todo; tinha até certo emproamento ricaço e um ar satisfeito e alinhado de quem espera por qualquer vapor o hábito da Rosa; a mulher engordara Um pouco em demasia, mas ainda estava boa, bem torneada, com a pele limpa e a came esperta.
Ia toda se saracoteando muito preocupada em apanhar a cauda do seu vestido, e pensando, naturalmente, nos seus três fiihinhos, que ficaram em casa a dormir.
— Grand'chaine, double, serré! berravam nas salas
O Dias tomara o seu chapéu no corredor e, ao embarcar no carro, que esperava pelos dois lá embaixo, Ana Rosa levaramlhe carinhosamente a gola da casaca.
Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!...
- FIM-

Texto nº : Trechos de O Bom Crioulo (1895), de Adolfo Caminha
Natureza e data do texto:
Passagens do romance naturalista O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha (1867-1897), publicado em 1895, embora a trama se passe antes da Proclamação da República. Adolfo Caminha, ao contrário de Aluísio de Azevedo, é ignorado pelas antologias escolares. Durante a sua curta vida (morreu com 30 anos) foi um rebelde: assinou manifestos contra a chibata (que só iria ser abolida em 1910), fugiu com uma mulher casada, recusou-se a aceitar ordens do Ministro da Marinha (o que levou à sua exoneração) e nunca conseguiu sentir-se à vontade nas "igrejinhas" de literatos do seu tempo. Seus outros três títulos são A Normalista (1893), Cartas literárias (1895) e Tentação (1896).
1
A velha e gloriosa corveta – que pena – já nem sequer lembrava o mesmo navio d'outrora, sugestivamente pitoresco, idealmente festivo, como uma galera de lenda, branca e leve no mar alto, grimpando serena o corcovo das ondas!...
Estava outra, muito outra com seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo, sem aquele esplêndido aspecto guerreiro que entusiasmava a gente nos bons tempos de 'patescaria'. Vista ao longe, na infinita extensão azul, dir-se-ia, agora, a sombra fantástica de um barco aventureiro. Toda ela mudada, a velha carcaça flutuante, desde a brancura límpida e triunfal das velas té à primitiva pintura do bojo.
No entanto ela aí vinha – esquife agourento – singrando águas da pátria, quase lúgubre na sua marcha vagarosa; ela aí vinha, não já como uma enorme garça branca flechando a líquida planície, mas lenta, pesada, como se fora um grande morcego apocalíptico de asas abertas sobre o mar.
(...)
Marinheiros conversavam à proa, sentados uns no castelo, outros em pé, colhendo cabos ou estendendo roupa ao sol, tranqüilamente, esquecidos da faina. As chapas dos mastros, a culatra das peças, varais de escotilha, tudo quanto é aço e metal amarelado reluz fortemente, encandeando a vista.
De vez em quando há um grande rebuliço: a mastreação geme, como se fora desprender-se toda, o pano bate com força de encontro às vergas, chocam-se cabos com um ruidozinho seco, e ouve-se o cachoeirar da água no bojo da velha nau.
Agüenta! Diz uma voz.
E volta o sossego e continua a pasmaceira, o tédio, a calmaria sem fim...
Já os primeiros sintomas de indolência refletiam-se no semblante da gente, convertendo-se em bocejos e espreguiçamentos de sesta, e ainda ficavam tão longe as montanhas da costa e os carinhos



PARTE III -
A questão racial durante a Primeira República (1889-1930)

Texto nº : Os Sertões (1902) - trechos sobre a questão racial
Natureza e data do texto:
Passagens de Os Sertões, de Euclides da Cunha, republicano fervoroso que faz um verdadeiro mea culpa depois de inicialmente retratar a campanha de Canudos em textos jornalísticos como uma defesa contra uma tentativa de derrubar o regime, anos depois retoma o tema com outra perspectiva no livro em questão, denunciando-a como um crime. Canudos passa a ser um episódio revelador dos impasses da nação brasileira, devidos, entre outras coisas, à questão racial, problematizada desde o início do seu texto, como se pode ver abaixo.

