Aprender a escrever no cinema: Jean Renoir, François Truffaut, Satyajit Ray (in Falso Movimento: ensaios sobre escrita e cinema, eds. Clara Rowland e Tom Conley, Lisboa, Cotovia, 2016)

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APRENDER A ESCREVER NO CINEMA: JEAN RENOIR, FRANÇOIS TRUFFAUT, SATYAJIT RAY Clara Rowland

Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. Clarice Lispector, “Menino a bico de pena”

Ao longo de Les Quatre Cents Coups (Os Quatrocentos Golpes, 1959), de Truffaut, repetem-se situações em que as crianças são confrontadas com a escrita adulta. Desde a divertida cena do ditado inicial, em que uma das crianças da turma vai sujando com tinta, uma a uma, as páginas do caderno em que deveria escrever, ficando apenas com uma capa sem papel, até ao roubo da máquina de escrever do escritório do pai, o filme de Truffaut poderia ser descrito como uma sucessão de encontros malogrados com o universo da escrita. Particularmente significativo (e menos comentado) é o momento, na primeira parte do filme, em que Doinel se esforça por falsificar uma carta de justificação do ardiloso René, e cai no erro do plagiário: copiando a carta na íntegra, esquece-se de substituir o nome do amigo pelo seu. “Peço-lhe que justifique a ausência do meu filho René...” Doinel antecipa, deste modo, o seu plágio maior aos olhos da escola, quando traduz, sem saber traduzir, o pedido

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de uma composição sobre um acontecimento importante da sua vida pelo acontecimento da leitura de Balzac. Incapazes de reproduzir a escrita adulta que recebem de fora, e sobretudo de a fazer sua, estas crianças são provavelmente das mais claras representações, no cinema, da infância como o estado que não domina a escrita, e que por isso dela expõe o funcionamento.

1 – Les Quatre Cent Coups (1959), François Truffaut

São personagens privilegiadas do cinema de Truffaut, como é sabido e veremos; mas trata-se, também, de um modo muito particular pelo qual a criança interessa ao cinema e que tentarei interrogar neste artigo. Pense-se por exemplo na insistência com que, em Les Quatre Cents Coups, a escrita das crianças é assimilada a um borrão que os adultos obrigam a limpar ou reprimir: esta representação da escrita como excesso e não transparência, irredutível à significação, abre caminho para uma interrogação do cinema do ponto de vista figural, ou material, precisamente no momento em que encena (nos casos que estamos a ver) encontros com a linguagem. Como figura que testa os limites da palavra (infans, o que não sabe falar), através dela o cinema confronta-se com a sua resistência ao discurso,1 por um lado, e com a sua materialidade e ontologia, por outro. 1 “Mais próxima do estado de infância, ou infans (literalmente, sem linguagem), a criança pequena tende a ser descoberta no limite daquilo que as palavras podem ser chamadas a contar, ou a dizer – um limite que, por seu turno, dá origem à questão de como traduzir a experiência da criança em linguagem, ou daquilo que nessa experiência, ou na imagem, fica fora do alcance do mundo das palavras e por isso lhe resiste” (Lebeau 2008: 16). [Nota: as traduções dos textos citados, excepto quando indicado, são da minha autoria.]

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A criança que não sabe escrever interessa ao cinema, também, pelo seu percurso de aprendizagem, em muitos destes casos conducente ao nascimento de um escritor (Doinel, Harriet, Apu). Não se trata, porém, da reflexividade inerente ao Künstlerroman, que faz da personagem em formação o autor virtual do texto que o narra; porque é muitas vezes contra uma possível narrativa, ou mesmo contra si própria, que a escrita se reconfigura a partir da difícil aprendizagem destas crianças. A escrita no cinema (neste cinema) apresenta-se mais como duplo dissonante do que como espelho: daí que muitas destas representações alegóricas sejam também agónicas, resultando em movimentos tensionais de aproximação e recusa entre a escrita no cinema e o cinema como imagem. Se muito já foi dito sobre a identificação entre o olhar da criança e o olhar no cinema, o que me proponho explorar aqui, concentrando a atenção em algumas cenas (quase todas finais) de filmes que tomam a relação entre infância e escrita como eixo e problema, é o modo como a personagem infantil pode ser figura de um confronto entre ideias de escrita e ideias de cinema, que tem na dupla natureza – visível e legível – da palavra escrita o seu ponto de choque, e na identificação entre criança e cinema (“movies are like kids, kids are like movies”, é a conclusão de A Story of Children and Film de Mark Cousins) a sua força figurativa.

