Apresentação \"A recusa do árbitro e o desenvolvimento da cultura arbitral em Angola\" - 2014

July 15, 2017 | Autor: Sofia Vale | Categoria: Angola, Arbitation, ARBITRAGEM, Presentation of Paper in a Seminar
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A RECUSA DE ÁRBITRO E O DESENVOLVIMENTO DA CULTURA ARBITRAL EM ANGOLA1

Caros colegas, Ao ser convidada para participar neste evento de lançamento do Centro de Arbitragem Concórdia, convite que muito me honra e que desde já agradeço, fui desafiada pelo Presidente da Comissão de Gestão, o Dr. Agostinho Pereira de Miranda, a abordar o tema da recusa de árbitro à luz do direito angolano, em particular tendo em conta as regras previstas na Lei de Arbitragem Voluntária (de 2003). As situações concretas de recusa de árbitro que aqui indicarei importam, para serem devidamente compreendidas, a consideração do estágio de evolução da cultura arbitral em Angola. Por essa razão, o tema desta minha intervenção será “A recusa de árbitro e o desenvolvimento da cultura arbitral em Angola”. Começarei por retomar o que aqui hoje já foi sobejamente referido: não há arbitragem sem árbitros independentes, imparciais e competentes. A possibilidade de as partes escolherem os “juízes da causa”, em função da confiança que lhes merecem como julgadores isentos, imparciais e competentes, eximindo-se de submeter as suas contendas aos juízes estaduais, é, seguramente, o pilar da arbitragem. No caso de litígios que advêm de contratos celebrados entre particulares e um Estado, a neutralidade dos árbitros apresenta-se também como um factor essencial a ter em conta. A neutralidade do foro arbitral está intimamente relacionada com a qualidade dos árbitros escolhidos, particularmente relevante na arbitragem internacional, na medida em que o processo de arbitragem é uma forma de equilibrar uma certa desigualdade das partes. Os particulares,

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Conferência proferida no Centro de Arbitragem Concórdia, em Lisboa (Portugal), a 1 de Dezembro de 2014.

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especialmente estrangeiros, que têm contratos com o Estado Angolano, preferem um tribunal arbitral aos tribunais judiciais angolanos. A independência dos árbitros, por regra grandes especialistas, eminentes professores, está ligada a esta ideia de que o tribunal arbitral não decide em nome de nenhum Estado, dando efectivas garantias de imparcialidade e de isenção que os tribunais judiciais poderão não dar. Os árbitros são juízes privados, como decorre do art. 175º da Constituição da República de Angola, a quem se exige, de acordo com o art. 15º da LAV angolana, que evidenciem outras qualidades que dão substância aos princípios de deontologia dos árbitros, “mostrando-se dignos da honra e responsabilidades inerentes” ao encargo. Com efeito, os árbitros não representam os interesses de quem os nomeou, não estão no tribunal arbitral “em representação de”. Este é um entendimento secular relativo à arbitragem, mas, num processo arbitral de 2012, no âmbito do sector imobiliário, em que o árbitro nomeado por uma das partes se foi comportando como advogado da mesma durante a constituição do tribunal arbitral, foi preciso muita inteligência emocional para aguardar que o mesmo tivesse, em sede de tribunal arbitral, uma intervenção parcial tão inequívoca, que lhe não restasse outra alternativa senão escusar-se. Os árbitros têm, por conseguinte, de gozar dessa aura de prestígio, isenção, imparcialidade, independência e competência, de modo a serem merecedores da confiança das partes ao longo de todo o processo. E se a confiança das partes nos árbitros é, como disse, o princípio fundamental que deve perpassar qualquer arbitragem, a falta dela despoleta o mecanismo de recusa de árbitro. Ora, a questão que se coloca é “como garantir a manutenção dessa confiança”? Em resposta a esta questão, o art. 10.º n.º 1 da LAV angolana estabelece um dever de informação por parte dos árbitros de quaisquer factos ou circunstâncias que possam suscitar dúvidas quanto à sua independência e imparcialidade.