Nota Preliminar
Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este livro, que a princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade, remorada a sua publicação em virtude de causas que temos por escusado apontar.
Demos -lhe, por isto, outra feição, tomando apenas variante de assunto geral o tema, a princípio dominante, que o sugeriu.
Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E fazêmo-lo porque a sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tomam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra.
O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em breve tipos relegados às tradições evanescentes, ou extintas.
Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada, o equilíbrio, que Ihes não permite mais a velocidade adquirida pela marcha dos povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo.
A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável "força motriz da História" que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.
A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico, dos princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã — tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além disto, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histórica — o tempo.
Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.
(...)

Euclides da Cunha.
São Paulo, 1901
O HOMEM

I. Complexidade do problema etnológico no Brasil. Variabilidade do meio físico e sua reflexão na História. Ação do meio na fase inicial da formação das raças. A formação brasileira no Norte.
II. Gênese dos jagunços; colaterais prováveis dos paulistas. Função histórica do rio S. Francisco. O vaqueiro, mediador entre o bandeirante e o padre. Fundações jesuíticas na Bahia. Um parêntesis irritante. Causas favoráveis à formação mestiça dos sertões, distinguindo-a dos cruzamentos no litoral. Uma raça forte.

III. O sertanejo. Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho. Os vaqueiros. Servidão inconsciente; vida primitiva. A vaquejada e a arribada. Tradições. A seca. Insulamento no deserto. Religião mestiça: seus fatores históricos. Caráter variável da religiosidade sertanejo: a Pedra Bonita e Monte Santo. As missões atuais.
IV. Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo. Um gnóstico bronco. Grande homem pelo avesso, representante natural do meio em que nasceu. Antecedentes de família: os Maciéis. Uma vida bem auspiciada. Primeiros reveses; e a queda. Como se faz um monstro. Peregrinações e martírios. Lendas. As prédicas. Preceitos de montanista. Profecias. Um heresiarca do século 2 em plena idade moderna. Tentativa de reação legal. Hégira para o sertão.
V. Canudos — antecedentes — aspecto original — e crescimento vertiginoso. Regimen da urbs. Polícia de bandidos. População multiforme. O templo. Estrada para o céu. As rezas. Agrupamentos bizarros. Por que não pregar contra a República ? Uma missão abortada. Maldição sobre a Jerusalém de taipa.
Capítulo I

Complexidade do problema etnológico no Brasil
Adstrita às influências que mutuam, em graus variáveis, três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos.
Está apenas delineado.
Entretanto no domínio das investigações antropológicas brasileiras se encontram nomes altamente encarecedores do nosso movimento intelectual. Os estudos sobre a préhistória indígena patenteiam modelos de obervação sutil e conceito critico brilhante, mercê dos quais parece definitivamente firmado, contravindo ao pensar dos caprichosos construtores da ponte alêutica, o autoctonismo das raças americanas.
Neste belo esforço, rematado pela profunda elaboração paleontológica de Wilhelm Lund, destacamse o nome de Morton, a intuição genial de Frederico Hartt, a inteiriça organização cientifica de Meyer, a rara lucidez de Trajano de Moura, e muitos outros cujos trabalhos reforçam os de Nott e Gordon no definir, de uma maneira geral mas completa, a América como um centro de criação desligado do grande viveiro da Ásia Central. Erigese autônomo entre as raças o homo americanus.
A face primordial da questão ficou assim aclarada. Que resultem do "homem da Lagoa Santa" cruzado com o précolombiano dos sambaquis; ou se derivem, altamente modificados por ulteriores cruzamentos e pelo meio, de alguma raça invasora do Norte, de que se supõe oriundos os tupis tão numerosos na época do descobrimento — os nossos silvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes de velhas raças autóctones da nossa terra.
Esclarecida deste modo a preliminar da origem do elemento indígena, as investigações convergiram para a definição da sua psicologia especial; e enfeixaramse, ainda, em algumas conclusões seguras.
Não precisamos revivê-las. Sobre faltarnos competência. nos desviaríamos muito de um objetivo prefixado.
Os dois outros elementos formadores, alienígenas, não originaram idênticas tentativas. O negro banto, ou catre, com as suas várias modalidades, foi até neste ponto o nosso eterno desprotegido. Somente nos últimos tempos um investigador tenaz, Nina Rodrigues, subordinou a uma análise cuidadosa a sua religiosidade original e interessante. Qualquer, porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe, certo, os atributos preponderantes do homo afer, filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força.
Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos liga à vibrátil estrutura intelectual do celta, está, por sua vez, malgrado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo caracterizado.
Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico diferenciados — e ainda, sob todas as suas formas; as condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram. No considerar, porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamento de tipos antropológicos de graus díspares nos atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável, capaz de diversos climas, tendo discordantes aspectos e apostas condições de vida, pode afirmarse que pouco nos temos avantajado. Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, traduzindo sério problema; mas não desvendamos todas as incógnitas.
É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns diante de outros o negro banto, o indoguarani e o branco, apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é abstrata e irredutível. Não nos diz quais os reagentes que podem atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o extingam ou atenuem quando ao contrário da combinação binária, que pressupõe, despontam três fatores diversos, adstritos às vicissitudes da história e dos climas.