1. Regardez-moi bien, Antoine. Vous m’avez écrit hier, et la réponse c’est moi. F. Truffaut, Baisers Volés

No final de The River (O Rio Sagrado, 1951), de Renoir, a leitura de uma carta é interrompida pelo nascimento de uma criança. A alternativa entre infância e escrita – a carta, na sua temporalidade e trânsito, é invalidada pela chegada de um bebé, assinalada apenas pelo seu choro – é construída cuidadosamente no final de um filme que tem a sua forma na tensão entre a percepção infantil das per-

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sonagens e a sua releitura a partir de uma idade adulta, condição para a escrita, que é também o tempo da narrativa e do romance (a voz off que conduz o filme). Gostaria então de começar por aqui: pelo modo como a escrita é convocada e questionada neste filme sobre a infância, revelando a não-sobreponibilidade das duas dimensões. A sequência a que me refiro abre com o trânsito de um carteiro. Atravessando com dificuldade a festa da nova estação, atrasado pelas brincadeiras das crianças que o rodeiam e cobrem de tinta vermelha, consegue por fim entregar as cartas na Casa Grande. São três cartas, mas é na verdade uma carta a três mulheres, de um só remetente, Captain John, para cada uma das jovens protagonistas: Harriet, Melanie e Valerie. Enquanto as três as lêem, avidamente, e o pai de Harriet disserta com ironia sobre a iniciação amorosa e a entrada na idade adulta, ouve-se subitamente o choro de um bebé. A criança por que todos esperavam nasce, dentro de casa, e as três jovens levantam-se e correm para a porta fechada do quarto onde terá acontecido o parto. Nesse gesto, as três deixam cair, esquecidas, as cartas que liam. A câmara demora-se um momento sobre as folhas abandonadas, o plano preenchido pelo choro. No diálogo final entre as três protagonistas, o jogo de oposições que a conclusão constrói é tornado explícito: HARRIET: Há dez minutos ela não tinha nascido. E amanhã estaremos habituados a ela. E ontem nós... VALERIE: Esquece ontem. MELANIE: Agora é hoje. HARRIET: E hoje, aqui está o bebé, o bebé e nós, o grande rio, o mundo inteiro e tudo.2

Neste momento do filme, a afirmação do presente é uma resposta à temporalidade da carta, que condensa em si todos os acontecimentos que marcaram a iniciação através de Captain John. O nascimento da criança bloqueia o circuito epistolar com que a cena começou e 2 “HARRIET: Ten minutes ago she wasn’t born. And tomorrow we’ll be used to her. And yesterday we... / VALERIE: Bother yesterday. / MELANIE: This is today. / HARRIET: And today, here is the baby, the baby and us, the big river, the whole world and everything.”

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2 – The River (1951), Jean Renoir

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coincide, assim, com a perda de efeito de uma escrita que viaja para trazer de volta a perturbação do passado. Se num momento anterior, também de dificuldades de escrita, o filme explicitamente questionava a distinção entre “fim” e “conclusão”, fazendo de uma criança que nasce, na história de Krishna e Rada, a marca de um eterno recomeço (e por isso não um fim), agora abraça a figura que lançou, fazendo deste tempo presente simultaneamente uma conclusão e a recusa do tempo linear que a carta parece representar. É possível ler este final à luz de um tropo recorrente na representação da carta no cinema. Se, como sugere Serge Chauvin, a carta no cinema ficciona, apenas, “quando não funciona, quando põe em causa e em crise um ou mais elementos da situação de comunicação” (2007:73), é certo que os seus modos de falência não são os mesmos da literatura (cartas roubadas, extraviadas, atrasadas). Uma encenação insistente no cinema de matriz clássica ou narrativa que representa a escrita no interior do seu universo ficcional é precisamente a negação de um efeito epistolar pela recusa da sua premissa (a comunicação na ausência), através ou da co-presença de remetente e destinatário durante a cena de leitura (pense-se na primeira carta de Vertigo [A Mulher que Viveu duas Vezes, 1958], lida por Scottie na presença de Madeleine, ou no final de Double Indemnity [Pagos a Dobrar, 1944]), ou daquilo a que, em termos muito genéricos, podemos chamar a explicitação de efeitos de presença. É o caso da despedida final de Addie Ross em A Letter to Three Wives (Carta a Três Mulheres, 1949), da resposta de Fabienne Tabard à carta de Doinel em Baisers Volés (Beijos Roubados, 1968), ou da carta rasgada que, em The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos, 1948), activa o fundido encadeado que reunirá Vicky e Lermontov na estação de Montecarlo. Também em The River, à convocação da escrita (num acto de leitura que a todos absorve) responde uma clivagem entre temporalidades (um suposto presente e um passado recusado) que pode ser também imagem de uma tensão encenada entre escrita e cinema – em que a ausência de Captain John, que a carta materializa, tem no choro sem corpo da criança o seu inegável contraponto. A representação da infância passa por esta clivagem, na imediatez encenada de um olhar necessariamente outro sobre ela – imediatez encenada que coloca, também, o problema da onto-

