Apresentação do Calvário. In Núcleo Museológico de Arte Sacra da Igreja do Mártir Santo- S. Sebastião. Vila Franca de Xira: Câmara Municipal, 2001, pp. 81-92

May 30, 2017 | Autor: C. Fernandes | Categoria: Medieval History, Medieval Sculpture, Medieval Sculpture and Iconography
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Descrição do Produto

rtirSaU S. Sebastião

CATÁLOGO Paulo Silva Rosário Amador

COORDENAÇÃO GERAL

Graça Soares Nunes

APOIO À CONSERVAÇÃO

ESTUDOS INTRODUTÓRIOS

Amélia Gonçalves Anabela Ferreira Patrícia Dionísio Rosário Amador

Carla Varela Fernandes Celso Mangucci Graça Soares Nunes José Alberto Ribeiro Lois Ladra Maria João Martinho Pé. Vítor Gonçalves Paula Monteiro

MUSEOGRAFIA

Amélia Gonçalves Catarina Santos Fernando Marques Inocêncio Casquinha Patrícia Dionísio Paulo Silva Rosário Amador

PRODUÇÃO

Graça Soares Nunes José Alberto Ribeiro Maria Miguel Lucas Paulo Jorge Silva

SEGUROS

Portugal Previdente, Companhia de Seguros SÁ

DESIGN GRÁFICO

5 em Tempo Design APOIOS

LTE, Electricidade de Lisboa e Vale do Tejo, SÁ

FOTOGRAFIAS

AGRADECIMENTOS

5 em Tempo Design / Vincenzo Zaccaria Museu Nacional de Arte Antiga

Gertrudes Vidal Baptista, Francisco Raul de Carvalho, Manuela Corte Real, P. Vítor Gonçalves, José Carlos Gomes.

PRÉ-IMPRESSÃO

Arte Mágica IMPRESSÃO

Palma Artes Gráficas EDIÇÃO

Câmara Municipal de Vila Franca de Xira Pelouro da Cultura - Museu Municipal Rua Serpa Pinto, nQ65 - 2600 Vila Franca de Xira Julho de 2001 Depósito legal - ns 167406/01 ISBN 972-8241-32-1 Tiragem - 2000 exemplares

Apresentação do Calvário Carla Varela Fernandes*

A imagem pétrea, dos anos finais do Gótico, que pertenceu ao Solar dos Sousas1, poderá ter sido realizada, originalmente, para uma capela integrada num edifício local de fundação medieval, possivelmente a antiga igreja matriz da vila, destruída em consequência do terramoto de 17552, ou talvez para um dos conventos da Ordem de São Francisco que existiam na vila e nas imediações. Sabe-se que da antiga paroquial vieram algumas esculturas devocionais integradas depois no espólio decorativo da actual igreja matriz. É provável que esta imagem tenha feito um percurso semelhante, desconhecendo-se, até ao momento, o processo de entrada no espólio do desaparecido palácio. Ao que tudo indica, a imagem nunca integrou qualquer altar da pequena capela palaciana, encontrando-se sim num nicho da cerca que protegia a aristocrática construção. Em 1959 a imagem foi doada por um dos últimos proprietários, Joaquim Ramalho, ao Museu de Vila Franca de Xira , local onde se encontra até hoje. Actualmente, tem vindo a ser objecto de interesse, estudo e intervenção por parte do Museu Municipal, especialmente no que se refere ao seu restauro e estudo dos pigmentos das diferentes camadas de policromia que a peça recebeu ao longo dos tempos. A fortuna crítica desta obra é muito incipiente, tendo sido apenas alvo de um pequeno estudo publicado em 19723, no qual é identificada como sendo a representação do conhecido tema da Verónica, isto é, a figuração da mulher que limpou o rosto de Cristo antes da Crucificação, ficando a marca da Santa Face gravada no pano utilizado para o efeito. De um modo geral e algo padronizado, a Verónica caracteriza-se * Doutoranda na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, na qualidade de bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 1 . O Solar dos Sousas. de construção setecentista, foi popularmente conhecido por Palácio da Vitafrancada, lugar onde decorreram os momentos mais intensos da revolução encabeçada pelos dois partidos do reinado de D. João VI. Obra arquitectónica de referência para a cidade, não apenas sob o ponto de vista histórico, mas também patrimonial, foi destruído em 1973 para dar lugar a uma construção actual de suspeito gosto estético. 2 . Veja-se José Manuel VARGAS. -Memórias Paroquiais de Vila Franca de Xira-. Boletim Cultural. n! 4. Câmara Municipal de Vila Franca de Xira. 1989/90. p. 68. 3 . P.e João Pires de CAMPOS. -Imagem de pedra - Verónica - que está no Museu de Vila Franca de Xira-. 25! Aniversário da BibliotecaMuseu Municipal Dr. Vidal Baptista. Boletim Comemorativo. Vila Franca de Xira. 1972. pp. 145-148.