É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade. Modifica-se, como todas as leis, à pressão dos dados objetivos. Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse aplicála, de todo despeada da intervenção daqueles, não simplificaria o problema.
É fácil demonstrar.
Abstraiamos de inúmeras causas perturbadoras, e consideremos os três elementos constituintes de nossa raça em si mesmos, intactas as capacidades que Ihes são próprias.
Vemos, de pronto, que. mesmo nesta hipótese favorável, deles não resulta o produto único imanente às combinações binárias, numa fusão imediata em que se justaponham ou se resumam os seus caracteres, unificados e convergentes num tipo intermediário. Ao contrário a combinação ternária inevitável determina, no caso mais simples, três outras, binárias. Os elementos iniciais não se resumem, não se unificam; desdobramse; originam número igual de subformações — substituindose pelos derivados, sem redução alguma, em uma mestiçagem embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mamaluco ou curiboca e o cafuz . As sedes iniciais das indagações deslocamse apenas mais perturbadas, graças a reações que não exprimem uma redução, mas um desdobramento. E o estudo destas subcategorias substitui o das raças elementares agravandoo e dificultandoo, desde que se considere que aquelas comportam, por sua vez, inúmeras modalidades consoante as dosagens variáveis do sangue.
O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima firmado, só pode surdir de um entrelaçamento consideravelmente complexo.

Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos do mulato, do curiboca e do cafuz.
Avaliandose, porém, as condições históricas que têm atuado, diferentes nos diferentes tratos do território; as disparidades climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente suportadas pelas raças constituintes; a maior ou menor densidade com que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendose ainda à intrusão — pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias — de outros povos, fato que por sua vez não foi e não é uniforme, vêse bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa, senão absurda.
Como quer que seja, estas rápidas considerações explicam as disparidades de vistas que reinam entre os nossos antropólogos. Forrandose, em geral, à tarefa penosa de subordinar as suas pesquisas a condições tão complexas, têm atendido sobremaneira ao preponderar das capacidades étnicas. Ora, a despeito da grave influência destas, e não a negamos, elas foram entre nós levadas ao exagero, determinando a irrupção de uma meiaciência difundida num extravagar de fantasias, sobre ousadas, estéreis. Há como que um excesso de subjetivismo no animo dos que entre nós, nos últimos tempos, cogitam de coisas tão sérias com uma volubilidade algo escandalosa, atentas as proporções do assunto. Começam excluindo em grande parte os materiais objetivos oferecidos pelas circunstâncias mesológica e histórica. Jogam, depois, e entrelaçam, e fundem as três raças consoante os caprichos que os impelem no momento. E fazem repontar desta metaquímica sonhadora alguns precipitados fictícios.
Alguns firmando preliminarmente, com autoridade discutível, a função secundária do meio físico e decretando preparatoriamente a extinção quase completa do silvícola e a influência decrescente do africano depois da abolição do tráfico, prevêem a vitória final do branco, mais numeroso e mais forte, como termo geral de uma série para o qual tendem o mulato, forma cada vez mais diluída do negro, e o caboclo, em que se apagam, mais depressa ainda, os traços característicos do aborígine.
Outros dão maiores largas aos devaneios. Ampliam a influência do último. E arquitetam fantasias que caem ao mais breve choque da crítica: devaneios a que nem faltam a metrificação e as rimas porque invadem a ciência na vibração rítmica dos versos de Gonçalves Dias.
Outros vão terra a terra de mais. Exageram a influência do africano, capaz, com efeito, de reagir em muitos pontos contra a absorção da raça superior. Surge o mulato. Proclamamno o mais característico tipo da nossa subcategoria étnica.
O assunto assim vai derivando multiforme e dúbio.
Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de um tipo étnico único, quando há, certo, muitos.
Não temos unidade de raça.
Não a teremos, talvez, nunca.
Predestinamonos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evoluç o social.
Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos.
A afirmativa é segura.
Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforçaa outro elemento igualmente ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações históricas, que dele em grande parte decorreram.
A este propósito não será desnecessário considerálo por alguns momentos.