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logia e estatuto da imagem cinematográfica (presença ou fantasma?). A criança que reestabelece a circularidade do tempo no final de The River é o que pede que as personagens se afastem – ao mesmo tempo – das duas condições necessárias à sua representação: as implicações da escrita e do fim do seu estado de infância. A mesma estrutura – a criança como aquilo que interrompe o acto de escrita – pode ser vista no final da trilogia de Apu, de Satyajit Ray. Na conclusão de Apur Sansar (O Mundo de Apu, 1959), o protagonista é confrontado pelo amigo Pulu com uma alternativa: quando Apu lhe diz que deitou fora o romance que quis escrever desde criança, Pulu pergunta se se desfez também da ideia de paternidade – não do romance, e sim de Kajal, o filho que Apu não conseguiu reconhecer até este momento. A relação é explícita: o nascimento de Apu como autor não corresponde, ao contrário do que se poderia pensar, ao reconhecimento do seu papel de pai – o movimento do filme é inverso. Será desfazendo-se do seu projecto de escrita (que vinha sendo construído desde Pather Panchali [O Lamento da Vereda, 1955], na relação com o pai e com o teatro) que Apu recomeçará a viver. Ora, a alternativa entre o romance e a criança3 – que Apu, na cena a que refiro, começa pela primeira vez a perceber – já tinha sido estabelecida visualmente, quando vemos Apu lançando as páginas do seu manuscrito do alto de uma montanha, numa sequência de campo-contracampo que estabelece, como sugere Tesson, a destruição do seu projecto de escrita como passo necessário para que a imagem de Kajal se apresente aos nossos olhos (e aos de Apu): A cena termina com um faux raccord em campo-contracampo. O ritmo dos planos habituou-nos a uma alternância entre Apu lançando as folhas e a sua dispersão na natureza. Vemos a montanha, depois Apu, e, de repente, no lugar onde esperávamos ver a paisagem, a imagem da casa onde mora Kajal, filho de Apu. Seria difícil ser-se mais claro para nos mostrar o que são, para Apu, aquelas páginas sujas de tinta: um livro-ecrã entre ele e o mundo. (Tesson 1992: 182) 3 É uma estrutura recorrente para as personagens de Ray, que muitas vezes fazem declarações de amor precisamente através da afirmação de uma competição entre pessoas e escrita: pense-se, por exemplo, ainda no mesmo filme, na conversa final entre Apu e Aparna, em que o primeiro afirma que não ter avançado no romance é a prova mais forte da importância de Aparna na sua vida; ou na competição entre o jornal e a esposa, claramente formulada por Bhupati, em Charulata (1964).

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Depois da imagem da casa, a criança aparecerá, prometendo a reconciliação final entre pai e filho e trazendo de volta, para o espectador, a imagem de Apu criança de Pather Panchali. Também aqui, como no final de The River, a reunião da infância e da idade adulta reestabelece a circularidade do tempo.

4 – Apur Sansar (1959), Satyajit Ray

A descrição que fiz do final de The River, porém, estará incompleta se não referir aquela que é, de facto, a conclusão do filme. Enquanto as três figuras femininas olham para o interior da casa, a câmara move-se e encontra, por detrás delas, a imagem do rio, com o regresso da voz off de Harriet adulta a repetir o poema da jovem Harriet, que já tinha sido dito anteriormente sobre imagens semelhantes. O dia acaba, o fim começa: e este filme, que abriu com a inscrição de uma figura de boas-vindas, desenhada a tinta, pode enfim terminar numa voz que tem como única ancoragem a escrita, e a sugestão de uma passagem da jovem Harriet, que viveu estes acontecimentos, à escritora adulta, que os narra. Se há continuidade entre a descoberta das três jovens e a conclusão circular da narradora, é também porque o filme encontra, com a repetição da

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infância, o fim da infância. Pense-se mais uma vez na diferença entre o choro da criança – que, como acontecimento, tem efeito oposto ao de uma voz acusmática – e a voz desta instância autoral que situa todo o filme no passado. É o paradoxo da representação da infância, que o pai de Melanie cristaliza, depois da morte de Bogey, no seu comentário emocionado sobre as crianças que se salvam porque morrem ainda crianças – antes que as obriguemos a deixar de o ser. É por isso interessante ter em conta que esta instância autoral foi, de facto, decidida por Renoir num momento tardio da preparação do filme, e apenas perante a dificuldade que os primeiros espectadores mostravam na compreensão de uma história contada do ponto de vista da criança. De facto, a tensão entre uma perspectiva infantil e a narração retrospectiva, e autoral, de Harriett, parece ter sido um dos pontos decisivos da elaboração de The River, de acordo com Prakash Younger: Ao ficar a saber desta mudança drástica, que efectivamente faz com que a Harriet mais velha pareça ser a autora do filme inteiro, uma Godden ansiosa escreveu a Renoir, dizendo estar preocupada com a possibilidade de todo o “mistério” da infância que se tinham esforçado tanto por recriar tivesse desaparecido; Renoir respondeu para lhe garantir que ainda lá estava. O mistério da infância, efectivamente, está ainda em The River, mas a preocupação de Godden de que se perdesse também não está errada. O tema novo que este obstáculo final permitiu a Renoir descobrir foi o modo como a infância, e tudo o mais, se perdeu. (Younger 2013: 170)

O nascimento da criança, no final de The River, é assim balizado por uma dupla moldura, assente nos efeitos da escrita: as cartas de Captain John e a voz que narra (ou seja o romance – de Harriet ou de Godden). Nisto, a representação do nascimento assinala a sua posição impossível: bloqueando e parecendo recusar a instância (a escrita, a narrativa) que lhe dá acesso, o choro é signo de um presente que só pode ser afirmado, porém, narrativamente. A criança que bloqueia a escrita é assim inscrita no tempo que supostamente suspende, poderíamos dizer; o que nela é a recusa do efeito ausente de uma voz off que sonoriza a escrita volta a ser contido por aquilo

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a que, enquanto figura, resiste. É disto que nos falam, quero sugerir, as narrativas de interacção e contraste entre a escrita dos adultos e a escrita das crianças que iremos ver.