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nomeados, ou exemplares em que a apresentação de Cristo é feita por figuras que em algum momento das suas vidas tiveram a visão da Crucificação. A questão torna-se problemática, neste caso concreto, quando à figura de Cristo crucificado se juntam as figuras da Virgem e de São João. Resumindo, o que está aqui em questão é a dificuldade em perceber qual a relação existente entre esta figura maior com a cena do Calvário, ou melhor, a relação entre as hagiografias e esta forma de representação, não se encontrando, até ao momento, qualquer paralelo passível de ser estabelecido. Se considerarmos estar representada a enigmática figura da Virgem Maria, então será possível estarmos diante de uma incongruência iconográfica, ou mais especificamente, diante de uma criação imaginativa que pretende dar resposta a uma ideia presente na mente do artista ou, com maiores probabilidades, na mente do encomendante. Apesar de pouco frequente, este tipo de ocorrências não deixa de estar presente na arte medieval, com especial relevo para os dois últimos séculos, numa estreita relação com o misticismo. Como bem refere Sixten Rigbom a linha estabelecida entre as inovações artísticas do século XIV conhecidas sob a designação de Andachtsbildere o misticismo do final da Idade Média parecem implicar uma ligação efectiva entre os significados teológicos e artísticos e a palavra "imagem". O mesmo autor refere ainda que estas imagens de piedade, fruto do misticismo fervoroso, ultrapassam os limites estabelecidos pela elite espiritual e aproximam-se cada vez mais de conceitos e ideias concretas, transpondo para a forma artística o resultado de visões e suas respectivas interpretações. É hoje aceite pela generalidade dos autores que aprofundaram estas matérias, que as inovações iconográficas que podem ser consideradas como a transposição de visões experimentadas, seriam de facto o resultado de uma evolução contínua da iconografia ou mesmo uma influência recíproca da arte e do misticismo9. É pois possível que estejamos diante de uma imagem marcada não somente pelas características próprias da devoção individualizada, experimentada na vida religiosa tardo-medieval, mas antes de mais, de uma transposição para o plano material de uma visão ou de um ex-voto individual. Na sequência da possibilidade de se tratar da representação da Virgem e se compararmos esta imagem com a tipologia comum das Santíssimas Trindades, então a ) . Sixten RIGBOM. í.es Images de Dévotion, < X//"-Xv Sièclel, Paris. Gérard Monfort. 1995, pp. 9-10.