Texto nº : A República dos doutores
Natureza e data do texto:
Passagens do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha [1909], de Lima Barreto Lima Barreto (1881-1922). Neste, o autor conta as desventuras de um estudante negro que vem para a capital do país para se formar em Engenharia e acaba trabalhando em um jornal. Trecho retirado do capítulo I.
"As cigarras puseram-se a estridular e vim vindo de cabeça baixa, sem apreensões, cheio de esperanças, exuberante de alegrias.
A minha situação no Rio estava garantida. Obteria um emprego. Um dia pelos outros iria às aulas, e todo o fim de ano, durante seis, faria os exames, ao fim dos quais seria doutor !
Ah ! Seria doutor ! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício presente, cruciante e onímodo de minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta*, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro.
O flanco, que a minha pessoa, na batalha da vida, oferecia logo aos ataques dos bons e dos maus, ficaria mascarado, disfarçado...
Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos... Era um pallium** [manto usado pelos gregos antigos], era alguma coisa como clâmide [tipo de capote usado pelos antigos gregos] sagrada tecida com fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-intanha antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou ? Como está, doutor ? Era sobre-humano !..." (...)
"Almocei, saí até a cidade próxima para fazer as minhas despedidas, jantei e, sempre, aquela visão doutoral não me deixava. Uma face dela me aparecia, depois outra mais brilhante; esta provocava uma consideração, aquela mais uma propriedade da carta onipotente. De noite, no teto da minha sala baixa, pelos portais, pelas paredes, eu via escrito pela luz do lampião de petróleo - Doutor! Doutor!
Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, esse título dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o diploma. Pus-me a considerar que isso devia ser antigo... Newton, César, Platão e Miguel Ângelo deviam ter sido doutores!
Foram os primeiros legisladores que deram à carta esse prestígio extra-terrestre... Naturalmente, teriam escrito nos seus códigos: tudo o que há no mundo é propriedade do doutor, e se alguma coisa outros homens gozam, devem-no à generosidade do doutor. Era uma outra casta, para a qual eu entraria, e desde que penetrasse nela, seria de osso, sangue e carne diferente dos outros - tudo isso de uma qualidade transcendente, fora das leis gerais do Universo e acima das fatalidades da vida comum.
- Levas toda a roupa, Isaías ? Veio interromper minha mãe.
(...). Eu devaneava e ia-lhe vendo o perfil esquálido, o corpo magro, premido de trabalhos, as faces cavadas, com os maxilares salientes, tendo pela pele parda manchas escuras, como se fossem de fumaça entranhadas." (...) "Aos seus olhos - muitas vezes se me veio a afigurar - eu era como uma rapariga, do meu nascimento e condição, extraordinariamente bonita, vivaz e perturbadora... Seria demais tudo isso; cercá-la-ia logo o ambiente de sedução e corrupção, e havia de acabar por aí, por essas ruas..."
"- Vai, meu filho, disse-me ela afinal. Adeus!... E não te mostres muito, porque nós..."
* Carta: Diploma; documento oficial, que atribui a alguém um cargo ou título, ou um privilégio. (N.E.)
** Pallium: Forma latina de pálio, manto usado pelos gregos antigos. (N.E.)