2. O que caracteriza a linguagem humana não é a sua pertença à esfera exossomática ou à esfera endossomática, e sim o modo como está, digamos, a cavalo entre as duas, sendo por isso articulada sobre a sua diferença e, ao mesmo tempo, sobre a sua ressonância. G. Agamben, Infanzia e Storia

Numa recensão publicada nos Cahiers (“Amphisbetesis”), Serge Daney comenta a estrutura de L’Enfant Sauvage (O Menino Selvagem, 1970) para analisar aquela que lhe parece ser a questão central da obra de Truffaut: a tensão entre uma falta temporária de referência e a dolorosa reconstituição do vínculo entre “palavras” e “imagens”: De que se trata, afinal? Qual é o objectivo perseguido por Itard no filme, objectivo tão essencial que nada se diz do seu malogro final: forçar a criança a estabelecer uma relação de equivalência entre a palavra (escrita e falada) e a coisa (mostrada), forçá-la também a preencher um intervalo, enorme quando o filme começa, menor quando termina. (...) O que cada filme [de Truffaut] põe em cena é a falta temporária do referente, o eclipse momentâneo de qualquer garantia, e a sua lenta reinscrição no filme, à medida que avança. (Daney 2001: 116)

Em L’Enfant Sauvage, Itard esforça-se para levar a criança a ultrapassar este hiato; e Victor enquanto criança parece ser uma figura de resistência a esse desenho, como transparece na famosa (e terrível) cena em que a criança colapsa perante um quadro negro marcado por palavras de que foram apagadas as imagens correspondentes. O exercício é simples: ver na representação alfabética dos objectos o equivalente da sua figura. Porém, como sublinhará

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Itard, o intervalo entre escrita e figura é, para Victor, uma distância imensa, que a criança não sabe e não pode, naquele momento, ultrapassar. Perante “o eclipse momentâneo de qualquer garantia” que a escrita enquanto escrita representa para a criança, Victor só saberá reagir com a violência do corpo.

5 – L’Enfant Sauvage (1970), François Truffaut

Numa cena como esta percebe-se que, de todos os filmes de Truffaut, é provavelmente este aquele em que se leva mais longe a interrogação da relação entre escrita e cinema, por um lado – tão importante para Fahrenheit 451 (Grau de Destruição, 1966), L’Histoire d’Adèle H. (A História de Adèle H., 1975) ou L’Homme qui Aimait les Femmes (O Homem que Gostava de Mulheres, 1977) –, e entre cinema e infância, por outro. E em que essa dupla relação é transportada, abertamente, para um plano teórico, que na construção rarefeita do filme (cuidadosamente recortado em torno de um processo) assumirá também forma agónica e alegórica. A relação entre a criança selvagem (radicalização extrema da privação da esfera discursiva) e o pedagogo, reforçado enquanto figura da escrita pela complexa temporalidade, permanentemente cindida entre acção e comentário, que o filme lhe atribui, será o terreno em que o tema do filme (a educação da criança como projecto, limite

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e relação) e a interrogação teórica do meio de representação (o cinema e a sua articulação entre imagem e som, entre visibilidade e legibilidade, entre efeitos de presença e marcas de ausência) se irão sobrepor de forma indestrinçável. Jean Collet sugere indirectamente que, neste filme, progresso da criança e progressão narrativa parecem coincidir.4 Gostaria de levar mais longe esta afirmação, chamando a atenção para o modo como o filme se organiza, formalmente, a partir da teleologia do plano pedagógico de Itard. Nesta cena de escrita, tal como nos exercícios sucessivos que Itard prepara para a criança, que lentamente a aproximam da representação alfabética, o seu funcionamento é claro: os exercícios obedecem a uma lógica da substituição, a palavra representando, por fim, aquilo que já não é visível, funcionando de forma abstracta e autónoma. O acesso à linguagem, para Itard, é o acesso ao objecto em ausência. Como sugere Blanchot em “Parler ce n’est pas voir”, a partir da etimologia da palavra stylet – cortar, escrever –, a natureza da escrita é a de um corte: ela toma a coisa por onde ela não se toma, não se vê, nunca se verá (Blanchot 1969: 40). São muitos, aliás, os momentos em que o filme o sugere visualmente, quer com raccords explícitos entre instrumentos de escrita e instrumentos de corte, quer associando abertamente o acto de escrita e acções como cortar, separar, cegar ou, muito simplesmente, não ver a criança que partilha o plano, dividindo-o internamente. É o que acontece, por exemplo, na cena em que Itard atravessa diagonalmente o pátio, de olhos postos na carta que recebeu sobre o destino de Victor, sem erguer o olhar para a criança que está a cortar lenha; ou nos inúmeros planos em que Itard, escrevendo no seu caderno, parece ocupar, no espaço do escritório que partilha com Victor, um lugar tão afastado como a voz off que o caracteriza. No episódio do quadro negro, os objectos são postos em relação com figuras que são postas em relação com palavras. Victor conseguirá ir do primeiro ao segundo grupo, e chegará a ver na representação alfabética outra figura, mas nunca dará o derradeiro passo, 4 “Este medo [de que Victor fuja] subjaz à progressão dramática do filme (aquilo a que Itard chamará os progressos da criança)” (Collet 1977: 177).