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O árbitro até pode entender que esses factos ou circunstâncias não afectam a sua independência ou imparcialidade (i.e., não são motivos de escusa), mas ainda assim, impõe-se-lhe a obrigação de os revelar às partes em litígio. Quando o árbitro não revele tais factos, e estes venham a ser posteriormente denunciados, as consequências poderão ser gravosas. Quaisquer dúvidas deverão ser aferidas “aos olhos das partes”, não de um ponto de vista objectivo, e muito menos da perspectiva do árbitro nomeado. Tal como noutros ordenamentos jurídicos, tem-se discutido em Angola a necessidade de incluir nos “contratos de árbitro” um conjunto de normas de conduta, tendentes a uma maior consciencialização por parte dos árbitros do que é a “ética arbitral”. Valerá a pena? Ou estaremos a abrir uma porta para o fomento das recusas? Na Câmara do Comércio Internacional (CCI), por exemplo, existe um questionário que os árbitros indigitados devem preencher, onde terão de mencionar quaisquer circunstâncias que possam pôr em dúvida a sua independência ou imparcialidade. A revelação de potenciais conflitos de interesses, por escrito, parece ser uma boa prática a reter. Assim se evitariam situações como as vividas num processo arbitral de 2013, no âmbito do sector diamantífero, que opunha uma empresa portuguesa a uma empresa pública angolana, e em que o árbitro nomeado pela parte portuguesa foi recusado pela parte angolana, já depois de constituído o tribunal arbitral, atentas as dúvidas sobre a sua imparcialidade porquanto o escritório do qual é sócio várias vezes representou o Estado português (accionista indirecto da empresa portuguesa, parte em litígio); isto porquanto tal facto apenas havia sido divulgado em conversa telefónica entre o referido árbitro e o advogado da parte angolana. Se falar não basta, vamos, então, escrever, dando melhor cumprimento ao dever de revelação previsto no art. 10º, n.º 1 da LAV. Esta é, aliás, a solução prevista no art. 11, n.º 2 do Regulamento do Centro Concórdia. Mas se o dever de revelação é a forma mais adequada de acautelar a independência e a isenção dos árbitros, a recusa do árbitro é o meio preventivo mais eficaz para evitar, a posteriori, a anulação ou a oposição à execução da sentença arbitral. 3

A questão que agora se coloca é “a quem cabe promover a recusa de árbitro”? A recusa pode provir das partes ou do próprio árbitro (caso em que se tratará, em bom rigor, de escusa). O principal interessado em exercer o direito de recusa de árbitro é a parte contrária àquela que o indicou. Num processo arbitral de 2004, referente ao sector diamantífero, que opunha uma empresa privada angolana a uma empresa pública angolana, um dos coárbitros estava “formalmente” registado como administrador de algumas empresas que integravam o grupo empresarial da parte que o nomeou, apesar de “de facto” nunca ter actuado como tal; aquando da sua nomeação revelou este facto à parte que o não nomeou; o incidente de recusa foi suscitado e o tribunal arbitral decidiu que não se verificada qualquer conflito de interesses; as partes ratificaram a decisão do tribunal arbitral; posteriormente, a parte que havia suscitado a recusa vem invocar que o árbitro não estava “de facto” presente nas reuniões do órgão de administração de tais empresas, mas que havia lá estado representando através de procuração; o árbitro em causa renunciou ao mandato. Admito que a recusa possa ter por base factos revelados anteriormente e que não tenham sido suficientemente considerados no momento da sua revelação pelas partes em litígio, pelo que só posteriormente a recusa é suscitada. Mas será este o caso da situação que acabei de descrever? Pode suceder que, pelo contrário, seja a própria parte que indicou o árbitro, que despolete a recusa. Tal só poderá suceder em casos de circunstância superveniente ou de que a parte só tenha tido conhecimento após a designação do árbitro (como refere o artigo 10.º, n.º 3 da LAV angolana). Ora, no processo arbitral de 2013, referente ao sector diamantífero, a que já me referi, a empresa angolana solicitou directamente ao árbitro por si nomeado que se escusasse. Depois de constituído o tribunal arbitral, não restam dúvidas de que qualquer invocação de recusa só perante o tribunal arbitral poderá ser efectuada. Por outro lado, o bom andamento do processo arbitral importa que a recusa seja aventada dentro dum dado prazo, terminado o qual não pode mais aquele 4

fundamento de recusa ser invocado. O art. 10º, n.º 4 da LAV angolana exige que a invocação da recusa seja efectuada no prazo de 8 dias a contar (i) da data do conhecimento da constituição do tribunal ou (ii) da data do conhecimento da circunstância que a fundamenta. O Regulamento do Centro Concórdia (art. 12º, n.º 1) prevê um prazo de 10 dias. Invocada a recusa dentro do prazo, mas não se pronunciando ambas as partes no sentido da recusa e não se escusando o árbitro, cabe ao tribunal arbitral tomar uma decisão quanto à recusa, tal como prevê o art. 10º, n.º 4 da LAV angolana. Sendo uma arbitragem submetida ao Centro Concórdia, cabe ao Centro, enquanto autoridade de nomeação, decidir (art. 12º, n.º 3 do Regulamento). Ora, é exactamente neste momento, quando o tribunal arbitral é chamado a pronunciar-se sobre a recusa, que se coloca um dilema: (i) o tribunal pode até entender que a invocação da recusa constitui uma manobra dilatória e, nessa medida, entender que ela consubstancia um “abuso do exercício do direito de recusa”, razão que levaria o tribunal a indeferir a recusa… mas (ii) a manutenção no tribunal de um árbitro que uma das partes recusou, em quem já não “tem confiança”, sempre despoletará futuros incidentes de recusa, com “inovadores” fundamentos e, muito provavelmente, redundará na impugnação da decisão interlocutória do tribunal arbitral e, potencialmente, num pedido de anulação da sentença arbitral. Como comecei por referir nesta intervenção, a manutenção da confiança das partes nos árbitros é essencial para o sucesso da arbitragem. Imagine-se, então, que há recurso da decisão do tribunal arbitral que indefere a recusa do árbitro para o tribunal de recurso que, nos termos do art. 10º, n.º 5 da LAV, é o tribunal provincial de Luanda. O que a parte recusante pode, no prazo de 15 dias contados desde a comunicação do indeferimento, é requerer ao tribunal (ou à autoridade de nomeação, caso exista) que decida sobre a recusa, sendo tal decisão insusceptível de recurso. A pendência deste recurso perante o tribunal provincial de Luanda (ou da autoridade de nomeação) não impede o tribunal arbitral, incluindo o árbitro recusado, de prosseguir com o processo arbitral e proferir decisões, salvo a decisão final. 5