Texto nº : Pixinguinha e o lugar do negro
Natureza e data do texto:
Passagem de uma entrevista de Pixinguinha (1897-1973) ao antropólogo João Baptista Borges Pereira, citada por LOPES,Gustavo, Samba e Mercado de Bens Culturais (Rio de Janeiro, 1910-1940). Dissertação de Mestrado em História. Niterói,2001. Mimeo. pp.43-44.
"Naquele tempo não havia clubes dançantes. Os bailes eram feitos em casa de família. Em casa de preto a festa era na base do choro e do samba. Numa festa de preto havia o baile mais civilizado na sala de visitas, o samba nas salas dos fundos e a batucada no terreiro. Era lá que se formavam e se ensaiavam os ranchos. A maioria dos sambistas e dos chorões era de cor. Branco quase não havia. Comecei minha carreira de músico aos 15 anos, ganhando 8 mil réis por mês. Tocava nas 'casas de chope', que eram as boites de antigamente. As 'casas de chope' funcionavam das 20 às 24 horas. Vez por outra tocava como profissional, em festas dançantes. Depois de 1920, formamos um conjunto – Os Oito Batutas – com companheiros de festas e de serenatas. Com este conjunto começamos a ser aceitos em festas familiares de gente elegante, porque o Arnaldo Guinle, o Lineu de Paula Machado e o Floresta Miranda abriam com seu prestígio o caminho para nós. Depois o Guinle arrumou uma viagem do conjunto para a França. Após o sucesso na Europa a nossa música começou a ser aceita e começamos a receber convites para trabalhar. No Rio, logo que chegamos, o Dr. Roquette Pinto nos convidou para audições na Rádio. Isto foi em 1924 mais ou menos. A que seria a Rádio Sociedade estava funcionando provisoriamente num pavilhão. Acho que fomos os primeiros pretos a entrar para a rádio tocando música popular. Havia lá uma cantora mulata mas ela cantava música fina. Depois fomos para São Paulo. Fizemos uma temporada lá em um café elegante, que chegou a parar o trânsito. Depois vieram os cinemas mudos. Cinema de luxo tinha duas orquestras: uma ao pé da tela, para acompanhar o roteiro do filme; outra na sala de visitas para entreter os freqüentadores. Negro não era aceito na segunda orquestra. Lembro-me que os únicos pretos que tocavam no Cinema Palais era um tal de Mesquita (violonista) e um tio dele (violoncelista). Ambos haviam estudado na Europa, tinham chegado de lá com fama e só tocavam música erudita. Nós começamos a tocar nesse Cinema porque começamos a ser exigidos pelo público freqüentador. Depois surgiu a propaganda, o rádio se firmou, a nossa música ganhava cada vez mais prestígio e eu fui subindo com ela. A partir de 1925, também as minhas composições começaram a ser gravadas. As gravadoras foram ficando mais comerciais e estavam preocupadas em explorar o gosto do público. Mas o negro não era aceito com facilidade. Havia muita resistência. Eu nunca fui barrado por causa da cor, porque eu nunca abusei. Sabia onde não recebiam pretos. Onde recebiam eu ia, onde não recebiam, não ia. Nós sabíamos desses locais proibidos porque um contava para o outro. O Guinle muitas vezes me convidava para ir a um ou outro lugar. Eu sabia que o convite era por delicadeza e sabia que ele esperava que eu não aceitasse. E assim por delicadeza também não aceitava. Quando era convidado para tocar em tais lugares, eu tocava e saía. Não abusava do convite."