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aquele que lhe permitirá ver a escrita como legível. O seu colapso acontece quando Itard, apagando as figuras, pretende que a criança estabeleça uma relação sem apoio entre palavra escrita e objecto do mundo: e é isso o que Victor, em rigor, nunca conseguirá fazer. A palavra LAIT – a única que Victor dirá e escreverá no filme – é pronunciada sempre na presença do leite que recebe; e repetidamente os exercícios que cumpre, como o próprio Victor aponta na cena em que não consegue ver relação entre si próprio e a escrita do seu nome, são feitos por associação, com o efeito de trazer para o mesmo plano visível as palavras e as coisas que o professor levara para longe da vista. Podemos então regressar à sugestão de Daney de que o filme se constrói sobre um hiato a ultrapassar, sobre o intervalo entre signo e coisa, e ensaiar uma redescrição do que se passa neste filme sobre escrita e infância a partir dos exercícios que formalmente o compõem. Enquanto a premissa do filme parece de facto ser a reconstituição da ligação entre palavras e imagens, não é tão certo que o movimento do filme corresponda à teleologia substitutiva de Itard: é, de facto, no jogo nunca resolvido entre Victor e Itard que essa premissa se inscreve enquanto hiato, a criança aparecendo, na sucessão das cenas, como uma figura de contraponto, reintegrando a co-presença que o professor insistentemente corta por razões pedagógicas. É a isso, de várias formas, que o espectador assiste, na figura do exercício repetido até à exaustão. E é, de certa forma, o que Truffaut já encontrava acentuado no relatório de Itard que lhe serviu de material: segundo o médico, as crises de Victor deviam-se ao desgosto por tarefas “de que, na verdade, não conseguia perceber a finalidade” (Itard apud Malson 1964: 179). O movimento da criança no filme, de cena para cena, parece responder à direcção do plano do educador com gestos de sinal contrário. Ora, é possível que o exemplo mais claro deste movimento antagónico esteja, como em The River, no fim do filme, e numa carta que a chegada de uma criança interrompe. A sequência final abre com um Itard resignado, que perante a fuga de Victor escreve às autoridades uma carta de renúncia das suas funções de educador: “acho que não voltaremos a ver Victor”. Nesse instante, a carta é desmentida pela entrada súbita de Victor no plano, enquadrado pela janela que marca, ao longo do filme, o doloroso limiar entre o

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espaço doméstico e o espaço natural. O contraste é reforçado, ainda, pela representação complexa da cena, em que a carta se constrói no jogo entre texto e voz off, de um lado, e Victor que irrompe com o seu mutismo, que carregará até ao enigmático plano final, reminiscente do olhar de Doinel no final de Les Quatre Cents Coups. Sobre esse plano, dirá Vicky Lebeau: Não sendo, ou não sendo apenas, o objecto de um conhecimento humanista, a imagem de Victor em L’Enfant Sauvage transforma o seu mutismo, o seu rosto, na imagem de uma cena outra – um além da linguagem, da fala, e mesmo do chamado. Retirando-se da continuação da história de Victor, Truffaut abre o cinema a essa cena, levando o seu público até ao limite do que pode ser conhecido e mostrado da criança – ou, mais precisamente, até à criança, ao rosto da criança, como a imagem desse limite. (Lebeau 2008: 83)

A cena final da carta pode então ser vista como o momento que reorganiza a tensão que procurei até aqui descrever, porque representa como simultâneas as duas dimensões que, desde o início, o filme está a contrapor. Pense-se na estrutura do começo: as imagens de Victor na natureza (imagens de filme mudo, como tantas vezes se sublinhou) e posteriormente da sua captura (aventurosa, ruidosa) são interrompidas por cenas de escrita e leitura no espaço privado de Itard. Depois dos 8 minutos iniciais em que a vida do selvagem é literalmente inventada perante os nossos olhos (tudo ali é certo, porque ninguém sabe ao certo como será uma criança selvagem), Itard, no seu escritório, lê no jornal (em voz alta: entrada do discurso no filme) o relato dos acontecimentos; depois da cena da primeira fuga, Itard é retratado a escrever no seu diário (a escrita dobrada pelo som: entrada da voz off no filme); depois das imagens do transporte de Victor para Paris, Itard, também em Paris, e antes da chegada da criança, lê também em voz alta, para Pinel, o primeiro relatório sobre o estado da criança. Ao espectáculo mudo (óptico) do corpo do selvagem, a montagem sistematicamente responde com um movimento de sinal contrário, reiterando verbalmente aquilo que o filme mostrou, e atribuindo a Itard a dupla dimensão do domínio da escrita e da palavra. É neste contraste que Victor, no filme de Truffaut, começa a definir-se infans.