Ora, no processo arbitral de 2013, relativo ao sector diamantífero, a que me tenho vindo a reportar, perante uma decisão interlocutória em que o tribunal arbitral se considerou competente para conhecer de algumas das questões que lhe foram colocadas (decisão sobre a arbitrabilidade do litígio), a empresa angolana levantou directamente perante o tribunal provincial de Luanda a falta de imparcialidade e de independência do tribunal; na sequência deste facto, e muito resumidamente, um dos árbitros renunciou; o tribunal provincial de Luanda pediu ao co-árbitro que se manteve e ao árbitro presidente para se pronunciarem, afirmando que “colocava os árbitros sob suspeição”, não podendo eles praticar quaisquer actos; 1 semana depois, o tribunal provincial mandou suspender a arbitragem. Como facilmente depreendemos da descrição sumária que acabei de efectuar, era o tribunal arbitral a entidade perante quem a questão da recusa de árbitro deveria ter sido levantada; o tribunal provincial de Luanda apenas se poderia ter pronunciado sobre a decisão de indeferimento da recusa proferida pelo tribunal arbitral e, sendo caso disso, proceder à substituição do árbitro (nos termos do art. 11 da LAV). No caso concreto, em que não era sequer autoridade de nomeação, deveria ter, em obediência à LAV, declinado competência. Mas voltando ao tema desta minha intervenção, imaginemos que num dado processo arbitral ambas as partes levantam sistematicamente a questão da recusa de árbitro. Poderá neste caso de sucessiva impugnação dos árbitros nomeados em substituição invocar-se o “abuso do exercício do direito de recusa de árbitro”? E, sendo caso disso, quais as consequências que daí advirão, condenação da ou das partes em litigância de má-fé? A completa ausência de controlo sobre o desfecho do litígio pode induzir uma das partes ou ambas a exercerem o direito de recusa como quem usa um recurso judicial com o exclusivo propósito de evitar o caso julgado. Esta técnica dilatória, presente tanto em arbitragens institucionalizadas como em arbitragens ad hoc, é, não temos dúvidas, um prenúncio do pedido de anulação da decisão arbitral por favorecimento do árbitro, nos termos do art. 34º da LAV angolana.

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Ainda que a utilização por uma ou ambas as partes do seu direito de recusa de árbitro seja feita de modo a desvirtuar as razões pelas quais tal direito lhes é concedido pela LAV angolana, entendo, que o direito de recusa de árbitro é, ainda assim, a melhor forma de acautelar a independência e a imparcialidade dos árbitros. É preferível suportar uma via crucis no processo de nomeação/substituição dos árbitros que permita encontrar um tribunal arbitral sólido, acima de qualquer suspeita, do que entreabrir a porta a posteriores alegações de favorecimento de árbitro. Este meu entendimento prende-se, no que em particular respeita à realidade angolana, com o que considero ser o momento presente que se vive em matéria de cultura arbitral em Angola. Temos assistido, nos últimos anos, a um crescente número de arbitragens que vão sendo realizadas no país. Os profissionais do direito que se vêm dedicando à arbitragem, hoje cada vez em maior número, estão a acumular conhecimento e experiência, procurando realizar um trabalho idóneo. Também os tribunais judiciais têm estado a procurar entender melhor qual é o seu papel enquanto tribunais auxiliares da arbitragem, tomando contacto com as regras da LAV, ainda que, reconheço, haja ainda muito trabalho pela frente. Neste contexto, a arbitragem só singrará se os árbitros forem vistos pela comunidade como “os novos sobas”, como os homens bons, os mais velhos de incontestável prestígio que, ainda hoje, em algumas comunidades rurais de Angola, têm a prerrogativa de dizer o direito. E, tal como os sobas, os árbitros só granjearão o respeito das partes se neles estas reconhecerem imparcialidade, independência e isenção, confiando na bondade e na sageza das suas decisões. Muito obrigada. Sofia Vale

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