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Virgem Maria faz a vez de Deus Pai. É a Mae de Cristo que nos apresenta o filho crucificado. Mas, diferente das figuras de Deus Pai que apenas cumprem a função de apresentadores ou demonstradores, a Virgem, neste caso concreto, não só apresenta como é parte interveniente da cena que se pretende demonstrar. A mensagem que a figuração maior de Nossa Senhora nos transmite funcionaria então como uma espécie de in memoriam da morte de Jesus, à qual ela assistiu e aqui recorda, correspondendo ao momento mais doloroso de todos os passos da Paixão de Cristo e logo, da Paixão da Virgem, já que coincide com as fases mais agudas da agonia e finalmente, com a morte de Jesus, perante a qual a Virgem desfaleceu. Neste momento, parece-nos a única explicação possível, ainda que sujeita a uma infinidade de interrogações, para justificar o facto da Virgem se apresentar a si própria, situação anómala e quase incompreensível. É também durante os momentos da Crucificação, que Jesus pede a São João, o seu discípulo predilecto, que acompanhe Maria até à morte desta, conferindo-lhe assim a missão de protector de sua Mãe. Não é, por isso, de estranhar que nas representações mais simplificadas do tema do Ca/vário, as duas únicas figuras que acompanham Cristo na hora da morte sejam vulgarmente a Virgem e São João, as duas pessoas que lhe estão mais próximas. Da mesma forma, em algumas Pietàs (designação genérica para o tema da Nossa Senhora da Piedade, ou Vesperbild na designação alemã), embora raras, os escultores inserem a figura de São João ladeando a Virgem com Jesus morto sobre o colo, aludindo à presença do Evangelista nos momentos coincidentes com a morte de Jesus e à sua compaixão para com as dores da Virgem10. As duas pequenas figuras representando a Virgem e São João Evangelista estão igualmente de pé e em posição frontal em relação ao observador, revelando expressões e gestos amplamente contidos: a Virgem com as mãos postas para orar, numa gestualidade tipificada neste tipo de cenas (embora também seja comum representá-la com as duas mãos sobre o peito), enquanto São João segura com as duas mãos o livro do Evangelho. Sob os pés de Cristo, encontra-se um montículo de terra onde assenta o madeiro, em alusão ao monte Gólgota, ladeado, como já se referiu anteriormente, pelas pequenas 10 . No conjunto da imaginária quatrocentista portuguesa encontramos um destes casos numa Piedade pertencente à Capela do Sacramento ou do Espírito Santo de Eira Pedrinha (Condeixa, Coimbra).

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figuras da Virgem e São João Evangelista (em conformidade também com o conhecido tema da Deesis, em que estas duas últimas personagens ladeiam Cristo entronizado, mostrando as chagas da Paixão, e ambas intercedem pela Humanidade). Nos Calvários, a figura de São João é mais comumente representada com um dos braços ligeiramente erguido e com a palma da mão sobre um dos lados do rosto, simbolizando, como bem definiu François Garnier, situações penosas e trágicas, vulgarmente manifestadas perante a morte de alguém". Neste caso, São João mostra aos crentes um dos seus atributos, o livro, simbolizando o seu próprio Evangelho12 (fíg. 3). De um modo global, a iconografia desta invulgar imagem poderá pretender ser um contraponto feminino à representação da Santíssima Trindade, substituindo-se Deus Pai por Santa Maria, ou, por outras palavras, substituindo-se a preponderância do papel do Pai pelo papel da Mãe, exaltando assim a dor materna perante o sacrifício e morte do Filho, ou seja, uma fórmula muito particular e rara de representar as Dores de Maria. Deparamo-nos, pois, com uma suprema valorização matriarcal associada à Virgem, Mãe de Deus e mãe de todas as mães. Entre o conjunto do que designamos vulgarmente por fig. 3 Pormenor da Virgem e São João Evangelista

"imagens dolorosas", as Pietàs (Nossa Senhora com Jesus morto no colo), representam outra figuração da Mater dolorosa. É o momento do êxtase doloroso, o início de uma caminhada pelo resto da vida, na qual Maria é "órfã" do seu filho13. Ao terminar a Paixão de Cristo começa a Paixão da Virgem, como se interpreta das próprias palavras de Maria nas Revelações de Santa Brígida: a Virgem aparece à santa dizendo-lhe: "As dores de Jesus são as minhas dores, porque o coração de Jesus é o meu coração". Por um lado, tal como nas imagens de Deus Pai que podemos contemplar nas Santíssimas Trindades, também aqui, a hipotética Virgem não expressa qualquer manifestação de sofrimento, revelando antes uma aparente tranquilidade mais conectada com a reflexão 11 . Veja-se François GARNIER, Lê Langage Oe l'lmage au Moyen Age. Signification et Symbolique, vol. l, Paris Leopard d'Or, 1982, pp. 102 103. 12. Semelhante ao que podemos ver em outras representações escultóricas como é exemplo o São João Evangelista do Calvário esculpido num dos faciais menores do túmulo da Rainha Santa (1330) ou pictóricas, como é exemplo uma das iluminuras que decoram o a Bíblia Moralizada da British Library, MS. Harley. 1527, foi. 12vo. 13 . Manuel TRENS. -La Piedad-, Iconografia de Ia Virgen en el Arte Espano/, Madrid, 1946, p. 204.