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Esta alternância só se interrompe com a chegada de Victor à casa de Itard, e com o início do processo de aprendizagem que fará com que a forma do filme – estranhíssima, como vimos – coincida totalmente com a figura do exercício, com toda a sua ambivalência, até à fuga final. Nesse longo intervalo, o filme é atravessado pelo acto de escrita de Itard numa temporalidade mais complexa, porque contínua e tecida na unidade de acção: descrevendo e comentando os seus actos num tempo impossível (muitas vezes Itard afasta-se de Victor, literalmente a meio da cena, para se recolher nesse duplo mundo da palavra escrita e dita), cortado do código de representação pela voz off, Itard move-se continuamente para dentro e para fora do espaço da acção, fazendo da sua voz, paradoxalmente, uma voz over, porque exterior à acção, mesmo sem sair do plano. Se Victor é um corpo, Itard é sem dúvida um texto – o texto do filme, aliás, que se debruça assim sobre a sua matéria, apenas para a comprometer com aquilo que a contraria. Se pensarmos como um efeito semelhante – em chave cómica ou grotesca – marca Jeder für sich und Gott gegen alle (O Enigma de Kaspar Hauser, 1974), de Herzog, através da figura do relator, vemos como parece ser a figura da criança excluída da linguagem a activar este contraste entre excesso e recusa do discurso.

6 – L’Enfant Sauvage (1970), François Truffaut

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É por isso mais significativo que a cena da carta retome a contraposição inicial entre o acontecimento da presença de Victor e um regime de descrição verbal e escrita, mas de forma invertida: neste final, é a chegada de Victor que vem interromper o movimento da escrita, levando Itard para o exterior da casa e para o enquadramento da janela que fora até então, ao mesmo tempo, privilégio do selvagem (o seu espaço de fuga, e de sonho) e a forma do olhar que sobre ele o filme debruçou. Aquilo que a escrita descreve como ausente, o filme representa com a presença da criança, mais uma vez. Se, como sugere Collet, a janela do escritório de Itard é o espaço simbólico do filme, no qual o filme se escreve, ou seja através do qual coloca “uma distância – uma palavra, um ecrã – para filtrar as imagens”, renunciando, em nome da linguagem e do espaço humano, à natureza,5 é importante que, neste momento final, Victor e Itard, criança e educador, estejam, por uma vez, do mesmo lado: Itard abandonando a escrita para encontrar Victor lá fora. Só por um momento, porém: levado para dentro de casa, Victor é imediatamente prometido à continuação dos exercícios, no plano final das escadas que opõe, de novo, o discurso de Itard ao mutismo de Victor, agora com a figura afectiva de Madame Guérin como eixo. A conclusão de um filme tão centrado sobre espaços de transição (janelas, portas) será, precisamente, um momento suspenso num processo em aberto, inteiramente dependente da relação e da co-presença6 entre educador e criança (no fundo, aquilo a que Victor regressa), e na manutenção da educação no interior desse círculo pedagógico e afectivo. A infância de Victor, no duplo sentido de estar fora da linguagem 5 “É nessa passagem, nesse ecrã dentro do ecrã, que o filme se inscreve e se escreve. Porque escrever, e filmar (para Truffaut-Itard, são uma e só coisa) é renunciar à presença fascinante do mundo. É colocar uma distância – uma palavra, um ecrã – para filtrar as imagens” (Collet 1985: 77). 6 Sobre a importância da relação entre Itard e a criança, no caso histórico, e a sua reavaliação contemporânea, cf. Benzaquén 2006: 185-212. O gesto decisivo de Truffaut, a este respeito, é a acentuação da equivalência entre a dicotomia educador-criança e a relação pai-filho, como é visível nos seus comentários sobre a importância da sua decisão de interpretar “o adulto, o pai” no filme e sobre a dedicatória a Léaud (Truffaut 1985: 115-116). Muito interessante é também a aproximação que o realizador faz entre Adèle H. e este filme: “Aquela biografia comoveu-me muito, talvez porque representa o outro lado da moeda em relação a L’Enfant Sauvage. Tal como a criança do Aveyron, Adèle tem um problema de identidade, mas agora é o contrário, porque ela é a filha do homem mais famoso do mundo” (apud Gillain 1991: 209).