PARTE IV -
A questão racial durante o primeiro governo Vargas (1930-1945)




PARTE V - A questão racial pós-1945

Texto nº : 'Grande' e o ódio aos brancos
Natureza e data do texto:
Passagem do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, publicado em 1997 (Companhia das Letras).p.206. O livro se baseia em pesquisa etnográfica desenvolvida sob a coordenação da antropóloga Alba Zaluar.
"Havia se escondido em quase todo o Rio de Janeiro, dos morros da Zona Sul até a Zona Norte, mas a polícia já o encontrara em todos eles. Por esse motivo, chegara ao morro do Juramento, no subúrbio da Leopoldina, dando tiro em tudo quanto era bandido, derrubando barraco aos pontapés, gritando que quem mandava ali agora era o Grande: o Grande que tomou a maioria das bocas-de-fumo da Zona Sul; o Grande de quase dois metros de altura, com disposição para encarar cinco ou seis homens na mão de uma só vez; o Grande que tinha uma metralhadora conseguida na marra de um fuzileiro naval em serviço na praça Mauá; (...) o Grande que matava policiais por achar a raça mais filha da puta de todas as raças, essa raça que serve aos brancos, essa raça de pobre que defende os direitos dos ricos. Tinha prazer em matar branco, porque o branco tinha roubado seus antepassados da África para trabalhar de graça, o branco criou a favela e botou o negro para habitá-la, o branco criou a polícia para bater, prender e matar o negro. Tudo, tudo que era bom era dos brancos. O presidente da República era branco, o médico era branco, os patrões eram brancos, o vovô-viu-a-uva do livro de leitura da escola era branco, os ricos eram brancos, as bonecas eram brancas e a porra desses crioulos que viravam polícia ou que iam para o Exército tinha mais era que morre igual a todos os brancos do mundo."

Texto nº : O 'Arrastão' de 1992 segundo um jovem de Vigário Geral
Natureza e data do texto:
Passagem do artigo "Bonde do mal" de Olívia Maria Gomes da Cunha, publicado em MAGGIE,Y. e REZENDE,C.B. Raça como retórica – a construção da diferença. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira,2002.pp.85-86.

"Carioca. [Do tupi Kari'oka, 'casa do branco'.] De, ou pertencente ou relativo à cidade do Rio de Janeiro.
"Era mais ou menos umas onze, dez onze horas por aí. Nós levamos até instrumento, sabe... nós ia bater um pagode na praia e tudo. Começou assim: nós chegamos na praia e pá... sentamos, começamos a bate o pagode. Nego já começou a olhar pra gente assim. Nós chegamos na moral e os polícia começou a olhar pra gente assim... os caras com aquelas bermudinhas assim azul, revólver, aquelas camisetas escrito 'Eu cuido de você' não, 'Eu quero te bater', eles fala assim. Aí ficaram olhando pra gente assim. Nós começamos a bater o pagode e falaram que é bagunça: 'pode parar'. Aí tomou os instrumentos da gente... Aí tudo bem. Sentamos. Nesse tempo eu já cantava rap. Todo mundo cantando. Daí a um pouquinho volta[m]: 'Aí, vamos parar com a bagunça. Vai parando logo, vai se destacando aí. Vai dando um role.' E começou a bicar nego. Já tava começando a olhar a gente de cara feia... o cara já tinha tomado os instrumentos da gente. Aí foi quando a poeira subiu lá embaixo e eu falei 'que é que é isso mano ?' Todo mundo começou a olhar e todo mundo amarrando as coisas na cintura. De repente um cara [gritou] 'Olha lá os alemão'. Todo mundo correu pra lá e a gente perguntou '[o] que é que vocês quer ?'. Eles [os alemães] disse, 'a gente quer passar'. Aí começaram a pegar aqueles vidro e tacar. Foi nego tacando areia. 'Tem arma', gritaram. E todo mundo correndo pra lá. Só sei que o cara comeu garrafa, comeu areia, comeu pedrada. Os homem veio correndo dando tiro, nego correu pra cima da calçada. Todo mundo correu pra dentro da praia. Tinha gringo e o caramba na praia nesse dia. Só sei que os gringo ficou em pânico, pegou as coisas e ficou agachadinho na areia assim. E eu disse: 'É, mané, é agora...' os homens vinham... e os repórteres tudo atiçando: 'Vai bater naquele ali, tá tacando mais pedras do que vocês!' Quando vai ver: arrastão de praia. Que eu saiba, arrastão é roubo, né ? Como é que não roubaram nada nesse dia ? Nesse dia foi só tumulto, mas arrastão não teve não."















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