Aprendendo com as acerolas

May 26, 2017 | Autor: Gutemberg Guerra | Categoria: Epistemologia, Metodologia, Observação direta
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In: SOUTO Francisco José Bezerra; DUQUE-BRASIL, Reinaldo; SOLDATI, Gustavo Taboada; MING, Lin Chau; COSTA NETO, Eraldo Medeiros (Org.). 'Quando pensa que não...' Contos, causos e crônicas em Etnoecologia v. II. 1ed. Feira de Santana: Zarte Editora, 2016, v. 2, p. 8890.

Aprendendo com as acerolas Gutemberg Armando Diniz Guerra1

Amanheci olhando o jardim, árvore por árvore, para fazer a colheita matinal sobre a relva orvalhada. Doces cajus (Anacardium occidentale, L) espatifados pela queda das alturas dos galhos mais elevados foram selecionados, uns para o monte de compostagem, outros para servirem de matéria prima para suco do desjejum matinal. Uns caidos por eles mesmos, outros pela ação dos papagaios, em bandos, aproveitando de sua doçura e imaturidade de suas castanhas. Mangas (Mangífera indica, L), da mesma forma, selecionadas as ainda que estivessem sem ruturas na casca por conta da precipitação sem paraquedas, estas para a sobremesa e merenda, e outras, furadas pelos pássaros ou com fissuras no pericarpo, lançadas no monturo. Do único pé de acerolas (Malpighia emarginata), mal consegui encher a mão, em uma primeira catação das que pintavam o chão de pontos vermelhos, 1) vistos de fora da projeção da copa do arbusto. 2) Aproximei da projeção da copa e vi que nela havia algumas frutas pendentes que podiam ser colhidas simplesmente com as mãos na ponta dos dedos, braços estendidos, e assim o fiz. Ao colher essa segunda leva de frutos, percebi que a cada ângulo de onde eu visava a copa, descobria 3) outros frutos maduros, pedindo colheita. Bastava mudar de posição em um grau que fosse, para descobrir frutos novos, como se estivessem em uma inocente brincadeira de esconde-esconde, ou esconde amorstra. 4) Outros ainda, vistos quando desta terceira rodada, estavam fora do alcance das mãos. Não hesitei em buscar uma escada de alumínio, destas que a gente abre e se apoia bem para este tipo de operação de risco. Colhi as que pude apreender nesta quarta forma de investida para juntar o que fosse possível para transformar em suco. 5) Arrodeei a planta movimentando a escada e retirando tudo o que conseguia visualizar, sem comprometer a estabilidade daquele encompridamento de pernas que a escada me permitia. 6) De cima da escada, vi que havia deixado passar frutos que de baixo, não enxergara, e retornei ao chão para colher, depois daquela vista do alto, às que me foram possível descobrir no que posso chamar de quinta investida. Ao colher estas, desta vez

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Professor associado do Programa de Pós Graduação em Agriculturas Amazônicas do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Pará.

In: SOUTO Francisco José Bezerra; DUQUE-BRASIL, Reinaldo; SOLDATI, Gustavo Taboada; MING, Lin Chau; COSTA NETO, Eraldo Medeiros (Org.). 'Quando pensa que não...' Contos, causos e crônicas em Etnoecologia v. II. 1ed. Feira de Santana: Zarte Editora, 2016, v. 2, p. 8890.

7) olhando por baixo e por dentro da copa da árvore, verifiquei que havia frutos que não haviam sido vistos quando eu olhei de cima e de fora da copa em todos os posicionamentos anteriores. 8) Para colher estes, uns eu pude fazer posicionando a escada na mesma posição anterior, e abrindo a copa, para chegar nas frutas anteriormente não vistas. 9) Outras porém estavam fora de alcance e tive que inventar acessos para poder obtê-las. Mesmo depois de ter colhido todas as que pude ver, comentei com um sobrinho (Daniel), que fora convocado para me auxiliar a colher as que estavam nos ramos mais altos e que exigiam posições mais arriscadas, no topo da escada de alumínio. 10) Ele mostrou-me, rindo, outras frutas que eu não tinha visto em nenhuma das investidas anteriores que fizera. Durante este exercício de descobrir acerolas em um único pé, de diferentes perspectivas, fiquei me perguntando quanto pode um determinado objeto nos ser fluido e difícil de captar e compreender em sua totalidade, e do que precisamos para ter, dele, o melhor conhecimento possível. Pensei em uma aula de epistemologia em que pudéssemos fazer o exercício com os alunos, orientando para que cada um fizesse uma destas investidas, utilizando apenas uma forma ou ângulo de visada: 1 de fora e distante da árvore, para colher apenas as que estivessem no chão; 2 De perto da árvore, colhendo todas as que estivessem ao alcance das mãos; 3 as descobertas depois da colheita anterior, identificadas ao se fazer um deslocamento ao redor e por baixo da árvores. 4 De cima da escada, colhendo todas as que fosse possível ver, por fora da copa; 5 Arrodeando a copa; 6 Por baixo da árvore, colhendo todas as que descobrira olhando por cima da copa; 7 De novo, por dentro da copa, tentando colher outras que descobrira na investida anterior, e que não tinham sido percebidas antes; 8 Com a ajuda da escada e de um sobrinho, para apoiar a escada e que eu pudesse colher as mais difíceis e mais longe do alcance das mãos; 9 as vistas por outra pessoa (Daniel), e que eu não tinha visto em nenhuma das tentativas anteriores. 10) Por fim, havia ainda as inacessíveis, que emboras vistas, exigiam outro tipo de equipamento, ou estratégia, para que fossem colhidas. Entre nós, cá no sítio, costumamos dizer que essas são as de direito dos passarinhos, aqueles mesmos que reclamavam aos pios quando nos viam a retirar seu alimento. Com todos os exercícios feitos para encher uma xícara grande de acerolas que renderam uma jarra de suco, e diante dos protestos de uns bentevis frequentadores da mesma árvore, fiquei em dúvida se tinha esgotado as possibilidades de colheita, ou se

In: SOUTO Francisco José Bezerra; DUQUE-BRASIL, Reinaldo; SOLDATI, Gustavo Taboada; MING, Lin Chau; COSTA NETO, Eraldo Medeiros (Org.). 'Quando pensa que não...' Contos, causos e crônicas em Etnoecologia v. II. 1ed. Feira de Santana: Zarte Editora, 2016, v. 2, p. 8890.

ainda me restavam frutos escondidos pela folhagem e que não me foram possível colher pela ignorância que tinha deles. Associando ao processo de pesquisa, lembrando Descartes (que propunha a fragmentação do objeto nas menores partes possíveis), mas também de Francis Bacon (que propunha o contato direto com o objeto), quantas operações devemos fazer para que nosso limitado olhar possa ver mais do que o olhar deseducado de um não pesquisador? O mesmo exercício pode ser feito para qualquer objeto conhecido pelo senso comum, e que em visadas qualificadas pode revelar mais do que normalmente dele se conhece. Na elaboração esquizofrênica do pensar epistemologia, fiquei me perguntando a que outros instrumentos poderia associar este exercício, e não me ficou dúvidas de que vale essa proposta associada a filmes como Smoke (filme de Paul Auster) e O nome da Rosa filme estelado por Sean Conery. Não seria muito transformar a nossa aceroleira cuiaranense ao papel de estrela holywoodiana. A prentensão é bem mais modesta, de apenas tê-la como exemplo de um exercício de percepção do mundo.

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