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(infans) e estar na posição da criança, é mantida como intervalo permanente ou suspensão irresolúvel entre as forças da sua posição (natureza, cultura, etc.). Não estamos longe, na verdade, da caracterização intervalar que Agamben faz, em Infazia e Storia, da aquisição da linguagem: uma ressonância fundada sobre a diferença interdependente das suas esferas (Agamben 2001: 61). Neste gesto, L’Enfant Sauvage revela-se o filme central de Truffaut sobre as relações entre escrita e cinema, materializando nos desafios da representação da criança o valor ambíguo ou dual da escrita nos seus filmes – paixão e destruição, criação e morte. Desta ambiguidade, as figuras divergentes e complementares das book people, no final de Fahrenheit 451 (nas quais o corpo é o livro ausente), e do livro como caixão no final de O Homem que Amava as Mulheres (onde a publicação só pode equivaler a um funeral) serão talvez os extremos. Aqui, a criança parece situar o filme no coração desse intervalo, tensional e irresolúvel, em que aprender a escrever é também – dolorosamente – uma forma de aprender a ver a escrita.

3. P.S. Diz a Charu que não deixe de escrever. S. Ray, Charulata

Nos filmes de Satyajit Ray, escrita, infância e correspondência são muitas vezes postos em relação, quer directamente (como em Postmaster, 1961) quer indirectamente (como em Charulata, 1964). Gostaria de concluir esta proposta de leitura com alguns breves apontamentos sobre estes dois casos, pelo modo como se oferecem ao mesmo tempo como contraponto e clarificação do que me parece estar em causa na conclusão suspensa de L’Enfant Sauvage. Primeiro momento de Teen Kanya (Três Mulheres, 1961), tríptico composto por três episódios adaptados de contos de Tagore, Postmaster é particularmente interessante para o que até aqui se disse, e sobretudo para uma leitura das implicações do regresso de Victor ao círculo de Itard. Nessa história sobre um jovem da cidade que

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aceita um emprego como carteiro numa aldeia do interior apenas para se descobrir incompatível com a vida no campo e abandonar o posto à primeira contrariedade, Ray condensa uma pequena narrativa sobre a aprendizagem da escrita. Na cena central – que é uma cena de viragem – do filme, o protagonista é interrompido na leitura de uma carta que recebeu da mãe pela chegada de Ratan, a criança que trabalha para ele. A rapariga pergunta-lhe de quem é a carta, e vai depois a correr apontar a imagem da mãe na fotografia de família: é o primeiro gesto a sugerir que estamos próximos das preocupações teóricas de L’Enfant Sauvage, que aqui nos são apresentadas de forma invertida. Aí, Itard tentava levar Victor a perceber que a palavra escrita por Victor no quadro era o seu nome, quando Victor apenas via nela a relação com outra palavra; aqui, Ratan reconduz a carta a uma imagem de família, associando palavras e imagens, imagens e pessoas. Essa passagem será determinante para a relação que se estabelece entre os dois protagonistas, pois o projecto de aprendizagem da escrita que se instala imediatamente depois tem como finalidade, para Ratan, a entrada de direito naquele conjunto familiar: se a irmã do carteiro, além de cantar, como Ratan, sabe também ler e escrever, será esse o desejo da personagem infantil. Assim, a vontade de aprender a escrever vem aqui da criança;7 e o momento em que o acto de escrita é activado é também o momento em que o filme se põe em movimento (em contaste aberto com o ritmo interrompido do início, contando a difícil chegada do carteiro à aldeia indiana; e do final, brusca interrupção determinada pela doença e pela partida definitiva do protagonista). A figura desse movimento é a circulação do correio, que agora aparece, na montagem, ao ritmo dos progressos de Ratan. Como acontece frequentemente nos filmes de Ray, a relação pedagógica inverte-se: é através da criança que o carteiro relutante finalmente cumpre o seu papel, e o movimento da escrita, pautado pela música, é representado em articulação com o progresso da escrita dela, da letra à palavra, e da relação afectiva com o carteiro à capacidade de escrever o seu nome. 7 Aparajito (1956), o segundo momento da trilogia de Apu, inscreve esse desejo de forma explícita na construção do percurso da personagem infantil, e em particular na cena em que Apu observa, de longe, as crianças a entrarem na escola.

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7 – The Postmaster [Teen Kanya] (1961), Satyajit Ray

Mas este movimento é imediatamente bloqueado, como sugeri, pela doença do carteiro, e pelo seu acto final de cobardia – um traço tão típico dos protagonistas masculinos de Ray. É aqui que se percebe que, apesar de o movimento do filme parecer o oposto do que sugeri para o filme de Truffaut (a criança, aqui, parece estar do lado da escrita), na verdade estamos perante situações muito próximas. Porque, ao renunciar ao emprego, o carteiro separa-se, com a mesma displicência, de Ratan e da condição improvisada de professor, revelando, com esse gesto, que o que estava em causa eram duas concepções de escrita radicalmente diferentes. Para o adulto, outros podem substituí-lo na educação da criança, um fim em si mesmo, tal como nas suas outras funções: ao deixar a casa, pede ao novo carteiro que complete a tarefa interrompida, a de ensinar a Ratan a formar palavras. Para Ratan, aprender a escrever é um acto não desvinculável de uma relação de destinação (daí a aproximação entre aprender a formar palavras e aprender a nomear) – uma correspondência, poderíamos apropriadamente dizer, que revela a fundamental coerência temática e teórica deste filme que junta correios e alfabetização. Como em Truffaut, onde os educadores