do que com o êxtase sofredor. Apenas o véu soqueixal que cobre a cabeça e parte do colo de Nossa Senhora, do tipo que encontramos por vezes nas imagens dolorosas da Virgem, simbolizando simultaneamente a dor, viuvez, velhice e desprezo do mundo, alude para um estado de alma penoso. O pathos da cena, ainda que pouco expressivo, é-nos dado pela visão do Crucificado, cuja tipologia em nada difere das que vemos nos conjuntos escultóricos das Trindades. No geral, a imaginária portuguesa quatrocentista e das primeiras décadas de Quinhentos manifesta-se contida e restrita no pathos teatral das cenas religiosas representadas, transmitindo-nos a sensação de que não eram necessárias verdadeiras manifestações de intenso sofrimento para emocionar e suscitar sentimentos de piedade nos corações dos fiéis, diferindo, por isso, da imaginária dos países germânicos, em especial dos finais do século XIV, em que as representações da Virgem de Piedade1* (Vesperbild) assumem excessos de angústia, uma espécie de terribilità expressa de forma muito evidente nos rostos chorosos, desesperados e lacrimejantes da Virgem, ou nos corpos esqueléticos e ensanguentados de Cristo morto. As Piedades portuguesas distanciam-se assim destes "atributos cenográficos" e revelam-se na sua emoção controlada e reflexiva. Em Espanha, a representação artística da Piedadiaz a sua introdução durante o século XIV, apresentando-se de forma pouco comum ao modelo padronizado, num exemplar aragonês: a Virgem, sedente, contempla o Filho e chora a sua morte. Este está colocado aos seus pés, deitado rigidamente sobre a tampa de um túmulo constituído por arca rectangular, decorada com cenas em médio relevo nos faciais15. Trata-se de outra forma possível de representar as Dores de Maria, embora muito rara, da mesma forma que o escultor responsável pela execução da nossa imagem de Vila Franca encontrou um meio expressivo algo inovador no panorama português para representar a mesma ideia. Inspirada ao nível iconográfico, por uma lado, nas Santíssimas Trindades para conceber a organização compositiva do conjunto em termos estruturais, e por outro, nas representações escultóricas do Calvário em 14 . A Pietà é, antes de mais, um reflexo do franciscanismo e do ambiente realista e visionário do século XIV. Dará origem a comoventes textos como as Meditações erradamente atribuídas a São Boaventura. as Efusões do beato Enrique de Berg. chamado Suso. ou as Revelações de Santa Brígida. funcionando estes escritos como uma transcrição poética das imagens criadas pelos artistas, e não ao contrário, como durante muito tempo se pensou. Como bem resume L. Réau. a Piedade "é a flor mais delicada do misticismo dos finais da Idade Média, uma flor da Paixão, uma pasionaria que eclodiu nos jardins de monjas". Veja-se Louis RÉAU. Iconografia de! Arte Cristiano. Iconografia de ta Bíblia. Nuevo Testamento, tomo 1. vol. 2. Barcelona, Ediciones dei Serbal. p. 111. 15 . Conjunto escultórico do século XIV pertencente ao Mosteiro de Casbas. Huesca (Aragão).