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operam por corte e substituição, são as crianças a reafirmar insistentemente o círculo da relação. Não é aliás outra a tensão final da outra grande adaptação de Tagore, Charulata, provavelmente a meditação mais sofisticada de Ray sobre esta ligação recorrente entre escrita e traição e, indirectamente, também sobre uma passagem à idade adulta. Aí, a aprendizagem da escrita (literária, neste caso) é reiteradamente representada como um processo violento, que não pode ser separado, em momento algum, da paixão amorosa. Como sugere Tesson, o drama de Charulata é que “não pode escrever sem amar e amar sem querer logo escrever” (1992: 186). A traição de Amal, professor renitente, como a do carteiro do filme anterior, está toda condensada num post scriptum a uma carta de despedida: “Diz a Charu que não deixe de escrever”. A escrita, para a personagem masculina, é também aqui uma finalidade em si, sujeita ao regime de substituição dos seus catalizadores; enquanto para Charulata, como para Ratan, a escrita é, de facto, um acto epistolar – mas um acto epistolar em circuito fechado, em que remetente e destinatário têm de estar presentes um ao outro, como nas representações cinematográficas da carta que referi no início deste texto. Só o círculo afectivo da correspondência responde, para elas, à pedagogia. Não há, no fundo, representação ou substituição para estas personagens infantis, como aliás a relação de Doinel com o plágio também parecia indicar. Khane-ye Doust Kodjast (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987), de Kiarostami, onde a possibilidade de fazer os trabalhos de casa pelo outro só é conquistada no termo da viagem de iniciação e alterização da criança, poderia ser visto como um longo comentário ao que aqui se sugere. No final de Charulata, a escrita assume, por fim, o desaparecimento e a ausência como sua forma, na carta que domina a sequência final, trazendo Amal, de novo e fora de tempo, para o espaço da casa, mas apenas como voz over distanciada e já sem corpo (o vento e a tempestade que invade o quarto assinalam-no). Quando é finalmente possível, para a escrita, absorver o corpo ausente, o jogo da infância encontra o seu termo – já o tínhamos visto na voz over de The River. Tal como em Postmaster, a ligação entre corpos e palavras foi violentamente cortada. E se L’Enfant Sauvage se fechava

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sobre uma figura da suspensão – a tarefa infinita de ultrapassar a distância representada pela diferença e interdependência de criança e educador a ser relançada como limite do filme –, no cinema de Ray, quando a escrita finalmente impõe o seu funcionamento fantasmático (um corte sobre o corpo, que a voz over assume e representa), o filme responde-lhe com a destruição da escrita (a carta rasgada por Charu). Também aqui, porém, a ressonância diferencial entre escrita e cinema regressa, nos famosos paralíticos finais que congelam o filme de Ray, quando à escrita se renuncia, no limiar entre as esferas que o punham em movimento.

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Bibliografia Agamben, Giorgio (2001), Infanzia e Storia. Distruzione dell’esperienza e origine della storia. Turim: Einaudi. Benzaquén, Adriana S. (2006), Encounters with Wild Children. Temptation and Disappointment in the Study of Human Nature. Montreal, Kingston: McGill-Queen’s University Press. Blanchot, Maurice (1969), L’Entretien Infini. Paris: Gallimard. Chauvin, Serge (2007), “Lettres en souffrance: stratégies épistolaires dans quelques mélodrames hollywoodiens”, in [Cloarec, Nicole (ed.)], Lettres de Cinéma. De la Missive au Film-Lettre. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 73-80. Collet, Jean (1977), Le Cinéma de François Truffaut. Paris: Lherminier. Collet, Jean (1985), François Truffaut. Paris: Lherminier. Daney, Serge (2001), La Maison Cinéma et le Monde. 1. Le Temps des Cahiers (1962-1981). Paris: P.O.L. Gillain, Anne (1991), François Truffaut: le secret perdu. Paris: Hatier. Lebeau, Vicky (2008), Childhood and Cinema. Londres: Reaktion Books. Malson, Lucien (1964), Les enfants sauvages. Mythe et réalité. Suivi de Mémoire et rapport sur Victor de l’Aveyron par Jean Itard. Paris: 10/18. Tesson, Charles (1992), Satyajit Ray. Paris: Cahiers du cinéma. Truffaut, François (1985), Truffaut par Truffaut, org. D. Rabourdin. Paris: Chêne. Younger, Prakash (2013), “The River: Beneath the Surface with André Bazin”, in Alastair Phillips e Ginette Vincendeau (eds.). Malden, MA: Wiley Blackwell, 166-175.

Filmografia The River (1951). Real. Jean Renoir. Les Quatre Cents Coups (1959). Real. François Truffaut. Apur Sansar (1959). Real. Satyajit Ray. Postmaster (1961). Real. Satyajit Ray. Charulata (1964). Real. Satyajit Ray. L’Enfant Sauvage (1959). Real. François Truffaut.

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