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tudo muito idêntica às que eram produzidas pelas diferentes oficinas de escultura nacionais (retábulos pétreos esculpidos em médio e alto relevo para decorar capelas e outros espaços religiosos do país durante a centúria de Quatrocentos e dos quais nos chegaram alguns interessantes exemplares, ou faciais de arcas sepulcrais dos séculos XIV e XV, como é exemplo o túmulo da Rainha Santa). Será, portanto, uma forma invulgar de retratar as dores de Maria ou, por outras palavras, uma expressão iconográfica possível de um passo fundamental da Paixão da Virgem. Por outro lado, existe um elemento importante a ter em conta. A alternância das figuras de Deus Pai e da Virgem em cenas ilustrativas da Paixão oferece-nos outros exemplos concretos na arte do fim da Idade Média onde se pretende representar a Pietã: em vez do corpo de Cristo morto repousar sobre os joelhos da Virgem é Deus Pai que o sustenta. São exemplos uma pintura dos últimos anos do século XIV, atribuída a Jean Mallouel e pertencente à colecção do Museu do Louvre, onde para além das duas figuras principais (Deus Pai e Jesus) o pintor representou ainda a Virgem e São João Evangelista, ou uma gravura da oficina de Jean du Pré, datada de 1488, representando Deus Pai com o Filho morto, claramente decalcada da iconografia das Virgens de Piedade16. Na imagem sobre a qual versamos o nosso estudo poderá ter ocorrido uma situação semelhante mas inversa, não causando assim estranheza ou repúdio por parte das autoridades eclesiásticas. O que permanece por explicar é a presença do Calvário, em concreto, a presença de uma segunda figuração da Virgem na mesma obra. É possível ainda levantar o véu de outra questão. Como bem nos lembrou Manuel Núnez Rodríguez, a existência de adeptos do gnosticismo (gnósticos cristãos) é uma realidade no mundo medieval. Estes entendiam a matéria, logo o corpo, como criação do Mal e não de Deus e questionavam a veracidade dos dogmas da Encarnação e da Ressurreição. Considerados pela Igreja como heréticos, as suas ideias foram arduamente combatidas em várias frentes. Para a Igreja oficial o corpo de Maria foi o escolhido para manifestação e materialização do Verbo (assumindo assim um papel crucial no dogma da Encarnação) e é com corpo de homem que Deus pode ser visto pela Humanidade e com ele cumprirá a missão redentora. Isto é, o corpo não constituiu um obstáculo intransponível para chegar a Deus. Assim, a Virgem que hipoteticamente contemplamos nesta imagem simbolizaria 16 . Émile MÃLE. Ob. cit., pp. 142

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o nascimento do Salvador que ela oferece ao mundo, projectando-se maior ênfase na visão dolorida das chagas da Paixão. A figurinha feminina que ladeia a cruz poderia assim representar Maria Madalena simbolizando aquela que teve o privilégio de ser a primeira a ver Cristo ressuscitado, testemunhando dessa forma a primeira confirmação da Ressurreição. Poder-se-á então especular que se trata de uma imagem representativa da afirmação dos dogmas da Encarnação e Ressurreição contra qualquer outra corrente de pensamento que ponha este ou outro dogma em causa. Contudo, estas e outras interpretações iconográficas que possamos fazer envolvendo a figura da Virgem como apresentadora do Calvário ficam por ora comprometidas com a falta de elementos que se possam revelar esclarecedores. Da mesma forma, a hipótese da figura feminina maior representar uma monja ligada às correntes místicas dos séculos XIV e XV (em especial dos ambientes claustrais do Alto Reno), ou mesmo figuras dos Evangelhos canónicos ou Apócrifos como Santa Maria Madalena ou Santa Ana são desprovidas de bases de sustentação válidas, ainda que possíveis17. Em conclusão, no actual momento das investigações e na ausência de informações concretas sobre a procedência da obra, do encomendador, ou dos resultados das análises laboratoriais que permitirão o conhecimento efectivo das policromias originais, possibilitando o conhecimento sobre as cores dos mantos e outras peças de indumentária das várias figuras que constituem esta obra, apenas podemos avançar com um conjunto de pistas e hipóteses que se destinam a permitir caminhos de reflexão sobre este tema, e esperar futuros trabalhos que visem um melhor conhecimento sobre esta original obra de escultura medieval. Analisemos agora o quadro produtivo em que esta obra se insere e as suas características plásticas. Sobre o mestre escultor responsável pela sua realização nada sabemos. Desconhece-se o nome, a origem e o seu percurso profissional. A realidade é que no conjunto da escultura medieval portuguesa, são poucos os escultores e em concreto os imaginários, que se encontram identificados. Porém, esse não é um obstáculo ao estudo dos muitos exemplares ainda existentes que, através do processo comparativo, 17 . No que respeita ã nossa interpretação iconográfica não podemos deixar de referir a colaboração e partilha de informações que ao longo de vários dias pudemos estabelecer com colegas e amigos especialistas em diferentes áreas, pelo que agradeço em especial aos Prof. Doutores Vítor Serrão e Manuel Núnez Rodríguez e aos Drs. João Mário Soalheiro, José Alberto Ribeiro e Luís Machado.

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possível de estabelecer entre os traços formais mais significativos das diversas obras, podemos aceder à identificação de conjuntos, designados vulgarmente por "oficinas" de escultores anónimos. Parece certo que a sua actividade se tenha balizado durante a segunda metade do século XV e talvez ainda nos primeiros anos do século XVI, tendo em conta as características formais que definem esta obra, em tudo muito semelhantes a outras datadas dos mesmos períodos. Esculpida em calcário da região de Coimbra (pedreiras de Anca, Outil, Portunhos) é possível que provenha de uma das muitas oficinas coimbrãs quatrocentistas que lavraram imagens de altar e escultura tumular para responder às encomendas de uma vasta clientela, religiosa ou não, de grande abrangência geográfica. O tipo de pregas que dinamizam os panejamentos das vestes das diferentes figuras presentes nesta obra, pertencem a um dos géneros mais correntes na imaginária quatrocentista saída das oficinas de Coimbra: caracterizadas normalmente pelo seu perfil arredondado e linear, profundamente escavadas e caindo verticalmente, transmitem a sensação de se tratar de um tecido pesado e pouco maleável, o que confere às imagens um tradicional estaticismo e pouco apego à representação naturalista e dinâmica das vestes. Neste exemplo, e tal como era comum na restante imaginária da época, os panejamentos são volumosos dominando sobre a realidade anatómica, quase sempre escondida pela volumetria das indumentárias. Os panejamentos são, normalmente, o elemento mais denunciador da mestria do artista e aquele que melhor define o seu grau de qualidade. Neste caso concreto, a recorrência a um único tipo de panejamentos nos vestidos das duas imagens femininas e na túnica de São João Evangelista, cuja monotonia é apenas interrompida, no lado direito do manto da figura maior, através de uma subtil prega em voluta, é um forte indicador da presença de um lapicida de menores recursos técnicos, talvez de uma oficina secundária, quando comparado, por exemplo, com as obras atribuídas à oficina de Mestre João Afonso (c.1439 - c.1475), cujo cuidado posto no requebro dos corpos e na volumetria e diversidade dos panejamentos são uma verdadeira "imagem de marca". Da mesma forma, as mãos das figuras que compõem este conjunto escultórico apontam para uma datação enquadrada no terceiro quartel do século XV, cuja morfologia

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produção de imaginária quatrocentista em Portugal, com origem provável nas chamadas Oficinas de Coimbra, revelando gostos, atitudes e elementos distintivos que permitem agrupá-la na produção de nível secundário, de irradiação dos grandes mestres. Não sendo uma escultura de primeiro nível no que concerne ao trabalho escultórico, o lugar que ocupa no seio da imaginária gótica nacional não deixa de ser preponderante. Tendo em conta que o tema aponta para uma criação iconografica no mínimo invulgar no contexto das oficinas portuguesas da época, e que independentemente das influências recebidas de outros temas ou de modelos iconográficos estrangeiros não se substanciou, entre nós, em nenhuma outra criação artística idêntica. Como tal, estamos diante de uma obra única, de importância capital para uma melhor compreensão do fenómeno evolutivo da devoção e espiritualidade no final da Idade Média em Portugal.

Hg. 4

Virgem do Leite

Mestre Desconhecido - Terceiro Quartel do séc. XV. Pedra calcária com vestígios de policromia e douramento. Museu Nacional de Arte Antiga (inv. 1130). Foto MNAA - José Pessoa

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